terça-feira, 19 de agosto de 2014

Guebrídguma



Recebo uma chamada em uma tarde quente de agosto em idos de 8 a 9 anos atrás, a voz de mulher do outro lado da linha tornada indistinguível pela mecânica que tinha que passar toda a sua firmeza e protocolo pelos furinhos da caixa de som do celular. Alô, é o professor Charlles?, pergunta; sim, sou eu, respondo. Professor Charlles, aqui é a Luiza, a coordenadora do Colégio Rudyard Kipling. Teria como você vir aqui ao colégio às 15 horas de hoje? Penso um pouco, o suficiente para identificar na minha lista de personas non gratas a tal Luiza, invoco o instantâneo de possíveis erros que cometi em minha disciplina de biologia para a turma do terceiro ano, não me vindo nada de condenável, o que torna a sensação de temor um tanto mais acentuada. A senhora poderia me dizer sobre o que se trata?, pergunto. É um assunto de certa urgência, você vindo aqui na hora proposta discutiremos._ Está bom, respondo e desligo. 

Atravesso a longa avenida em supino ao sol severo da tarde, com meus diários em mãos. O que diabos a coordenadora queria comigo, era a pergunta martelando na cabeça, ao mesmo ritmo que uma artéria ia motorizando em minha têmpora enquanto as mangas da camisa ficavam molhadas de suor. Luiza, uma mulher de uns 40 anos, semblante rígido, voz determinada das pessoas acostumadas com o comando, alguém temido pelos alunos e evitado pelos professores, ou ao menos por mim, que sempre mantinha uma soviética distância dela, restringindo-me a assuntos meramente protocolares. E houvera um incidente meio desagradável que aumentara ainda mais minha indisposição com ela: na época, eu me lançara numa loucura involuntariamente neoliberalista de manter três empregos, o que podara todo meu tempo livre; eu era, além de funcionário público, veterinário de campo e professor de biologia em colégio particular. Até então essa mazela tresloucada parecia molestar apenas a mim, que era solteiro e desimpedido em tudo, mas a tal Luiza, um dia, invocou a psicóloga do colégio para que me chamasse em particular e me colocasse a par de que esse transtorno de comportamento também privava os alunos da harmonia sanitária ideal das salas de aula. Trocando em miúdos, uma aluna flagrou em certa aula um filete de sangue em meu braço, enquanto eu expunha, com esse braço em riste em frente ao quadro negro, uma daquelas fatídicas cadeias de interações genéticas, e essa aluna me delatou junto à coordenadoria. O fato é que eu saía do frigorífico e corria para o colégio, sempre muito preocupado em não chegar atrasado, e nesse dia em particular mal tive tempo de tomar um banho, o que deu origem ao delito. A verdade mesmo é que nessa correria, grande parte das vezes eu só dispunha de tempo para uma higiene satisfatória quando chegava em casa, lá pelas 11:30 da manhã, até essa hora eu devia mesmo exalar um singelo odor de sangue coagulado, fezes, vômito, e gás do sistema de ar condicionado, que são componentes infusos no ambiente de um frigorífico que abate mil animais por dia, e no qual eu ficava submetido desde as quatro horas da madrugada.

