quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Mudança, de Mo Yan



Mudança é um livro bem curto e tido como um dos romances mais fracos de Mo Yan. Já no prólogo o autor conta que o escreveu para suprir um pedido não cumprido feito por um editor indiano de publicar uma narrativa política sobre as mudanças ocorridas em trinta anos na China. Mo Yan admite sua incompetência para tal projeto, mas a obsessão de moldar alguma forma aproximativa da empreitada o faz escrever uma espécie de auto-biografia em que se pode ver a visão panorâmica nacional abortada através de sua jornada de aldeão expulso da escola na quinta série, passando pelos anos no exército revolucionário até chegar à sua consagração como escritor. Para quem procura diversão rápida e uma prosa cômica concisa, a obra não decepciona, sendo mesmo bastante pródiga nas primeiras páginas. Nestas, respira-se a infância de Mo Yan, compartilha-se com ele sua fragilidade diante um mundo dominado por um sistema cuja opressão é tão onipresente que já atingiu a suavidade tensa do acondicionamento, e deleita-se com a apresentação de personagens que aos poucos perdem seus estranhamentos étnicos e se tornam familiares. O leitor sente aquele gostinho bom de estar lendo um desses livros orientais que faz o tempo parar e as fronteiras da imaginação se expandir; se lembra dos bons russos e dos bons latino-americanos; vê as aldeias com um enlevo absorvente que o faz ter a impressão de conhecer o país através das palavras ali escritas. Mas há um grave problema, que só se acentua pelo desbaratino do autor ser um completo desconhecido ao leitor e de não se ter, por enquanto, mais nenhum livro de sua lavra traduzido em português. O leitor sente o desconforto de não entender plenamente o que um livrinho como esse, desarmadoramente singelo e leve, quer realmente dizer. O leitor sente a comichão de não estar apto a saber se Mo Yan é um completo tolo ou um mestre portador de uma sutileza tão delicada que pode se esboroar no toque das mãos. Essa é a questão: acreditar nas palavras de Mo Yan, ipsis litteris, e com isso reconhecer o que alguns críticos de outros blogs nacionais que também só leram esse livreto disseram de sua vergonhosa conivência à ditadura de seu país, ou aceitar a fagulha de iluminação retroativa das últimas palavras desse romance e cogitar que Mo Yan usou de um sarcasmo fino, destruidor, auto-punitivo, que é uma chave provocativa para se ler sua posição contra todo o atraso que relegou ele e seus personagens a uma miséria física e moral. 

Na versão apostando no entreguismo total de Mo Yan, Mudança é uma leitura que em seu acriticismo absoluto chega a dar náuseas. Para o jovem Mo Yan nada é passível da mais ínfima indignação: ele é expulso da escola por uma mal entendido ridículo com um professor, que por ser esse integrante do partido o faz cair no banimento à educação formal; suas esperanças de ascensão econômica estão tão vinculadas a uma astrologia inalcançável de se cair nas graças dos influentes do poder que a reação diante a vanidade de suas tentativas mais esforçadas é de alívio resignado pela fidelidade do fracasso; sua mulher o escolheu apenas porque ele tem os olhos menos repugnantes que o outro candidato; até sua maneira de aceitar o fato de ter se consagrado como escritor é uma maneira de se desculpar pelo erro dos outros terem visto equivocadamente valor nas coisas que escreve. Mo Yan parece se aprazer com sua humildade ostensiva de se apresentar em toda a sua mediocridade. É o escritor medíocre, que não contesta, que não se lança em arroubos narrativos, que vai direto no assunto e usa um vocabulário estrito, que se reserva com fé rigorosa a morar dentro da circunscrição de seus limites, que escreve essas pequenas coisas em um livrinho de 125 páginas que se lê em 3 horas rápidas e que se diz velho e de memória fraca. Até sua melancolia é inofensiva, conjugando sua profundidade à confissão de que aprendeu filosofia com sofreguidão para sobreviver dando aulas a alunos proletários. Diante essas evidências, é difícil ao leitor apostar que haja um fabulismo mais complexo por detrás das imagens por demais claras do autor. Essa leitura hipotética de Mo Yan é a prova mais eloquente daquilo que Pynchon disse que um autor não pode ser absolutamente entendível. E nessa primeira leitura, Mo Yan é o mais entendível dos escritores.

A segunda leitura dá uma eletricidade inusual ao romance. A última cena do livro dá a dica de que Mudança pode ser maior do que parece. Com tal cena, o leitor leva uma voltagem no cérebro e retroage a todas as outras peculiares do livro, dando a elas novo sentido. Com ela, o entreguismo de Mo Yan passa a ser uma astúcia para mentes antenadas. Mo Yan passa a ser um metafórico quase tão potente quanto Günter Grass. O livro gira em torno da imagem de um caminhão soviético tão velho que está para se tornar uma sucata, o Gaz 51 (cuja bela capa da Cosac é a reprodução de um desenho técnico do veículo), no qual o autor faz uma viagem de 3 mil quilômetros até Pequim para levar 40 cestas de maçãs e alho-poró para os representantes do partido. Na crença do autor e seus companheiros, há apenas dois caminhões destes em toda a China, um no vilarejo onde Mo Yan nasceu, e outro no posto militar onde passa dois anos de tédio. O caminhão está por detrás de todas as tramas paralelas da história, e é o mote de um sonho surrealista em que os dois caminhões se encontram, se cortejam e se copulam, dando origem a vários outros caminhãozinhos. Tudo em retrocesso mostra que Mo Yan e seu universo estão indissociados da corrupção, do atraso, do cabresto e da barbárie do estado absolutista chinês. O amigo subversivo da infância de Mo Yan, He Zhiwu _ que faz lembrar no início o jovem Mahlke, de Gato e rato_, só consegue se tornar um milionário através da corrupção e do mercado negro. E a cena final, envolvendo a incorruptível colega de infância do autor, Lu Wenli, faz o feixe simbólico que dá autenticidade a essa leitura. Até ler As rãs, um romance de quase 500 páginas, tido como um de seus títulos mais relevantes, recém lançado por aqui e encomendado por mim nesta madrugada, não poderei responder com segurança. Mo Yan será um Shostakovich, que odiava Stálin e vingou seus anos de submissão forçada ao stalinismo através da evocação cifrada em sua música de sua perpetuação diante o desaparecimento inexorável do ditador, ou será meramente um sujeito vil atolado na mais silenciosa subserviência, como foi Prokofiev?

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Apocalipsismos



Texto publicado há 4 anos. Original com comentários aqui. Já não me lembrava dele, e hoje na feira um amigo comentou que o havia lido. Charlles Campos volta de sua fama global para ser reconhecido em sua própria terra. Estudando aqui as formas de escapar à crucificação. Li-o novamente e o achei bem bom; confesso que não fiquei envergonhado, o que equivale a uma aprovação do gnomo que uma vez vivia na gaveta e agora deportou-se para a realidade virtual. Eu queria escrever um texto sobre Martin Shkreli, talvez o personagem real mais importante da semana. Não conhecem? Deem uma pesquisada na figura. Uma prova escarrada na cara dos estultos que pregam que o mercado regula-se a si mesmo.

