Ao voltar para casa, Timos passou na banca e comprou o jornal
da tarde. A chuva dera uma trégua e um sol
Chegou em
casa, trancou a porta, jogou o jornal na mesinha de canto da sala, e se dirigiu
para preparar o chá preto na cozinha. A caçarola estava atirada na pia, entre
um monte de pratos e panelas, uma borra de erva fria consumida há dias embutida
no fundo. Não havia outra caçarola, de modos que a pegou com uma atenção avaliativa
sobre qual melhor caminho sem sofrimento para vencer aquele desafio; bateu-lhe
com a mão no fundo acima da cestinha de lixo ao lado do escorredor de pratos.
Para seu alivio, todo o corpo da borra se soltou e caiu, e ele pôde jogar um jato da torneira para que as pequenas
interferências das folhas e talos restantes fossem retiradas em um redemoinho
de água. Encheu o utensílio de água e a pôs para ferver, demorando alguns
segundos para descobrir onde colocara a caixa de fósforos, localizando-a no
mesmo lugar de sempre no meio dos potes de condimentos da estante. Era alguém
que tinha a sua própria organização, porque os objetos sempre estavam onde ele
programara ser o local de os deixarem estar. Só as chaves, por uma subversão de
algum eu intrínseco, é que relutavam em se adequarem a esse regimento e
trafegavam a cada dia pelos lugares mais improváveis. Quando ficou pronta a
infusão, serviu-se com uma caneca, adoçou com o açúcar mascavo que restava e
diante o qual repetiu algumas vezes para gravar que deveria comprar outro
pacote o mais rápido possível, a vida sendo impossível sem que pudesse usar
aquela preciosidade marrom rescendente para obter alguns minutos de dissipação
meditativa.
Afastou as
roupas amarrotadas, que ele não iria se dedicar em saber quais estariam sujas e
quais estariam limpas, e se sentou na poltrona. Soprou o chá sentindo o odor
sóbrio da erva, o que o fez lembrar que já fazia horas que estava sem comer, e
se lembrou de que havia um pacote de bolachas de aveia e mel pela metade na
estante; mas resolveu beber primeiro. Foi então que abriu o jornal e viu o que
o mundo todo já sabia: o candidato da extrema direita havia sofrido um
atentado. Claro que a imprensa, em seu falso rigorismo em se mostrar isenta,
não se expressara nesses termos, substituindo a situação partidária por seu
nome popular: A. Timos sentiu uma violenta perda de forças, algo em seu sistema
circulatório sofrera um curso gelado de aflição, ele se levantou rapidamente e
passou as mãos pelos cabelos, sem saber o que pensar. Uma felicidade radiante e
infantil passara rapidamente por ele, ele sorriu e deu pulos pelo quarto, sem
gritar, e parou de frente ao escuro preenchido de vultos indefinidos com uma
cara de louco, sobrancelhas erguidas. Será que a história decidiu enfiar sua
mão imaculada na matéria suja dessa dimensão para facilitar as coisas? Quando
isso tinha ocorrido antes, em quais lugares, o que trouxe de realmente bom? Ou
seria então aquela plenipotência a que P. sempre se referia, se refugiando em
uma confiança nela, que intercederia contra o mal? Precisava ler o restante da
matéria. Estava agarrado em sua exultação sem saber ao certo o que acontecera,
na esperança de que alguém finalmente resolvera dar fim àquela loucura, aquela
distorção brutal do bom senso. Talvez o fascista ainda estivesse vivo. Não
tinha coragem de continuar a ler. Em pé, no silêncio cada vez mais
intensificado, ouvia a pulsão do seu sangue nos ouvidos, e não queria sair
daquele momento. E se lera errado? Não, pelo menos isso, para calibrar na
medida certa o nível de sua exultação, lera várias vezes. Voltar a se sentar
era incorrer na enorme possibilidade de ver que não fora a redenção que
acontecera, mas o eterno sarcasmo, pois a hipótese de que o mal ainda estivesse
vivo era maior que a contrária. Se o houvessem matado haveria carros nas ruas,
multidões ensandecidas dos dois lados, festejos e lágrimas da parte dos
rebanhos manipulados desses mesmos jornalões. Foi então que repassou seu
trajeto da banca para casa e percebeu ser impossível uma engrenagem da história