A psicóloga me chama, ficamos um de frente ao outro, percebo o desassossego e constrangimento dela ao, enfim, ter coragem de me dizer que eu, um rapaz tão bonito, deveria ter alguém para zelar de mim, contratar uma empregada doméstica, ou, melhor, quem sabe, arranjar uma esposa, e assim vai. Meia hora de conselhos e nada de me dizer que a razão da piedade excessiva era que um filete de sangue fora visto em seu traçado nauseabundo percorrendo todo meu antebraço, como a muralha da China pelos olhos lunares do falecido Neil Armstrong. Saí da sala da psicóloga crente de que ela me usara, em seu longo expediente morto, para preencher uma das suas fichas burocráticas de atendimento mensal, que justificava seu salário, mas duas semanas depois a própria Luiza me encara, em seu gabinete, me dizendo, curto e grosso, que certos alunos haviam reclamado de detalhes perfunctórios em minha indumentária pessoal. Alguém aqui que tenha caído de gaiato nesse blog é veterinário? Não? Pois entendam, leigos, que cheiros, sabores, máculas em tecidos, filetes de sangue em braço, estão longe de poderem constranger um veterinário. Fiz estágios por longos meses em granjas de suínos, e ainda hoje, quando sinto aquela acidez característica, misto de ureia, enxofre, dejetos biológicos de todo tipo, sou tomado por uma lírica nostalgia, da mesma intensidade que quando minhas narinas são surpreendidas por um certo perfume colossal que minha primeira namorada da adolescência usava, que me para com o que eu estiver fazendo e me descentraliza, ou o rescender da relva apreendido na volta para casa pelas janelas semi-abertas do carro me devasta de saudades de uma antiga casa de campo da infância. Aprendemos sobre uma certa poesia dos cheiros na faculdade de veterinária, o que não é nem um pouco assustador para os profissionais das áreas médicas de qualquer tipo_ semana passada mesmo, meu dentista retirava as agulhas coloridas que inseria no canal do meu dente e as passavam pela averiguação de seu nariz de degustação apurada e deleitosa, tal qual um sommelier. (Aperfeiçoa-se nessa filosofia aromática as pessoas que tem filhos ou são donos devotos de animais domésticos, para quem toda escatologia envolvida são íntimos estudos e caminhos revisitados à farta ao conhecimento recolhido do alvo de seus amores.)

Pois bem, a tal Luiza estava longe de poder tirar de mim rubores de qualquer tipo, daí que eu respondi, na mais cordial das distâncias, que o problema seria resolvido se ela atendesse minha antiga recomendação de que passasse minhas aulas para mais tarde, que não fossem as primeiras, das sete da manhã, mas lá pelas nove, ou quem sabe à tarde, tendo tempo então para voltar para minha casa e me dignificar a esfregar meu couro com a mais bruta das esponjas naturais até que meu sangue minasse de saúde asséptica pelos poros. Ela assim o fez; eu, que melhorei muito da minha doce estupidez retaliativa, continuei do mesmo jeito, atento apenas para manchas visíveis, mas só tomando banho depois que voltava do colégio, no intuito de provar que aquelas sensibilidades ou eram psicossomáticas de quem não se dava bem nas notas de minha disciplina, ou eram de fontes erráticas (um adolescente padrão emana odores francamente desagradáveis, os quais eu mesmo não tolero), ou eram simplesmente birras com as quais meu nível de apreensão dos mistérios administrativos colegiais pouco se interessava. Talvez fosse isso, pensei ao dobrar a esquina em direção ao colégio: o reascender dessas antigas questiúnculas, que a tal Luiza queria mais uma vez me jogar na cara, inadmissível foi para ela que eu não me importasse ou não me vexasse. Entro pelos portões do colégio pronto para dizer sem meias palavras que eu iria abrir mão daquilo e me demitir, avanço para a porta da administração, não me faltando a percepção de que era um tanto estranho que não houvesse viva alma ali, nem o porteiro, nem as faxineiras, nem os professores ou monitores das aulas vespertinas de reforço. E eis que, nesse deserto todo, me aparece a tal Luiza, que surge da sala de administração com uma leveza ectoplásmica e se encaixa ali no umbral da porta com algo de fada ou ninfa do vale, cabelos molhados ineditamente soltos, mostrando o quanto eram longos e negros; os lábios, tão rotineiramente adeptos de um fordianismo de discursos produtivos, estavam moldados com um batom vermelho cordial e não-aberrante (lembro que meu senso de observador apurado teve tempo, naquele micro-minuto de tensão, de reconhecer esse mérito feminino nela: era um batom equilibrado, que se condicionava com precisão elegante ao seu espectro de emanação mulheril, mostrava um auto-conhecimento orgulhoso, seguro e de extrema perícia, não são todas as mulheres que tem isso, isso é uma arte invejável_ de modos que naquela fagulha de racionalização que precede a catástrofe me passou cristalinamente pela cabeça: se eu cair hoje, se eu não aguentar e ceder, se eu me trair e me mostrar fraco e cediço, será por causa desse batom). Ela usava um vestido cuja barra ia até os joelhos, mostrando pernas bonitas, lisas, bem torneadas, pernas de uma mulher que envelhecia com uma lascívia concentrada e não de todo secreta (lembrei que haviam os comentários entre colegas professores que evidenciavam uma curiosidade sobre sua vida de divorciada reservada). Não era a mesma mulher, eram o que as faculdades do senso comum diante o inesperado queriam que eu pensasse naquela hora, mas o que eu tinha firme ao me estacar diante aquela visão era a convicção de que era a mesma mulher; talvez a outra, a intrusa e metade debilitada, fosse a que tinha que se confrontar com a psicopatologia do cotidiano de um colégio como aquele, a Luiza das calças jeans e do rosto sem maquiagem e despersonalizadamente assexuado das reuniões de fechamento de diário que a cada dois meses tínhamos que nos submeter; e a  Luiza legítima fosse aquela revelação noturna que se mostrava para mim em pleno dia, como um convite a uma iniciação a uma ciência privilegiada. Ela me disse_ a voz doce, calibradamente trêmula (meu deus, ela era profissional, pensei, daí que sempre me pareceu altiva a sua indiferença ao atravessar aqueles corredores com beldades ingênuas e assustadas de mocinhas de 16 anos): Charlles, eu te vejo sempre sozinho, sem companhia. Pensei se nós, nós dois, não poderíamos, sei lá, um dia, sairmos juntos para jantar, tomarmos um vinho.