No filme A Estrada, a evocação do fim parte de onde em Solaris, de Tarkovski, a ilusão de recomeço  surge na submersão do personagem principal na crença em que sua esposa não havia suicidado. Em Tarkovski, pode-se adotar essa catarse desesperada, que não necessita dispor de mais efeitos de convencimento porque o enredo acaba aí, não há mais filme e as cortinas se fecham sobre essa loucura apiedante. O astronauta que se enredou nos sonhos causados pelo planeta ectoplásmico Solaris pode passar toda a eternidade como sempre quis, sem as angústias filosóficas que o acometiam, sem os pesadelos de que a morta lhe aparecia com o rosto carregado de acusações de culpa, sem a realidade de que está anos-luz de qualquer geografia terrestre que lhe seja familiar: sua rendição a Solaris lhe garante em troca voltar à lembrança da tarde em que ele, sua mulher e seu filho se deitam no gramado de sua casa de campo, absorvidos na mais sólida felicidade. O que importa os desdobramentos de seu possível despertar desse sonho?, o que importa se o astronauta não fez outra coisa que ser derrotado uma segunda vez, depois que se desatou de sua resignação ao estoicismo e se lançou nos braços lisérgicos de Solaris?, o que importa se essa fantasia não é senão os momentos iniciais de sua morte? Para a platéia, esse último e definitivo instante não só justifica a vida do astronauta como é o ponto nodal onde se coincidem poderosamente o alívio diante o niilismo da condição da história e a redenção do astronauta, o seu arrebatamento da crueza da existência. Por detrás dessa síncope freudiana onde se desaloja o recalque, há uma compensação estreitamente ligada ao mérito do martírio cristão. O astronauta, que foi voluntário para deixar o planeta Terra, alcança seu momento sublime que o liberta da culpa, da perda, da ausência de sentido; e tanto é maior esse escape quando pensamos que ele não despediu-se em definitivo da Terra, mas das avenidas gigantescas e vazias, e dos silêncios urbanos planificados da União Soviética de Tarkóvski, do protótipo de emancipação social mal realizado que descambou num pesadelo insuportavelmente pesado. Se Tarkovski mostra cenários de escombros e ruínas em filmes como Stalker, em que um depósito de ferro velho se espraia ao longo da margem de um rio florestal, com o propósito de provocar a sensação de "descanso do capitalismo", em Solaris a cena final é o descanso ao comunismo, a rendição em admitir não mais acreditar que o ser humano possa abraçar a Grande Ideia. No filme À Espera de um Milagre, o indío cherokee no corredor da morte diz que o paraíso seria voltar e viver para sempre num momento de sua vida, quando se refugiou com uma moça numa cabana da montanha. Como todo ato de abnegação de superfície enganadora, o astronauta se sacrifica por um mentira egoísta, uma deportação do mundo real.

Já A Estrada é um negativo da última cena de Solaris mas que avança de forma corajosa para todo o longo discurso apocalíptico a que Tarkóvski alude. O pai e filho de um planeta Terra ominosamente destruído fazem parte dos sobreviventes da espécie humana que purgam o mais antieufemístico experimento filosófico: viver os derradeiros meses de absoluta carência em que sucumbirá a história. Não há alimentos, não há vegetação, não há animais. Existem apenas a peregrinação rumo a lugar nenhum, a paisagem cinzenta onipresente e o canibalismo, contra o qual o pai guarda um revólver com duas balas que deve ser usado contra eles mesmos caso sejam pegos pelos canibais. O pai ensina ao filho que deve colocar a ponta da arma de encontro o queixo e efetuar o disparo. Os conselhos que o pai dá ao filho ao longo do filme são todos dessa lava de sinceridade dura. Muito do desespero de sua mulher o contaminara depois que ela própria vencera suas tentativas de dissuasão e praticara o suicídio. Quando ela clamava para que a deixasse levar o filho com ela, ele, as sobrancelhas arqueadas, as feições maleabilizadas por um incognoscível heroísmo niilista, se dobrava para dentro de si mesmo, negando o pedido e sabendo que não poderia salvar a esposa. Seu filho, ele monologa enquanto atravessa um campo acinzentado por uma morte total e insubtraível, é a forma com que deus fala com ele, se alguma vez deus falara com ele. O impacto congelante do filme é justamente esse, entre todas as desgraças óbvias que são conhecidas dos filmes apocalípticos, a maior é a realidade explícita de que não há mais lugar para a mais inofensiva ilusão. O pai não tem o conforto de se afundar numa fantasia de retorno tarkovskiana. Não há mais a possibilidade desses artifícios de retornos plásticos, de analgésicos psicológicos para aliviar numa sobra de sonho a certeza do fim. Ser o último representante da espécie que detêm um vestígio de luz moral é um fardo sem propósito, algo de uma insuportável loucura. A Estrada seria um filme mais duro ainda de assistir se tivesse caído nas mãos de um Tarkovski moderno e independente que pudesse ter o benefício de olhar a substância do que sobrou das expectativas humanas a partir de um lugar lúcido na América. Quais cores ele teria usado para representar a destruição da paisagem, já que um de seus méritos maiores foi sempre prescindir dos efeitos especiais? Teria esse Tarkóvski usado em substituição à ausência de um técnica cinematográfica caríssima a mesma astúcia sublime que fez em Solaris para representar a solidão extrema de uma sociedade planificada futura, usando longos takes das ruas soviéticas? Ninguém como Tarkovski conseguia traduzir o vazio e o medo interior (ou o medo do vazio) nas filmagens puras da natureza, seja urbana ou os escombros urbanos despejados no campo.

Dos diretores americanos atuais, há uma dupla que detêm o mesmo poderoso talento de Tarkóvski em explorar a mentalidade de derrocada e de trânsito para lugar nenhum do homem moderno. Trata-se dos irmãos Coen, cujo mote sensitivo de seus filmes é o de carregar o espectador de uma sombria premonição que algumas vezes trafega pelo terreno de insinuações kafkianas. Seus estudos do contraste da vida simples com a promiscuidade multitudinária das grandes cidades usa de um moralismo vago mas suficientemente não deletério para a sua arte, no estilo tire suas próprias conclusões e desprovido de qualquer cinismo maniqueísta. O casal imune à doença de assassinatos banais de Fargo, no final do filme em que a policial interpretada por Frances McDormand retorna para o refúgio seguro do seu lar, é mostrado sentado diante a televisão, num laconismo carinhoso mas sem surpresas do amor estabelecido. Nos filmes dos irmãos Coen já não se espera alcançar o grande Outro, os personagens já possuem um gene plenamente adaptado vindo do trabalho de acomodação paulatina das gerações anteriores para se manterem num estado acomodativo inquestionável. Os vilões só querem para si_ só são biologicamente capazes de querer para si_ algum tipo de benefício oferecido pelo pobre horizonte restringido ao mínimo denominador comum da ausência do grande Outro: alguns milhares de dólares, alguma falcatrua que não envolve o apreço das cobiças gigantescas dos gângsters dos filmes noir. São desprovidos de emoções exautadas, tanto de amores furiosos ou ambições furiosas; entram em atribulações apenas pela propensão natural da espécie, mas não por uma convocação demoníaca. Os personagens que tem direito à felicidade morna da não participação são aqueles que, seguindo a máxima pascaliana, não saem de seus quartos para não promoverem o mal. São personagens que não vivem tempos interessantes, e, na norma moderna de um presente perpétuo, refestelam-se no restolho plastificado das grandes emoções, simulam serem cidadãos e seres humanos involuntariamente, reagindo à concepção secreta que trabalham no interior de seus genes, pois não sabem o que na verdade é um ser humano e um cidadão.

