quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Volta à Ítaca

       



 

 Creio que nunca ficou sabendo, as fontes da onisciência que rondavam a faculdade nunca lhe disseram isso, mas eu fui atrás de você naqueles dias. Assim que chegamos da Europa eu testei minhas novas apreensões sobre a vida, a maleabilidade de humor a que a tradição homérica do jovem ocidental de classe média diz que a volta a Ítaca deve suscitar, e não sentia nenhuma mudança. Eu olhava para o silêncio do meu quarto no pavilhão das linguistas e não via nada do que deveria ver; havia uma grande deficiência no sentir daquela minha pessoa que retornara, algo que me angustiava. Era uma porta para o retorno revigorado de todos os traumas da minha não-aceitação e de meus complexos de inferioridade, que eram o que me movera a fazer um deslocamento tão radical não só na minha geografia como no ambiente da minha alma, e eu não poderia deixar que essas coisas voltassem, pelo menos sem antes exigir delas respeito ao prazo para que ao menos me fosse concedido o direito a algum espanto. Mas lá estava aquilo tudo batendo à minha porta, não sendo esse o termo correto, bater, já que a ausência de ruídos era uma característica nova, a planificação da qualquer dialética que envolvesse contestação fazia com que essas coisas me esperassem pacificadas, como se eu fosse o império britânico naqueles raios de parâmetros metafóricos e meus antigos medos fossem os hindus famélicos de um advogado raquítico professando a não-resistência. Eu me lembro que anos antes, quando eu era ainda mais nova, o que pode parecer uma redundância dizer isso porque não há como não sermos outra coisa além de mais novos quando dizemos “anos antes”, mas a incorreção serve para retirar um lastro de expressividade que as palavras em suas ordens regimentar às vezes não tem, pois só quando meu corpo começou a se tornar independentemente aviltante, arranjando por si novos contornos expansivos, por mais que minha vaidade tivesse ensejo em conter essas novas perspectivas com exercícios e dietas, só quando a energia se dissipou dele, do meu corpo, e ficar à frente da tv começou a ser uma nova forma eufemística de tentar pegar a redenção pelas bordas, essa redenção que vai ver estão muito certos os que desde sempre afirmaram que ela não existe, só quando essas coisas passaram a ocorrer é que me dei conta do quanto eu era nova, o quanto o tempo foi sarcasticamente generoso na porção de juventude que coube me dar, por amplas partes da memória que eu recorra eu encontrarei faces diferentes de minha juventude que chegam a ser incongruentes, será que era mesmo eu, será que eu fui mesmo assim tão afortunadamente jovem em um mundo e em uma biologia que só me faz perceber o tesouro disso de forma retrospectiva, quando já não posso mais ver e agir dentro desse avatar sabendo estar nele no momento contínuo do presente, mas observando de um futuro em que tudo isso virou vapor, sumiu, evanesceu-se.

           A odisseia fizera bem para Kyria_ que profunda inocência a minha, que falta sagrada de premonição para ter achado isso, diante tudo o que ela viria a sofrer_, fizera bem para meu pobre e errático Timos, mas não para mim, que continuava como era antes, acrescentada apenas com a frágil lembrança do ar da França e da vertigem dos alpes suíços, uma quantas geometrias velhas e umas cornijas eônicas apelando para alguma indevassável nostalgia da espécie. Eu sabia que tudo havia acabado entre nós dois, de forma beatífica, ambos deveríamos apresentar um sorriso letárgico, falar sobre nossos antigos problemas como velhos octogenários falam de seus brinquedos de madeira sumidos no parque da mansão desaparecida. Ah, dizermos como é inefável a vida e essas porcarias abstratas a que estão cheios os jovens, sempre achando que estão passando de uma revolução mental e uma subversão do olhar intermitentes. Daí eu fui ao seu dormitório, creio que duas semanas depois; fui na cara dura, sem ter inventado nenhuma desculpa para justificar um ato tão anacrônica naquela nova fase de nossas vidas, mas não o encontrei. Seus antigos colegas me disseram que você havia sumido, pago a parte do aluguel correspondente e se mudado para a casa de alguém, não me lembro, de uma tia que voltara de Albuquerque, não sei. Passei dias desesperada diante o aborto da lógica de saber que te amava, que tudo o que eu havia passado para exorcizá-lo tinha sido um esforço vão, que enfim você com seu rancor invencível pela estrutura do mundo, suas fobias sobre a dominação e seu ódio ao poder estavam certos, o que acabava o transfigurando como um super-homem para mim, olhe só o quanto eu estava perdida e o quanto eu precisava de ajuda a ponto de cair no erro de supor que ela deveria vir de você. (Não se magoe ao ouvir isso, foram duas décadas e meia atrás e eu analiso aquela que eu fui com o destemor amoral de saber que eu estava enfunado em um estágio muito para trás de todos os passos evolutivos que você com certeza deu para frente, no caminho da luz, ou, sem sarcasmo, no caminho pelo menos do distanciamento daquelas sombras que já não tinham capacidade de te assustar.)

        Caí em um catastrófico mau humor; as espinhas pulularam meu rosto de forma que se não fique desfigurada foi porque a compadecida piedade do tempo ajudou enchendo minha pele de camadas extras de gordura, estufando a maioria dos buracos das cicatrizes das espinhas para fora. Fiquei emporcalhada, não tomava banho, vestia as mesmas roupas, aproveitando aqueles dias finais antes das aulas, imaginando onde estaria você, se você retornaria para seu curso, o mais natural seria que você fizessem como Ivan Karamázov e assumisse sua falta de teto, seu magistral desvinculo a todas as instituições terrenas, seu peripatetismo por entre as dores do mundo para colhê-las e as reportar para seu núcleo espiritual conservado. Então eu fui justamente recorrer à maior e a mais simbólica das falácias de nosso namoro, o violinista. Não soube porque, vai ver se eu fosse até onde estivera a possiblidade de nossa mais abrupta desavença eu cambiasse algo que ficou para trás indigerível e isso pudesse me trazer uma transformação empobrecida e de segundo nível que eu teria direito já que minha odisseia foi inaproveitada. Oskar Liebeumicth, era o nome dele, ainda me lembro. Nascera em Principado de Mônaco, essa exoticidade ajudara que eu memorizasse alguns pormenores literários de sua personalidade. Encontrei-o nos ensaios de um quarteto de Schubert, no centro cultural da faculdade de música. Para o desagrado dos seus temores profundos, ele havia cortado o feixe de crina equina, fazendo um topete que lhe conferia um substituto burguês e bem menos proteinizado da áurea de macho dionisíaco de antes. Assisti ao ensaio e depois fui falar com ele. Na verdade me ofereci explicitamente a ele. Sem nenhum pudor, ou ao menos eu imagino que fora assim, nessa altura da observação oracular em que a velha narradora em seu sofá de couro italiano com o terceiro cálice de camembert na mão supõe interpretar essas fraquezas tremeluzentes e profundamente aterrorizadas transfiguradas em ousadia. Agora pensando bem creio que, se Oskar Liebeumich, o paganini das terras lendárias da lavagem de dinheiro e do paraíso dos magnatas bancários, me viu naquela noite com os olhos enfeitiçados pela minha graça feminil despertadora de libido as circunstâncias da imprevisibilidade como eu me apresentei deve ter colocado um filtro de aparo diante seus sensores corporais para que ele se apresentasse muito polido, muito distanciado, muito cavaleiril. 

      Eu estava quase chorando, de pé entre os poucos senhores e algumas senhoras prussianas em seu camarim para lhe dar os cumprimentos, minhas pernas mal me sustinham por cima dos sapatos marrons estornil que eu comprara em uma loja chique da cidade grande em uma das minhas andanças solitárias; eu sentia a meia calça que lhe acompanhavam, silentemente desconjuntada nas pontas dos dedos dos pés que ficavam massacrados no bico fino, e que mais acima enlaçavam minhas belas pernas de então até se findarem no início representado pela liga da cintura, esquentando minha virilha seca tornada desesperadoramente dessexualizada embrulhada na calcinha depois desse exorcismo que nós três buscamos encontrar a dez mil quilômetros e só você e Kyria haviam encontrado. Eu estava para chorar, parada na porta daquela salinha onde os grandes astros do futuro se maquiam e respiram a solidão efêmera de antes da apresentação, e que naquele momento tudo eram apenas promessas, Oskar Liebeumich ainda estava um ou dois anos longe de ser famoso como um dos violinistas mais jovens e talentosos, assim como as mulheres não eram prussianas um milímetro na realidade afora na minha imaginação exercida em romances de exilados russos, talvez donas de casa, estudantes de arte em cursos vendidos em apostilas e em encontros quinzenais, sem reconhecimento pelo ministério da educação, assim como os magnatas não deveriam ser nada senão velhos donos de livrarias cults da parte mais arborizada da cidade. Eu também era uma formação insurgente do que alguns anos depois eu viria a ser, a solteirona convicta, mesmo que entre a verdade e o conceito houvesse um marido despachado sem cerimônia e com mútuo compadecimento pela erraticidade humana, parada ali olhando o ás do instrumento com os olhos de uma vampira exangue, uma noive do Drácula que algum van Helsin distraído arrancada com a estaca sua morticidade sem fazê-la soltar o grito de terror secular antes de a pele se dissolver com os ossos e sobrar apenas uma múmia de duzentos anos, sobrando por misericórdia uma dama sem charme e com os olhos e boca borrados e já escoada de qualquer conteúdo peçonhento. Oskar sorria e beijava os visitantes e foi aí que me viu; o tempo ficou suspenso, como se a natureza tivesse feito um foco em seu belo rosto de queixo viril e nariz insuportavelmente aquilino para mostrar que eu lhe causara uma apreensão suficiente para ter-lhe cortado o sorriso_ o sorriso que, junto a tudo o mais daquela perfeição adâmica o deixava perdido de ódio e medo, o medo macho santificado por todas as biologias de que o padrão genético angariado em algum mapa de superioridade quantitativa haveria de fazê-lo destruído e humilhado, castrado e vituperado. 

        Ele se lembrava de mim, claro. Ássia, uma das poucas vantagens de ter um nome subalternamente midiático, uma propaganda que toda pessoa culta quer se reconhecer no entendimento consagrado. Engraçado que se passaram oito meses, não havia nenhuma história, só havia em sua cabeça, Timos, em sua cabeça e posteriormente na minha, por tanta insistência sua. É para rir mesmo, temos que rir disso. Nós fizemos se abdicar todas as arraigadas narrativas de nossos pesadelos e de nossas cismas imaturas, e tínhamos agora o direito de sermos livres, de termos nascidos de novo, e era isso que eu sabia que você e Kyria estariam fazendo, de olhar radiante e claro, de pés firmes e cheios de vigor, desbravando a vida salutar, que não se exibe, a vida filosófica e carregada de fé sublime, e eu estava tão atrasada e caída em fracasso e havia traído tão profundamente o propósito que eu revertera meu curso e decidira voltar a uma dessas histórias, a mais banal e contraproducente delas. A história com Oskar Liebeumich, o violinista do País de Gales que fizeram meu ex-namorado ficar enlouquecido de ciúmes. Por que você teve a audácia de achar que poderia remover essa fantasma pesado de um Oskar Liebeumich de sua vida? Por que você tinha a petulância de achar que seria assim tão fácil? O que um mês nos Alpes, e uma noite em Paris onde se achara merecedor de um bacanal íntimo com duas irmãs, haviam feito de legítimo para te dar a certeza de uma experiência libertadora genuína? Isso não existia, meu caro! Foi isso que eu tinha descoberto no trâmite daquela ilusão toda. Não existem arrebatamentos, ou se existem não são concedidos assim tão levianamente para jovens cheios de empáfia como éramos nós. Um sono, um langor de eras e gerações, passados pelo sangue apaziguado até um incrível grau de indolência de nossos avós boçais, para nossos pais boçais, e inoculados com extrema confiança em nossos avatares juvenis boçais, olheiras, odor rançoso piorado com perfumes caros, e com nossos buracos e falos tesos e sem graça de tanta manipulação sem nenhum pingo de sagrado.

