quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Theodor Adorno

 
Um olhar desviado da trilha batida, um ódio à brutalidade, uma procura de novos conceitos ainda não abarcados pelo modelo geral, é a última esperança para o pensamento.
                                                                                     (Minima Moralia)

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A Tinta que Falta

Numa antiga anedota que circulava na hoje falecida República Democrática Alemã, um operário alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que toda correpondência será lida pelos censores, ele combina com os amigos: "Vamos combinar um código: se uma carta estiver escrita em tinta azul, o que ela diz é verdade; se estiver escrita em tinta vermelha, tudo é mentira." Um mês depois, os amigos recebem uma carta escrita em tinta azul: "Tudo aqui é maravilhoso: as lojas vivem cheias, a comida é abundante, os apartamentos são grandes e bem aquecidos, os cinemas exibem filmes do Ocidente, há muitas garotas, sempre prontas para um programa_ o único senão é que não se consegue encontrar tinta vermelha."
                                     (Bem-Vindo ao Deserto do Real, Slavoj Zizek)
Slavoj Zizek: "Sentimo-nos livres pela falta de uma lingua em que articular nossa não liberdade"

sábado, 27 de agosto de 2011

Algo Cintila no Tecido Esgarçado_ Vila-Matas escrevendo sobre Sebald

W. G. Sebald

Passa uma gaivota e sigo-a, e lembro certos comentários de W.G.Sebald acerca do mistério e da incidência do gênero fantástico no excêntrico, certos comentários também sobre supostas casualidades e coincidências que poderiam não ser o que são se contássemos com melhores meios de percepção, não sê-lo porque, na noite dos séculos, ficamos, um dia, depois que se ouviram disparos no paraíso, muito limitados mentalmente: "Prefiro escrever sobre pessoas bastante excêntricas e o excêntrico tem algo de fantástico. Esse tipo de coisa, além do mais, também nos sucede. A mim, por exemplo, aconteceu recentemente de estar num museu de Londres para ver dois quadros. Atrás de mim estava um casal que, creio, conversava em polonês. Um cavalheiro e uma dama, de aspecto muito estranho, não pareciam de nosso tempo. Depois, à tarde, precisei ir à estação de metrô mais periférica de Londres, uma cidade de quinze milhões de habitantes. Não havia ninguém. Salvo esses dois do museu. Ali estavam."

Sebald é um grande leitor de Borges, a quem sempre elogiava por compreender muito cedo o erro que supôs expulsar a metafísica da filosofia. Porque de fato, diz Sebald, há coisas que não podemos explicar facilmente, e porque, para além do social, faz parte de nossa condição humana, antes mais que agora, manter certa relação com os que nos antecederam. Recordar os mortos é algo que nos distingue da animalidade.

Sou um espião e constante leitor de Sebald, de suas longas caminhadas à Robert Walser, de sua exploração do mundo dos mortos, de suas incursões fantásicas no espaço dos excêntricos. Comentando o caso raro dos poloneses da estação periférica, disse Sebald: "Não são casualidades, mas em alguma parte há uma relação que de quando em quando cintila através de um tecido esgarçado."
                                             (O mal de Montano, Enrique Vila-Matas)