Não à toa que um dos maiores filmes dos irmãos Coen veio do casamento com a obra de um escritor sintomático como Cormac McCarthy, o autor do romance que gerou a adaptação de A Estrada. Em Onde os Fracos Não Tem Vez, a adaptação da obra de McCarthy feita pelos irmãos Coen, vemos uma série de personagens automotivos, que são impulsionados a agirem por razão nenhuma. O assassino interpretado por Javier Bardem vai deixando uma fileira de corpos por onde passa, usando um compressor de ar e uma espingarda com silenciador. No meio do filme, um policial oferece a análise do assassino: ele não mata por dinheiro, mas por ser uma máquina inexplicável e compulsiva. O assassino detêm, contudo, um código moral, que usa em duas de suas vítimas para avaliar se o destino consubstanciado no cara ou coroa de uma moeda vai autorizar que elas sejam mortas ou poupadas. Não há uma metafísica, uma transcendência, um universo mental exra-orbitante, ou qualquer espiritualidade no mundo bastante aproximado do real criado pelos irmãos Coen. É um mundo intersticial que subjaz no deserto das grandes ideias, das grandes aspirações, um mundo apaticamente desumorado e regido por uma funcionalidade cega e sem eficiência_ porque não procura eficiência, a eficiência não tem sentido. São comédias criadas para não terem graça, e tragédias feitas para não obterem nenhum impacto trágico. Aí a genialidade dos irmãos Coen: lidar com as emoções aplainadas, o vazio de sentido. Daí que o impacto vem como a inesperada e ensurdecedora explosão da barreira de som quebrada, quando os irmãos Coen sorrateiramente nos manda por cima a moral sintomática, a cobrança subliminar por reação. Não há um grande Outro, ou Ele só surge na inversão indestituível da morte, como em Um Homem Sério, na magnífica cena final, uma das maiores do cinema, em que tudo feito pelo homem do título para escapar de um destino cotidiano é engolido por uma outra solução da qual ele não pode se safar. Ou as cenas gêmeas de Onde os Fracos Não Tem Vez, em que o assassino e o cowboy feridos, cada um em um momento e lugar diferente, perguntam a um adolescente (a nova geração) quanto querem por sua camisa, para que possam esconder o sangue das feridas. Ao cowboy, o adolescente junto com seu grupo, estipulam um preço alto, a visão do sofrimento não motiva qualquer outra reação humanitária ou de pena diante a alteridade. Diante o assassino, um dos adolescentes lhe entrega a camisa e diz que não precisa ser pago, que a camisa lhe será dada  de graça; o assassino não aceita a gentileza, e impõe que o adolescente receba um maço de dinheiro pela camisa. Quando foge, o adolescente sem a camisa e seu colega começam a discutir pelo dinheiro.

Slavoj Zizek diz que a humanidade nesses tempos determinantes em que vigoram diferentes correntes de apocalipsismos, tanto o ecológico, o biopolítico e o do caminho para a total desregulamentação dos mercados, deveria assumir a tentativa de solução de que o grande Outro não existe, e trabalhar na recuperação a partir daí. Aceitar que o fim não está confortavelmente próximo, mas é uma realidade inevitável em franca velocidade_ e trabalhar do futuro para o passado para mudar essa nossa triste condição. Não cogitarmos intimamente que haverá alguma força exterior que nos salvará, que agirá por nós. Não o descrédito existencialista, não um recurso vaidoso sartreano de empolarmos de filosofia niilista e reivindicarmos a supremacia da liberdade humana. Zizek propõe algo de extrema chatice funcional e desprovida de qualquer instigante exercício imagético: a restauração da humanidade feita por nós mesmos, através dos únicos canais utilizáveis que se fazem efetivos, a política, a economia, o controle reducionista direto. Nada de abstrações e lamentos sofismáveis. E cita o que foi dito por um amigo, que nos tempos atuais os poetas são mais importantes que os filósofos e analistas políticos, pois eles oferecem a alucinação que está além da teoria assepsiada pelo filtro de equilíbrio acadêmico. Nisso, a mensagem de Solaris, desatrela-se do propósito político circunscrito à crítica da sociedade planificada da União Soviética e amplia-se para toda a humanidade. Filmes como A Estrada e os filmes dos irmãos Coen já não falam da condição caótica dos Estados Unidos ou de uma nação e um povo específico. Como diz Zizek, o conceito de Marx para o proletariado há muito já se subtraiu dos funcionários escravizados das fábricas alemães e inglesas, e abarca agora todos nós. Todo nós compomos a nova proletarização em nossos redutos grupais onde, aos poucos, a ausência do Estado nos condiciona a uma marginalização onde são empregadas regras internas próprias. A favela vai se tornando o mundo.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Uma cena de uma gravura de Hopper



Nesse momento, como para dar mais riqueza a esse caminho racionalizante, meu vizinho de baixo tocou o interfone da portaria. Tratava-se de um bêbado irascível, uma dessas pessoas mais desagradáveis, que cinco vezes por mês nessa mesma hora fazia seu teatrinho para a esposa e para a vizinhança em geral. O pouco que colhi sobre ele, de maneira aleatória e não requerida, informava que era um contador aposentado devido a alguma doença crônica degenerativa, cuja combinação de uma vida desocupada e uma mulher com o qual vivia às turras o levou ao alcoolismo. Ou talvez a doença a que a senhora do primeiro andar se referia, em um diálogo alheio do qual fui um observador apressado, fosse o próprio alcoolismo. Sei que por essas horas, consultadas por mim ao relógio da minha pequena cozinha sendo 23 e 55, ele adotava a mesma expressão cênica, que tinha como duração estudada de uns 15 minutos em que o botão do interfone era massacrado sem intervalo. Para mim em particular era algo um tanto mais desagradável visto que o interfone de seu apartamento ficava logo abaixo de onde eu me sentava, o que resultava de um ruído duplo cujos dois extremos simétricos, o da portaria e aquele, pareciam fazer os caixilhos dos aparelhos pularem. Em dado momento dessa zoeira, o homem começava a gritar o nome da mulher, ou antes, a alcunha a qual ele se dirigia a ela, na certa carregada de sua idiossincrasia ofensiva que só era captada pela criatura que se negava a responder no apartamento do segundo andar. A mulher, que por essas ocasiões em que não pude sair de minha passividade informativa, se chamava Nardália, mas o homem gritava todas as vezes um minimalístico e expressivamente brutal "Madalena". A coisa assumia uma grosseria sem igual por ele gritar apenas isso: Madalena. E como ela não respondesse, não emitisse um pequeno ruído sequer, e a solidão e antigo silêncio da rua fossem fundo para o marido, o grito ficava cada vez mais enregelante. Meus cabelos da nuca ficavam arrepiados, talvez porque na cordura daquela vocalização, um tanto selvagem em sua ruína e concentrada loucura, se percebia a tal doença que impossibilitara o homem para uma vida normal agindo. E sabe-se lá o que continha no fundo daquela ridicularia o nome Madalena, que sadismo mesquinho referia a um segredo que maldosamente tinha a consciência de só a mulher saber qual era. Seu grito era conciso e tinha algo de ave noturna, em sua precisa imutabilidade. A expectativa ecoante da sucessão que viria após o último Madalena colocava o sono e os nervos, por assim dizer, em frangalhos. Em uma noite comum, das tantas em que me poupara a filosofia, eu esperaria que o evento terminasse, sem me mover, o que acabaria por esfriar de vez minha janta, o que condizia com a capitulação da mulher ao som da cigarra do portão sendo aberto. Eu me abstinha em meus anos solidamente cultivados pela passividade sem consequências, nem me passando a ideia de que eu poderia acabar com aquilo tudo abrindo eu mesmo o portão, através de meu interfone. Penso que naquele prédio, povoado pelas mesmas criaturas típicas da geografia urbana a que se destinava aquele setor periférico, vivíamos nós os conformados, os casais falidos que se aturavam pelo passatempo condicionado do ódio, as velhas senhoras sem ninguém para as quais se destinava o último galho da árvore genealógica, e os solteirões invictos como eu, para quem a vida era agradavelmente um itinerário passável a ser cumprido, desde que isento da filosofia, porque nunca o portão fora aberto por ninguém mais a não ser a rígida mulher tomada por intensas associações que lhe provocava aquela terapia ao contrário de ouvir o marido lhe chamar por um nome que não era o dela. Naquela noite eu soube que eu começara um caminho irrecuperável porque, em vez de adotar meu lugar devido de espectador indeterminado, eu me vi levantando da poltrona e seguindo com uma enervante calma até a janela. Abri a janela, o que fez uma intrusão de um som inesperadamente invasivo à encenação do homem, e mesmo um som alto o suficiente para a parte de minha consciência que me via agindo cogitar olhar em torno para ver se algum dos outros omissos espectadores viriam ver o inédito desvio padrão do enredo. Mas não dissipei o olhar, encaixando-o diretamente no olhar do homem, que se encontrava voltado para mim com sua cabeça erguida por sua vez sem um pingo de surpresa e, o que me confundia, com um forte acento sarcástico. Não esperava provocar medo nele, mas o que um cidadão literal como eu costumava ter ao lidar com essa comunicação não verbalizada era ao menos a reciprocidade suficiente para fazer o outro perceber o seu descompasso às normas da boa convivência e retornar aos estatutos sociais sem maiores problemas. O que aconteceu, porém, foi que o ar de sarcasmo no homem aumentava, e seu olhar não só se prendera ao meu como exerceu um poder magnético do qual eu não conseguia escapar. Dei pelo enorme risco a que estava submetido em confrontá-lo, naquele momento, e admito que aconteceu comigo um desses lugares comuns da lexicografia, em que me pus literalmente a suar frio. Como se dentro daquele diabolismo maníaco de seu sanguíneo rosto de bêbado houvesse algo de piedoso, algo que me desconsiderava por ter total conhecimento de minha pequenez viril para um embate daquele nível, como se ele soubesse que se tratava de um impulso descomedido da minha parte ter saído de minha sombra meramente ouvinte, ele emitiu um sorriso de mofa. Com esse sorriso, ele me libertava e permitia que eu retornasse ao meu papel usual naquela comédia. E foi o que fiz: fechei a janela e me dirigi à poltrona. Ia carregado de vergonha e de um sentimento que na avaliação pormenorizada que fiz identifiquei como ódio. Não me recordava a última vez que senti tais coisas, e o ódio que me nutriu não era contra o homem, mas contra mim mesmo, por ter me levado a achar que a filosofia houvesse não só me despertado, mas me dado utensílios adequados para uma nova atitude frente ao mundo. Durante essa feérica introspecção, não percebi que o homem havia se calado, que reinava lá fora um silêncio venal. Só me ative a isso depois de bem um minuto ou dois, sentado em minha poltrona, em que o remoer de tais pensamentos foi interrompido bruscamente pela pressão nos ouvidos que fizera a quebra do silêncio. O homem voltou a gritar, após por sua vez digerir aquela risível descontinuação, mas não gritava mais Madalena. Gritava agora outro nome, um nome que não era o meu, do qual eu não conhecia pessoalmente ninguém que o portava, mas que de imediato soube que ele o fazia para mim: Sula..., Sula..., Sula.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Bloqueio de leitor