ter se movido em seu favor, lhe dando a graça da economia em mirar em
propósitos mais humanitários. Sem aquele mal, aquela vertente medíocre de mal
que a estupidificação lhes enviara, seria enfim possível que eles passassem
agora a usar a força utilitária, sem distrações provocadas pela ralé auto
vitimada dos não esclarecidos. Sentou-se vagarosamente e, suspirando, voltou ao
jornal. Com a respiração suspensa, retornando com pesar a cada instante em que
se deixava se inteirar da situação, logo dobrou o impresso e o ficou segurando
próximo aos calcanhares, o olhar absorvido no estudo das consequências advindas
de mais uma barbaridade. A. estava vivo. No meio de uma passeata, em que o
herói ia sentado no ombro de um de seus correligionários, em meio a uma centena
de adoradores, alguém furou o bloqueio da polícia federal, dos músculos
anabolizados de sua guarda pretoriana, e deferira-lhe uma facada no fígado. A. fora
transportado às pressas para uma ambulância e, no hospital, pelo menos no
momento em que o jornal saíra dos fornos rotatórios, passava por uma cirurgia
de emergência.
Se
perguntassem a Timos o que ele pensava disso, ele diria sem relutar: quisera
que estivesse morto. Quisera que esse homem, esse que agora sabe-se lá onde
esteja ou se está ele mesmo vivo, que perpetrou o ataque, tenha tido um
treinamento rigoroso e seja uma virtuose do assassinato programado. Que seja um
soldado, seja de qual frente for, se do lado dos progressistas ou uma
dissidência paga por alguma orquestração traidora do fascismo (porque isso
deveria estar sendo cogitado nas esferas não oficiais dos formadores de
opinião), pois assim ele não daria sua vida para errar um golpe desses. Para
quem sentia que o único céu privado entre os distúrbios do mundo era trabalhar
em uma clínica de abortos, que a única paz compatível com sua deterioração
lenta e irrevogável era o silêncio de expectativas das mulheres que iam lá para
que vasculhassem assepticamente seus úteros, desejar assim a morte de um
desafeto era por demais humano. Não poderiam culpa-lo mencionando o humanismo.
Mesmo porque, além dessa fraca anedota retórica, um homem como aquele que
estava agora sedado e respirando através de máquinas, em uma mesa de cirurgia,
tinha tudo para decretar a morte de um sem número de pessoas. Sua presença em
um eventual governo à frente do país seria a autorização de que as comportas de
um ódio acumulado em centenas de anos pudessem ser abertas, um ódio aderido ao
dna de todo um povo e que há anos, desde que A. surgira nas televisões e nos
jornais, estava se enfileirando e se organizando para buscar suas compensações
sanguinárias. O que o isolamento tinha-lhe feito, pensou Timos. Condensara-se
na respiração de seus próprios pensamentos, sem que ninguém de fora viesse lhe
trazer algum refresco, e se tornara tão preconceituoso e cheio de ira assassina
quanto os adeptos daquele sujeito. Foi até a geladeira à caça de alguma coisa
para comer. Um suco de tomate em médias condições de aproveitamento, com o
adesivo de plástico mostrando rubros frutos de uma fazenda solar se
desprendendo pelas beiradas e com bolhas longitudinais indicando que até a cola
da embalagem vencera. Pelo cheiro, não lhe faria mais mal do que vinha tomando
nos últimos dias e, ao provar, o gosto lhe caiu bem, um tanto salgado e com a
oleosidade artificial denunciatória que os conservantes escamoteados no produto
passam a ter para sobrepujar de vez ao sabor quando não são tomados
imediatamente. Um pedaço de gorgonzola também pode ser resgatado do fundo,
talvez foi Amanda que enfiara aquele bloco triangular de fungo e manteiga de
leite encostado nos canos refrigeratórios da parede para que se conservassem
mais. Tinha sido ela que trouxera o gorgonzola, há alguns meses, junto a
diversos tipos de carne processada e queijos que preenchiam todo o espectro de
cores entre o branco e o amarelo. Um gorgonzola podia perder o prazo de
validade? Era como se perguntar se um raticida fica melhor se estiver com o
prazo de validade vencido.