Recordo que Bernard Shaw dizia que nada engrandece mais a experiência de uma pessoa do que os momentos de intenso constrangimento pelos quais ela passa. As gafes de Shaw são antológicas, as vaias e ovações que recebeu ao longo de seus 90 anos de vida: lembro que certa vez, ao entrar por uma sala até um bastidor de onde iria discursar para um grande público, tropeçou e rolou pelo chão, sendo que imediatamente se levantou e continuou caminhando como se absolutamente nada tivesse acontecido. Em certa medida, meu comportamento sempre foi inspirado em Shaw, ainda mais pela atitude desabrida que o irlandês possuía em não se importar em não usar as palavras aprazíveis exigidas pelos atos sociais. E meu histórico de momentos ruins inesquecíveis é arrepiantemente extenso; mas estar de frente à escritorial coordenadora Luiza e ter que suportar friamente que ela estivesse me passando uma cantada, às 3 horas da tarde desses verões inglórios do aquecimento global, tendo urdido uma espetacular e na certa dificultosa evasão de todo mundo para que o colégio servisse inteiramente ao seu intento (apenas ela e eu, eu e ela ali), era algo que exorbitava em muito meu estômago de avestruz para digerir impavidamente o constrangimento. Eu desconversei da melhor maneira que pude, mas tudo foi um grande desastre. Disse a ela que eu já tinha uma namorada, que me sentia envaidecido pelo seu convite, mas eu tinha que recusar. Foi uma auto-violência extrema, ainda hoje, ao pensar nisso, faço uma careta e digo comigo "Cacilda!". Analisei ali que nada há de pior do que uma mulher rejeitada, é o mais cruel dos inimigos que se pretenda ter. Era meu ultimato para abandonar o colégio.

E olha só as coincidências: relatei o fato a um amigo apenas, numa noite de bebedeira que ambos tivemos em um bar da cidade. Esse amigo, um tipo aragonês baixinho, barrigudo, careca e com uma falha num dos incisivos, dado a um riso de alegria suprema que lhe é um acometimento natural desde que acorda até o horário em que vai dormir (alguém que nunca, nem na circunstância do falecimento de seu pai, vi de mau-humor), me disse, após cinco minutos de prefácio monologal hilário recheado de frases como "não acredito", "não pode ser", que fazia um ano que ele e a Luiza eram amantes. Olhei-o embasbacado: "sério?". Tive uma dessas decepções egoístas que prescinde de controle mental, em que vi a altiva Luiza pega por aquele amigo descarado e mandrião; ela merecia algo melhor, pensei e disse a ele. Ele concordou, bebendo mais um copo de cerveja e fazendo sua voz em soprano de quem finge se importar para que outros não lhe ouvissem e preservasse a honra de sua vítima: ela é insaciável, precisa de ver! Pôs-se a contar detalhes picantes que fizeram a noite se estender por mais duas horas além do previsto. Era tão simpático em sua canastrice, tão detentor de uma auto-depreciação adstringente, que no final achei que havia algo de dignamente romântico nas farras pantagruélicas que os dois realizavam juntos, fazia mais que um ano, em segredo tão bem guardado que nem as duas filhas que moravam com ela sabiam. Ainda faltavam dois meses para fechar o ano, e eu havia informado ao colégio que só cumpriria a agenda e sairia dali. Via a Luiza em seu jeans e camisas formais, séria, constrita, e imaginava-a dizendo o que meu amigo afirmava que ela dizia, e se posicionando nos malabarismos que ele descrevia prontamente que fazia.