Coates e seu filho Samori


Estou no vácuo entre a leitura que se acabou e a nova que começou. Bloqueio de leitor existe: estou na centésima página de A história secreta, de Donna Tartt, mas sentindo que eu posso abandoná-lo a qualquer momento. Pego o livro e ele não me dá prazer; sento-me na biblioteca com o volume aberto nas mãos e tenho a sensação de que não estou lendo. Não me empolga. Falso demais, tudo bem que se pode aguentar, mas possui um americanismo juvenil quase insuportável por ser deslocado da imagem com que o romance é vendido. Ele é vendido como um calhamaço erudito, com inequívoco pendor à atmosfera inglesa, algo num estilo Henry James moderadamente pop. Mas é uma mentira descarada: trata-se apenas de um best-seller como qualquer outro, apenas com o requinte de ter entrado na lista de maneira inesperada. 10 milhões de exemplares vendidos. Devo esperar alguma coisa? Só encontro chatice juvenil e a prosa morna e ruim de sua autora, a qual já estou familiarizado com o também passável O pintassilgo. Vou ver no que dá, embora seja grande a chance de que vou atirá-lo para um canto, ainda mais se o novo Bellow chegar nessa semana.

                                  ______________________________________________

Caminho dez quilômetros todos os dias, religiosamente. Há uma represa próximo aqui de casa, cuja volta completa é de um quilômetro e cinquenta metros, e eu dou dez voltas nela, o que demora cerca de uma hora e quarenta minutos. Começo às seis da tarde. Já faz três meses que readquiri tal rotina, e hoje ela está tão solidificada que se tornou um vício. Só é possível graças a meu smartphone, para o qual achei uma segunda utilidade além de falar com a Dani quando estamos longe um do outro. Ouço música pelo fone, é esta a outra utilidade. As dez voltas passam ligeiras devido a isso. Conforme a música, meu passo se apressa: semana passada ouvi Asian Dub Foundation e Widespread Panic, ótimas trilhas sonoras para caminhadas, o que me fez atingir uma velocidade próxima à corrida. Ontem ouvi três álbuns do U2. Ouço constantemente a discografia do Led em uma semana de caminhada. O que percebo é que tais eventos assumiram um status de reavaliação de meu gosto musical. U2 me pareceu artificial, super-produzido e perecível. É ruim essa lucidez, e contra ela me impus escutar a banda para provar que eu estava errado. Um monte de gente caminha na represa também. É o ponto turístico da cidade. Nessa concentração por defender meu gosto da juventude contra mim mesmo, só na minha volta de número 8 percebi que quase todos haviam sumido de uma hora para outra. Olhei em torno à procura dos personagens habituais, que trocam cumprimentos comigo com a mesma celeridade dos peixes no aquário de O sentido da vida, e foi aí que vi o tumulto de carros, pessoas, sirenes e motos na avenida paralela à represa. Carros de polícia e ambulância. Movido pela curiosidade, fui ver o que era. Informaram-me que um motoqueiro havia caído da moto e tido sua cabeça esmagada por um caminhão de gado, há meia hora. Avancei pela multidão e vi a moto branca caída e o corpo coberto com uma lona negra; o caminhão parado a cem metros para frente. No dia anterior, um colega de caminhada me fez retirar o fone de ouvido para me dizer sobre o relógio de energia da represa que se aquecera demais e pegava fogo. Ontem, voltei e concluí minhas outras duas caminhadas. O rapaz da moto tinha 17 anos. Hoje vi seu facebook: os mesmos penduricalhos emotivos sem surpresa de fotos com bebidas, mulheres; os mesmos comentários de que "virou uma estrela" e "está num lugar muito melhor".

                                _____________________________________________

Meu bloqueio de leitor me dá vantagem com as tantas Le Monde e Piauí com que estou atrasado. Não achando o clima para me envolver com os tantos livros que me esperam, procuro compromissos menos exigentes. Hoje mesmo li toda a última Piauí. Há um ensaio de Ta-Nehisi Coates que vem de encontro com minhas confabulações sobre o quanto não somos donos de nossos próprios corpos, fruto da influência de Günter Grass (aliás, a leitura compulsiva de livros sequenciados de autores como Grass é um perigo: tudo o mais depois fica parecendo um tanto tolo e vazio, e mesmo bizarro). Coates se perde em seu texto, procura usar a digressão de forma inteligente mas dá para ver a errada de mão. Mas tem bons lances em seu texto, boas reflexões e uma indignação honesta. Ele é negro, e fala, a título de conselhos para seu filho, da paisagem memorial inextinguível que enquadra o negro nos mesmos esteriótipos da escravidão e da execuções pelas forças do estado. Boa parte do texto é sangue puro, escrito em um nível elevado. Peca, como eu disse, pela dissipação. Ele centra sua demonstração de como o tempo não passou na prova de que os corpos dos negros não lhes pertencem em uma sociedade de massacres velados e maquiados pela mídia e pelos tribunais de juris como a sociedade dos EUA. Coates procura justiça pela execução de um amigo da faculdade, um negro de 1,90 metro de estatura, gentil e intelectual, cujo futuro no estudo de humanas era promissor, e que foi morto pelos tiros desferidos contra ele por um policial, este também negro. O final do texto é uma adstringência de força diante a sensaboria dos outros textos dessa edição da revista: Coates investe contra a sagração das vítimas do World Trade Center; manda à merda bombeiros, bandeiras e slogans. Fico com a vontade de ler Coates, e espero por novembro, quando o livro do qual faz parte o ensaio será lançado aqui pela Objetiva (o livro irá se chamar Entre o mundo e eu).