       Por que Kyria iria realizar de forma tão escorregadia e pacificada sua vocação ao comando mundial, sua imersão ao mundo empresarial, apenas porque ela atingira uma certa disposição interpretativa auto-convincente de ter esquecido o que deveria ser esquecido

          Por que você, Timos, iria atingir o próximo passo natural de ser um Ivan Karamázov ou o que é que diabos você gostaria de ser afinal das contas após tanta trama deixada pelo meio e tanta paixão intelectual cujo fim lógico era sempre escamotear o objeto visível para que ele continuasse não-visível e suficientemente obnubilado, para assim dar ensejo maior ao que você não queria ser? E por que apenas eu dessa tríade havia feito o trajeto santificado, a via sacra transformadora, tendo caído na armadilha de abrir os olhos antes da coisa ter se completada e assim visto os mecanismos expostos que não deveriam ter sido vistos, contemplado a farsa de tudo?

           Quando Oskar Liebeumich dispensara as visitas, tendo me agarrado pela mão na frente dos olhares questionativos, bocas arreganhadas querendo perguntar se a grande promessa musical afinal tinha uma namorada mas sem a coragem para o fazer, me levando para o carro tendo retirado o casaco do terno e envolvido meus ombros com ele, eu fiz o que não poderia fazer na situação, chorei, em silêncio mas bombasticamente, você sabe que eu não tinha esse talento que algumas mulheres frágeis e belas tem de se tornaram exponencialmente ainda mais frágeis e belas quando choram, a ponto de se tornarem insuportavelmente hipnóticas para os homens; os homens, pelo contrário, estavam passivos a se desinteressarem de vez ao me verem chorar, fico vermelha em excesso, músculos até então relegados a um sono eterno eram chamados a darem sua contração máxima em meu rosto, de forma que se via algo do que havia reservado para o sortudo detrás daquela beleza prometêica dali a umas boas décadas, quando nem o rímel sutil nem a hena indiana mais cara poderiam esconder a velha murcha que eu estava destinada a ser. Mas mesmo assim, Oskar Liebeumich estava suficientemente interessado para que me colocasse no carro minúsculo, francês, estilo como é aquele do Mr. Bean da séria de televisão, e me levasse até seu apartamento. Ele só me dizia que estava tudo bem, me olhava com surpresa enquanto girava o volante dirigindo sua máquina enxuta e prosaicamente funcional até sua moradia querendo saber mas não perguntando o que havia acontecido. Subimos, não tinha porteiro no prédio, um prédio escuro de paredes descascadas, de certa forma tendo algo a ver com a disciplina ilesa de desejos desviantes dele, serviria para o deixar mais concentrado, me fascinava com algumas pinceladas de sombra a capacidade dessas pessoas de transportar toda sua necessidade estética para um mundo inoculável e hermeticamente privado apesar do cimento horroroso e do cinza prostrante. 

          Ah, Timos, o violinista era o oposto de todos nossos temores_ meus e seus. Onde estava meu pensamento, em que substrato do hades ele titubeava as pernas para me fazer enxergar toda a situação como a de uma mulher fragilizada que estava prestes a ser sodomizada pelo seu protetor ocasional, que tanto seria uma sodomização passível da mais purgativa critica bíblica pelo agente infrigidor ser um violinista, um ser devoto à arte, devoto do silêncio. Eu não seria puta nas mãos dele. Ele me cedeu sua cama, eu já não chorava mas mantinha-me calada. No rol das vergonhas aquela era até uma espécime pouco vistosa, com sua desprovidão de brio e sem desenhos peculiares nas secas asas presas ao corpo cravado na placa. Era como se minha derrota me devesse aquela pausa em todos os processos cerebrais e preconceitos civilizatórios, me dando o direito de ser estúpida, sem entraves do que eu julgava ter criado de socialmente importante em minha personalidade. Que se danasse meu academicismo, minha cultura, os tantos livros que eu li, os idiomas que eu aprendi, que se fodesse eu saber as trintas aulas avançadas do diagrama chinês. Eu tinha o direito de me livrar daquela entidade em que eu me encarnei de uma menina ocidental predestinada. Eu não era nada, e como era bom ser nada em um apartamento pequeno, iluminado como uma caverna tangida de amarelo cheio de calor e recolhimento, com os objetos aparecendo apenas o suficiente para o olhar apontar sua existência sem intuir suas funções e seus significados, uma moradia povoada na discreta medida certa de totens, amuletos, pequenos quadros paisagísticos, uma mesa com livros que eram tão sofisticados que prescindiam da necessidade de serem lidos, estavam ali porque tudo ali tinha apenas essa exigência descomplicada: existirem sem justificativa, ou então com uma justificativa que o estágio em que elas e eu estávamos na ocupação do espaço e do tempo não precisava ser adquirida agora. Um sursis. 

          Eu dormi com uma alegria que eu não sentia desde que era criança, desde que meu pai me vinha à noite da loja de armarinhos que tinha e me dava um beijo, cheirando a cola e a raspas de madeira, os talos do bigode se dobrando com uma incrível maciez contra meu rosto me enchendo da sensação de que tudo tem sua plenitude no universo, tudo tem sua tenridez e delicadeza, tudo está moldado em uma escala do sagrado e talvez o drama nessa terra fosse apenas um incidente involuntário resultado de nossa procuração não permitida em tentarmos achar o nível de calibragem certo, o peculiar e ultra-fino tom que nos dê o indicativo da posição correspondente de cada nota nessa melodia imorredoura e perene e eterna. Meu pai que era dono de uma loja de antiguidades e que trabalhara por 30 anos como professor de mecânica quântica na universidade central, e junto ao qual eu aprendera tanta coisa que não vem ao caso falar agora. Será que Freud e Lacan, ou a revista de psicologia, ou os anais de psiquiatria tem que ser codificadas com a mesma leveza que eu senti naquele apartamento? A nostalgia do pai. Descubra o perfume que o pai usava a você vai fazer com ela o que quiser. Mas que merda, será que foi realmente a isso que nossa pífia capacidade de transcendência nos levou? É disso que nós fugimos, abraçando essas experiências forjadas com unhas e dentes e querendo receber o arrebatamento pelas beiradas, por dedução, atingir o reino perdido com a indolência da sensação do choque do acidente que é querer obtê-lo e não pela limpidez impossível de um pouso seguro. Não há pouso seguro. Lembra daqueles reis todos das dinastias chinesas, e os vinte czares Románov. Eles enforcavam bebês e evisceravam mulheres grávidas, empalava embaixadores e samurais titubeantes, desmembravam irmãos, envenenavam mães, mandava para o exílio no ártico como gratidão as noivas rejeitadas. Tudo no mundo é um choque contínuo e de energia inesgotável em que a mínima percepção do inominável é um efeito colateral não estabelecido nas leis desse lado de cá, o que torna a fagulha de obtenção um milagre. Você estava certo mais uma vez, como sempre esteve certo e eu me recusava a sequer levar a sério essa sua lacônica cosmogonia. Não podia ser tão simples, minha vaidade intelectual prenhe de vitalidade não podia admitir que a aspiração ampla para uma multifacetada dialética fosse acondicionada em uma teoria tão sem graça e coesa, sem reverberação e perfeitamente prática. Sua teoria do segredo da existência era uma fórmula de bakara infalível.

           Tudo era vão, o ser humano era inconfiável e em última instância tendente ao morticínio, e a paz poderia ser simulada através do isolamento. Você era o santo da não-coaptação, o São Francisco cínico da negação. De uma forma diferente na finalidade das sombras, Kyria era semelhante a você. Ela chegara à mesma apreensão da verdade por caminhos próprios, com uma capacidade mais sólida que a sua, com um ingrediente feminino não-filosófico que era mais avançado e menos tediosamente amparado em uma melancolia heroica que a sua. Não há personagens femininos relevantes nos Irmãos Karamázov; ela não poderia nem ser associada àquela que mais pareceria com ela no panteão de mulheres melífluas e fortes de Dostoievski, a M..., pois Kyria era impermeável à maldade, e a bondade e os infernos das dúvidas espirituais estavam longe a uma distância impossível dela. Uma vez você me disse que sua vida poderia ser, na melhor das hipóteses, a continuação nunca escrita dos Karamázov, realizada no século posterior e em uma sociedade material outra que não a Rússia de aldeias de estradas de terra enlameadas do romance original.

             Algumas vezes você me dizia que sua história alternativa pretendida não giravam em torno das grandes questões humanas, não queria saber o que seria do mundo se Hitler tivesse ganho a guerra, ou se Lênin não tivesse morrido, ou melhor ainda, se Tesla não tivesse sido destruído pela campanha difamatória dos magnatas que não queriam que os automóveis fossem movidos a eletromagnetismo e nem que a energia elétrica fosse distribuída de graça. Você gostaria muito de ver a história alternativa em que o velho Dostoiévski tivesse vivido mais uns bons 5 anos para que escrevesse a continuação daquela inusitada jornada de dois irmãos cujas opções já haviam sido extintas no primeiro livro. Aliosha Karamázov e Ivan Karamázov_ já que a terceira perna desse painel metafísico, o hedonista Dmitri, fora suficientemente coerente para morrer dentro da capacidade cumulativa de transtornos que a quantidade de anos que sua faixa etária lhe deu sobre essa terra. Aliosha era o santo, o homem que alcançara toda pureza e visão leve e compadecida, e Ivan era o filósofo, o errante questionativo e a mente que não para. Dois espíritos muito antigos, forjados talvez não no início do cosmos, como aquele outro mais sagaz e transposto em definitivo para outro planto que está nas escrituras, mas no princípio computável das mazelas e dos horrores que tão bem se serviu a mente que os inventara, mil anos talvez, ou talvez no início dos Románov, 1613, ou talvez eles fossem reencarnações assustadas pela imprevisibilidade do relógio teológico de samurais ninjins, que traíram a coligação por não verem mais razão na morte, nem que fosse o assassinato autorizado pelo qjin e por deus de seus inimigos. Eu também gostaria que algo do que seria esse livro viesse a tona, contanto que minha curiosidade seja menos predisposta que a sua por me entregar a enredos que me destituísse da narrativa convencional dessa realidade_ levei tanto tempo para me acondicionar a ela, me desviando o máximo possível dos seus percalços, que não iria querer me abster do animal semi-domado (ou do animal que presume ter nos esquecido por um tempo, em nossa idade avançada e já não despertadora de seu interesse). Mas você quis saber como seria fazendo-se de si mesmo a reencarnação da trama inexistente.

           O fato de não ter um cérebro megatômico de tal potência por detrás, regendo seus destino e seus pensamentos_ estar livre de um Dostoiévski como um deus, o mais dicotômico e dual dos deuses, espargindo ternura e estridente loucura e eventuais mortes estapafúrdias pelo caminho, talvez como seja o próprio deus ortodoxo que, mudando-se aqui e ali em detalhes de somenos importância e tangidos de cores diferentes, é o deus de todas as religiões desde o começo do mundo. Estando livre de um deus assim, você pode ser um herói adâmico com uma liberdade ainda mais insuportável e extasiante do que a do Ivan Karamázov. Ivan se escandalizava de deus permitir a morte de uma criança, o que Timos Karamázov não poderia enriquecer essa incongruência brutal com tudo que ele sabe do século XX que Ivan não soube? Se Ivan não suportava a complacência de um deus que permitia que os cães de um nobre da corte czarista trucidasse o filho pequeno de uma das servas da propriedade, ou que a menina morresse de frio no porão da casa no inverno cumprindo o castigo do pai de se sentar sobre o barril de água, o que ele pensaria das tantas e tantas filhinhas desse mesmo deus que morreram nas desapropriações de terra dos kolkhozes, vítimas da fome, do canibalismo das próprias mães; o que Ivan pensaria dos fornos crematórios de Auschwitz e Treblinka, dos massacres de Ruanda, das crianças prostitutas das beiras do asfalto no Brasil, das crianças índias albinas caçadas e massacradas e tantas tantas e tantas outras. Eu havia lido Tolstói e Turgueniev quando estava no colegial e alguns anos antes, meu pai e minha mãe revezavam na leitura de Gógol, A dama do cachorrinho e tudo que fosse publicados nas línguas que eles conheciam do áspero e desestabilizador e comovente Checov, mas do dostoiévski eu confesso que nunca me atraia muito, eu tinha com ele uma ligação pouco venal e determinantemente respeitosa em que eu lhe dava a concessão de aceitar sua grandeza sem precisar comprová-la. 