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Apocalipsismos


No filme A Estrada, a evocação do fim parte de onde em Solaris, de Tarkovski, a ilusão de recomeço  surge na submersão do personagem principal na crença em que sua esposa não havia suicidado. Em Tarkovski, pode-se adotar essa catarse desesperada, que não necessita dispor de mais efeitos de convencimento porque o enredo acaba aí, não há mais filme e as cortinas se fecham sobre essa loucura apiedante. O astronauta que se enredou nos sonhos causados pelo planeta ectoplásmico Solaris pode passar toda a eternidade como sempre quis, sem as angústias filosóficas que o acometiam, sem os pesadelos de que a morta lhe aparecia com o rosto carregado de acusações de culpa, sem a realidade de que está anos-luz de qualquer geografia terrestre que lhe seja familiar: sua rendição a Solaris lhe garante em troca voltar à lembrança da tarde em que ele, sua mulher e seu filho se deitam no gramado de sua casa de campo, absorvidos na mais sólida felicidade. O que importa os desdobramentos de seu possível despertar desse sonho?, o que importa se o astronauta não fez outra coisa que ser derrotado uma segunda vez, depois que se desatou de sua resignação ao estoicismo e se lançou nos braços lisérgicos de Solaris?, o que importa se essa fantasia não é senão os momentos iniciais de sua morte? Para a platéia, esse último e definitivo instante não só justifica a vida do astronauta como é o ponto nodal onde se coincidem poderosamente o alívio diante o niilismo da condição da história e a redenção do astronauta, o seu arrebatamento da crueza da existência. Por detrás dessa síncope freudiana onde se desaloja o recalque, há uma compensação estreitamente ligada ao mérito do martírio cristão. O astronauta, que foi voluntário para deixar o planeta Terra, alcança seu momento sublime que o liberta da culpa, da perda, da ausência de sentido; e tanto é maior esse escape quando pensamos que ele não despediu-se em definitivo da Terra, mas das avenidas gigantescas e vazias, e dos silêncios urbanos planificados da União Soviética de Tarkóvski, do protótipo de emancipação social mal realizado que descambou num pesadelo insuportavelmente pesado. Se Tarkovski mostra cenários de escombros e ruínas em filmes como Stalker, em que um depósito de ferro velho se espraia ao longo da margem de um rio florestal, com o propósito de provocar a sensação de "descanso do capitalismo", em Solaris a cena final é o descanso ao comunismo, a rendição em admitir não mais acreditar que o ser humano possa abraçar a Grande Ideia. No filme À Espera de um Milagre, o indío cherokee no corredor da morte diz que o paraíso seria voltar e viver para sempre num momento de sua vida, quando se refugiou com uma moça numa cabana da montanha. Como todo ato de abnegação de superfície enganadora, o astronauta se sacrifica por um mentira egoísta, uma deportação do mundo real.

A Estrada é um negativo da última cena de Solaris mas que avança de forma corajosa para todo o longo discurso apocalíptico a que Tarkóvski alude. O pai e filho de um planeta Terra ominosamente destruído fazem parte dos sobreviventes da espécie humana que purgam o mais antieufemístico experimento filosófico: viver os derradeiros meses de absoluta carência em que sucumbirá a história. Não há alimentos, não há vegetação, não há animais. Existem apenas a peregrinação rumo a lugar nenhum, a paisagem cinzenta onipresente e o canibalismo, contra o qual o pai guarda um revólver com duas balas que deve ser usado contra eles mesmos caso sejam pegos pelos canibais. O pai ensina ao filho que deve colocar a ponta da arma de encontro o queixo e efetuar o disparo. Os conselhos que o pai dá ao filho ao longo do filme são todos dessa lava de sinceridade dura. Muito do desespero de sua mulher o contaminara depois que ela própria vencera suas tentativas de dissuasão e praticara o suicídio. Quando ela clamava para que a deixasse levar o filho com ela, ele, as sobrancelhas arqueadas, as feições maleabilizadas por um incognoscível heroísmo niilista, se dobrava para dentro de si mesmo, negando o pedido e sabendo que não poderia salvar a esposa. Seu filho, ele monologa enquanto atravessa um campo acinzentado por uma morte total e insubtraível, é a forma com que deus fala com ele, se alguma vez deus falara com ele. O impacto congelante do filme é justamente esse, entre todas as desgraças óbvias que são conhecidas dos filmes apocalípticos, a maior é a realidade explícita de que não há mais lugar para a mais inofensiva ilusão. O pai não tem o conforto de se afundar numa fantasia de retorno tarkovskiana. Não há mais a possibilidade desses artifícios de retornos plásticos, de analgésicos psicológicos para aliviar numa sobra de sonho a certeza do fim. Ser o último representante da espécie que detêm um vestígio de luz moral é um fardo sem propósito, algo de uma insuportável loucura. A Estrada seria um filme mais duro ainda de assistir se tivesse caído nas mãos de um Tarkovski moderno e independente que pudesse ter o benefício de olhar a substância do que sobrou das expectativas humanas a partir de um lugar lúcido na América. Quais cores ele teria usado para representar a destruição da paisagem, já que um de seus méritos maiores foi sempre prescindir dos efeitos especiais? Teria esse Tarkóvski usado em substituição à ausência de um técnica cinematográfica caríssima a mesma astúcia sublime que fez em Solaris para representar a solidão extrema de uma sociedade planificada futura, usando longos takes das ruas soviéticas? Ninguém como Tarkovski conseguia traduzir o vazio e o medo interior (ou o medo do vazio) nas filmagens puras da natureza, seja urbana ou os escombros urbanos despejados no campo.