Timos pega
essas coisas, essas sobras do seu passado recente, e prepara um lanche. Pega
duas fatias de pão preto de um saco milagrosamente fechado que encontrou atrás
dos pratos da estante, besunta-lhes com uma camada grossa do queijo azul,
despeja o suco de tomate em um copo limpo da pia aprovado pelo teste do olfato.
Se senta à mesa na cozinha, arrastando a cadeira para a frente para que as
migalhas que lhe cairão não lhe sujem a roupa. Come pausadamente, sem sentir o
gosto, apesar do quê os condimentos do queijo deixam suas papilas
enlouquecidas, um jorro vindo das glândulas salivares simula dor nos músculos
maxilares. Há tempos não tem uma alimentação decente; sobrevive com aquelas
improvisações encontradas como um tesouro sem glamour deixadas por uma sucessão
de sua personalidade em diversas aventuras da solidão. Tirando o queijo, que
evidenciava a presença de alguém (e lembrou-se do nome dela, Saula, como se a
festa de picardia em sua boca acionasse-lhe então a memória), os biscoitos, o
pote de iogurte natural na porta da geladeira, a manteiga de leite pela metade
e com raspas enegrecidas nas funduras deixadas pela colher, eram testemunhos do
que sua mãe um dia chamara de “suprimentos infantis”, uma total ausência de
qualquer sacralidade pela comida. Sua mãe ria com pesar ao ver aquele monturo
de carboidratos e proteínas de baixa qualidade, o olhava de um avançado estágio
da compaixão em que o objeto da piedade assume um foco realista e
desesperançoso, forçando novas atuações. Algumas vezes ela lhe mandava uma
cesta de alimentos, entregue por uma grande cadeia de supermercados em que se
arranjava tudo por um telefonema em que reportava didaticamente a um
funcionário o que lembrava dos gostos de quando ele era um menino, e
improvisava o restante baseado em suas prevenções sobre uma dieta saudável. Mas
Timos não pensava nisso nesse momento, isso são apenas reflexões nossas que nos
distraímos de reparar com mais aproximação sua pose desabrigada diante o
sanduíche de gorgonzola que apara na mão diante o nariz. Ou talvez relacioná-lo
a uma criança e pensarmos em sua mãe seja por estarmos, ao contrário do que
acabamos de dizer, justamente inteirados em observa-lo. Ele dá mais uma mordida
e mastiga com vagareza, contemplando algum lugar sem foco diante si. Não pensa
no ataque que o fascista sofreu. Deixa a mente divagar pelo nada sob a
ressonância leve e dispersa do fato, se abstêm de usar a racionalidade para
montar o quebra-cabeça que a situação exige inexoravelmente que se junte, peça
por peça, e tem a esperança de que elas se encaixem por uma atração natural
automática.