         Creio que tinha lido a história do Ralkolnikov, que todo mundo minimamente declarado pensante havia lido, e só. Peguei os Karamázov na biblioteca da universidade antes do feriado da páscoa, motivada pelas tantas referências que você fazia da obra, e o li uma sentada, como dizem, li dividindo o livro com tudo que me estivesse pela frente, comida, lavar as louças, atender o telefone com a ligação de algumas das meninas que foram para a casa dos pais, com a ida ao supermercado para comprar gorgonzola, e finalmente na cama, com o cobertor puxado até o queixo com um cuidado redobrado pois eu entrava na aldeia invernal em que Dmitri Karamázov estava amarrado pelos mujiques para passar pelo seu destino definido do julgamento de assassinato. Talvez seja mesmo o maior romance já escrito. Ele me envolveu tanto que após ler, após passar pelos meninos que bateram no pai do pequeno D., depois pelo Grande Inquisidor (recebendo o sopro de tudo o que eu havia lido do existencialismo), e sobre o monólogo do Ivan e do stárets Józima, após fechar o livro em sua última página foi que percebi que a experiência havia sido tão cativante que nem cheguei a pensar nos ganhos que sua leitura teria em nosso namoro. O quanto eu estava inconscientemente me preparando para chegar mais próxima a você, meu pequeno Ivan, para onde mais o Ivan libertado dos grilhões da moral e do pensamento iria após ter enxergado tão longe senão para uma clínica de abortos?

            Naquela época você era uma promessa, como Oskar Liebeumich, a seu modo turvo e impactante. Eu passava horas de adolescente apaixonada tentando imaginar o que você estava destinado a se tornar, mas sua completa deflação a tudo não permitia ver o que seria. Um escritor, um ensaísta, era a aproximação mais cabal a que eu chegava. Mas para isso eu cogitava que seria necessário um certo empenho, e sua extraterrenidade não era compatível com uma carreira acadêmica ou com os processos bajulatórios para angariar uma bolsa de doutorado. Você brigava com todo mundo, era algo que me afligia no que eu tinha de mais feminino e pragmático. Eu confesso que pensava que nosso namoro poderia dar em algo maior, mais duradouro, eu era uma moça esperançosa por debaixo de minhas ambições pessoais irrestritas, eu chegava a acalentar um andamento temporal em que nós sobrevivêssemos ao enfado e à necessidade de conhecer novos amores e alcançássemos vitoriosos um patamar depois de realizadas nossas ambições profissionais pessoais, e viéssemos a nos unir em um desses casamentos metalinguísticos e elegantemente possíveis a toda contradição em que se lançam escritores, cientistas e importantes sumidades mundiais. 

           Não vai rir de mim agora se eu disser que meus moldes eram ternamente ambiciosos, a nível de uma Angel e Marie Curie e Sartre e Bouviar. Eles não podiam ser tão infelizes como aparentam nas fotos e nas fofocas oficiais, tão estranhos, reptilínicos, doentes e obcecados na promoção do sofrimento mútuo; não podia ser que alguma missão outorgada nesse mundo viesse com o adendo perverso de que os super-homens e as super-mulheres devessem se comportar no refúgio do lar como cobras peçonhentas; deveria ser a imprensa específica para esse tipo de gente ousada e rara que não sabe que não se tece sobre ela as mesmas aberrações que se tece sobre as pessoas comuns, as que morrem de sífilis e que introduzem nos canais vaginais das esposas objetos impossíveis. Eu pensava que duraríamos, mas o que você poderia ser? Desde o começo eu soube meu lugar, o que eu seria, mas e você? Ivan karamázov não podia se casar, levar uma vida comum, suburbana. O grande vazio era seu único deus, e sua existência, atravessando gerações e cláusulas atemporais no registro das encarnações sucessivas só se presta ao eterno diálogo com esse deus silencioso, imóvel e mimado, que quer tudo de seu servo para si. Uma relação bem mais doentia que a das sumidades artísticas dessa terra; você já tinha o seu Angel Curie e seu James Joyce; seu deus era quem te mandava torpedos com uma letra concupiscente trêmula no papel amarfanhado te pedindo obscenidades para mais tarde.

          Desculpe, fui longe demais. Sobre o violinista? Não, mais uma vez eu tenho que ser 

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Emerson

Uma das mais tocantes cenas da literatura está em Dia de Finados, de Cees Nooteboom. Um amigo dança para outro amigo enfermo em seu quarto de hospital, após este ter se recobrado de seu estado de quase morte. Sem dizer uma palavra, ele entra no quarto e, sem música, executa com extrema seriedade os passos desengonçados da dança. Dia de Finados foi um dos tantos livros que eu dei de presente para meu amigo Emerson. Semana passada, ao ouvir que Emerson tinha saído do estado grave para estável, eu fiz o plano de que, assim que ele voltasse para casa e estivesse apto a receber visita, eu iria colocar "O Pulso", dos Titãs, no meu celular, e iria dançar para ele. Eu sou um péssimo dançarino e profundamente tímido para esses arroubos, mas eu estava convicto. Imaginei algo tão ridículo quanto aquele vídeo do Houellebcq dançando no deserto. Algo me dizia que quanto mais ridículo, maior seria a catarse. Não importa quem estivesse presente, todos iriam ver o sujeito com cara de idiota, de quase dois metros de altura e 110 quilos pulando e agitando os braços enquanto a voz imponderável da música fosse elencando cada uma das doenças que teriam feito a fatal diferença se o pulso ainda não pulsasse. Eu manifestei os sintomas da covid no primeiro dia desse ano, fiquei muito, mas muito mal, a ponto de pensar mesmo que iria para a UTI. Essa é outra história e só serve aqui para dizer que, quando enfim eu pude andar mais que dez passos, eu coloquei em volume máximo "O Pulso", e ouvi umas três vezes, junto com "Todo mundo quer amor". Eu que sou paranoico em jamais perturbar os vizinhos; eu que sequer gostava dos Titãs. Andei em torno da casa chorando, e ouvindo essas músicas, que eu senti uma necessidade inexorável de escutar, sabe-se lá por quê. Eu contei isso ao Emerson, antes dele mesmo se contaminar, e aconselhei: se você pegar, se tranque em casa, tome anti-inflamatório, se alimente bem, tome muita água, e só. Mas não; sem apresentar sintomas sérios, ele ia todos os dias ao médico e, num ato colossal de desespero, ele voluntariamente se internou em um hospital a 400 quilômetros de sua casa. Ficou três dias na enfermaria, sem propósito algum e, depressivo, muito assustado, e vendo o terror de perto de um pronto-socorro em época de pandemia, a doença tomou total frente nele e o levou à UTI, à intubação. Hoje o celular me acorda com a informação de uma amiga de que o pulso do Emerson parou de pulsar. Estou todo o dia sentindo o quanto eu o amava e nem sabia, e tremo a cada vez que sinto o quanto ele me fará falta. Com quem conversar agora? Parte da minha alegria com os livros e com a música se devia a ele, à ânsia de lhe apresentar aquilo nesses campos que eu acabara de descobrir. Suas últimas palavras para a esposa, antes de ser intubado, pelo vídeo do whatsapp, foram: "Eu devia ter aproveitado melhor a vida". Suas últimas palavras para mim, na fila do banco, quando comentávamos sobre o boato de alguns dias atrás sobre ele estar mal com a covid, foram: "Mas quem sabe eu não venha a pegar? Eu vou deixar um testamento doando meus livros para você". Eu respondi: "Eu tenho todos os livros que você tem". Ele retrucou: "Tem alguns escondidos que você não tem". Respondi: "Esses não me interessam".

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Um dia mais e me expulsarás, talvez com zanga


Antes, como todo mundo, eu andava atrás de meus antigos e desaparecidos amigos pela net. Por ter obtido sucesso na procura eu parei com isso. Tenho uns 5 amigos que me eram fundamentais, provado isso pelos sonhos estranhos que eu passava a ter ansiando abraçá-los. Amigos que éramos tão gêmeos no humor, nos gostos, nas angústias, nas promessas, que minha alma sofria muito diante a nostalgia da juventude extraordinária que eles me proporcionaram. Com eles eu tive uma banda de rock, as mais pynchonianas aventuras de viagens e bebedeiras (e passa por aí minha paixão por Pynchon), os amores platônicos em que o bom era quebrarmos as caras para suportá-los mais intensos, as longas e madrugadinas conversas, os projetos mirabolantes, o deslumbre com a literatura. Tive uma juventude plenamente feliz com esses caras; eu tenho a sorte de ter uma estrela imantada que atrai esse tipo de gente. Um deles, desses meus amigos imortais, eu conheci quando pegava o ônibus para o colégio Objetivo; todo dia eu encontrava com seu sorriso ultra-simpático que me causava nojo e sua aproximação para conversarmos, e eu sempre fugia dele até que ele me conquistou. Esse aí é o Marlon, que, há dois anos, achei seu telefone e liguei para ele, com meu coração saindo pela boca, e quando ele atendeu eu fui tão irreverente, tentado recriar nosso ambiente, xingando-o de filho da puta por que sumiu de mim, e ele do outro lado em uma frieza monumental, quase me tratando por senhor. Despedi com um fiapo de voz e considerei que nossa amizade acabara, ou eu continuaria me referindo a ela no passado. Ele mora em uma cidade próxima daqui, algumas vezes pensei em ir lá de surpresa, mas eu tive tantos assombros diante o que o tempo e a vida comezinha fizera com esses meus antes radiantes amigos que desisti. Desses 5 amigos, apenas um conserva uma reserva suficiente do que era antes para que nós ainda possamos nos falar, o Fernando, que veio aqui em casa jantar conosco ontem. Os outros vou falar: encontrei com um no shopping há uns oito anos, e o cara tinha o olhar cheio de um espantoso rancor, o que percebi que ele tinha uma medo pavoroso de descobrir que eu me dera bem na vida, estava melhor que ele; quando nos despedimos no estacionamento, eu vi que ele desmoronava e me odiava para sempre ao ver o carro em que eu estava, e só não falei para ele não se preocupar porque era o carro da minha mãe porque eu estava em estado de choque. Eu fui embora remoendo o pensamento de se eu também me tornara tão babaca e previsível, se em mim todo o frescor e a poesia e a infantilidade de outrora havia sido exterminada e, diante os olhos dele, eu era um ser de uma boçalidade pesada.