Dos diretores americanos atuais, há uma dupla que detêm o mesmo poderoso talento de Tarkóvski em explorar a mentalidade de derrocada e de trânsito para lugar nenhum do homem moderno. Trata-se dos irmãos Coen, cujo mote sensitivo de seus filmes é o de carregar o espectador de uma sombria premonição que algumas vezes trafega pelo terreno de insinuações kafkianas. Seus estudos do contraste da vida simples com a promiscuidade multitudinária das grandes cidades usa de um moralismo vago mas suficientemente não deletério para a sua arte, no estilo tire suas próprias conclusões e desprovido de qualquer cinismo maniqueísta. O casal imune à doença de assassinatos banais de Fargo, no final do filme em que a policial interpretada por Frances McDormand retorna para o refúgio seguro do seu lar, é mostrado sentado diante a televisão, num laconismo carinhoso mas sem surpresas do amor estabelecido. Nos filmes dos irmãos Coen já não se espera alcançar o grande Outro, os personagens já possuem um gene plenamente adaptado vindo do trabalho de acomodação paulatina das gerações anteriores para se manterem num estado acomodativo inquestionável. Os vilões só querem para si_ só são biologicamente capazes de querer para si_ algum tipo de benefício oferecido pelo pobre horizonte restringido ao mínimo denominador comum da ausência do grande Outro: alguns milhares de dólares, alguma falcatrua que não envolve o apreço das cobiças gigantescas dos gângsters dos filmes noir. São desprovidos de emoções exautadas, tanto de amores furiosos ou ambições furiosas; entram em atribulações apenas pela propensão natural da espécie, mas não por uma convocação demoníaca. Os personagens que tem direito à felicidade morna da não participação são aqueles que, seguindo a máxima pascaliana, não saem de seus quartos para não promoverem o mal. São personagens que não vivem tempos interessantes, e, na norma moderna de um presente perpétuo, refestelam-se no restolho plastificado das grandes emoções, simulam serem cidadãos e seres humanos involuntariamente, reagindo à concepção secreta que trabalham no interior de seus genes, pois não sabem o que na verdade é um ser humano e um cidadão.

Não à toa que um dos maiores filmes dos irmãos Coen veio do casamento com a obra de um escritor sintomático como Cormac McCarthy, o autor do romance que gerou a adaptação de A Estrada. Em Onde os Fracos Não Tem Vez, a adaptação da obra de McCarthy feita pelos irmãos Coen, vemos uma série de personagens automotivos, que são impulsionados a agirem por razão nenhuma. O assassino interpretado por Javier Bardem vai deixando uma fileira de corpos por onde passa, usando um compressor de ar e uma espingarda com silenciador. No meio do filme, um policial oferece a análise do assassino: ele não mata por dinheiro, mas por ser uma máquina inexplicável e compulsiva. O assassino detêm, contudo, um código moral, que usa em duas de suas vítimas para avaliar se o destino consubstanciado no cara ou coroa de uma moeda vai autorizar que elas sejam mortas ou poupadas. Não há uma metafísica, uma transcendência, um universo mental exra-orbitante, ou qualquer espiritualidade no mundo bastante aproximado do real criado pelos irmãos Coen. É um mundo intersticial que subjaz no deserto das grandes ideias, das grandes aspirações, um mundo apaticamente desumorado e regido por uma funcionalidade cega e sem eficiência_ porque não procura eficiência, a eficiência não tem sentido. São comédias criadas para não terem graça, e tragédias feitas para não obterem nenhum impacto trágico. Aí a genialidade dos irmãos Coen: lidar com as emoções aplainadas, o vazio de sentido. Daí que o impacto vem como a inesperada e ensurdecedora explosão da barreira de som quebrada, quando os irmãos Coen sorrateiramente nos manda por cima a moral sintomática, a cobrança subliminar por reação. Não há um grande Outro, ou Ele só surge na inversão indestituível da morte, como em Um Homem Sério, na magnífica cena final, uma das maiores do cinema, em que tudo feito pelo homem do título para escapar de um destino cotidiano é engolido por uma outra solução da qual ele não pode se safar. Ou as cenas gêmeas de Onde os Fracos Não Tem Vez, em que o assassino e o cowboy feridos, cada um em um momento e lugar diferente, perguntam a um adolescente (a nova geração) quanto querem por sua camisa, para que possam esconder o sangue das feridas. Ao cowboy, o adolescente junto com seu grupo, estipulam um preço alto, a visão do sofrimento não motiva qualquer outra reação humanitária ou de pena diante a alteridade. Diante o assassino, um dos adolescentes lhe entrega a camisa e diz que não precisa ser pago, que a camisa lhe será dada  de graça; o assassino não aceita a gentileza, e impõe que o adolescente receba um maço de dinheiro pela camisa. Quando foge, o adolescente sem a camisa e seu colega começam a discutir pelo dinheiro.