É o medo, as peças moventes, relutantes em
mostrarem qualquer figura discernível, lhes diz. Naquele apartamento minúsculo
ele sente o medo incurável, obscenamente vergonhoso, tomar-lhe conta. Era o
mesmo medo sempiterno que sentia desde quando era criança, desde quando, numa
brincadeira cujas imagens difusas de um jardim e uma luz especular lhe indicava
ter sido seu primeiro contato com algo inominável sobressaindo-se das fantasias
de piratas e de ilhas distantes para fazer o mundo lá de fora insurgir em seu
refúgio. O primeiro contato com o mal, um roçagar inapreensível, isento de
minúscula emoção, mas que lhe deixara uma herança de certo calor. Alguns
psiquiatras do comportamento infantil relativizam a proteção exagerada da
criança quanto às manifestações do mundo adulto. Certa vez retirara risos
explosivos da mãe e de uma amiga dela quando, na mesa de café, lhes perguntara
o que significava a palavra “prostituta”. As duas deixaram-lhe assistir
televisão até tarde na noite anterior e ele vira um filme francês em
preto-e-branco, na tv cultura, em que uma das personagens atirara na cara de um
amante irresoluto a acusação de que ele a tratava como a uma prostituta. Em sua
cabeça o som da palavra remetia a alguma burocracia anacrônica, lhe provocou
imagens de depósitos de velharias e grandes caixas de papelão, fato que lhe
veio colado às impressões do que achava que um filme francês deveria despertar.
As duas riram, a mãe depositou a xícara de café no pires e lhe respondeu com
ternura: “Prostituta é o que se convenciona chamar de profissionais do sexo,
mulheres que se vendem para desconhecidos para que esses façam sexo com elas”.
Ele ruminou a informação sem espanto, como sua mãe tinha certeza que ele o
faria, e o termo se tornou um totem de referência de seu primeiro passo rumo à
erudição. Sempre que se deparava com a palavra, tal cena na mesa no café lhe
vinha como acionada por um dispositivo mecânico, uma série de engrenagens se
punha em movimento e se finalizavam com uma urgência instantânea a precisa
figura de uma mulher de terninho, culta e emancipada, como exigiam as regras da
polidez do cinema europeu dos anos 50. A assepsia resultada disso era tão
primorosa que cambiava uma inadaptabilidade semântica ao significado da palavra
“puta”, que era apenas a mesma mulher, com a mesma respeitabilidade e
distanciamento, adquirindo as cores do cinemascope. Já o contato com a verdade
que estava além das palavras era outra coisa. Subira do jardim do prédio onde
moravam ele e a mãe, naqueles anos em que os dois em intrínseco acordo
labutavam contra a derrota imposta pelo mundo, ela em sua faculdade de direito,
ele em seu suportar estoico das sombras silenciosas e opressivamente intranscendentes
do apartamento, com aquela revelação na cabeça. Aquela luz muito além de sua
compreensão, que entre as folhagens cortadas por sua espada de Capitão Green
Hollyday e a tribo canibal que teve que derrotar no centro das samambaias, viera
para plantar as primeiras sementes do que havia de real cercando aquelas suas
brincadeiras solitárias e pueris. Abrira a porta do apartamento, utilizando a
chave que guardava no fundo do bolso da bermuda, com todos os avisos
admonitórios da mãe para que não a sumisse e por isso ele sempre a apalpando
para certificar que cumpria sua missão seríssima com rigor, pois caso contrário
como eles iriam entrar em seu refúgio, e como com uma distração fatal a chave
poderia cair nas mãos de um facínora que entraria no reino deles e levaria
sabe-se lá o quê, suas preciosas miniaturas de soldados da Guerra de Secessão,
ou os livros da mãe, isso, o que havia de mais valioso para se levar que lhes
pertencia seriam os livros, e na sua cabeça os exemplos mais abjetos de bandidos
que rondavam aquela chave em seu bolso poderia levar os russos, os franceses,
os alemães, que a mãe venerava com recato mas ele lia com espanto e um tanto de
repúdio (o fascínio de tantas coisas por descobrir além daquele apartamento e
além do aconchego ambíguo debaixo das asas da coruja taciturna da mãe cujo