Os outros: um virara um comerciante que o riso superficial que ele achara para suplantar o escândalo glótico que era antes sua demonstração diante o espetáculo incerto da vida me deixara em depressão por um bom tempo, reforçado pelo tapinha nas costas e pelo "vamos nos falar hein?, não vamos nos distanciar mais não, meu caro", que me deixou numa imensa broxada (e esse, porra, esse era o que eu mais amava). O outro, o outro apenas virou um pai de família, apenas murchou em seu nicho, com conforto se esvaziou de tudo, esvaziou-se tão hereticamente de toda e qualquer loucura, que me oferecia em sua sempre sinceridade descansada as opções progressivas de conversar sobre comida e o que se poderia fazer a níveis médicos para reduzir essa comida do calibre das veias. (Há dois outros: o Safatle, que me chamou para jantarmos juntos, e que um dia eu irei, e a Inamar, uma amiga minha com o qual eu dividia natais nos quais eu não tinha lugar para ir e passava em sua casa acolhedora, e que eu contava sobre meus planos de virar missionário na África, e ela me contava sobre seu sonho absurdo e meio ridículo, mas que eu a amava demais para nunca ser honesto com ela sobre isso, de ser apresentadora de um programa infantil televisivo. Depois de uns cinco anos a reencontro, quando eu passava minhas tardes de desempregado nos tristes cinemas do centro da cidade, e ela me chega pelas costas falando ortodoxamente (como se ela na época já soubesse de antemão o que o tempo destrói nas pessoas, e agisse com delicadeza comigo): oi, sou a Inamar, se lembra?; nós fomos sem graça tomar um açaí, nós que éramos os seres mais desbocados do mundo, e depois subimos uns quarteirões até sua casa nova, e ela me apresentou para sua irmã, o que foi uma apresentação estranha porque eu conhecia sua irmã mas sua irmã e eu, talvez fingindo, encenamos que não nos conhecíamos (você precisava ver o Charlles quando era novo, era o menino mais lindo que eu já vira, a Inamar disse, atirando tudo na minha cara barbada e meu cansaço de peregrino que me destruía; aí eu me acendeu que isso poderia ser uma vingança, porque lembrei com um renovado constrangimento a vez em que ela me beijara inesperadamente na floresta do campus universitário e eu tive o descabimento de lhe dizer que foi como beijar minha irmã). E aí ela me pergunta se eu fui para a África e eu respondo que não, e ela se levanta, demora uns 3 minutos procurando uma caixa no raque da televisão, ergue a caixa com sofreguidão e leva para o sofá, e de dentro dela retira umas fitas VHS que ela põe para tocar no videocassete e eu vejo a coisa mais terna e assombrosa que me reabilita da tristeza, vejo ela vestida com roupas de homem, camisa bege e calças de brim largas, com um microfone na mão aparecendo na tela do televisor, apresentando um programa de televisão em que aparece cercada de crianças, um programa de extrema pobreza visual e orçamentária, e eu olho para ela com os olhos arregalados e já com a boca escancarada para morrer de rir e cair nos braços dela e ela me devolve um olhar de mãe diante seu filho mais querido, seu filho enjeitado com lábio leporino que ela mostra com orgulho e distribui fotos dele por toda a sala para que todos vejam, e daí aparece nas imagens a sua irmã, a irmã que eu conheço mas nós simulamos que não nos conhecíamos, vestida como o Xuxa, loura e desengonçada, que é a estrela da coisa, e nós rimos desbragadamente, na verdade isso me enche de uma adstringência que eu não consigo explicar, as gincanas, as músicas que elas mesmas compuseram e gravaram. Foram dez programas, ela me disse, com direito no último deles à despedida com choro. Ficamos até tarde da noite assistindo a todos eles.

E ontem o Fernando, o médico pediatra, com sua esposa, veio jantar conosco. Encontramo-nos há cerca de cinco anos, em um supermercado, ele que me gritou na fila, veio até mim e me deu um puta abraço, ele de branco e eu de jaleco todo cagado de bosta de vaca e sangue porque acabara de fazer uma cesariana numa vaca. Passamos meses só nos falando por telefone, querendo saber onde o outro morava, e nos encontrando esporadicamente em padarias e no hospital onde ele trabalha; como ele era novo na cidade, ele não sabia dizer com precisão seu endereço e, passado um tempo, por ironia, a Dani descobre que ele era nosso vizinho de esquina. Ele desistira da vida na capital, que estava acabando com sua saúde, e fizera o concurso público para médico da prefeitura da minha cidade, candidato único. Desistira de uma vida ensandecida que lhe dava 50 mil por mês, para passar com os 9 mil e quinhentos de seu cargo concursado mais uns atendimentos que ele faz em outra cidade vizinha. Era um leitor voraz e um poeta artesanal rigoroso na nossa juventude, e disso sobrou pouca coisa. Mas nossa conversa sempre é recheada de nonsense e desenvoltura. Ele, assim como todos os outro 4, eram convidados todos os anos, por minha mãe, para meu aniversário, como um ritual. Era sempre surpresa, mas todos nós já estávamos fartos de saber sobre a festa. Minha mãe encomendava o bolo, as comidas, os enfeites, no intuito explícito de me constranger, o cavalão de espinhas na cara e pêlos na mão com chapeuzinho de aniversário, o filhinho da mamãe. E todos davam corda para minha mãe curtindo ainda mais com a minha cara, exigindo que se cantasse a musiquinha e que eu soprasse a porra da vela do bolo, e minha mãe coroava a sangria me dando um beijo na frente de todos e me chamando pelo apelido de infância que ela nunca usava a não ser nessas ocasiões, Naninho isso, Naninho aquilo, e fazia parte da sagração todos se calarem para que ela recontasse os eventos mais diabólicos que o Naninho teve o descomedimento de cometer, a vez em que Naninho entrou no caminhão do pai, o acionou e o grande Mercedes Benz varou a cerca da casa lá embaixo da baixada, tendo-se a sorte de não ter matado e nem ferido ninguém, inclusive o próprio demônio porque Naninha havia pulado assim que percebera a miséria que estava fazendo, e todos caindo na gargalhada olhando para mim; a vez em que Naninho sumira da avó na catedral e fora descoberto na sacristia com o saco de hóstias na mão mandando um a um do corpo de Crista para a boca; a vez em que Naninho subira no sofá, retirara a sua porcaria para fora das calças e mijara na boca de seu tio Pedrinho que estava desmaiado deitado no sofá, e como a sua tia Tânia o protegera da sova da sua vida ao escondê-lo atrás dela para que o tio Pedrinho não o pegasse pela moleira. E assim ia, todas essas coisas relembradas pelo Fernando ontem, para uma Dani deliciada mas para a qual minha própria mãe já havia contado essas e outras histórias.

Daí que depois da janta o Fernando me fala da nova séria de Globo, Justiça, que ele e sua esposa vinham acompanhando, e eu me entusiasmo, visto conhecer o gosto do Fernando para as coisas, mas isso é tema para um próximo post.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

O primeiro contato com o medo

 

Ao voltar para casa, Timos passou na banca e comprou o jornal da tarde. A chuva dera uma trégua e um sol, depois de horas desaparecido atrás das nuvens turbulentas, oferecia um distraído panorama outonal para as pessoas apressadas do fim do expediente. Se analisasse retrospectivamente o humor daquela amostra de vida citadina antes de se refugiar em seu apartamento, teria notado uma tensão mesmo que imaginária refletindo a manchete do jornal que o confrontaria assim que fizesse o chá preto e se sentasse na poltrona. Notaria-se muito cansado para ter atravessado aqueles sete quilômetros entre a banca e seu apartamento sem ter dado uma única espiada nas notícias, levando as páginas enroladas debaixo do braço, parecendo com o antigo fantasma de Edgar Allan Poe na multidão. Como havia telefonado para a clínica e dado uma desculpa para não ir trabalhar (ajudar um velho amigo não teria parecido convincente ao casal de patrões, tão acostumado com suas mentiras descuidadas), andava por entre as pessoas sem o elo de quem faz o último passo da engrenagem cotidiana, a volta do triste e irrelevante Odisseu para sua ilha de concreto particular isolada do mundo. Seus pensamentos se afundavam nos temas que P vasculhara na fila à espera pelo atendimento da funcionária da previdência. Para se distraírem da insípida burocracia (toda burocracia era insípida, ora bolas, lhe dizia por detrás do cansaço sua voz mental), falaram sobre os grandes temas, a imortalidade da alma, a impossibilidade da matéria, a energia que domina tudo do mais alto ao mais baixo, os universos paralelos. Lembrava-se de quando criança um menino um pouco mais velho, atrasado nos anos escolares por uma sucessão de reprovações, lhe contava sobre geografias mirabolantes, histórias de reis nunca antes ouvidos, misturando nomes reais apreendidos em conversas entre adultos e contrabandeados para o assunto para dar-lhes autenticidade. Só depois de anos Timos confirmou a suspeita de que o amigo inventara tudo, fruto de sua potente imaginação, e que os cossacos não eram gladiadores da rainha da Inglaterra e nem os kolkhozes a raça de cão imperial que trucidava crianças perdidas na floresta. Era inevitável pensar que uma maturidade vinda sabe-se lá como ao longo dos anos que tinha pela frente poderia dar a devida dimensão daquilo que P. falava, assim como lhe dera a juventude sobre as mentiras criativas daquele moleque. Andando entre as pessoas, sem muito ímpeto, Timos ia passando de um pensamento a outro, não predisposto a fazer uma crítica racional. Talvez tudo fosse verdade, talvez eles estivessem amaldiçoados a viver eternamente, talvez o tédio não fosse uma presença subjetivamente tão forte naquelas instâncias do espírito, talvez as atribulações nessa dimensão, que servem para dar sentido a essa vida estúpida, sejam substituídas por uma contemplação possível, como se vivêssemos em uma música de Arvo Part.

         Chegou em casa, trancou a porta, jogou o jornal na mesinha de canto da sala, e se dirigiu para preparar o chá preto na cozinha. A caçarola estava atirada na pia, entre um monte de pratos e panelas, uma borra de erva fria consumida há dias embutida no fundo. Não havia outra caçarola, de modos que a pegou com uma atenção avaliativa sobre qual melhor caminho sem sofrimento para vencer aquele desafio; bateu-lhe com a mão no fundo acima da cestinha de lixo ao lado do escorredor de pratos. Para seu alivio, todo o corpo da borra se soltou e caiu, e ele pôde jogar um jato da torneira para que as pequenas interferências das folhas e talos restantes fossem retiradas em um redemoinho de água. Encheu o utensílio de água e a pôs para ferver, demorando alguns segundos para descobrir onde colocara a caixa de fósforos, localizando-a no mesmo lugar de sempre no meio dos potes de condimentos da estante. Era alguém que tinha a sua própria organização, porque os objetos sempre estavam onde ele programara ser o local de os deixarem estar. Só as chaves, por uma subversão de algum eu intrínseco, é que relutavam em se adequarem a esse regimento e trafegavam a cada dia pelos lugares mais improváveis. Quando ficou pronta a infusão, serviu-se com uma caneca, adoçou com o açúcar mascavo que restava e diante o qual repetiu algumas vezes para gravar que deveria comprar outro pacote o mais rápido possível, a vida sendo impossível sem que pudesse usar aquela preciosidade marrom rescendente para obter alguns minutos de dissipação meditativa.

