segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Insignificâncias




Eu antes desprezava psiquiatras. Achava que era coisa de rico vazio, etc, essas coisas. Daí com a pós-covid eu tive um quadro de depressão preocupante e minha irmã ligou para um amiga dela, psiquiatra em Brasília, e uma antiga amiga minha também de quando eu era estudante. Essa amiga me mandou um email marcando a data de uma consulta pelo zoom, em caráter de urgência e que ela não receberia um não como resposta. Isso me deixou com noites sem sono atormentado por aquela imposição ridícula e pelo desconforto de ter de ficar de frente a ela pelo computador falando o quê? Eu não sabia como deveria me comportar. Daí aconteceu, chegou o dia. Uma hora de consulta e eu tinha chorado e revelado coisas que nem eu sabia que tinha guardadas lá no fundo. Eu até brinquei dizendo que ela tinha que trabalhar era para a PF. Ela me passou a quetiapina, e mais um outro remédio para loucos brandos. Esse segundo remédio eu tomei por um mês e não senti efeito nenhum, a não ser a mudança da percepção das cores de algumas flores no quintal e a tendência de ficar falando para a Dani como a vida era maravilhosa. Olhei na bula para ver se tudo lá estava legalizado, vai se saber! A mulher era uma das minhas amigas da juventude! Eu fiquei satisfeito e feliz por me desobrigar daquilo com dignidade: eu havia chorado e tal mas havia a ética profissional, ela não iria me sacanear. Daí ela me manda um email por mês avisando que seria consultas mensais. Eu passo por todas, choro sempre, e descubro o quanto o ser humano é frágil. Cada movimento que fazemos, cada pensamento, está alicerçado numa coisa ruim por qual passamos. Eu pude falar da morte do meu melhor amigo de covid, que eu, numa reação estupidamente condicionada, fazia esforço por não me atingir tanto porque, afinal, eu era Homem (sim, se vocês caíram nessa balela de me acharem um sujeito culto, eis aí a matéria da qual eu sou feito). No final de cada sessão eu estava quase em posição fetal, entrado numa zona proibida tensa e sombria do meu espírito atormentado. Eu fui ficando liberto, sentava na mesa do café da manhã e falava com a Dani como nunca tinha falado antes, sem proteção, sem a crítica exagerada que eu colocava sobre mim mesmo. E tem o lance dos pesadelos: eu recorrentemente tenho um pesadelo horrível, de que estou só, absolutamente só, como se eu fosse um fantasma em vida. Neles, eu ando sem rumo pela grande cidade, à noite, sem nenhuma pessoa com quem conversar. Eu jamais imaginava possível confessar esse medo para alguém, e lá estava eu o destrinchando para a médica. Lembrei de escrever sobre isso nesse post hoje porque, depois de quase um ano de tratamento, voltei a ter esse pesadelo essa noite. Acordei angustiado, fui de cama em cama beijando a Dani (dormimos no mesmo quarto mas em camas separadas), a Júlia e a o Eric, para ter certeza de que eles estavam lá. Faz dois meses que não falo com minha médica. Cada consulta dela é o olho da cara, que ela se recusou terminantemente a cobrar. Pelo terceiro mês eu disse que não poderia continuar se ela não cobrasse, que isso seria motivo de um outro trauma e só ficaria pior pois eu teria que passar uma sessão inteira chorando para ela me livrar daquilo também, e só teria um jeito, se ela me cobrasse. Ela disse então que cobraria metade, o que, não tendo outro jeito, topei. Ela estava grávida e, durante uma das sessões, ela deu um gritinho porque a menininha havia lhe dado um chute por dentro. Nós rimos bastante e eu contei como havia sido maravilhoso quando a Júlia e o Eric faziam isso na barriga da Dani. Era a primeira gravidez dela. Há dois meses ela perdeu o pai e, há um mês, no último ultrassom que ela realizou para ver como estava o bebê, os médicos espantados demoraram nos exames recorrendo a todos os recursos e disseram a ela que sua menininha não tinha nenhum sinal vital, que eles teriam que fazer uma cesariana naquele exato momento. Ela estava no nono mês de gestação. Desde então ela desmarcou toda sua agenda profissional e está incomunicável. Não há como mandar nenhuma recado de pesar, e nem sei como seria isso, para alguém com quem eu descrevi com detalhes todos meus mais profundos horrores.
Todas a