E eis que, para concluir, encontro um tesouro no último volume de Seu Rosto Amanhã, de Javier Marías. Na página 139, do terceiro volume, da edição da Companhia das Letras, encontro a supracitada definição, que é sobre o quase delével grau de parentesco que surge entre homens que se deitaram com a mesma mulher. Marías não trata do assunto de forma grotesca nem masculinista, como pode parecer a uma primeira impressão, mas o faz com sua elegância costumeira e sua erudição. Diz que_ na verdade é seu personagem narrador quem diz, Jacobo Deza_, segundo leu em um livro de um seu compatriota espanhol, o termo achado para definir o parentesco da "co-foda" (sinônimo "grosseiro e contemporâneo", ele admite), ou do "co-jazer", era uma derivação do vocábulo anglo-saxão medieval ge-bryd-guma, que se declina a ser escrito como "guebrídguma". Se eu tivesse me deitado com Luiza, eu teria passado a ser guebrídguma de meu amigo aragonês. É o tipo de coisa que eu não irei falar para ele_ não compartilharei esse tesouro encravado. Ele jura de pés junto, como se diz, que eu me encontrei depois com a Luiza, e nós jazemos juntos. Para ele, nós já temos esse parentesco primal de sermos posse memorialística do conjunto de recordações sexuais de uma mesma mulher. Sempre que nos encontramos, os mesmos usuais achaques são repetidos, de que cada um não voltou a aguar mais aquela horta depois que soube que o outro passara por ali, que a mulher estava estragada para sempre e seria uma vergonha que o outro tivesse coragem de aparecer com a mixaria que deus lhe havia dado,etc.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

True Detective



"Só existe um tipo de história, a mais antiga: luz contra a escuridão." (Rust Cohle, True Detective)

Cometi a distração de assistir pela HBO na segunda-feira o primeiro episódio de True Detective. Não descansei enquanto não assisti aos outros 7 episódios da série. Acabo de ver o último deles, e estou completamente deslumbrado. Foram 8 horas da mais generosa abdução para um mundo de refinada estética e entretenimento, um primor para o intelecto e um deleite para os sentidos. Não há como não ficar apaixonado pelos dois detetives_ sobretudo o ultra-niilista Rust Cohle. 




terça-feira, 12 de agosto de 2014

A onisciência de não se saber nada



No filme Nostalghia, de Tarkóvski, um homem amargurado pelo exílio tenta repetir a ação obsessiva de um professor louco: atravessar uma extensa piscina vazia equilibrando uma vela acesa nas mãos, sem deixar que a chama se apague. A cena demora bem uns dez minutos, em completo silêncio, enquanto o homem retorna e refaz seu propósito um sem número de vezes, toda vez que um vento vem apagar a chama no meio do caminho. O espectador que acompanhou o filme até aqui sabe que a pensão italiana onde o homem deambula está em decadência, sem hóspedes e à espera de um sinal de desistência para que nela se instale todo o peso devastador do tempo, sabe que o professor morreu ateando-se fogo em um flagelo público e que na verdade o homem repete seu gesto em uma versão muito mais simples, visto que o professor atravessava com a vela acesa uma piscina cheia de água e de turistas beberrões e escandalosamente histriônicos. O núcleo dessa belíssima metáfora tarkovskiana é a representação da fagulha não adulterada da persistência humana em um mundo onde todos os caminhos levam à corrupção, à loucura e à dor, todas essas entidades organizadas em apagar o que resta de lucidez em um espírito absurdamente desacreditado. Toda obra de Jean-Marie Gustave Le Clézio, esse inigualável escritor franco-mauriciano, tem como eixo a incompatível mas incrível força real e desprovida de eufemismos poéticos que vem da fragilidade, se aproximando daquele outro memorável discurso de Stalker que diz "a dureza e a força são atributos da morte; flexibilidade e fraqueza são a frescura do ser". 