          Afastou as roupas amarrotadas, que ele não iria se dedicar em saber quais estariam sujas e quais estariam limpas, e se sentou na poltrona. Soprou o chá sentindo o odor sóbrio da erva, o que o fez lembrar que já fazia horas que estava sem comer, e se lembrou de que havia um pacote de bolachas de aveia e mel pela metade na estante; mas resolveu beber primeiro. Foi então que abriu o jornal e viu o que o mundo todo já sabia: o candidato da extrema direita havia sofrido um atentado. Claro que a imprensa, em seu falso rigorismo em se mostrar isenta, não se expressara nesses termos, substituindo a situação partidária por seu nome popular: A. Timos sentiu uma violenta perda de forças, algo em seu sistema circulatório sofrera um curso gelado de aflição, ele se levantou rapidamente e passou as mãos pelos cabelos, sem saber o que pensar. Uma felicidade radiante e infantil passara rapidamente por ele, ele sorriu e deu pulos pelo quarto, sem gritar, e parou de frente ao escuro preenchido de vultos indefinidos com uma cara de louco, sobrancelhas erguidas. Será que a história decidiu enfiar sua mão imaculada na matéria suja dessa dimensão para facilitar as coisas? Quando isso tinha ocorrido antes, em quais lugares, o que trouxe de realmente bom? Ou seria então aquela plenipotência a que P. sempre se referia, se refugiando em uma confiança nela, que intercederia contra o mal? Precisava ler o restante da matéria. Estava agarrado em sua exultação sem saber ao certo o que acontecera, na esperança de que alguém finalmente resolvera dar fim àquela loucura, aquela distorção brutal do bom senso. Talvez o fascista ainda estivesse vivo. Não tinha coragem de continuar a ler. Em pé, no silêncio cada vez mais intensificado, ouvia a pulsão do seu sangue nos ouvidos, e não queria sair daquele momento. E se lera errado? Não, pelo menos isso, para calibrar na medida certa o nível de sua exultação, lera várias vezes. Voltar a se sentar era incorrer na enorme possibilidade de ver que não fora a redenção que acontecera, mas o eterno sarcasmo, pois a hipótese de que o mal ainda estivesse vivo era maior que a contrária. Se o houvessem matado haveria carros nas ruas, multidões ensandecidas dos dois lados, festejos e lágrimas da parte dos rebanhos manipulados desses mesmos jornalões. Foi então que repassou seu trajeto da banca para casa e percebeu ser impossível uma engrenagem da história ter se movido em seu favor, lhe dando a graça da economia em mirar em propósitos mais humanitários. Sem aquele mal, aquela vertente medíocre de mal que a estupidificação lhes enviara, seria enfim possível que eles passassem agora a usar a força utilitária, sem distrações provocadas pela ralé auto vitimada dos não esclarecidos. Sentou-se vagarosamente e, suspirando, voltou ao jornal. Com a respiração suspensa, retornando com pesar a cada instante em que se deixava se inteirar da situação, logo dobrou o impresso e o ficou segurando próximo aos calcanhares, o olhar absorvido no estudo das consequências advindas de mais uma barbaridade. A. estava vivo. No meio de uma passeata, em que o herói ia sentado no ombro de um de seus correligionários, em meio a uma centena de adoradores, alguém furou o bloqueio da polícia federal, dos músculos anabolizados de sua guarda pretoriana, e deferira-lhe uma facada no fígado. A. fora transportado às pressas para uma ambulância e, no hospital, pelo menos no momento em que o jornal saíra dos fornos rotatórios, passava por uma cirurgia de emergência.

              Se perguntassem a Timos o que ele pensava disso, ele diria sem relutar: quisera que estivesse morto. Quisera que esse homem, esse que agora sabe-se lá onde esteja ou se está ele mesmo vivo, que perpetrou o ataque, tenha tido um treinamento rigoroso e seja uma virtuose do assassinato programado. Que seja um soldado, seja de qual frente for, se do lado dos progressistas ou uma dissidência paga por alguma orquestração traidora do fascismo (porque isso deveria estar sendo cogitado nas esferas não oficiais dos formadores de opinião), pois assim ele não daria sua vida para errar um golpe desses. Para quem sentia que o único céu privado entre os distúrbios do mundo era trabalhar em uma clínica de abortos, que a única paz compatível com sua deterioração lenta e irrevogável era o silêncio de expectativas das mulheres que iam lá para que vasculhassem assepticamente seus úteros, desejar assim a morte de um desafeto era por demais humano. Não poderiam culpa-lo mencionando o humanismo. Mesmo porque, além dessa fraca anedota retórica, um homem como aquele que estava agora sedado e respirando através de máquinas, em uma mesa de cirurgia, tinha tudo para decretar a morte de um sem número de pessoas. Sua presença em um eventual governo à frente do país seria a autorização de que as comportas de um ódio acumulado em centenas de anos pudessem ser abertas, um ódio aderido ao dna de todo um povo e que há anos, desde que A. surgira nas televisões e nos jornais, estava se enfileirando e se organizando para buscar suas compensações sanguinárias. O que o isolamento tinha-lhe feito, pensou Timos. Condensara-se na respiração de seus próprios pensamentos, sem que ninguém de fora viesse lhe trazer algum refresco, e se tornara tão preconceituoso e cheio de ira assassina quanto os adeptos daquele sujeito. Foi até a geladeira à caça de alguma coisa para comer. Um suco de tomate em médias condições de aproveitamento, com o adesivo de plástico mostrando rubros frutos de uma fazenda solar se desprendendo pelas beiradas e com bolhas longitudinais indicando que até a cola da embalagem vencera. Pelo cheiro, não lhe faria mais mal do que vinha tomando nos últimos dias e, ao provar, o gosto lhe caiu bem, um tanto salgado e com a oleosidade artificial denunciatória que os conservantes escamoteados no produto passam a ter para sobrepujar de vez ao sabor quando não são tomados imediatamente. Um pedaço de gorgonzola também pode ser resgatado do fundo, talvez foi Amanda que enfiara aquele bloco triangular de fungo e manteiga de leite encostado nos canos refrigeratórios da parede para que se conservassem mais. Tinha sido ela que trouxera o gorgonzola, há alguns meses, junto a diversos tipos de carne processada e queijos que preenchiam todo o espectro de cores entre o branco e o amarelo. Um gorgonzola podia perder o prazo de validade? Era como se perguntar se um raticida fica melhor se estiver com o prazo de validade vencido.

           Timos pega essas coisas, essas sobras do seu passado recente, e prepara um lanche. Pega duas fatias de pão preto de um saco milagrosamente fechado que encontrou atrás dos pratos da estante, besunta-lhes com uma camada grossa do queijo azul, despeja o suco de tomate em um copo limpo da pia aprovado pelo teste do olfato. Se senta à mesa na cozinha, arrastando a cadeira para a frente para que as migalhas que lhe cairão não lhe sujem a roupa. Come pausadamente, sem sentir o gosto, apesar do quê os condimentos do queijo deixam suas papilas enlouquecidas, um jorro vindo das glândulas salivares simula dor nos músculos maxilares. Há tempos não tem uma alimentação decente; sobrevive com aquelas improvisações encontradas como um tesouro sem glamour deixadas por uma sucessão de sua personalidade em diversas aventuras da solidão. Tirando o queijo, que evidenciava a presença de alguém (e lembrou-se do nome dela, Saula, como se a festa de picardia em sua boca acionasse-lhe então a memória), os biscoitos, o pote de iogurte natural na porta da geladeira, a manteiga de leite pela metade e com raspas enegrecidas nas funduras deixadas pela colher, eram testemunhos do que sua mãe um dia chamara de “suprimentos infantis”, uma total ausência de qualquer sacralidade pela comida. Sua mãe ria com pesar ao ver aquele monturo de carboidratos e proteínas de baixa qualidade, o olhava de um avançado estágio da compaixão em que o objeto da piedade assume um foco realista e desesperançoso, forçando novas atuações. Algumas vezes ela lhe mandava uma cesta de alimentos, entregue por uma grande cadeia de supermercados em que se arranjava tudo por um telefonema em que reportava didaticamente a um funcionário o que lembrava dos gostos de quando ele era um menino, e improvisava o restante baseado em suas prevenções sobre uma dieta saudável. Mas Timos não pensava nisso nesse momento, isso são apenas reflexões nossas que nos distraímos de reparar com mais aproximação sua pose desabrigada diante o sanduíche de gorgonzola que apara na mão diante o nariz. Ou talvez relacioná-lo a uma criança e pensarmos em sua mãe seja por estarmos, ao contrário do que acabamos de dizer, justamente inteirados em observa-lo. Ele dá mais uma mordida e mastiga com vagareza, contemplando algum lugar sem foco diante si. Não pensa no ataque que o fascista sofreu. Deixa a mente divagar pelo nada sob a ressonância leve e dispersa do fato, se abstêm de usar a racionalidade para montar o quebra-cabeça que a situação exige inexoravelmente que se junte, peça por peça, e tem a esperança de que elas se encaixem por uma atração natural automática.    

         É o medo, as peças moventes, relutantes em mostrarem qualquer figura discernível, lhes diz. Naquele apartamento minúsculo ele sente o medo incurável, obscenamente vergonhoso, tomar-lhe conta. Era o mesmo medo sempiterno que sentia desde quando era criança, desde quando, numa brincadeira cujas imagens difusas de um jardim e uma luz especular lhe indicava ter sido seu primeiro contato com algo inominável sobressaindo-se das fantasias de piratas e de ilhas distantes para fazer o mundo lá de fora insurgir em seu refúgio. O primeiro contato com o mal, um roçagar inapreensível, isento de minúscula emoção, mas que lhe deixara uma herança de certo calor. Alguns psiquiatras do comportamento infantil relativizam a proteção exagerada da criança quanto às manifestações do mundo adulto. Certa vez retirara risos explosivos da mãe e de uma amiga dela quando, na mesa de café, lhes perguntara o que significava a palavra “prostituta”. As duas deixaram-lhe assistir televisão até tarde na noite anterior e ele vira um filme francês em preto-e-branco, na tv cultura, em que uma das personagens atirara na cara de um amante irresoluto a acusação de que ele a tratava como a uma prostituta. Em sua cabeça o som da palavra remetia a alguma burocracia anacrônica, lhe provocou imagens de depósitos de velharias e grandes caixas de papelão, fato que lhe veio colado às impressões do que achava que um filme francês deveria despertar. As duas riram, a mãe depositou a xícara de café no pires e lhe respondeu com ternura: “Prostituta é o que se convenciona chamar de profissionais do sexo, mulheres que se vendem para desconhecidos para que esses façam sexo com elas”. Ele ruminou a informação sem espanto, como sua mãe tinha certeza que ele o faria, e o termo se tornou um totem de referência de seu primeiro passo rumo à erudição. Sempre que se deparava com a palavra, tal cena na mesa no café lhe vinha como acionada por um dispositivo mecânico, uma série de engrenagens se punha em movimento e se finalizavam com uma urgência instantânea a precisa figura de uma mulher de terninho, culta e emancipada, como exigiam as regras da polidez do cinema europeu dos anos 50. A assepsia resultada disso era tão primorosa que cambiava uma inadaptabilidade semântica ao significado da palavra “puta”, que era apenas a mesma mulher, com a mesma respeitabilidade e distanciamento, adquirindo as cores do cinemascope. Já o contato com a verdade que estava além das palavras era outra coisa. Subira do jardim do prédio onde moravam ele e a mãe, naqueles anos em que os dois em intrínseco acordo labutavam contra a derrota imposta pelo mundo, ela em sua faculdade de direito, ele em seu suportar estoico das sombras silenciosas e opressivamente intranscendentes do apartamento, com aquela revelação na cabeça. Aquela luz muito além de sua compreensão, que entre as folhagens cortadas por sua espada de Capitão Green Hollyday e a tribo canibal que teve que derrotar no centro das samambaias, viera para plantar as primeiras sementes do que havia de real cercando aquelas suas brincadeiras solitárias e pueris. Abrira a porta do apartamento, utilizando a chave que guardava no fundo do bolso da bermuda, com todos os avisos admonitórios da mãe para que não a sumisse e por isso ele sempre a apalpando para certificar que cumpria sua missão seríssima com rigor, pois caso contrário como eles iriam entrar em seu refúgio, e como com uma distração fatal a chave poderia cair nas mãos de um facínora que entraria no reino deles e levaria sabe-se lá o quê, suas preciosas miniaturas de soldados da Guerra de Secessão, ou os livros da mãe, isso, o que havia de mais valioso para se levar que lhes pertencia seriam os livros, e na sua cabeça os exemplos mais abjetos de bandidos que rondavam aquela chave em seu bolso poderia levar os russos, os franceses, os alemães, que a mãe venerava com recato mas ele lia com espanto e um tanto de repúdio (o fascínio de tantas coisas por descobrir além daquele apartamento e além do aconchego ambíguo debaixo das asas da coruja taciturna da mãe cujo filos biológico não dava muito afinco à maternidade), como era vasta a insegurança humana, como era infinita a dúvida e como estava pronto para se firmar a implacável certeza da impermanência no reduto de sua alma. Ele abriu a porta girando a chave e entrou, tornando a fazer o movimento giratório no miolo da fechadura até que ficassem só ele e aquele sono velho silencioso, rumorejando sons que o ouvido não era capaz de diferenciar dos ruídos urbanos onipresentes que sempre atravessavam os vidros das janelas fechadas e a espessura das paredes, o zum-zum delicadamente virtual do solenoide das lâmpadas de sódio dos postes, a água tilintando suas bolhas metálicas de ar com lapsos de certa alegria feminina pelos canos, respiros que surgiam do nada que ele poderia acreditar vindos de um mundo dos mortos separado deste por alguma artimanha de dar autoridade apenas aos que estavam do lado de lá em tocá-lo se o quisessem, mas que sua mãe lhe reprimia concisamente sobre tais metafísicas e tais assuntos primitivos que o pragmatismo e o cientificismo de suas vidas ditaram não gastarem energias com elas, e os tantos sons de animais ou autênticos apelos humanos dos solitários dos outros apartamentos que emitiam suspiro para que esses de detrás do véu lhes ouvissem e que acabavam cambiando para que uma criança no mesmo plano e na mesma impossibilidade de ajuda fosse o único receptor. Ele tinha costume de falar abstrações sem sentido para a mãe, que o ouvia com uma solicitude séria, os olhos dela por detrás dos óculos analisando o que ouvia com uma persecução preocupada, pensando para onde tais coisas iriam, arrebanhando tudo que anos de estudo e leituras concentradas poderiam servir para saber algo desobstrutor sobre a loucura da infância. Mas ele teria que esperar ainda 3 longas horas antes que sua mãe retornasse da universidade, 3 eternidades contadas no oval do relógio da sala enquanto ele permanecia sentado na poltrona arrastada para de frente a janela olhando os carros passando lá embaixo, se permitindo uma esperança artificial de aprumar-se com o desenho de um sorriso nos lábios para cada carro que parava junto à portaria, com o motor ligado, e cuja pessoa do lado do passageiro fazia suspense antes de descer para que ele testemunhasse com a tristeza restabelecida de que não era um dos colegas da mãe a trazendo de carona, o professor de jurisprudência, um velho juiz aposentado que vinha com as regalias dispendiosas pagas pelo estado de uma cidade há 150 quilômetros todos os dias para administrar uma aula chata e arrastada não tendo vindo e portanto ela estava liberada mais cedo, para que ele utilizasse assim que abrisse a porta seus ouvidos para despejar-lhe dentro aquele novo terror censciente que o prenúncio da triste maturidade precoce lhe enviara no jardim da portaria.