O texto de Coates fica gigante perto dos ensaios de Michel Laub e Olavo Amaral, que estão na revista. O do Laub é melhor escrito, mas a o tema sobre a Legião Urbana é tão derrisório que se apequena diante a angústia humana legítima de Coates. Enquanto Coates fala de suas memórias juvenis, utilizando a imagem da descorporização, Laub perde quase o dobro de páginas falando sobre suas angústias médio-classistas de adolescente quando perdeu a virgindade e fumou seu primeiro cigarro de maconha. Repito: é um ensaio muito bem escrito, muito inteligente, e muito interessante, mas para mim assustador. Laub fala ali de mim; não há uma palavra que ele diz nesse texto que eu já não conheça profundamente e de antemão. Posso dizer que a mesma cultura e vivência que Laub teve, seus mesmos conflitos nacionais, eu os tive milimetricamente. Esse ensaio de Laub é o retrato de um vazio planificado, um vazio sério que deveria ser execrado e estudado com artimanha, um vazio político e uma segregação social etária sentida com enorme poder dentro do Brasil. E esse é o pecado, ou a extrema limitação do texto de Laub: o tema que ele usa tem a mesma intensa comburência do texto de Coates, fala de uma violência e opressão símiles, mas Laub desperdiça tudo contando sobre uma banda de rock datada e sua paixão pelo vocalista dela. Primeiro: a mim é taxativo que ouvir quaisquer das bandas de rock nacional fundadas nos anos oitenta, após os quarenta anos, é de um anacronismo e atraso sem tamanho. Com tantos sinais estridentes cobrando um mandar à merda de Laub, como fez Coates dos bezerros de ouro da opinião pública de seu país, e ele se restringir a um tolo artigo de fanzine, é algo profundamente lamentável. Eu vi o quanto minha juventude foi uma luta semi-consciente individual para fugir da opressão maior descambada pela mídia televisiva e fonográfica, eu que desde quando, em meu comportamento de rebanho, me vi esperando o radialista anunciar a canção Será para gravá-la em uma fita cassete, tinha a intuição de que cumpria meu papel de palhaço alienado desviado da crítica contundente quanto a um país construído para que eu não tivesse voz. Em determinado trecho do artigo de Coates, ele está sentado diante os degraus do prédio de subúrbio miserável onde morava no nascimento do filho, e ele se recorda que foi a última vez, antes do advento do download, em que ouviu certa canção popular. Passou vinte anos até que ele pode ouvi-la novamente. Aqui ele usa o entulho midiático como mais um promotor de reflexão sobre a complexa condição do negro na América. Laub se comporta apenas como um alvo fixo imutável desse entulho, ainda que ele tempere seu texto com os penduricalhos acadêmicos distintivos sobre escola de Frankfurt e beire aquele empolamento retórico proparoxítono tão cansativo e conhecido para dar maturidade ao menos estética ao que escreve.

O outro ensaio, do médico Olavo Amaral, é ainda mais em cima do muro e sanitizado pela compreensão irrestrita à indústria farmacêutica, embora seja vendido pela revista como um tempero contra a ganância que rege tal indústria. A "experiência" voluntária de um médico, que é o autor do texto, em participar de uma semana de exposição de stands de produtos medicinais de todos os tipos. Ao longo do artigo, Amaral colhe mais de oito quilos de brindes desses stands, e narra tal coisa com a mesma superficialidade apolítica e a-histórica de quem julga que a mera menção ao problema já satisfaz o discurso. O artigo é anunciado como matéria principal em letras maiores na capa, O lobby dos remédios, mas é tão somente um diário de um profissional que só simula ter alguma atitude crítica quanto ao conceito popular de como a medicina é exercida no Brasil, regida por interesses escusos que subjaz a saúde e o conforto dos doentes e composta por uma severamente vigilante restrição elitista. O médico nem sequer insinua a complexa subtração que está por debaixo dos panos da medicina brasileira, e no final do diário ainda faz uma conciliação nos moldes de as necessidades da indústria farmacêutica em ser assim para poder promover maior desenvolvimento científico na descoberta de novos remédios. Esse número da Piauí salienta o quão pobre está a crítica em todos os sentidos no país.

domingo, 6 de setembro de 2015

Seis meses em 1945



É um desalento ler o excepcional livro Seis meses em 1945, de Michael Dobbs, nessa época de ascensão de Trump, grandes levas de refugiados vagando sem rumo pelo mundo, e a política de alienação cada vez mais onipresente da vida abduzida para a realidade cibernética. A sensação opressiva que se tem é que não se pode escapar da História; que Ela tem um fatal modo redundante de engolfar nosso destino de maneira que sempre oferece as mesmas etapas evidentes que nos conduz passo a passo para a ruína. É triste ter interesse por livros de história hoje em dia, porque todo o nosso futuro está ali exposto sem o menor mistério, somente um pouco de assombro e um desconforto perene que aparece quando notamos os atos marciais de repetição sendo executados. Em determinado momento da leitura, liguei para um amigo que ocupa o cargo de historiador da casa de cultura de um outro estado da federação e lhe disse, a título de desabafo: "Mas a humanidade só foi governada por estúpidos!" 

Não precisa ler Dobbs para saber disso, mas a intimidade que seu livro nos dá com a visão cotidiana dos fatos, recolhida dos diários e cartas dos participantes do evento, ressalta essa brutal verdade: o ser humano pode ser conceituado sociologicamente como uma espécie que se apraz em ser governada por ignorantes homicidas, ególatras gananciosos com pouca inteligência, e loucos inconsequentes; e abaliza isso tudo com uma enorme disposição à veneração desses zeros à esquerda. Hitler desenhou de próprio punho um capitólio de 300 toneladas que pretendia construir na nova arquitetura grotesca da Alemanha, que iria abrigar plateias de 300 mil pessoas cuja condensação das respirações conjuntas faria chover no interior do prédio, uma obra impraticável do ponto de vista físico mas que detinha a metáfora perfeita da falência inevitável do terceiro Reich. Quando o famélico Exército Vermelho toma a Alemanha, os soldados russos que mal tinham o que vestir e que viviam à míngua, dormindo no chão e comendo as sobras dos lixos, ao verem que até o alemão menos provido economicamente tinha casa com depósito farto em mantimentos e vivia em cidadelas com excelentes infra-estruturas, foram tomados pelo choque e se perguntaram: "Mas por que a Alemanha provocou essa guerra?" Quando o ministro de relações exteriores de Stálin, Viatcheslav Molotov, aporta nos Estados Unidos, para a conferência de São Francisco em 1945, e vê que a classe trabalhadora daquele país tinha casa com bastante espaço e jardim de frente em seus bairros planificados, e cada qual com um carro na garagem, e recebia entretenimento diversificado para ocupar as largas horas de descanso após o trabalho, ele, em tom de espanto, disse às pessoas da sua comitiva que os Estados Unidos eram "o país mais adequado para o socialismo. O comunismo vai chegar lá mais cedo do que em outros países". A Alemanha ficou devastada em 1945, cidades totalmente destruídas, com procissões de mulheres e crianças mendigas andando pelas ruas, a ausência notável de homens jovens se explicando por sua redução em 1/3 devido às colossais perdas de guerra; a União Soviética perdeu 17% de sua população, um montante de 25 milhões de pessoas mortas, e suas iniciativas anteriores de ser um gigante econômico foram definitivamente caladas, lançando o país em uma miséria catastrófica, com o valor real dos salários tendo sido reduzido em 60%. Ou seja, o caminho inercial que poderia alcançar um equilíbrio de forças benéfico a todos não existe na História; sempre vai haver um líder estúpido e um comportamento de rebanho que lhe dará poder que transformará tudo em genocídio étnico, modificações radicais das fronteiras nos mapas, deportações em massa, instabilidade política e miséria econômica. 