filos biológico não dava muito afinco à maternidade), como era vasta a
insegurança humana, como era infinita a dúvida e como estava pronto para se
firmar a implacável certeza da impermanência no reduto de sua alma. Ele abriu a
porta girando a chave e entrou, tornando a fazer o movimento giratório no miolo
da fechadura até que ficassem só ele e aquele sono velho silencioso,
rumorejando sons que o ouvido não era capaz de diferenciar dos ruídos urbanos
onipresentes que sempre atravessavam os vidros das janelas fechadas e a
espessura das paredes, o zum-zum delicadamente virtual do solenoide das
lâmpadas de sódio dos postes, a água tilintando suas bolhas metálicas de ar com
lapsos de certa alegria feminina pelos canos, respiros que surgiam do nada que
ele poderia acreditar vindos de um mundo dos mortos separado deste por alguma
artimanha de dar autoridade apenas aos que estavam do lado de lá em tocá-lo se
o quisessem, mas que sua mãe lhe reprimia concisamente sobre tais metafísicas e
tais assuntos primitivos que o pragmatismo e o cientificismo de suas vidas
ditaram não gastarem energias com elas, e os tantos sons de animais ou
autênticos apelos humanos dos solitários dos outros apartamentos que emitiam
suspiro para que esses de detrás do véu lhes ouvissem e que acabavam cambiando
para que uma criança no mesmo plano e na mesma impossibilidade de ajuda fosse o
único receptor. Ele tinha costume de falar abstrações sem sentido para a mãe,
que o ouvia com uma solicitude séria, os olhos dela por detrás dos óculos
analisando o que ouvia com uma persecução preocupada, pensando para onde tais
coisas iriam, arrebanhando tudo que anos de estudo e leituras concentradas
poderiam servir para saber algo desobstrutor sobre a loucura da infância. Mas
ele teria que esperar ainda 3 longas horas antes que sua mãe retornasse da
universidade, 3 eternidades contadas no oval do relógio da sala enquanto ele
permanecia sentado na poltrona arrastada para de frente a janela olhando os
carros passando lá embaixo, se permitindo uma esperança artificial de
aprumar-se com o desenho de um sorriso nos lábios para cada carro que parava junto
à portaria, com o motor ligado, e cuja pessoa do lado do passageiro fazia
suspense antes de descer para que ele testemunhasse com a tristeza
restabelecida de que não era um dos colegas da mãe a trazendo de carona, o
professor de jurisprudência, um velho juiz aposentado que vinha com as regalias
dispendiosas pagas pelo estado de uma cidade há 150 quilômetros todos os dias
para administrar uma aula chata e arrastada não tendo vindo e portanto ela
estava liberada mais cedo, para que ele utilizasse assim que abrisse a porta
seus ouvidos para despejar-lhe dentro aquele novo terror censciente que o
prenúncio da triste maturidade precoce lhe enviara no jardim da portaria.
Timos
analisava o por que o acaso achara que aos 8 anos ele estava apto para receber
essa inserção da verdade. Fora o ano em que seu pai se mandara. Aquela figura
intocável, que lhe deixara marcas mais que indeléveis pelo seu distanciamento,
pela elegância alienígena que ele usava sempre com Timos como se fosse o
atestado arranjado consigo mesmo para excluir aquele enigma de dedicação que a
paternidade romântica exigia que tivesse. Por um triz Timos quase o amara. Em
suas observações caladas, sentado no sofá, deitado na cama antes que todos
acordassem, estudando com franca admiração o rosto francês cruel e
abnegadamente animalesco em toda sua reivindicação de liberdade virado para
cima em entrega à sua paz natural, Timos o trazia para si, se moldava nele,
centrava-o no palco de suas emulações minuciosas, repetia seus trejeitos
alheios e ególatras, e ele, seu progenitor biológico, fizera-lhes o favor de
dizer adeus antes que todos esses estragos se completassem. Duvidava que
houvesse alguma previsão de danos calculado nessa despedida definitiva, pois
alguém que vivia apenas para si mesmo jamais teria a vocação para uma
alteridade dessa envergadura, mas o egoísmo dele acabou sendo um ato de misericórdia.
