segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Uma cena de uma gravura de Hopper



Nesse momento, como para dar mais riqueza a esse caminho racionalizante, meu vizinho de baixo tocou o interfone da portaria. Tratava-se de um bêbado irascível, uma dessas pessoas mais desagradáveis, que cinco vezes por mês nessa mesma hora fazia seu teatrinho para a esposa e para a vizinhança em geral. O pouco que colhi sobre ele, de maneira aleatória e não requerida, informava que era um contador aposentado devido a alguma doença crônica degenerativa, cuja combinação de uma vida desocupada e uma mulher com o qual vivia às turras o levou ao alcoolismo. Ou talvez a doença a que a senhora do primeiro andar se referia, em um diálogo alheio do qual fui um observador apressado, fosse o próprio alcoolismo. Sei que por essas horas, consultadas por mim ao relógio da minha pequena cozinha sendo 23 e 55, ele adotava a mesma expressão cênica, que tinha como duração estudada de uns 15 minutos em que o botão do interfone era massacrado sem intervalo. Para mim em particular era algo um tanto mais desagradável visto que o interfone de seu apartamento ficava logo abaixo de onde eu me sentava, o que resultava de um ruído duplo cujos dois extremos simétricos, o da portaria e aquele, pareciam fazer os caixilhos dos aparelhos pularem. Em dado momento dessa zoeira, o homem começava a gritar o nome da mulher, ou antes, a alcunha a qual ele se dirigia a ela, na certa carregada de sua idiossincrasia ofensiva que só era captada pela criatura que se negava a responder no apartamento do segundo andar. A mulher, que por essas ocasiões em que não pude sair de minha passividade informativa, se chamava Nardália, mas o homem gritava todas as vezes um minimalístico e expressivamente brutal "Madalena". A coisa assumia uma grosseria sem igual por ele gritar apenas isso: Madalena. E como ela não respondesse, não emitisse um pequeno ruído sequer, e a solidão e antigo silêncio da rua fossem fundo para o marido, o grito ficava cada vez mais enregelante. Meus cabelos da nuca ficavam arrepiados, talvez porque na cordura daquela vocalização, um tanto selvagem em sua ruína e concentrada loucura, se percebia a tal doença que impossibilitara o homem para uma vida normal agindo. E sabe-se lá o que continha no fundo daquela ridicularia o nome Madalena, que sadismo mesquinho referia a um segredo que maldosamente tinha a consciência de só a mulher saber qual era. Seu grito era conciso e tinha algo de ave noturna, em sua precisa imutabilidade. A expectativa ecoante da sucessão que viria após o último Madalena colocava o sono e os nervos, por assim dizer, em frangalhos. Em uma noite comum, das tantas em que me poupara a filosofia, eu esperaria que o evento terminasse, sem me mover, o que acabaria por esfriar de vez minha janta, o que condizia com a capitulação da mulher ao som da cigarra do portão sendo aberto. Eu me abstinha em meus anos solidamente cultivados pela passividade sem consequências, nem me passando a ideia de que eu poderia acabar com aquilo tudo abrindo eu mesmo o portão, através de meu interfone. Penso que naquele prédio, povoado pelas mesmas criaturas típicas da geografia urbana a que se destinava aquele setor periférico, vivíamos nós os conformados, os casais falidos que se aturavam pelo passatempo condicionado do ódio, as velhas senhoras sem ninguém para as quais se destinava o último galho da árvore genealógica, e os solteirões invictos como eu, para quem a vida era agradavelmente um itinerário passável a ser cumprido, desde que isento da filosofia, porque nunca o portão fora aberto por ninguém mais a não ser a rígida mulher tomada por intensas associações que lhe provocava aquela terapia ao contrário de ouvir o marido lhe chamar por um nome que não era o dela. Naquela noite eu soube que eu começara um caminho irrecuperável porque, em vez de adotar meu lugar devido de espectador indeterminado, eu me vi levantando da poltrona e seguindo com uma enervante calma até a janela. Abri a janela, o que fez uma intrusão de um som inesperadamente invasivo à encenação do homem, e mesmo um som alto o suficiente para a parte de minha consciência que me via agindo cogitar olhar em torno para ver se algum dos outros omissos espectadores viriam ver o inédito desvio padrão do enredo. Mas não dissipei o olhar, encaixando-o diretamente no olhar do homem, que se encontrava voltado para mim com sua cabeça erguida por sua vez sem um pingo de surpresa e, o que me confundia, com um forte acento sarcástico. Não esperava provocar medo nele, mas o que um cidadão literal como eu costumava ter ao lidar com essa comunicação não verbalizada era ao menos a reciprocidade suficiente para fazer o outro perceber o seu descompasso às normas da boa convivência e retornar aos estatutos sociais sem maiores problemas. O que aconteceu, porém, foi que o ar de sarcasmo no homem aumentava, e seu olhar não só se prendera ao meu como exerceu um poder magnético do qual eu não conseguia escapar. Dei pelo enorme risco a que estava submetido em confrontá-lo, naquele momento, e admito que aconteceu comigo um desses lugares comuns da lexicografia, em que me pus literalmente a suar frio. Como se dentro daquele diabolismo maníaco de seu sanguíneo rosto de bêbado houvesse algo de piedoso, algo que me desconsiderava por ter total conhecimento de minha pequenez viril para um embate daquele nível, como se ele soubesse que se tratava de um impulso descomedido da minha parte ter saído de minha sombra meramente ouvinte, ele emitiu um sorriso de mofa. Com esse sorriso, ele me libertava e permitia que eu retornasse ao meu papel usual naquela comédia. E foi o que fiz: fechei a janela e me dirigi à poltrona. Ia carregado de vergonha e de um sentimento que na avaliação pormenorizada que fiz identifiquei como ódio. Não me recordava a última vez que senti tais coisas, e o ódio que me nutriu não era contra o homem, mas contra mim mesmo, por ter me levado a achar que a filosofia houvesse não só me despertado, mas me dado utensílios adequados para uma nova atitude frente ao mundo. Durante essa feérica introspecção, não percebi que o homem havia se calado, que reinava lá fora um silêncio venal. Só me ative a isso depois de bem um minuto ou dois, sentado em minha poltrona, em que o remoer de tais pensamentos foi interrompido bruscamente pela pressão nos ouvidos que fizera a quebra do silêncio. O homem voltou a gritar, após por sua vez digerir aquela risível descontinuação, mas não gritava mais Madalena. Gritava agora outro nome, um nome que não era o meu, do qual eu não conhecia pessoalmente ninguém que o portava, mas que de imediato soube que ele o fazia para mim: Sula..., Sula..., Sula.

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