Esse livro de Dobbs trata dos líderes do período: Stálin, o marechal do proletariado, a contradição estapafúrdia do aclamado libertador dos povos que se espelhava nos dois mais sanguinários csares russos, e o maior assassino de todos os tempos; Churchill, o racista radical e machista inarredável, um boneco velho cujo poder era apenas uma presença alegórica de exibição erudita, cuja única ambição era tentar manter o respeito ilusório do que restara do extinto império britânico; Roosevelt, "o homem mais frio que já existiu", nas palavras de um de seus conterrâneos políticos, que astutamente fez vista grossa para as milhares de mortes e deportações que resultariam dos acordo de Yalta, e era um maquiador maquiavélico da opinião pública que alimentou a hipócrita imagem da benevolência humanitária dos Estados Unidos ao longo do final do século XX; Truman, o fazendeiro e pai de família de perfeita plasticidade fotográfica, que era o homem sem expressão ideal para levar os EUA à relativização moral dos massacres da era nuclear.

Seis meses em 1945 é indispensável e um livro que se torce para se chegar em casa para voltar à leitura. Nessa inevitabilidade dos arremedos circulares da História, ao menos é um alento que os escritores de história estejam antenados a tornar seus livros tão permeáveis ao grande público quanto thrillers de suspense.

sábado, 5 de setembro de 2015

Protocolo kafkiano



Sabe-se que entre as poucas obras que Kafka pretendeu ver publicada estão seus aforismos; trabalhou neles em seus últimos anos de vida. Tem uma eloquente contradição ver que o montante de seus aforismos forma sua obra mais frágil e ao mesmo tempo mais poderosa. Seu trabalho de revisão ter deixado passar, já nos primeiros deles, aparente distração de palavras repetidas, revela muito sobre o autor. Dois desses aforismos pecam pelo enfeixe machista, dizendo que também ele teve suas concessões vaidosas às modas da época. Mas o restante deles são tão profundos, tão amplos e fundamentais, que transcendem a literatura.

Na verdade é um solipsismo tolo dizer que algo transcenda a literatura. A literatura que possui fronteiras a serem transcendidas é literatura estilista sobejamente humana no mais chão conceito. Talvez por isso que Kafka tenha revestido esses seus textos mais espiritualmente pretensiosos com deslizes voluntários: através dessa fragilidade consentida ele faz a coligação entre os inatingivelmente elevados níveis da mensagem com a mundanidade prosaica. Muito do que ele expôs nessas curtas frases é incomunicável, inapreensível, inominável. O tipo de coisa que às vezes pensar muito afugenta o entendimento, e deve-se usar a técnica de apreender a insinuação do objeto através do olhar lépido. Seus aforismos tem a mesma excepcionalidade não verbal das imagens produzidas em palavras de Jesus e Nietzsche. Mas há uma diferença entre esses três aforistas. Se uma só palavra pudesse resumir esses pensamentos de Kafka, seria humildade.

Nesse sentido, sua humildade é um desalento convicto mais reacionário que a humildade de Jesus: Kafka não a entende como uma arma de batalha. Ele está além de oferecer a outra face, não acredita que isso irá ajudar em alguma coisa. Também a humildade em Kafka está além de qualquer esperança. Cristo usava o dar a outra face como um auge da inteligência onde alcançaria a vitória sobre o opressor as hordas de indivíduos em lutas solitárias através da história. Cristo estava no início da história para poder dizer tal coisa, e cumpria uma missão didática. Já Kafka tinha consciência de que sua mensagem (porque ele também é um doutrinador imprescindível, nunca um simples escritor) jamais seria entregue; como em tantos outros de seus textos, a mensagem se extraviaria pela impenetrabilidade do caminho ou porque a verdade que ela levava era tão absurda que tinha a leveza que a confundia com o invisível. Nisso ele está em extremo oposto a Nietzsche , que acreditava tanto em uma indeterminada redenção à espera no extremo derradeiro de todas as provações. Sua mensagem não seria entendida porque ela era um complemento à arte, e ele foi, talvez, o único grande artista que enxergou sem eufemismos que a arte inflige diretamente contra a verdade.

Há muitos conceitos e intuições poderosas sobre a física em Kafka, e uma delas se iguala ao Princípio da Incerteza de Heisenberg. Kafka achava que a exposição formal de uma ideia através da arte afetava na capacidade produtiva da mensagem. Mesmo se conseguindo imprimir uma deslumbrante visão da eternidade em uma obra de arte, o simples fato do veículo empreendido para alertar a humanidade ser a arte dava ao receptor o alívio de não levar o aviso a sério. Talvez por isso ele fez seu amigo, Max Brod, jurar que queimaria seus rascunhos depois que morresse. O ser humano é um animal cultivado na milenar dança esquivante contra uma série perigosa de inimigos do pragmatismo, e com isso é um fator evolutivo inarredável nele ser inócuo a esoterismos mais que superficiais. Kafka sabia que só o terror é a forma mais eficaz para manter a atenção humana, ainda que ela se mantivesse por um período efêmero demais antes de decair em sua perene distração fisiológica; por isso toda sua obra é uma impregnação do terrível. Ele tinha a consciência artística extremamente apurada para saber, contudo, compor seus alertas inatingíveis com o necessário mobiliário de cena e trivialismo do enredo para torná-los degustáveis. Seus pesadelos opressivos atingiram a quintessência literária de serem investidos da mais pura narrativa paródica, terror que chega ao cume de fazer rir. Não é para menos que suas histórias sejam tão adaptadas para quadrinhos e para outros tipos populares de expressão juvenil, pois no horizonte de suas construções oraculares a sisudez é substituída inteligentemente pela comédia. Em Um artista da fome, por exemplo, as descrições iniciais da feira pública com os espectadores em torno do artista em 40 dias de jejum dispensa a cosmologia de um Hierinymus Bosch pela singeleza cinematográfica de uma antecipação a Disney. Em A colônia penal, tanto o executor dos castigos quanto a vítima magérrima com as costas tatuadas na carne viva lembram a impiedade esvaziada histrionicamente de peso dos desenhos de Asterix.

Tudo é risível e teatral, o autor prestando excepcional vênias à tradição de se contar histórias, mostrando assim que ninguém mais do que ele próprio sabia que a visão que trazia era forte demais para que a arte não cumprisse seu papel de, imediatamente servindo-se de veículo a ela, escamotear sua suprema importância. Kafka enxergava das zonas finais disso que convenciona-se chamar história, e tudo havia sido demasiadamente testado em vão para que alguma outra ideia terrena fosse aventada. Assim, nada sobrava para que se ativesse à coerência de doutrinador do que mandar que queimassem seu insuficiente espólio artístico, compensando, porém, sua falha com a conservação dos aforismos (no final de sua vida ele manda a Brod que destrua os aforismos, talvez pela doença já tê-lo esgotado). Os aforismos são seu veículo ideal: podem prescindir da arte, da estética. Seus aforismos são os mais orgânicos e incisivos. Tratam de temas que estão além e conjugam vertentes do conhecimento represados pelo poder das instituições ortodoxas, sem contudo ter a mínima importância quanto a preservar a restrição de direitos de exploração nela impostas.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Tamanho presente tão belo