Slavoj Zizek diz que a humanidade nesses tempos determinantes em que vigoram diferentes correntes de apocalipsismos, tanto o ecológico, o biopolítico e o do caminho para a total desregulamentação dos mercados, deveria assumir a tentativa de solução de que o grande Outro não existe, e trabalhar na recuperação a partir daí. Aceitar que o fim não está confortavelmente próximo, mas é uma realidade inevitável em franca velocidade_ e trabalhar do futuro para o passado para mudar essa nossa triste condição. Não cogitarmos intimamente que haverá alguma força exterior que nos salvará, que agirá por nós. Não o descrédito existencialista, não um recurso vaidoso sartreano de empolarmos de filosofia niilista e reivindicarmos a supremacia da liberdade humana. Zizek propõe algo de extrema chatice funcional e desprovida de qualquer instigante exercício imagético: a restauração da humanidade feita por nós mesmos, através dos únicos canais utilizáveis que se fazem efetivos, a política, a economia, o controle reducionista direto. Nada de abstrações e lamentos sofismáveis. E cita o que foi dito por um amigo, que nos tempos atuais os poetas são mais importantes que os filósofos e analistas políticos, pois eles oferecem a alucinação que está além da teoria assepsiada pelo filtro de equilíbrio acadêmico. Nisso, a mensagem de Solaris, desatrela-se do propósito político circunscrito à crítica da sociedade planificada da União Soviética e amplia-se para toda a humanidade. Filmes como A Estrada e os filmes dos irmãos Coen já não falam da condição caótica dos Estados Unidos ou de uma nação e um povo específico. Como diz Zizek, o conceito de Marx para o proletariado há muito já se subtraiu dos funcionários escravizados das fábricas alemães e inglesas, e abarca agora todos nós. Todo nós compomos a nova proletarização em nossos redutos grupais onde, aos poucos, a ausência do Estado nos condiciona a uma marginalização onde são empregadas regras internas próprias. A favela vai se tornando o mundo.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Deus ex machina

Anos antes de conhecer minha esposa eu trabalhava como médico veterinário do departamento de patologia e controle de zoonoses, da Defesa Animal do estado. Éramos um grupo de três, consistindo em mais um veterinário e um auxiliar técnico, e viajávamos por todo o estado para coleta de material biológico o qual tínhamos que entregar ao núcleo laboratorial num prazo estipulado, para que lá fizessem os usuais cronogramas de estatísticas sobre raiva, peste suína, febre aftosa, estomatites em geral e uma série de outras doenças acometedoras de animais de granja ou de pastoreio. Nossa especialidade, porém, era a eliminação sistemática de morcegos vampiros, que fazíamos com tão boa vontade (coisa que a maioria das outras equipes se desviava devido às agruras envolvidas) que recebemos a alcunha de Morcegões pelos colegas de serviço. Era mesmo uma ocupação destinada aos porra-loucas, àqueles que não tinham esposas e filhos e nem se importavam em não voltar todas as tardes a uma residência fixa. Os felizes selecionados tinham que ter a disposição de desbravar matas fechadas atrás de cavernas, assim como a condição física de um bogatyr para suportar passar noites ao relento, esperando que uma quantidade suficiente de hematófagos se prendesse pelas asas às redes que estendíamos em torno de currais e outros locais estratégicos. As diárias pagas eram ótimas, mas era o tipo de função em que valia a filosofia compulsória de que dinheiro não é tudo na vida.

