quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Mudança, de Mo Yan



Mudança é um livro bem curto e tido como um dos romances mais fracos de Mo Yan. Já no prólogo o autor conta que o escreveu para suprir um pedido não cumprido feito por um editor indiano de publicar uma narrativa política sobre as mudanças ocorridas em trinta anos na China. Mo Yan admite sua incompetência para tal projeto, mas a obsessão de moldar alguma forma aproximativa da empreitada o faz escrever uma espécie de auto-biografia em que se pode ver a visão panorâmica nacional abortada através de sua jornada de aldeão expulso da escola na quinta série, passando pelos anos no exército revolucionário até chegar à sua consagração como escritor. Para quem procura diversão rápida e uma prosa cômica concisa, a obra não decepciona, sendo mesmo bastante pródiga nas primeiras páginas. Nestas, respira-se a infância de Mo Yan, compartilha-se com ele sua fragilidade diante um mundo dominado por um sistema cuja opressão é tão onipresente que já atingiu a suavidade tensa do acondicionamento, e deleita-se com a apresentação de personagens que aos poucos perdem seus estranhamentos étnicos e se tornam familiares. O leitor sente aquele gostinho bom de estar lendo um desses livros orientais que faz o tempo parar e as fronteiras da imaginação se expandir; se lembra dos bons russos e dos bons latino-americanos; vê as aldeias com um enlevo absorvente que o faz ter a impressão de conhecer o país através das palavras ali escritas. Mas há um grave problema, que só se acentua pelo desbaratino do autor ser um completo desconhecido ao leitor e de não se ter, por enquanto, mais nenhum livro de sua lavra traduzido em português. O leitor sente o desconforto de não entender plenamente o que um livrinho como esse, desarmadoramente singelo e leve, quer realmente dizer. O leitor sente a comichão de não estar apto a saber se Mo Yan é um completo tolo ou um mestre portador de uma sutileza tão delicada que pode se esboroar no toque das mãos. Essa é a questão: acreditar nas palavras de Mo Yan, ipsis litteris, e com isso reconhecer o que alguns críticos de outros blogs nacionais que também só leram esse livreto disseram de sua vergonhosa conivência à ditadura de seu país, ou aceitar a fagulha de iluminação retroativa das últimas palavras desse romance e cogitar que Mo Yan usou de um sarcasmo fino, destruidor, auto-punitivo, que é uma chave provocativa para se ler sua posição contra todo o atraso que relegou ele e seus personagens a uma miséria física e moral. 

Na versão apostando no entreguismo total de Mo Yan, Mudança é uma leitura que em seu acriticismo absoluto chega a dar náuseas. Para o jovem Mo Yan nada é passível da mais ínfima indignação: ele é expulso da escola por uma mal entendido ridículo com um professor, que por ser esse integrante do partido o faz cair no banimento à educação formal; suas esperanças de ascensão econômica estão tão vinculadas a uma astrologia inalcançável de se cair nas graças dos influentes do poder que a reação diante a vanidade de suas tentativas mais esforçadas é de alívio resignado pela fidelidade do fracasso; sua mulher o escolheu apenas porque ele tem os olhos menos repugnantes que o outro candidato; até sua maneira de aceitar o fato de ter se consagrado como escritor é uma maneira de se desculpar pelo erro dos outros terem visto equivocadamente valor nas coisas que escreve. Mo Yan parece se aprazer com sua humildade ostensiva de se apresentar em toda a sua mediocridade. É o escritor medíocre, que não contesta, que não se lança em arroubos narrativos, que vai direto no assunto e usa um vocabulário estrito, que se reserva com fé rigorosa a morar dentro da circunscrição de seus limites, que escreve essas pequenas coisas em um livrinho de 125 páginas que se lê em 3 horas rápidas e que se diz velho e de memória fraca. Até sua melancolia é inofensiva, conjugando sua profundidade à confissão de que aprendeu filosofia com sofreguidão para sobreviver dando aulas a alunos proletários. Diante essas evidências, é difícil ao leitor apostar que haja um fabulismo mais complexo por detrás das imagens por demais claras do autor. Essa leitura hipotética de Mo Yan é a prova mais eloquente daquilo que Pynchon disse que um autor não pode ser absolutamente entendível. E nessa primeira leitura, Mo Yan é o mais entendível dos escritores.

A segunda leitura dá uma eletricidade inusual ao romance. A última cena do livro dá a dica de que Mudança pode ser maior do que parece. Com tal cena, o leitor leva uma voltagem no cérebro e retroage a todas as outras peculiares do livro, dando a elas novo sentido. Com ela, o entreguismo de Mo Yan passa a ser uma astúcia para mentes antenadas. Mo Yan passa a ser um metafórico quase tão potente quanto Günter Grass. O livro gira em torno da imagem de um caminhão soviético tão velho que está para se tornar uma sucata, o Gaz 51 (cuja bela capa da Cosac é a reprodução de um desenho técnico do veículo), no qual o autor faz uma viagem de 3 mil quilômetros até Pequim para levar 40 cestas de maçãs e alho-poró para os representantes do partido. Na crença do autor e seus companheiros, há apenas dois caminhões destes em toda a China, um no vilarejo onde Mo Yan nasceu, e outro no posto militar onde passa dois anos de tédio. O caminhão está por detrás de todas as tramas paralelas da história, e é o mote de um sonho surrealista em que os dois caminhões se encontram, se cortejam e se copulam, dando origem a vários outros caminhãozinhos. Tudo em retrocesso mostra que Mo Yan e seu universo estão indissociados da corrupção, do atraso, do cabresto e da barbárie do estado absolutista chinês. O amigo subversivo da infância de Mo Yan, He Zhiwu _ que faz lembrar no início o jovem Mahlke, de Gato e rato_, só consegue se tornar um milionário através da corrupção e do mercado negro. E a cena final, envolvendo a incorruptível colega de infância do autor, Lu Wenli, faz o feixe simbólico que dá autenticidade a essa leitura. Até ler As rãs, um romance de quase 500 páginas, tido como um de seus títulos mais relevantes, recém lançado por aqui e encomendado por mim nesta madrugada, não poderei responder com segurança. Mo Yan será um Shostakovich, que odiava Stálin e vingou seus anos de submissão forçada ao stalinismo através da evocação cifrada em sua música de sua perpetuação diante o desaparecimento inexorável do ditador, ou será meramente um sujeito vil atolado na mais silenciosa subserviência, como foi Prokofiev?

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