          Timos analisava o por que o acaso achara que aos 8 anos ele estava apto para receber essa inserção da verdade. Fora o ano em que seu pai se mandara. Aquela figura intocável, que lhe deixara marcas mais que indeléveis pelo seu distanciamento, pela elegância alienígena que ele usava sempre com Timos como se fosse o atestado arranjado consigo mesmo para excluir aquele enigma de dedicação que a paternidade romântica exigia que tivesse. Por um triz Timos quase o amara. Em suas observações caladas, sentado no sofá, deitado na cama antes que todos acordassem, estudando com franca admiração o rosto francês cruel e abnegadamente animalesco em toda sua reivindicação de liberdade virado para cima em entrega à sua paz natural, Timos o trazia para si, se moldava nele, centrava-o no palco de suas emulações minuciosas, repetia seus trejeitos alheios e ególatras, e ele, seu progenitor biológico, fizera-lhes o favor de dizer adeus antes que todos esses estragos se completassem. Duvidava que houvesse alguma previsão de danos calculado nessa despedida definitiva, pois alguém que vivia apenas para si mesmo jamais teria a vocação para uma alteridade dessa envergadura, mas o egoísmo dele acabou sendo um ato de misericórdia.

           Timos virou mais um copo do que restava do suco e observou que a chuva dos últimos dias trouxera um áspero ar de fungo pelo apartamento. Ele gostava desse odor, um cheiro de coisa se deteriorando às escondidas, como se requeresse a sua distração para poder sobreviver. Estava bem debaixo do seu nariz, mas era suficientemente inapreensível para que seus sensores corporais pusessem-no em dúvida, colocando em xeque a capacidade de seu próprio funcionamento. As janelas fechadas habituara a atmosfera de saturação a um meio promíscuo para o mofo, e daí viera a humidade, reinante e florestal, e as forças da selvageria natural insurgiram-se contra o concreto e o cimento, soprando o bafejo manhoso de antigas doenças à espera do fim de suas abolições farmacêuticas. Era uma batalha silenciosa e longuíssima, cujo tempo se media em módulos muito além da duração de Timos para testemunhar (imaginou dali a décadas, quando os devaneios no escuro de novos inquilinos na renovada versão das chuvas sepulcrais, iriam identificar o limo se intensificando, concluindo mais uma frase meditada e tranquila daquele seu argumento de invasão). Na última semana_ segundo ouvira em um telejornal da clínica de abortos_, doze pessoas morreram de frio. Anabel (a secretária) estava em um de seus solilóquios sigilosos com uma paciente e ele não pôde aumentar o volume do aparelho na recepção. Eram anônimos, é claro. O tipo de estatísticas que vem com cenas de fachadas de prédio, de rostos indevassáveis de médicos falando como se não se tratasse de humanos. Timos conservava certos ceticismos que ele sabia infundados, vindos de uma subliminar adoração à ciência. Era-lhe difícil entender como alguém morria de frio. Tirando os desalojados, os sem rumo, os suicidas das ruas que veem a oportunidade de darem um basta no convite acolhedor que a chuva tem em toda sua tenebrosidade cósmica, pensava nas senhoras em seus apartamentos com armários antigos, os velhos que são descobertos cinco dias depois. Como essas pessoas morriam de frio? Aqueles cansados médicos das entrevistas deveriam resumir tudo como “hipotermia acentuada”, para poderem voltar para suas casas e acabarem logo com aquilo, e ninguém iria perguntar, nem os parentes convocados, nem a polícia, nem os vizinhos. Lembrou de um romance do Rabindranaph Tagore que lera na adolescência, em que uma frase o tomara de jeito: “é muito difícil matar um homem”. O escritor não falava de entidades, de ideias, mas do homem biológico, falava do que estava por sob as estatísticas. Talvez esse assunto o tomasse tanto tempo recorrente porque Timos se via como uma vítima potencial desse tipo de morte. O que estava pensando, ele se perguntou, recolhendo um pedaço rançoso de queijo no fundo da embalagem e o colocando na boca. Veio-lhe o professor húngaro do segundo andar à cabeça, e o casal de velhos tão exageradamente zelosos com a filha que morava no exterior. Eles estavam nesse exato instante em um raio curto de distância dele. O professor deveria estar enfurnado em sua poltrona, com um livro de filosofia alemã no colo_ ele imaginava sempre que o estado de organização estivesse longe do caos do seu apartamento, o que era um elogio involuntário ao vizinho. O casal deveria estar na cama, abraçados, quem sabe depois de terem falado por telefone com a filha. Os seres humanos não divergiam muito desses clichês, havia poucas opções dos quartos e salas escuros. Talvez eles, os quatro, formassem uma chama de vida reflexiva em algum ultrassom divinatório e suas mentes apareceriam como as únicas coisas acordadas em todo universo. E talvez um meio termo entre a soturnidade desses seus pensamentos e a comunhão ortodoxa que havia ao nível mais trivial possível entre eles é que determinasse que não estivesse na hora do frio dar sua cartada fatal. Todos aqueles protótipos e insinuações não tinham peso suficientemente trágico para resistirem a um simples grito, ou a uma necessidade limítrofe de abrir a porta, atravessar os degraus e bater na porta do outro, o triste e nobre conde destituído de seu título dinástico aparecendo com sua cara desesperada por algum apoio na soleira da porta. Ou ele bater à porta do casal de senhores. Seja lá qual arranjo, quem procurasse quem. Aquele cheiro acre dos fungos só se instalava em seu ambíguo prisma do que era agradável porque ele se permitia ser superior a ele, ele se permitia a permanência, ele era ainda inflado de orgulho, de vaidade, de egocentrismo, de apetites os mais diversos (ainda que controlados), de forma que a doença que aquilo poderia pressagiar era transformada em um atributo a um sommelier exótico. O medo era um anjo que fulminava a todos do cavalo e enceguecia com sua potestade inverbalizável, com seu terror infantil que se cola na idade adulta e na velhice, era o arauto daquilo que estava acima da nossa compreensão, mas as histórias fabulosas que ele contava era dever de cada um acreditar ou não, levar à frente e alimentá-las ou não.

          Timos imaginava as quantas histórias que estavam sendo fomentadas apaixonadamente naquele mesmo instante sobre o atentado, na calada da noite, por fanáticos insones. A estatura de A. estaria, na manhã cujas sete horas de escuridão fria o separava, a níveis insuperáveis. Sua força e sua grandeza, que até então podiam ser codificadas como imaginárias, acordaria naquele novo dia de sua glória como capacidades incontestáveis de um líder predestinado. Timos já sabia de tudo. Levantou-se, foi ao banheiro, abaixou suas calças e se sentou na laje fria da privada, e urinou na pose feminil. Lavou as mãos, retirou a escova e o creme dental da caixa da parede, e escovou os dentes demoradamente, olhando sem se atentar para as fímbrias e desgastes de sua pele. Aquele povo que vivia sob o medo se veria autorizado pelo destino a depositar nele todas suas esperanças mais profundas. Seu rosto fino, de antiquada distinção nobiliárquica, que lhe dava um acento de estupidez que ia de encontro à ternura errática dos broncos que a multidão venerava, iria aparecer em todos os lugares. Ele não morreu. Aquela vontade de viver que Timos identificava em si mesmo não permitia que o frio viesse lhe observar na aposta por resoluções preguiçosas da história; insistir na graça de um sujeito como aquele continuar com seu direito à vida, mesmo indo de contra o que se movia na fáscia mais superficial de seu pensamento, era parte em se manter vivo, pois viver sem sua humanidade não era viver. Afora o seu apartamento caótico, Timos vivia. E ele conseguiu dormir profundamente naquela noite, contrariando todas as suas estimativas. Outras maneiras haveriam de surgir para combater. Sempre haveria outras maneiras. Bastava foco. Bastava estar acima na escala biológica do limo e restituir com uma concentração feérica a superioridade de sua espécie por sobre o frio.