Foi lá que conheci meu companheiro de equipe, o Sérgio, um veterinário dez anos mais velho, uma lenda pelas suas extremas contradições. Tinha uma aparência que, sob a total inércia muscular, transmitia o desamparo de uma vítima constante das atribulações do destino, uma cabeça totalmente calva de tartaruga marinha, uns olhos azuis quase cobertos por duas rugas palpebrares acentuando-lhe a miopia, e um corpo esguio desprovido de pêlos conservando a mesma condição impúbere desde a infância até o que deveria ser a sua feitura no seu futuro leito de morte. Contudo, quando se movia e falava_ acontecendo com demasiada frequência_ toda essa primeira impressão era pulverizada, e ele mostrava ser uma bomba de energia e um prolixo humorista que conseguia convergir a atenção de quem estivesse presente para suas narrativas hipnóticas que envolvia todos os assuntos. Parecia um ser sedentário, mas já havia trabalhado em pesquisas na Austrália e em Israel e, bem, estava ali na equipe, o que desvirtuava o conceito. Era um cavalheiro com as mulheres, mas tinha duas ex-esposas e três filhas para as quais pagava pensão, e um talento de radiografar à distância e para os amigos embevecidos quais veterinárias dos cursos semestrais gostavam de praticar sexo oral, quais eram frígidas e quais eram verdadeiras máquinas insaciáveis por debaixo das carinhas inconspícuas de moças comportadas. Fumava não um cigarro atrás do outro, como dizem, mas um único cigarro perpétuo, pois era quase impossível flagar a ligeira pausa em que tirava o tubo de nicotina da boca. De imediato nos demos muito bem, pois naquele universo de músicas sertanejas éramos patinhos feios que adoravam blues, jazz e o rock dos anos clássicos. Mas sua melhor qualidade era uma maestria para a boa vida a qual chegava a extremos da mais perfeita malandragem em disfarçar de trabalho exaustivo o que na verdade eram férias remuneradas, pois nas nossas peregrinações à caça de morcegos ele conseguia favores dos fazendeiros interessados de maneira que hospedávamos em chacáras confortáveis cujos donos lhe entregavam não só as chaves das portas como o direito ao uso de freezers abarrotados de cerveja.

Foi numa chácara dessas_ na verdade um agrupamento de chácaras de alto requinte, pertencente a um grupo empresarial kardecista, conforme me informara o Sérgio_ que ficamos cinco dias, apenas nós três. Enrolávamos as redes em volta dos currais onde estavam os cavalos parasitados, à tardezinha, e pelas três da madrugada fazíamos uma pausa nas conversas acaloradas em torno da churrasqueira e das cervejas para descermos até lá e desenrolar os morcegos que eram apanhados pela armadilha. Lembro que ouvíamos o novo cd do Clapton tocando com B.B.King, presente de uma de suas filhas, quando, enquanto passávamos a pasta vampiricida nas costas dos morcegos, ele me confessara por entre a fumaça do cigarro que os proprietários do lugar eram do mesmo centro espírita que ele frequentava. Não me surpreendera em nada, pois já havia cogitado que por detrás de seus modos dissolutos haveria uma inquirição religiosa. Daí fomos por toda a noite em assuntos espirituias, em que ele intersticiava a suposta seriedade de suas crenças com piadas das quais ríamos até perdermos os fôlegos.