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Miriam


Ontem me lembrei com certo saudosismo da Miriam. Há mais de vinte anos eu fiquei desempregado e resolvi atacar os bancos. Saquei toda a grana que tinha no meu limite e gastei toda a margem do cartão de crédito. Não tinha com o que pagar e não estava nem lixando para isso. Vivi um ano de uma renda de poupança que eu tinha e desse dinheiro do banco e do cartão. Ficava em casa, dormia bêbado de madrugada e acordava todo dia depois do meio dia. Era solteiro, vivia sozinho e não tinha que prestar contas a ninguém. Daí apareceu a Miriam. Não, não era uma mulher fatal que apareceu para complicar ainda mais minha vida, mas uma funcionária da seção de cobranças do banco. Era uma terrorista esquizofrênica, para resumir. A primeira vez ela me ligou, a voz aguda, parecendo de uma das irmãs da Marge Simpson, e já direto me disse que eu era um miserável de um vagabundo e que tinha que arcar com minha dívida no banco. Eu fiquei sem resposta diante essa técnica crua de convencimento, e confesso que, pelo estágio psicológico em que estava, quase chorei. Desliguei na cara dela. Ela ligou de novo, cheia da alegria da vitória por ver que eu era um bunda mole sensível, e me disse: "E além do mais é um viadinho chupa rola de um derrotado que não aguenta a verdade na cara. Paga o banco, sua bicha!". Vi que eu tinha que adotar outro método de reação e tentei argumentar, perguntando porque ela agia assim, que não precisava me ofender. Ouvi um suspiro do outro lado, e um silêncio, crente que a havia enternecido, mas então ela disse: "Eu não sou sua mãe, seu retardado, pra ficar com pena de você. Eu não tenho nenhum filho bandido estelionatário e ladrão que dá cano em banco. É graças a merdas como você que as taxas estão tão altas nesse país, para compensar a cara de pau". E ela dizia essas coisas todas com fúria, mas sem perder a compostura. Parecia que fazia as unhas ou dava o peito para um filho (aquele que jamais seria como eu), enquanto me descascava todo. Eu é que comecei a ficar puto com aquilo, e quando devolvi na mesma moeda ela recorreu a um nível de profissionalismo tão elevado que se eu reproduzir no Facebook eu seria bloqueado por um semestre. Eu não deixava por menos, chamava ela de puth4, bisch4te, mandava ela lavar a bwc3tt4, coisas que eu nunca disse a ninguém mas um desempregado não é um ser humano então que tudo fosse para a pqp. Ela deveria ganhar muito bem ou tremendamente mal, porque me ligava todo o dia ou por excesso de eficiência reconhecida ou para descontar em mim a vida dura que tinha. Eu esperava o telefone tocar, sabendo que só podia ser ela, porque com o desemprego eu me tornei invisível e muitas pessoas só foram saber que eu não tinha morrido quando ressurgi, um ano depois, concursado. Então, paradoxalmente, eu só tinha a Miriam. Uma vez a gente estava gritando um com o outro (ela já estava apaixonada, já levava a coisa para o nível pessoal, já tinha jogado o bebê para o berço e esbravejava com aquele seio pingando leite para fora do vestido), e ela disse algo de um grau de escatologia tão abjeta, tão impossível de ser colocada no limite do verbo, que ambos paramos para reavaliar aquela joia nascida do nada e começamos a rir. Ela ria que quase chorava. Ela disse: "depois dessa não dá, eu te ligo amanhã". Eu disse: "então tá, tchau". Passaram três dias e nada dela ligar. Eu fiquei ressentido por ter talvez dito algo inconveniente, que não tivesse sido demasiadamente ofensivo, que a tivesse feito desistir de mim. Mas eis que o telefone tocou, de noite, quando eu preparava uma linguiça para comer com um pão, enquanto ouvia um cd do Doves que eu havia comprado com o dinheiro roubado do banco. "O pilantra tá aí ouvindo musiquinha de marica. Vai pagar o que você deve ao banco, seu travesti de esquina". Eu corri para abaixar o som, feliz da vida, e devolvi o xingamento colocando a moral dela em dúvida e definindo certas partes de sua fisiologia de maneira nada meritosa. Recordo que bebi as quatro doses de Caninha da Roça com Coca-Cola, me sentindo cheio de animação por ter "falado" com a Miriam, e desmaiei. Acordei no outro dia com a Ana Maria Braga narrando os atentados às Torres Gêmeas, ao vivo, e vi que o resto de esperança que eu tinha se desmoronava, o que me causou muito alívio. Eu estava com o passaporte pronto para ir aos EUA trabalhar numa empresa de distribuição de propaganda em sinal de trânsito de um tio meu, mas o Osama bin Laden havia mudado meus planos. Mesmo novamente empregado, eu nunca paguei as contas do bando e do cartão. Fiquei cinco anos livre da escravidão do crédito, até que um dia o Serasa me mandou um comunicado, dizendo que minha dívida havia expirado. E ontem, não sei por quais razões psicológicas, assistindo à série Caleidoscópio, me retornou a Miriam à memória. Vai ver porque é uma história que trata de assaltantes de banco.