Timos virou
mais um copo do que restava do suco e observou que a chuva dos últimos dias
trouxera um áspero ar de fungo pelo apartamento. Ele gostava desse odor, um
cheiro de coisa se deteriorando às escondidas, como se requeresse a sua
distração para poder sobreviver. Estava bem debaixo do seu nariz, mas era
suficientemente inapreensível para que seus sensores corporais pusessem-no em dúvida,
colocando em xeque a capacidade de seu próprio funcionamento. As janelas
fechadas habituara a atmosfera de saturação a um meio promíscuo para o mofo, e
daí viera a humidade, reinante e florestal, e as forças da selvageria natural
insurgiram-se contra o concreto e o cimento, soprando o bafejo manhoso de
antigas doenças à espera do fim de suas abolições farmacêuticas. Era uma
batalha silenciosa e longuíssima, cujo tempo se media em módulos muito além da
duração de Timos para testemunhar (imaginou dali a décadas, quando os devaneios
no escuro de novos inquilinos na renovada versão das chuvas sepulcrais, iriam
identificar o limo se intensificando, concluindo mais uma frase meditada e
tranquila daquele seu argumento de invasão). Na última semana_ segundo ouvira
em um telejornal da clínica de abortos_, doze pessoas morreram de frio. Anabel
(a secretária) estava em um de seus solilóquios sigilosos com uma paciente e
ele não pôde aumentar o volume do aparelho na recepção. Eram anônimos, é claro.
O tipo de estatísticas que vem com cenas de fachadas de prédio, de rostos
indevassáveis de médicos falando como se não se tratasse de humanos. Timos
conservava certos ceticismos que ele sabia infundados, vindos de uma subliminar
adoração à ciência. Era-lhe difícil entender como alguém morria de frio.
Tirando os desalojados, os sem rumo, os suicidas das ruas que veem a
oportunidade de darem um basta no convite acolhedor que a chuva tem em toda sua
tenebrosidade cósmica, pensava nas senhoras em seus apartamentos com armários
antigos, os velhos que são descobertos cinco dias depois. Como essas pessoas
morriam de frio? Aqueles cansados médicos das entrevistas deveriam resumir tudo
como “hipotermia acentuada”, para poderem voltar para suas casas e acabarem
logo com aquilo, e ninguém iria perguntar, nem os parentes convocados, nem a
polícia, nem os vizinhos. Lembrou de um romance do Rabindranaph Tagore que lera
na adolescência, em que uma frase o tomara de jeito: “é muito difícil matar um
homem”. O escritor não falava de entidades, de ideias, mas do homem biológico,
falava do que estava por sob as estatísticas. Talvez esse assunto o tomasse
tanto tempo recorrente porque Timos se via como uma vítima potencial desse tipo
de morte. O que estava pensando, ele se perguntou, recolhendo um pedaço rançoso
de queijo no fundo da embalagem e o colocando na boca. Veio-lhe o professor
húngaro do segundo andar à cabeça, e o casal de velhos tão exageradamente
zelosos com a filha que morava no exterior. Eles estavam nesse exato instante
em um raio curto de distância dele. O professor deveria estar enfurnado em sua
poltrona, com um livro de filosofia alemã no colo_ ele imaginava sempre que o
estado de organização estivesse longe do caos do seu apartamento, o que era um
elogio involuntário ao vizinho. O casal deveria estar na cama, abraçados, quem
sabe depois de terem falado por telefone com a filha. Os seres humanos não
divergiam muito desses clichês, havia poucas opções dos quartos e salas
escuros. Talvez eles, os quatro, formassem uma chama de vida reflexiva em algum
ultrassom divinatório e suas mentes apareceriam como as únicas coisas acordadas
em todo universo. E talvez um meio termo entre a soturnidade desses seus
pensamentos e a comunhão ortodoxa que havia ao nível mais trivial possível