(Escrito no final da tarde de 6 de setembro de 2018.)



segunda-feira, 12 de abril de 2021

Trilhos


 

No trem para S., encostei-me à quina do banco com a janela, o rosto um pouco abaixado de encontro à gola da camisa do exército, com os olhos nivelados com a paisagem mutante lá fora. Os sons das rodas de ferro sendo alavancadas pelas barras de impulsão; a cabine cujos encaixes tremiam quando toda a máquina se recolhia em sua dimensão retilínea para poder passar pelas curvas dos trilhos; os vidros cedendo, de forma quase imperceptível, às leis da termodinâmica, sofrendo dentro das atribuições estudadas pelos engenheiros de construção a compressão dos encaixes metálicos_ tudo ia massageando meu ego destroçado, que só naqueles instantes de consciência que a brutalidade dos mecanismos do mundo envolvia tudo o mais que existia, as coisas delicadas e as coisas que respondiam às suas funções mais rígidas, compreendia que havia uma zona de equilíbrio para que a fragilidade pudesse sobreviver em relativa paz com a força absoluta. Halperin, Halperin_ uma voz dizia, balançando a cabeça sob a canção milenar da sabedoria expressa com resignação_ a sua jornada, no fundo, olhando com uma capacidade mais restringida para a admiração, talvez possa ser interrompida num estágio mais precoce, a procura apaziguada pela aceitação de que seu lugar seja entre os que se silenciaram sem medo diante os grandes enigmas. Talvez a nobreza verdadeira seja apenas o deixar-se ficar sonolentamente ao embalo das coisas milenares. Eu achava mesmo que essa voz agora dizia algo que enfim podia dar ouvidos, afinal o que diabos eu procurava? Não me pareceu que a revolução, nos moldes adotados pela turma de Ernesto e Libertad, justificasse a grande sede por propósitos que me dominava. Aliás, qualquer revolução, me parecia, era um enorme engodo, cujas motivações nunca eram as que propagavam nos ideários onde seus heroísmos de cartilha pensados sob eflúvios alcoólicos à noite eram impressos, mas suas turbinas se moviam por recalcadas ambições pessoais_ dominação, sexo (no caso de Libertad), falta do que fazer diante a pequenez do bípede a quem não foi dado a constituição própria para o vôo. Como estava cansado desses propósitos majestosos.
            De frente a mim, com as cabecinhas apoiadas no encosto do banco, havia um menino de uns oito anos e uma menina mais velha, talvez uns treze, que desde que o trem se colocara em movimento me estudavam com atenção. Meu olho roxo e minha aparência geral de destruição os deixavam impressionados. Eram loiros, sardentos, e seus pais, parecia ter-lhes adotado o estilo de criação de os deixarem à mercê da sujeira saudável para reforçar seus sistemas de defesa. A menina, de imediato, só de olhá-la, já se podia perceber ser a antípoda ativa do rapazinho, de cujo rosto partia uma total dependência dos humores da irmã. Se a menina sorria por nenhum motivo, sua cópia masculina e mais nova estendia a face num sorriso também sem explicação; se ela, por sua vez, balançava a cabeça ao embalo de uma melodia secreta, ele também passava a cantar, repetindo o ar de alheamento, sua canção particular. A menina tinha um olhar diabólico, parecia conhecer profundamente o estágio de torpor exausto dos pais_ um homem e uma mulher mirradinhos, com uma perfeita máscara de estupidificação nas caras_, e aproveitava com astúcia a liberdade involuntária que tinha. Minha presença arranjada pela benemérita providência divina, logo atrás de seu banco, era uma ocasião deslumbrante da qual ela tinha de demonstrar com todo afinco estar à altura do merecimento. Um ser que transparecia conotações ainda distantes de sua experiência, de que se situava num impreciso limite com o invisível, mexia com as considerações sobre bondade e medo que aquele casal simplório havia lhe inculcado. Seus olhinhos perversos procuravam algum indício de que eu fosse culpado por minha aparência, para então desembaraçar-se de qualquer remorso e ser também um instrumento para acentuar meu expurgo. Fazia-me caretas discretas, que pareciam dizer “não, bobo, não tenho tempo para você”, e retornava a estudar a composição de sua proeza vocálica, que apenas fazia fundo sonoro à procura por novas curiosidades oferecidas pelo ambiente. E o pequeno ser que lhe arremedava fazia o mesmo, revirando o pescocinho, com uma segurança de que aquele era o caminho certo para novas diversões. Então ela mostrou toda a potência de seu conceito sobre estranhos, me crivando um olhar onde a graduação de sua certeza era expressa pelo movimento das pálpebras_ quando se semi-fechavam, que era o que fazia então para manter toda sua concentração sobre mim, estava deixando claro que sabia o que eu representava. Não era tola para cair nos arranjos que os adultos demonstravam criar para submetê-la; reconhecia que muita coisa lhe passava batido pela condição de ainda ser criança_ esse termo que limitava sua vontade e contra a qual destinava toda sua rebeldia, inclusive o seu desprezo pelo irmão cuja estupidez era ainda maior por adotá-la como modelo, mas tinha um confiança em si mesmo que a tornava militante contra essa estupidez que lhe chegava de todos os cantos.
            Decidi confrontá-la, pois estas idéias todas aparecerem na minha mente e me vi tomado por uma súbita admiração por aquela menina. Oposição poderia ser verdadeira amizade, como já disse o velho Blake, e ela não iria querer que eu lhe viesse com a amolação de tratá-la como uma menina. Pus um ar de severidade nos olhos, resisti ao seu encaramento e disse, (não sei por que):
            _ Essas feridas eu as ganhei numa briga de trem, semana passada.
            Ela não mostrou nenhuma reação de empuxo contra ter-lhe dirigido a palavra. Seu olhar abrandou-se um pouco, não em sinal de começo de confiança, mas para avaliar o sentido daquilo. De súbito, passei a crer que ela fosse uma espécie de criança ultra precoce, que nada haveria de mais familiar a seu espírito centenário a realidade atroz dos trens, para a qual vagabundos e deserdados gerais faziam meio corrente para atravessar de canto a canto o país. Um traço de mulher madura, não de todo desprovido da feiúra temerosa das anormalidades, passava por seu rosto à medida que refletia. Então, ela recolocou os olhos em mim, carregados de faíscas opinativas como estavam há meio minuto, e me disse:
            _ Nada incomoda mais aos punhos do senhor Santiago do que vagabundos feito você.
            Sua voz era árida como cacos de vidro roçando uma parede, mas ainda assim bastante doce. Respirei aliviado. Não, não! Era uma criança como qualquer outra. Eu estava no planeta usual que a detivera de experiências alienígenas por esses anos todos. Olhei para ela por sobre o desnuviamento de meu sorriso, achando que se ela tivesse realmente os anos a mais que de primeiro achei ter, saberia que eu roubei a expressão de piedade terna pela arrogância inofensiva da inocência de algum filme americano de década de cinqüenta. Mas ela levava a coisa ainda bem a sério. Apostava nos protetores músculos desse seu herói das viagens, Santiago.
            _ Pois não foi Santiago que fez isso a você. Santiago não deixa sobreviventes._ daí ela pôs a língua para fora, uma língua rosada de algum produto dulcicorado de mercado que seus pais omissos deveriam achar ser parte da força imunizadora do mundo livre, e me virou as costas, pulando sentada sobre seu banco e saindo de vista. O protótipo masculino seguiu-lhe o exemplo, lanceando a língua, embora de forma sedutoramente desprovida de conotações políticas quanto a conhecidos poderosos do ramo da segurança de trens, mas permaneceu olhando para mim com os olhos cheios de hilaridade vazia, sentida apenas pelo fato maravilhoso de estar vivo.

sábado, 10 de abril de 2021

Incidentes Protocolares


 

O que permeava o mais profundo da mente do meu avô era sua consciência de que fazia parte de alguma casta ainda não de toda determinada, cujas raízes eram obscuras e os méritos não descobertos, mas que outorgava a ele seu direito de pertencimento irrevogável. Naquela aldeiota perdida no meio das serras, onde a lentidão era dominante e o tédio temperava os humores e regia a filosofia resignada de alguns, ele se mostrava sempre altivo, andando com seu passo galante por entre os jogadores de caixeta que promoviam campeonatos particulares arrastados por epopeias semanais e que ele premiava seus campeões alternantes com caixas de elixir paregórico e balas de gengibre. Dormia ainda na pensão da velha Ofélia, uma senhora rude de feições impenetráveis, que o surpreendia com algum vislumbre de que estivesse por romper sua casca protetora com algum inesperado sorriso e com uma ainda mais inesperada confissão de algum antigo amor nostálgico, mas que quando parecia estar no limiar da revelação voltava a cair em seu fado eterno de lamúria silenciosa e remoer de alguma dor encalacrada há muito tempo na alma. Já tinha a farmácia estabelecida e os clientes fiéis que lhe permitiam comprar para si uma casa própria, como soe ser a respeitabilidade esperada de um doutor, mas ele insistia em permanecer no mesmo quartinho da pensão, um cubículo com uma janela basculante e uma cama de solteiro que seus pés de vara pau ficavam para fora na hora de dormir, e cujo teto de telhas sem forro distribuía com generosidade democrática os sons das paixões não de todo sinceras das meretrizes no cio e gatas pardas caçadas nas noites para sanar sua solidão, de modos que os peregrinos, cuja sorte de suas erráticas aventuras os faziam parar ali, podiam ouvir com um lastro de inveja suas performances sobre-humanas, assombrados ao constatarem ao raiar do dia que tamanho prodígio vinha de um homem de aparência tão impoluta que só uma mente doentia imaginaria ser o mesmo animal desconsolável que os impossibilitara o sono, não se sentindo seguros de reclamarem à inquilina. Se bem que, com o tempo, a velha Ofélia acabou ficando cúmplice de suas lubricidades, de tal maneira que passara a facilitar suas caçadas de uma forma que ele já não precisava sair pelas ruas, colocando as vendedoras ou as professoras que vinham dar cursos de aperfeiçoamento para os funcionários municipais nos quartos ao lado do dele, o que, as presas já amaciadas ao longo do dia com seus sorrisos, sua polidez estudadamente distante e astutamente desinteressada, seu cálculo preciso em tocar-lhes a mão na hora de se servirem no jantar como se fossem inocentes acidentes, caíam desbaratadas na armadilha já pronta quando ele as puxava para o cubículo e as faziam esquecer de suas promessas de fidelidade feitas aos maridos e namorados com uma culpa que só lhes aumentava o prazer de agirem como putas.

domingo, 21 de março de 2021

Asa e o Tsunami

 


O mar havia erguido um braço do tamanho de um guincho do porto, desses que desatolavam as cargas quando elas não se equilibravam como deviam nos atracamentos dos navios. Para a direita de onde a menina Asa olhava, o mundo se tornara uma superfície azul enegrecida que se expandia com a calma e sacramentada frieza de um direito milenar despertado de seu longo sono, como um manto silencioso tentando cobrir uma criança recalcitrante. Asa escutou-a (a superfície, o manto) gritando, depois saindo do esplendor do mar mortal que retirara a paisagem e se tornara ele a paisagem, indo embora, cantando uma canção de desespero feita de fagulhas indistintas de som.

        Do lado esquerdo havia só a parede.

        Era um péssimo momento para seus pais brigarem. A mentira lhe tornara alérgica quando Asa tinha 7 anos e seus anticorpos morais nasciam como espinhas na adolescência. Cada vez que seu pai lhe dizia que tudo estava bem, e sua mãe a olhava além de onde ela ficava, às vezes em pé diante a porta aberta da sala em que eles repetiam o mesmo gestuário de gritos e carrancas, o olhar atravessado que era uma das formas não verbais da mentira, ela sentia sua pele arder, suas mãos se crisparem.

         Seus pais resolveram realizar uma das comédias do absurdo de que eram atores amadores falhos mas dedicados de uns anos para cá. Alto empresariato e socialite alcóolatra eram características completamente antagônicas ao talento interpretativo, e as brigas soavam lacônicas, o roteirista que as escrevera esquecera-se das frases contundentes, os gestos eram deslocados. Mas os dois insistiam, convencidos por uma compulsão acionada sempre que se viam a sós sem a salvaguarda dos outros convidados no palco. Nas aulas de literatura clássica dadas no instituto para superdotados que Asa frequentava, ela via o quanto os teatrólogos superestimavam a eloquência humana diante as grandes dores, atribuindo conteúdos visionários a longos monólogos feitos por seres que eles queriam espiritualmente superiores, mas como isso era uma balela no mundo real em que os reis e os assassinos não tinham mais que interjeições boçais para responderem ao coro das desgraças, quanto mais homens e mulheres comuns, em seu terno de gravata desamarrada e em seu vestido caseiro. Ali em seu refúgio Asa às vezes recolhia um tom mais alto vindo do pai, dois andares abaixo, enquanto sua mãe, inspirada pela abstinência que vinha tendo há uma semana, mandava até ali o sopro de suas investidas sibilinas, tensamente calmas, que eram sua maneira de se ajustar ao grau de requinte exigido pela classe das madames. Os dois tiveram a má sorte de brigarem aquele dia. Que forma inglória de preencherem seu último dia de vida!