Os livros de Le Clézio, assim como os filmes de Tarkóvski, sempre me fazem restituir uma espécie de muito antiga consciência sobre a abrangência da arte, o que me faz deitar por um momento o livro no peito_ ou dar pause no filme_, para buscar mais fundo a origem desse pressentimento e firmá-lo melhor em seus contornos metafísicos. Lendo, por exemplo, o conto História do pé, de Le Clézio, semana passada, me veio uma quente sensação do que, já em minha infância como leitor, eu intuía ser a religião comunitária onde se juntam os retratos mais puros do homem, em toda sua nudez e crueza, e que essa arte, ou esse reservatório de informações seculares, é algo tão visceralmente verdadeiro e superior, que são poucos os escritores atuais, afogados em um urbanismo cibernético sobre-humano, que conseguem perceber e usar isso. Aliás, no afã de uma originalidade que lhes deem maior aceitação nesse mundo sintético, muitos escritores e artistas fazem é fugir o mais distante possível disso. Por isso que quando eu leio um autor tão antigo, tão sintonizado com o sagrado da solidão humana, como Le Clézio, o estranhismo quase inóspito de sua escrita me faz ter essa sensação de aproximação de algo esquecido, através do pressentimento, o que talvez seja um paradoxo pois pressinto algo que já conheço mas que a obtusidade cotidiana me apaga da memória mas não da alma. Le Clézio me informa retardatariamente que eu tenho uma alma, nessa altura do campeonato que saber disso parece não trazer nenhum benefício. História do pé é um recado sobre o que continua quando as máquinas travam, os índices econômicos despencam nas reviradas fatais dos começos de século, a imunidade passa a não ter mais nenhum escudo científico contra as doenças reformuladas pela engenharia do acaso, as saudades e as paixões são queimadas esquecidas nos álbuns de retratos; e tudo contado na mais simplória história de uma moça que engravida e insiste em ter o filho apesar da miséria, do abandono e de toda a incompatibilidade. Dói ver o quanto é intenso em sua absoluta leveza esse conto, dói ter que ver de um autor que já ganhou o Nobel e poderia muito bem estar escrevendo o trivial elegante um texto tão reafirmador, tão desarmadoramente humano, tão ele mesmo crente em sua unicidade solitária de ter um alvo comburente do outro lado da página, na presença do leitor que se emociona, que se transforma. E Le Clézio já fez isso antes, muitas outras vezes, no romance da quarentena que é de um nível de beleza sobrenatural_ e note: Le Clézio não é um poeta, não tem o ranço da poesia vernissagem_, naquele começo da história sobre sua mãe em que dos vaticínios médicos protecionistas do homem saciado moderno ele fala do quanto a fome fazia com que se desejasse encher a boca com os cristais acinzentados do sal, e dava sede de gordura e vontade de beber o óleo das latas de sardinha. O que mais assusta em Le Clézio é que seus personagens jamais brincam de existir, jamais acalentam o prêmio da vida por esse desgaste suntuoso do enorme benefício passageiro oferecido; jamais são suicidas, por mais que sofram e são confrontados pela história e pela natureza, por mais que sejam diminuídos a um nível de ruído ruinoso pelo furacão que devasta do lado de fora de suas peles (e todos não possuem nada mais de patrimônio do que suas próprias peles). Eles existem, não brincam de existir. A verdade incontornável de poderem tocar esse mundo com os sentidos os posicionam acima das teorizações tanto do desespero quanto das espiritualidades vendedoras de esperança: eles próprios em sua carnalidade são o Espírito, ancestral, indeterminável e não conceitualizável, vagante em sua pobreza cheia de inesgotável mérito; não precisam de instituições lhes dizendo como é que se vive: eles vivem. E digo eles por uma armadilha de encadeamentos sentenciosos da língua portuguesa, porque a maior parte é de mulheres, Le Clézio povoa sua obra de mulheres_ os contos de História do pé tratam cada qual de uma mulher em determinado momento e geografia do globo. Leio não me recordo onde que o homem moderno vive simulacros de situações verdadeiras: o pai, por mais que ame seu filho, finge ser pai, talvez mesmo pela adaptação à sobrevivência das condições da paternidade a um cotidiano de trabalho que o priva da presença do filho: assim, na omissão involuntária, ele finge através das creches, dos solilóquios à mesa de jantar, dos parques do domingo, que se investe de uma paternidade imaginária que a soma rejeitada de suas negligências desmente.