entre eles é que determinasse que não estivesse na hora do frio dar sua cartada
fatal. Todos aqueles protótipos e insinuações não tinham peso suficientemente
trágico para resistirem a um simples grito, ou a uma necessidade limítrofe de
abrir a porta, atravessar os degraus e bater na porta do outro, o triste e
nobre conde destituído de seu título dinástico aparecendo com sua cara
desesperada por algum apoio na soleira da porta. Ou ele bater à porta do casal
de senhores. Seja lá qual arranjo, quem procurasse quem. Aquele cheiro acre dos
fungos só se instalava em seu ambíguo prisma do que era agradável porque ele se
permitia ser superior a ele, ele se permitia a permanência, ele era ainda
inflado de orgulho, de vaidade, de egocentrismo, de apetites os mais diversos
(ainda que controlados), de forma que a doença que aquilo poderia pressagiar
era transformada em um atributo a um sommelier exótico. O medo era um anjo que
fulminava a todos do cavalo e enceguecia com sua potestade inverbalizável, com
seu terror infantil que se cola na idade adulta e na velhice, era o arauto
daquilo que estava acima da nossa compreensão, mas as histórias fabulosas que
ele contava era dever de cada um acreditar ou não, levar à frente e
alimentá-las ou não.
Timos
imaginava as quantas histórias que estavam sendo fomentadas apaixonadamente
naquele mesmo instante sobre o atentado, na calada da noite, por fanáticos
insones. A estatura de A. estaria, na manhã cujas sete horas de escuridão fria
o separava, a níveis insuperáveis. Sua força e sua grandeza, que até então
podiam ser codificadas como imaginárias, acordaria naquele novo dia de sua
glória como capacidades incontestáveis de um líder predestinado. Timos já sabia
de tudo. Levantou-se, foi ao banheiro, abaixou suas calças e se sentou na laje
fria da privada, e urinou na pose feminil. Lavou as mãos, retirou a escova e o
creme dental da caixa da parede, e escovou os dentes demoradamente, olhando sem
se atentar para as fímbrias e desgastes de sua pele. Aquele povo que vivia sob
o medo se veria autorizado pelo destino a depositar nele todas suas esperanças
mais profundas. Seu rosto fino, de antiquada distinção nobiliárquica, que lhe
dava um acento de estupidez que ia de encontro à ternura errática dos broncos
que a multidão venerava, iria aparecer em todos os lugares. Ele não morreu.
Aquela vontade de viver que Timos identificava em si mesmo não permitia que o
frio viesse lhe observar na aposta por resoluções preguiçosas da história;
insistir na graça de um sujeito como aquele continuar com seu direito à vida,
mesmo indo de contra o que se movia na fáscia mais superficial de seu
pensamento, era parte em se manter vivo, pois viver sem sua humanidade não era
viver. Afora o seu apartamento caótico, Timos vivia. E ele conseguiu dormir
profundamente naquela noite, contrariando todas as suas estimativas. Outras
maneiras haveriam de surgir para combater. Sempre haveria outras maneiras.
Bastava foco. Bastava estar acima na escala biológica do limo e restituir com
uma concentração feérica a superioridade de sua espécie por sobre o frio.
(Escrito no final da tarde de 6 de setembro de 2018.)
Isso aqui é magistral: "O medo era um anjo que fulminava a todos do cavalo e enceguecia com sua potestade inverbalizável, com seu terror infantil que se cola na idade adulta e na velhice, era o arauto daquilo que estava acima da nossa compreensão..."
ResponderExcluir"Com sua potestade inverbalizável" descreve o medo com uma eloquência invejável.
Desde então é o medo que move a atmosfera mental e espiritual desse país. É bom te ver de novo por aqui. Espero que esteja tudo bem com você. Obrigado pela generosidade das palavras.
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