         Seu pai chegara da firma e encontrara a mãe de Asa não como ela ficava nesses entardeceres em que a rotina de seu desespero seguia seu curso habitual, alcoolizada pelo terceiro gim, comendo azeitonas de Ibiza com pimentões vermelhos da Bósnia e peixe salgado em uma travessa de prata colonial, lembrança de sua última viagem à Bélgica_ com aquelas fotos de um militar de bigode de morsa, imperiosamente belo em sua pose supremacista de terninho e chapéu coco segurando uma corrente presa na argola de uma fileira de escravos angolanos, lhe tendo incutido no museu da reparação africana a necessidade de atender àquele fetiche secreto, as baixelas sugerindo um pouco da glória festiva que aqueles banhos de sangue geravam nas reuniões à noite na grande casa senhorial_ ela estando justo naquele dia tão sóbria quanto seu pai a conhecera há 15 anos, vestida com uma simplicidade impositiva que surpreendeu Asa e a deixou com a certeza de que algo se findaria pois a mãe jamais teria estudado cada detalhe se não fosse para decretar algo decisivo e inexorável. As mulheres quando param de amar, Asa, sua mãe lhe disse uma vez, quando lia para ela Anna Kariênina, deitando o livro no colo e a olhando para consolá-la com aquele diagnóstico sobre o gênero feminino que a fizesse não se lamentar tanto pelo destino do Alexei Karenin, deixam de uma vez por todas de fazê-lo e para sempre. Asa guardara aquela frase na cabeça e não se achara que tinha um poder a ser usado em algum momento futuro de grande necessidade, e via a mãe como se ela tivesse usado o seu direito a ele, um antigo pretendente, um namorado de uma juventude longínqua e já não mais acessível pelo compromisso que a mãe tinha com seu pai e com ela, um não irretocável como um gárgula numa igreja medieval que destruíra a insistência de um jovem renitente. Seu pai a vira e ele mesmo soube que o assunto era sério.  Sua mãe havia dito a Asa para se retirar para seu quarto, sem dar mais explicações, sem nem mesmo dizer querida é um assunto de adultos entre mim e seu pai. Ela correu para o segundo andar, passou suas pernas sobre a murada baixa de seu esconderijo, ajeitou o vestido branco que usara na saída para o parque com Madele, a filipina, alisando sua barra, e pulou. Encostou-se na parede e respirou com uma felicidade plena, a felicidade que lhe dominava com uma suficiência inexaurível por estar viva. Como um animal na selva se sente feliz por estar vivo, um tigre, uma gazela. Seu pai emitira um grito uns quinze minutos depois, foi o sinal inicial de protesto que escutara, o que dera sequência a outros, sempre dele, Kunia, ele disse duas vezes o nome da mãe de Asa no meio de frases curtas, frases que não pareciam de clemência, mas de aceitação de sua sentença mas que estivesse cobrando, exigindo até, certa piedade. Nada de sua mãe falar alguma coisa em voz alta, a não ser um instante mais tarde, quando Asa já se sentara, em que, por mágica, ou por sua mãe dominar algum conhecimento recolhido de como usar a acústica da mansão, falara baixinho, Kyo, o nome do pai de Asa, como se ela estivesse clamando, mas sem piedade, sem possibilidade para capitulação, Kyo, ela disse, e depois uma frase mais longa, porque as frases de consolo costumam ser mais longas do que as que imploram por uma revogação da sentença.

       A casa era imensa, branca e imensa e aos poucos a mentira se estendera por aquelas paredes de vidro que fronteavam a um preço exorbitante de mercado o Pacífico, encobrira as luminárias em forma de pingente de orelha da princesa da Pérsia, a lareira da sala com seu fundo ileso ao fogo controlado por sensores sofisticados, e só sobrara a Asa se refugiar naquele vão do segundo andar, entre a sala de estar e o corredor dos quartos. Ela cabia ali como se os engenheiros o houvessem construído com a previsão sensível de que seria útil às primeiras investidas realistas do que era a vida para uma menina de 13 anos, os engenheiros, se dando ao luxo permissivo de construírem um degrau fundo o suficiente para que ela se deitasse e ficasse invisível. Ela já o havia testado inúmeras vezes, tanto em seus aniversários quanto em natais desolados pelo excesso de presenças frias do departamento corporativo da indústria naval em que seu pai trabalhava. Sempre o mar regendo a sua vida. E agora, ela pensava, com a mente estranhamente limpa, seria o mar que iria decretar o fim daquilo tudo, da sua frágil e cheia de traumas existência cuja brevidade tornava tudo cômico.

           Havia um impreciso traço de corrente de pensamentos do que seria a sua era de existência transitando naquele momento dentro de si. Enquanto olhava as árvores sumindo, os últimos prédios sendo devorados por aqueles beiços porquinos flácidos e exagerados_ tão exagerados em sua grandeza que o próprio fenômeno num ato de protesto atirava seu desfastio na cara da potestade por tê-lo criado com tal ilimitabilidade, o grau de riso e de ridículo que tem toda catástrofe_, a corrente de frases e lembranças lhe mostrava que ela deveria ter consultado a cigana cibernética, a página da internet que ela encontrara no computador de sua mãe alguns dias atrás. Lembrara-se que na seção pesquisa, estava registrado que sua mãe procurara pelo termo “morte na água”, e Asa ficara parada diante a tela luminescente, sabendo-se segura naquela intrusão de segredos tão comezinhos da mãe por os dois, o pai e a mãe, estarem em um dos jantares protolocares da firma e na casa estar apenas ela com sua olhadeira, a moça filipina de olhos caprinos, sempre forçando parecerem alegres e subservientes, e Asa se sentiu profundamente burra por não saber como aproveitar aquilo, não lhe descerrar nenhuma revelação uma frase que teria um nível esotérico na certa.

      Ela era tão inteligente para tantas coisas, mas tão burra para o que realmente interessava. E agora, a morte prefigurada pela mãe estava vindo, chegara já por cima da cerca viva da casa e se arrastava numa lentidão cadaverina até bater à porta, o que ela ouvira, por mais que ela quisesse não ter um ouvido tão apurado, mas ouvira. A batida lhe lembrara de seu velho cão andaluz, Simão, falecido há dois ou três anos_ como, olhando bem as coisas, a morte acaba sendo a mais justa sanitizadora das pretensões e medos, Simão já estava se apagando em sua mente, sendo reciclado pelo descaso natural dos seres finitos que tem que esquecerem para suportar não serem deuses, o seu cão que ela chorara tanto e que tivera certeza que seu último estertor de velho mamífero sugado ao extremo pela idade lhe perduraria para sempre na memória, agora ela não sabia quantos anos fazia de sua morte_ quando o cão, Simão, como já foi dito, se sentava de repente, sem o mínimo pudor e etiqueta, e seu gordo traseiro fazia aquele barulho oco quando se batia na porta. O mar e o traseiro do Simão, ela riu, um riso fruto do desespero, se tivesse tempo ela cresceria em experiência e recolhimento para destrinchar a filosofia que havia nesse seu riso, o estoicismo, a resignação. Afinal a morte era a mais misericordiosa das soluções entre as alternativas não dadas. A corrente brilhou, provocado pela velocidade um pouco mais acentuada em que os elos carrilavam-se diante seus olhos, e ela viu dentro da cintilância sua colega na escola real nipônica, Iki Orda, filha do magnata dos tênis, lhe sorrindo com aquele sorriso que ela detestava, que Asa era jovem demais, infelizmente (ela suspirava) para unir as letras que se revoluteavam soltas e sem cola no interior do turbilhão, mas que ela intuía seu significado, “puta”, ela já ouvira essa palavra antes, obviamente, puta, prostituta, safada, vagabunda, assim como tantas e tantas outras, buceta, cu, pau, caralho, uma cortina havaiana de contas de alcunhas de baixo calão, palavras que ela sempre achava feias, sem estética, forjadas na cunha da ralé mais sem cultura e charme dos primórdios da história, não encontrava um xingamento que tivesse uma sonoridade bonita, talvez a única classe vocabular inerentemente destituídas da mínima beleza, até palavras como solenoide, algaravia, parangolé, eram boas de se falar, traziam uma lufada de alegria e um errático lirismo, mas essas não, essas vinham do ódio concentrado das legiões de mortos que confeccionaram nelas seus dissabores quando em vida, suas fúrias cegas e seus preconceitos renhidos, essas eram como cicatrizes horrorosas das feridas que as geraram, Asa pensava, e o sorriso da filha do magnata que calçava milhões de pés, também agora extinta em algum lugar por aquele oceano de asséptica justiça purgativa, que não fazia divisão entre ricos e pobres, entre feios e belos, o sorriso dela era de puta, ela sorria docemente e com simpatia para outros, mas quando via Asa era só o sorriso de puta que ela fazia nos lábios para recebe-la em seu raio de percepção. E agora Asa recebia a informação, não verbal, trazida pela corrente de vidas e solilóquios desamparados e furiosos que passava em sua cabeça, que aquele sorriso era um ato de carinho, aquela menina, sem saber, estava lhe ensinando que tudo no mundo era risível, brega, sem beleza, depravado, e por isso era bom, por isso era um consolo. O sorriso de Iki era uma régua ofertada por aquela princesa bilionária do enfado rançoso de sua prisão no castelo de sua alma sem proveito, de sua encarnação perdida entre as grades da hipersaturação. A vida é só essa merda, garota, era o que o sorriso dizia, sem que sua emissora soubesse; em uma dimensão alternativa, as duas poderiam se lançar numa aventura de descobrimento sobre si mesmas, uma jornada de expurgação do melindre com martirização do corpo pelas drogas e sexo, mas não naquela dimensão. Nesse mundo, as duas iriam morrer em alguns minutos, fruto do tsunami mais devastador que os sismógrafos do Japão não registraram.

        Asa se encolhe na posição fetal na fenda que os engenheiros colocaram ali para ela, como eles colocam entradas falsas e corredores subterrâneos para os fantasmas antigos das casas. Pensar isso a faz ficar incomodada. Não a incomodava o fato de que estaria morta dali a alguns minutos, uma adstringência fisiológica que ela nunca sentira, mas que só lera uma vez na forma como um monge sobrevivente de um ataque de tigre escrevera sobre a visão do paraíso que seu cérebro produzira para fazê-lo esquecer que morria quando o animal lhe cravava os dentes. Mas saber que se tornaria um fantasma nos escombros daquela casa reativaram sua procura por alguma alternativa para escapar disso. Levantou-se e olhou novamente para a direita, e viu o Pacífico a encarando em pé contra o vidro. Ele encostara o rostazão no vidro e sua cauda sem fim batia com mansa alegria, a alegria que tem o predador diante um ratinho. Nessa hora presenciou o vidro trincando lá no alto, naquele pé esquerdo exagerado que por pouco não tinha a sua própria chuva nas nuvens que as respirações dos comensais nas festas se juntavam no teto em exalações de angústia e hedonismo. A corrente de pensamentos lhe mostrava o elo difuso do rosto de sua mãe lhe sorrindo com ternura em um momento perdido na memória_ quando ela se manteve dignamente silenciosa, engolindo o choro, em seu primeiro dia de aula?, quando ela fizera por si mesma as panquecas queimadas para dar um café da manhã no aniversário de sua mãe?_, quando então todo o vidro da sala se rompeu, com uma resistência digna, não se espatifando, mas soltando continentes de sílica fundida de alta qualidade com pontas tão mortais mas que se enfiavam em reação contra o braço do Pacífico avançando por seu território não mais protegido abrindo feridas líquidas inofensivas que se fechavam imediatamente e os engoliam. E era mesmo de um isolamento sonoro primoroso aquele vidro das indústrias Yang Samura, pois com seu desaparecimento todo o estrondo que ele silenciava em suas costas se pôde ouvir em sua magnitude desestabilizadora, o ruído selvagem e assassino do turbilhão em atividade.