Não se sabe seu nome. Foi reportado em algum lugar, no frenetismo das notícias que acompanharam a grande foto do dia de seu corpo deitado na praia, a foto que junto com o café da manhã da cracolândia ocidental serviu para lubrificar e preparar as emoções para as tocantes conversas que renderiam mais tarde com os colegas de serviço. Não é um problema; sua falta de identidade condiz com a resolução amplamente aceita de que o tratem de agora para frente como "o menino sírio". É um título em premente promessa para futuros produtos os quais se emite desde já o agradecimento por ter ofertado tamanho presente tão belo. Não é todo dia que se tem uma foto assim. Neste mundo carente de ineditismos, saturado de tudo que já foi visto e imaginado, a foto de um bebê branco morto na praia é recebida com inexorável gratidão diante o imediato reconhecimento de uma obra-prima. Esse é o Evento, a marca do Grande outro, o instante capital lúdico, a distribuição enfim generosa da rotinização do carisma, ou que queiram mais os vazios termos ortodoxos. Espera-se na superfície consciente de todo receptor que seja dado um prêmio para o fotógrafo. Que momento exultante: a hora recíproca em que se vê uma foto histórica, estampada na página digital entre as vadias informações monótonas da corrupção corriqueira. A menina nua do napalm, o menino africano antes de se tornar alimento para o abutre expectante, o homem segundos antes de receber o tiro na cabeça por seu executor_ a procissão é longa_, e agora, o menino sírio estendido de bruços na praia. Que detalhe deliciosamente recolhedor seus sapatinhos tornados absurdos pela gratuidade de ainda estarem fincados nos pés, as canelinhas albas ainda rescendentes. Parece com o fogo na lareira no final da noite. Sente-se a comichão e anota-se na agenda: ouvir Bach acompanhado com uma garrafa de vinho à noite. Lá pelas altas horas recitar Eliot e Whitman. Que dia especial foi ontem_ ou isso aconteceu antes de ontem?, ou foi na segunda? Acenderam os cigarrinhos e verteram as xícaras, as pausas ocupadas pela menção de sua herança, a herança de alguém que nunca passará dos três anos de existência e que nunca terá nome, mas já é imortal. A cadência global dos olhos, quase sincronizada nas webcams, uma genuflexão ligeira antes de se digitar a próxima doce frase de compaixão nos smartphones: porra, uma criança não! Mesmo assim vou agora procurar seu nome. Procuro abaixo da manchete Maioria dos bilionários é paulista, acima do vaticínio de O mundo é dos fazedores. Aylan Kurdi, é esse seu nome. O mundo não iria parar pela morte de Aylan Kurdi. Aylan Kurdi ao menos não será popular no Whatsapp, que só propaga interesses específicos menos clamorosos. Aylan Kurdi reforça com seus meros três anos de vida que todo livro de história é um pesadelo, sendo que todo livro de história hoje, para um ocidente de viciados dirigidos por teclas de ódio, choro, indignação e risos convulsivos, é de uma total inutilidade. Aylan Kurdi não interromperá o fluxo da história e o interesse sem perdas de tempo para compaixões da minuciosa política econômica. O homem sentimental instantâneo, dicotômico, instável e infantilmente passional não deixará de comprar tênis e gasolina, se alguma vez for revelado que a causa da morte de Aylan Kurdi foi a venda disseminada em péssimas condições humanas de tênis e gasolina; embora a causa mortis seja um tanto complexa na rede de derivações sem fim para que tênis e gasolina ainda possam ocupar seus lugares no banco dos réus. É por ser tão complicado que Aylan Kurdi não pode ter um nome: toda nossa intuitiva culpa conjunta e toda nossa alienação de drogados que só vivem o instante se anula no sentimentalismo catártico de devido e saudável tamanho do anonimato do menino sírio.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Hamlet, William Shakespeare



Shakespeare é o caso mais eficiente desse constitutivo que ora e outra simulamos estar por esquecer ser um dos fundamentos da arte: o plágio. Parece uma ironia do destino_ que, firmando-se em seu propósito de coerência, plagia outras vertentes da realidade_ o tido como o maior escritor de todos os tempos ter roubado boa parte de suas obras de outros escritores. No ensaio de T.S.Eliot, lamentavelmente ligeiro mas relevante, que acompanha a nova edição de Hamlet recém lançada no país pela Companhia das Letras, vemos que Shakespeare não só copiou personagens, situações e o enredo de uma peça de Thomas Kyd para compor o seu Hamlet, mas, em alguns momentos, chegou simplesmente a revisar o texto de Kyd. E o detalhe mais impactante é que a peça de Kyd, longe de ser desconhecida, fora um sucesso de público apenas poucos anos antes de Shakespeare engrenar a sua empreitada. As informações oferecidas por Eliot vão além_ complementadas pelo prefácio do tradutor, que aponta ainda outros autores mais distantes no tempo como possíveis fontes do bardo_, comparando mesmo as similitudes de estilo entre Kyd e seu imortal copiador; e o que é pior: nos dizeres de Eliot, copiou-se fragilidades evidentes de estilo. 

Eliot faz uma atribuição contrária ao cânone: "Longe de ser uma obra-prima de Shakespeare, a peça é certamente um fracasso artístico". Não se trata, porém, de uma crítica original, visto que Tolstói e Bernard Shaw se anteciparam ao americano. E mesmo o mais ardente defensor de Hamlet, Harold Bloom, reconhece que toda a magistral grandeza da obra está em suas imperfeições: Hamlet é, segundo Bloom, o personagem mais inteligente da literatura. Hamlet é uma obra tão carregada de perigo por sua intensidade espiritual, que suplanta Shakespeare. Eliot chega a se espantar com a coragem de Shakespeare em tratar de um calabouço de verdades tão terríveis. Ainda que minha peça preferida de Shakespeare seja esse manual de sutileza pérfida sobre a manipulação política que é Júlio César, Hamlet é o que mais me instiga a me reaproximar do raio magnético do autor. A trama é tão complexa, a exuberância de pensamento tão arrebatadora e sobre-humana, que não é para menos que seja a mais imperfeita escrita de Shakespeare, e que seja o exemplar cabal de que a potência da mensagem prescinde do respeito pelas normas da compostura do que seja originalidade e primazia narrativa. Christopher Hitchens compara duas passagens importantes entre Augie March e Gatsby que deixa mais que sublinhado que Bellow copiou a música, o estilo e a visão esotérica de Fitzgerald. O caso de Shakespeare se distingue, além do mais, por o poder da obra com elementos plagiados ter feito sucumbir no esquecimento o modelo usado.