Acho que foi duas semanas depois dessa estadia, quando coletávamos sangue dos suínos de uma granja, que o acidente aconteceu. Foi próximo a uma cidade chamada Faina. Voltávamos do almoço para a granja, e no cruzamento da rodovia um caminhoneiro avançou sem olhar para os lados. Eu freei o carro, virando-o de lado, de forma que a batida pegou pelo lado do passageiro, onde o Sérgio estava sentado. Eu sofri danos mais sérios, quebrando o tornozelo da perna direita e rasgando alguns pontos do rosto acertado pelo vidro espatifado. Mas o Sérgio, assim que saiu do carro e se posicionou em pé ao lado da lataria retorcida, que provocou mais choque. Colocando sua cabeça para baixo, as carnes do rosto ficavam penduradas como um livro segurado pela lombada. Ao nosso companheiro técnico acontecera de quebrar duas costelas, sem consequências. Ficamos internados no hospital da cidade, pois a equipe médica do estado só poderia nos buscar na manhã do outro dia. Um clínico geral costurara a face do Sérgio e os rasgões em minha sobrancelha e na bochecha, e colocara uma tala para imobilizar minha perna. Deixara a recomendação de que futuramente teríamos que nos submeter a uma cirurgia estética de restauração. Durante a noite, o Sérgio aparece em meu quarto numa cadeira de rodas, com o rosto enfaixado. Pela primeira vez o vi sem o cigarro. Disse-me que depois disso iria arranjar uma outra mulher para se amasiar, e me sugeriu que também me quietasse dessa vida de porra-louca. Eu estava deprimido e só queria me lastimar em silêncio ouvindo a chuva cair sobre aquele hospital perdido num povoado desconhecido. O Sérgio talvez havia percebido que a coisa mexera comigo e insistia em me animar. Na certa sabia que subliminarmente eu era muito vaidoso de minha aparência física e aqueles rasgos na cara me faziam imaginar futuras rejeições. Tentou reativar naquela hora nossa conversa sobre os sinais metafísicos das leituras que cada um havia feito de Carlos Castañeda, de como o universo nos manda constantes sinais, nunca se cansa de nos mandar inúmeros e infinitos sinais...

Desistindo, ele freccionou as rodas da cadeira rumo à porta do quarto. Lamentou terem-lhe escondido os cigarros e deve ter mandado os médicos à merda diante o corredor tomado por uma meia luz azulada de deserção. Se voltou para uma última pergunta:

_ Quando você viu o caminhão atravessado na nossa frente, lembra o que você disse? Pois eu lembro: "Meu Deus do céu!". Você gritou "meu Deus do céu!". Se tivesse gritado "puta que pariu", aí sim estaríamos na merda!

Se virou para minha cara eximida de sorriso, e saiu.


segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Kraftwerk


Já há algum tempo eu pensava escrever sobre a banda alemã Kraftwerk, uma das minhas preferidas. Almejava falar sobre as subliminariedades da música dessa banda, sua ironia, seu modo de brincar com a própria resignação diante a inevitabilidade dos efeitos colaterais da tecnologia, mas ia adiando por uma série de fatores. Um deles é que não quero recair mais uma vez na crítica baumaniana contra o "moderno", e outro é que algumas constatações adquiridas através de conversas tanto com amigos reais quanto virtuais me deixam em dúvida se a apreensão da vertente de ironia muito fina promovida pelo Kraftwerk é uma característica facilmente conseguida pelos ouvintes atuais. Posso ser criticado de elitismo de gosto ao afirmar que certos nuances significativos do humor e da crítica ficaram atrofiados com o correr dos anos, o que talvez seja mesmo um preconceito meu ao me espantar com o fato de algumas pessoas que viram a apresentação do Kraftwerk no Brasil (quando eles fizeram os shows de abertura do Radiohead) não saíram com uma boa opinião sobre a banda. O Kraftwerk foi um ícone para a minha geração_ para os estudantes da década de 1980 que hoje beiram os quarenta_, e essa forte presença formadora se conserva no mesmo alto grau de vinte anos atrás quanto a uma das maneiras cognitivas de vermos o mundo moderno que é uma das heranças preciosas dos irmãos Hutter, de Schneider e Schult: com um lirismo e um romantismo propositalmente piegas e retrógrado, com um humor decantado, que se resvala no conformismo. Uma das pessoas com quem falei sobre o show afirmou que os achou chatos, demonstrou que não entendeu bem o que há por detrás do minimalismo dançante das músicas (no mundo atual, já dizia Cortázar, o que realmente importa é o que subjaz atrás das coisas). Fiz uma coletânea deles e dei de presente a um amigo, mas esse só a escutou por educação ao meu lado, e nunca mais. De forma que Kraftwerk se torna aos poucos um dos meus tesouros secretos, que mais vale não os expor ao mundo circundante para não provocar estranhamento. Mas hoje me deparei com um post do Marcos Donizetti, do blog E Eu com Isso, que trata do Kraftwerk da mesma forma apaixonada, e em resposta a uma crítica depreciativa do Diogo Mainard. O Mainard foi ao show da banda no Brasil, e escreveu:

"Acompanhei seus primeiros discos. Autobahn e Radio-Activity. Em 1977, quando saiu Trans-Europe Express, eu já desistira do grupo. Tinha 15 anos. Era velho demais. Quase a idade de Mozart em 1775. Naquele tempo, o Kraftwerk evocava o futuro. Mas era uma imagem do futuro de 30 anos atrás. Ridiculamente datada. Embolorada. Caduca. Com seus uniformes aderentes, com sua imobilidade no palco, com suas letras afásicas, com seus arranjos elementares, com sua batida narcótica, com sua tecnologia rudimentar, o futurismo caipira do Kraftwerk era igual ao do seriado de TV com marionetes “Os Thunderbirds”.

Nada surpreendente partindo de quem parte. O Marcos Donizetti já coloca os devidos pingos nos is , aludindo a outro interessante blog que responde muito acima do nível do Mainard, quanto a uma defesa do Kraftwerk, mencionando os erros crassos sobre as datas cronológicas do lançamento dos álbuns da banda e outros detalhes que revelam o que todos já sabemos sobre Mainard: ou ele sofre de uma esclerose mental ou é apenas o leviano cheio de cacoetes e desinteressante que possui a estapafurdíce de usar a classe alta como distinção de cultura elevada. Mainard não entendeu absolutamente nada do Kraftwerk. O Kraftwerk não precisa de defensores, ainda mais contra quem, mas, assim como Donizetti e o Mário do blog Different Thinker fizeram, é bom brincar sobre os ataques de botinha da Gucci do Mainard. 

Antoine Badiou deu um prognóstico sobre a sociedade moderna, dizendo que a subjetividade das formas de dominação está tão cada vez mais avançada na mistura com as idiossincrasias do universo urbano atual, de forma que os poetas são mais importantes para compreendermos o que se passa na política, na economia e na velha Questão Social, do que os filósofos e analistas políticos. A poesia fria, concisa, sincopada, desprotegidamente infantil do Kraftwerk, serve como um tratado sobre as mentalidades na época em que as máquinas e o ciber-espaço se tornam o cenário aparentemente definitivo para o qual a humanidade vai se mudando a um rítmo acelerado. E o Kraftwerk foi um precursor dos sons do niilismo que vem sendo desenvolvido por bandas como Radiohead, Sigur Rós, Sonic Youth, através dos primeiros álbuns minimalistas da banda (que não são os citados pelo Mainard), álbuns totalmente instrumentais que  prefiguram a atmosfera cáustica de rendição que se vê nos principais álbuns da banda nos anos 70. Mesmo na também excelente banda anterior da qual partiram parte dos integrantes do Kraftwerk, a Neu!, vemos as atenas de percepção da eletricidade alienizante, ultra-veloz, que não permite que a atenção se firme no mesmo objeto por mais que rápidos segundos, nas longas sessões rítmicas de 10 minutos em que qualquer forma de canção é abolida e substituida por percussão e notas de teclado estendidas.