Ujine, a mulher do conto de Le Clézio, é um axioma de permanência que repete aquela frase de Rosa de que um menino nasceu_ o mundo tornou a começar. É um estudo sobre a fragilidade confrontadora e o equilíbrio feminil: o professor de Nostalghia conservava sua chama humana intocável diante a sevícia, mas se deixou queimar pelo excesso de lucidez. Ujine, levando ao término a sua gravidez, dá o nome à filha de Eulália, o nome do feio mato chinês invasor tido por todos como praga que ela via nos campos de Londres e que a restituía à verdade de que não sabia nada, mas que o poder da sua onisciência bastava.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Conversa apressada



George Saunders não me convenceu. Ainda me faltam dois contos de Dez de dezembro para ler, mas, a julgar pela premissa de Borges de que temos que nos aferrar ao prazer da leitura, ou a julgar pela leitura disciplinada em busca de esclarecimento mais que prazer, esse livro me deu nos nervos. Sinergismos exagerados, quase ao ponto do lisérgico, e aquela adolescenciofilia tão típica dos escritores norte-americanos cultuados mas de terceiro time, à lá Salinger. Não que seja ruim o autor, mas sei lá, temo que minhas 4 décadas de vida estejam pesando em meus gostos ou eu já esgotei por completo minha capacidade de me entusiasmar em saber o que uma menina de 14 anos pensa sobre sexo. Funciona para um estágio de leitor que ainda procura o que eu em meu estágio já encontrei. Não tem assombros em Saunders que me choquem ou, no mínimo, me tire um segundinho de pudor, o que não me deixa de entristecer um tanto. Há algumas semanas tive uma daquelas discussões infrutíferas com o Ssó_ infrutíferas porque somos ranhetas e indispostos a darmos os braços a torcer_, em que ele dizia que nada mais o emocionava na ficção desde Svevo, e eu contra-atacava alegando que de dois em dois meses sou arrebatado por algum romance ou livro de contos. Ssó me deu os parabéns, cheio de cinismo, e eu mencionei menos indiretamente que seria educado a elevada idade dele e as consequências disso. Pois nada é mais verdadeiro que essa minha afirmativa: eu sou uma criança quando leio. Eu rabisco os livros, entorto eles no colo, leio de cabeça para baixo com os pés estirados na parede, fico profundamente apaixonado pelo autor e logo passo a odiá-lo amorosamente. Se não me engano este foi um dos conselhos de Hemingway para uma vida longa, o de nunca se cansar diante o descobrimento da leitura. O que me causa auto-policiamento quando um autor como Saunders ou Egan não me diz nada, veio por um momento e eu não tornarei a procurá-lo em definitivo.

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Mas logo me animo quando me vejo com um novo livro de algum escritor do qual gosto muito. Semana passada me chegou pela Livraria Cultura o novo lançamento de Michael Chabon, Telegraph Avenue. Comprei uma carrada de livros, e pretendia começar com a releitura de Condição Humana, versão estendida e revista, da Hannah Arendt, mas o Chabon ficava me atiçando da estante, querendo atravessar a fila. E eis que, sem me dar conta, já estou na página 200 do romance. Cara, eu gosto muito do Chabon! Gosto pra caralho do cara! Ele é o equilíbrio espantosamente perfeito de todo escritor descomedido que faz pose nas esferas atuais da grande literatura: ele sabe deliciar o leitor com as trivialidades saborosas do provincianismo moderno, entremeando romance de gênero e metalinguagem elétrica, de forma muito mais encorpada e visceral que um Paul Auster; seus diálogos são afiados e inteligentes (incrivelmente inteligentes!), vindo de personagens que não precisam ter a maldade e promiscuidade justificadora dos de Martin Amis; ele faz grande literatura de uma maneira que parece involuntária, e não escorando em insossas peraltices do manual de redação criativa de um Jonathan Franzen; e, em comparação à supracitada Egan, a obra de Chabon antes de se prestar à dinâmica de cenas de seriado de tv, é literatura em alto nível, para leitores inteligentes. Chabon é best-seller nos EUA para um público leitor que tem de ter um QI equivalente à potência de sua escrita. E é viciante como ele escreve. Chabon foi co-autor dos roteiros do Homem Aranha do Sam Raimi, e é fácil para seu leitor identificar quais são os toques dado por ele nesses filmes: um dos que eu apontaria sem medo de errar é o quarto do Peter Parker no último filme da trilogia, um pequeno cômodo rústico no alto de uma arranha-céu, com todo o mobiliário remetendo a uma idade de crise financeira, cama de molas que lembra as de albergues filantrópicos, espelho de tinta esfumaçada na parede, um balde de metal para as abluções, uma penteadeira caindo aos pedaços; o único detalhe vantajoso é a enorme janela da qual Parker vê a metrópole entardecendo, o que lembra jazz, lembra nostalgias da vida aventureira da porra-louquice da juventude. O quarto é precário mas plasticamente encantador. Isso é o que Chabon povoa em seus livros: um cenário no qual o leitor se esconde, apartado da modernidade, exilado das fórmulas modísticas pré-fabricadas e institucionalizadas para o uso geral do imenso rebanho. Em As aventuras de Kavalier & Clay, o refúgio de um dos heróis da trama é um andar interditado e esquecido do sótão do Empire State, de onde ele manipula o imaginário de uma geração de jovens da segunda guerra mundial loucos pela catarse das histórias em quadrinhos que ele produzia; em Associação judaica de polícia, o cenário é uma cidade esquecida no meio do gelo do Alasca, para onde foram os sionistas emancipados do sonho de uma Israel oriental. E agora, neste, temos personagens que estão na iminência da bancarrota quando veem sua loja de vinis raros de jazz ameaçada pela chegada de uma mega-companhia de venda de música na cidade. Que bom chegar à noite e me preparar para o deleite de mais algumas páginas de Chabon, com toda a alegria contagiante de sua escrita, o humor incansável de suas histórias.