Primeiro deus



Demorei além do prazo para aprender a me firmar em minhas duas pernas. Enquanto os outros meninos e meninas da minha idade já iniciavam suas demonstrações de virtuoses admiráveis do bipidismo, causando o deslumbramento bobo em seus pais pela que para eles era a simples coleção de passinhos trôpegos pelo parque, eu me mantinha com ávida fidelidade à minha condição contemplativa de ficar apoiado unicamente em minhas nádegas. Em um mundo tão cheio de mesquinhas competições como esse da maternidade, não era para menos que minha mãe ficasse profundamente incomodada com minha descansada abstinência. Seus orgulhos naturais derivados de seu estado materno até então haviam se restringido aos pequenos alcances em particular que seu pequeno Halperin lhe dava em casa: o primeiro dentinho despontado faceiro e torto pela gengiva, as primeiras palavras guturais que simulavam o termo “mamãe”, os sinais inteligentes que mostravam as primeiras inteirações de seu bebê com o mundo; coisas enfim para as quais ela não se via em franca competição aberta com ninguém, podendo dispor de sua felicidade tranquilamente sem colocar essas conquistas em um cronômetro temporário conjunto. Mas agora, com as quatro paredes da casa substituídas pelo horizonte sem limites em que levava seu Halperin para apresenta-lo ao Grande Baal da cidade, a inapetência de Halperin para fazer-se honrado diante os olhos de todos a deixava envergonhada. Ela dizia: “Vamos, Hal, se levanta nessas perninhas”, e Hal, como um buda precoce satisfeito em seu confortável enchimento de dobrinhas gordurosas corporais, apenas a olhava com uma suntuosa indiferença, plenamente convicto de seu direito em permanecer imóvel. “Vamos, Hal, vem até aqui andando”, ela dizia, colocando seu pequeno Hal em pé agarrado com um crescente pavor a um banco, e se afastando um metro com as mãos espichadas, delimitando assim o percurso em que Halperin deveria atravessar sustentando-se em suas perninhas para que ela tivesse seu aliviador orgulho diante o círculo lupino de mães no parque. Mas Halperin bambeava nas pernocas gorduchas, segurava enfiando as unhinhas dos dedos no cimento áspero do banco, e escancarava a boca em um berreiro desesperado, tomado pelo terror de ter sido retirado de seu estado harmônico com a inexorável força da gravidade e posto violentamente na obrigação de tentar vencê-la por tentativas inócuas de reação. Halperin nunca teve dons cerebrais fora do normal, nenhum de seus futuros mestres percebeu nele nada de muito especial em termos de propensão a um entendimento científico glorificável, mas aos dois anos já sabia o suficiente sobre a mais intransigente das leis físicas para se render com uma complacência bovina sacerdotal à gravidade, seu único e indiferente deus. Halperin pregava sua bundinha rechonchuda e as coxinhas de suas pernas cobertas de curvas e reentrâncias no chão, seja onde estivesse, e ficava em uma paz tão narcótica e sedentária inócua à mínima culpa, que não era para menos que na cabeça celerada das outras mães e pais passasse a suspeita de que ele tivesse algum tipo de aleijamento corporal. E isso, enquanto não causava nada em Halperin além de uma sensação agradável de permanência, para sua mãe era um inferno. Enquanto não andar era um atestado de ter sido aceito pela ordem da natureza, uma ordem que Halperin havia conquistado sem trauma algum apenas por sua humilde subserviência em reconhecer o Imutável e para sempre Imutável, e que Halperin mais tarde saberia que ser abrigado por tal ordem era a tarefa terrivelmente sofredora a que todos os esforços humanos se destinavam, para minha mãe era a fonte de todas as suas vergonhas. Ela me tomava no colo, me retirando de minha posição náufraga em que me colocara em pé no banco, e simulava balançar-me nos braços para acalentar meu choro, mas na verdade nessas ocasiões ficava tão enfurecida que não falava comigo até que chegássemos em casa.
              Olhando agora eu dou razão que ela ficasse tão possessa comigo, e que tomasse minha decisão em não me aprimorar para entrar no mundo dos passantes como uma rebelião deliberada contra os poderes de sua maternidade. Uma foto em que nós dois aparecemos, ela em pé com seu vestido manchado de nódoas de ovo, e eu sentado em um dos parapeitos de divisão dos blocos de prédios, é uma prova da árdua conflagração que acontecia entre nós; ela simulando um sorriso para o fotógrafo indeterminado, seus dentes infantis demonstrando a quão pouca distância estava dos anos em que não existia Halperin algum para ela cuidar, e o olhar que o Halperin lançava para a lente com uma determinação um tanto vingativa em dar irrecusável certificação de sua materialidade. Eu tento inutilmente recordar dessa ocasião, enganado pelo pensamento de que tamanho ódio em olhos semi-cerrados, convictos em não cederem à sua capitulação total com a gravidade, deveria ter cinzelado um fragmento de lembrança mesmo em uma cabecinha de dois anos. Dessa foto propriamente não me lembro_ talvez certa tendência a escapismos atmosféricos a que me remetem céus da tarde cobertos de nuvem tal qual o que aparece nela, uma certa nostalgia do aquecido deleite de ser um prosseguimento carregável que se atinha obsessivamente aos braços dela_, mas recordo de que meu tempo de reverência à imobilidade durou bem menos do que eu planejara. Tendo testado todos os recursos possíveis de seu manual intuitivo de mãe para fazer com que Halperin usasse suas pernas,  e tendo fracassado em todos eles, ela decidiu entregar Halperin de vez a seu primeiro deus e virou-lhe as costas. Essa astuciosa estratégia certamente foi tomada depois de quando tiraram-lhes a foto, pois caso contrário Halperin não estaria sustentando um ar tão tsaresco sentado naquele muro. Um tanto do terror que passara a sentir pela vitória de sua vontade contra a vontade da mãe teria matizado de borrantes cores de insegurança aquela pose nababesca por sobre o muro. A mãe o deixara instalado sem rédeas em toda sua independência das exigências orgulhosas dela: se Halperin não queria dar-lhe a satisfação de ser vista como uma mãe exemplar, prenhe do direito de ter uma criança competitiva aos moldes do que exigiam a dissimulada e ávida fauna da maternidade dos parques; se Halperin não movia um milímetro que fosse de seus pezinhos apoiados em mimada tensão ao solo quando ela convocava que ele atravessasse por si mesmo aqueles dois metros de distância, em direção aos seus braços estendidos; se Halperin não tinha um pingo de diplomacia para arredar-se de sua posição budista e se pôr em pé invocando seu direito biológico a uma posição futura de bípede voraz brigando por seu espaço no mundo, então ela deixaria Halperin em paz e não o incomodaria mais com tais questões. E foi isso que fez. Halperin estava obsedado por seu momento perpétuo, jogando para fora os filetes de baba produzidos pelo frenetismo libidinoso de sua infância, inteiramente seguro de sua vitória, quando percebeu o ardil. Era tarde. Lembro-me estar debaixo da mesa da cozinha em uma manhã em que os ruídos pareciam mais infinitos e intrincados, vindos de um exterior que me interessavam apenas como incidências de um portal o qual eu jamais iria me aproximar, e estar deitado por sobre os pés da avó pentecostal, quando meu estômago começou a dar os indicativos gorgulhares de que deveria ser preenchido imediatamente.
                Os pés da avó pentecostal eram um dos refúgios preferidos de Halperin, pés os quais serão descritos com maior rigor detalhista em outra parte dessa história. O que se precisa saber agora é que tais pés, com seus preenchimentos de redes ferroviárias de veias negras de diversos graus de espessura e sinais topográficos de melanina derramada captados pelos satélites dos olhos de Halperin, eram tão aprazíveis de se deitar e narcotizantes para o sono que Halperin só admitia sair deles ou quando uma das necessidades da natureza reivindicasse, ou quando a avó pentecostal tivesse que emergir de seu próprio torpor por algum motivo, ou porque a mãe de Halperin viesse erguer seu corpinho carregável para o por em outro lugar. Dois desses motivos estavam descartados naquele dia, pois Halperin ouvia que do alto das pernas passando pelo escoro da cadeira e subindo acima da mesa a avó pentecostal emitia sua mistura de sons de cochilo, muxoxos de ladainhas e uma e outra admoestação de costume que lançava contra as filhas, mesmo essas estando no quarto a vinte passos dali distraídas com suas ocupações pessoais, e por isso, se contasse apenas com essa possibilidade de interrupção, permaneceriam ele e a avó naquela troca de carinho estático até próximo à hora do almoço. Restava as outras duas hipóteses, a da fome que começava a fazer com que Halperin ficasse em incômodo estado de alerta, não mais fechando os olhos e deixando a cabeça bambear malemolentemente por sobre um morro de carne inchada do seu travesseiro podal, mas atento quanto aos estranhos sinais que sua barriguinha ronronante lhe enviava, e a que era a reação causal imediata que sua mente associava à essa: o fato de que sua mãe era uma espécie de barômetro que se antecipava a todas as suas cobranças. Halperin deu-se pelo esquecimento de sua mãe quanto à mamadeira da manhã. Simplesmente notara naquele momento que desde quando acordara, descera da cama e engatinhara até os pés da avó pentecostal, nem sequer a sombra de uma mamadeira aparecera por seu caminho. Ele