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Cem anos de nascimento de Júlio Cortázar. Há uma matéria longa, longa, longa sobre Cortázar na Piauí deste mês. Nada como uma longa matéria sobre Cortázar em uma revista requintada como a Piauí, desde que tenha algo de interessante para contar. O texto do Reinaldo Moraes é só enfadonho. Paro na metade e vou caçar a foto do autor para ver o que ele manda. Um sorriso, uma boa saúde, uma cara que me lembra um tio boa praça que tenho em São Miguel. De imediato reafirmo minha decisão de, desde agora em minha intenção de ser escritor, tomar o máximo cuidado com fotos. Nunca me deixar fotografar. Olhando a cara do Moraes e mais uns outros da equipe da Piauí, não me contenho em pensar que são simpáticos demais, urbanos demais, 3x4 sem conflitos. Um escritor não pode ser assim. O Carlinos me disse que vem me visitar qualquer dia desses e vai ser ótimo; se quiser pode passar o fim de semana, tem quarto de sobra pra ele e a esposa. Vai ser leve e risonho, mas na hora da fotografia vou parecer aqueles bestas que cerceiam a exposição da própria imagem. Eu não sou ninguém e não é metidez, mas estou com o Pynchon. Já viram a cara do Pynchon?, pois é; chego a arrepiar ao imaginar aquela cara tão exposta quanto a do Garcia Marquez, por exemplo, com aqueles dois dentes protuberantes e aquelas orelhas de abano. Já me foi difícil erradicar a imagem de velho safado de Nabokov para poder lê-lo, das tantas fotos em que sua vaidade exagerada deixou aparecer. Pynchon não seria Pynchon se não tivéssemos dele apenas essas duas fotos célebres, em que desculpamos seu prosaísmo por ser algo restringido ao branco e preto do passado. Mas voltemos ao tema (?): amaldiçoado pela cara de bom moço da literatura brasileira (a Carol Bensimon jovial demais... o Galera com aquela barba longa de botique... (bom mesmo são as falhas dentárias à lá Maiakósvki, que impregnam o autor de uma seriedade shakespereana, onde se intui o futuro suicídio, ou a velhice recolhida)), continuei e finalizei a leitura do artigo do Moraes sobre Cortázar. A única coisa interessante é a reafirmação da polêmica declaração de uma ex-affair do escritor de que Cortázar na verdade morreu em consequência da AIDS. Cortázar, segundo Cristina Peri Rossi, foi uma das primeiras vítimas da doença em Paris, depois que recebeu uma transfusão de sangue contaminado em um programa do ministro da saúde (deposto em razão dos altos índices de contaminação advindo dessa desastrosa decisão) em usar como doadores estrangeiros ilegais. Cortázar contaminou sua companheira, Carol Dunlop, que definhou com infeliz rapidez e morreu antes dele. Disso eu não sabia.