O Kraftwerk, contudo, é o pai distante de todos os filhos que formam a música pop dos dias de hoje. Por mais que as bandas o celebrem, como é o caso da versão do U2 para Neon Lights, o riff copiado pelo Coldplay, a apropriação de solos sampliados por bandas de rap americanas, a forma de adoração do Radiohead em convidá-los para a abertura de seus shows, o Kraftwerk, a título de não abraçar a ruína cenográfica exercitada pelas guitarras tocadas com arco de violino, o uso do Teremim e as letras apocalípticas empregadas por essas bandas, traça um retrato dos efeitos colaterais da tecnologia onipresente com uma imparcialidade lúcida, que simula o mais perfeito conformismo. Como um crítico disse certa vez da obra de Samuel Beckett: ela é tão pessimista e não deixa vislumbrar a mínima fagulha de alívio, que acaba por oferecer chances ainda não possíveis de redenção; a música do Kraftwerk, adotando essa inversão beckettiana, aceita de maneira tão aparentemente saudável a imersão total nos computadores, na robótica, nos feixes de laser da transmissão de informações, que seu deslumbramento infantil diante uma calculadora, seu retardarismo cerebral frente os milagres dos campos atravessados por trens expressos, são tão purificados de reação que se tornam eles mesmos a forma mais impactante de resistência. Enquanto as bandas dos sons da ruína retiram o humano de suas músicas, numa mistura de stream of consciousness desindividualizado e coletivo, o Kraftwerk coloca um protótipo profundamente humano como sujeito de suas músicas, sujeitos que são tão antípodas da máquina que provocam na mente do ouvinte a sensação de estar vendo-lhes os olhos arregalados, cheios de um espiritual arrebatamento. Enquanto o indivíduo do Radiohead é o último a habitar a Terra, antes da catástrofe, o indivíduo do Kraftwerk é o primeiro homem, em seu estágio infantil diante o Advento, diante o paraíso tecnológico. Por exemplo, na sublime música Pocket Calculator, a letra não passa de uma constrangedora referência de como o personagem manipula sua calculadora de bolso:

I'm the operator with my pocket calculator
I'm the operator with my pocket calculator
I am adding and subtracting
I'm controlling and composing
I'm the operator with my pocket calculator
I'm the operator with my pocket calculator

I am adding and subtracting
I'm controlling and composing
By pressing down a special key, it plays a little melody
By pressing down a special key, it plays a little melody

I'm the operator with my pocket calculator
I'm the operator with my pocket calculator


( Eu sou o operador com minha calculadora de bolso
Eu sou o operador com minha calculadora de bolso
Eu adiciono e subtraio
Eu controlo e componho
Eu sou o operador com minha calculadora de bolso
Eu sou o operador com minha calculadora de bolso

Eu adiciono e subtraio
Eu controlo e componho
Apertando uma tecla especial, ela toca uma pequena melodia
Apertando uma tecla especial, ela toca uma pequena melodia

Eu sou o operador com minha calculadora de bolso
Eu sou o operador com minha calculadora de bolso)



E a magia reside nos mínimos detalhes: quando ele aperta uma tecla especial, a calculadora realmente oferece uma pequena melodia, que a ouvimos em sua forma mais simples e doce. E quem ouviu Neon Lights sabe do que estou falando, essa que é uma das músicas mais belas dos últimos 30 anos, uma perfeita canção de amor que oculta por completo qualquer amor ou alvo amado, mas que através das pulsões das luzes de neon que perfaz cada um de seus oito minutos de duração, vemos as ruas noturnas, o céu invisibilizado pela cidade feita de luz, e a voz fraca, desprotegida, do indivíduo que anda pela solidão magnânima de um mundo sintético que só não o devora em sua pequinez por ser ele que lhe dá referencial para existir, já que é o único dos dois que realmente possui espírito. A angústia nessa música que retrata algo semelhante à felicidade vazia de uma criança adquirindo lucidez numa noite de natal num shopping explode no solo em que é como a entrada por dentro da cintilância do neon, que envolve e submerge tudo. É realmente incrível que uma música com essa superfície seja tão tocante e tão sentimental de se ouvir.

Tem também a sinfonia eletrônica Autobahn, que descreve por sons uma viagem pelas grandes pistas de asfalto da Alemanha moderna, com os amortecedores passando pelos grooves de atenção, as faixas de sinalização atravessando em velocidade hipnótica por debaixo do carro, o anoitecer visto pelo parabrisa, os faróis batendo no rosto, vindos da pista contrária, e os belíssimos solos de guitarra que se consubstanciam no teclado que revelam a mesma criança kraftwerkiana se embevecendo com a natureza nas margens da rodovia. E o acréscimo crítico subliminar de que era uma ode ao carro em plena crise do petróleo da década de 1970. Tem o sombrio álbum Radio-Activity, um experimento de sons que se inicia com uma peça de 7 minutos que congela a circulação com as emissões de rádio que se assemelham a um código morse premonitório, dizendo na mesma cadência de cantiga de rodas costumeira: Radioactivity Is in the air for you and me.

A maneira do Kraftwerk em ser à frente do seu tempo_ que fatalmente não foi entendida pelo colunista daquele hebdomadário_ já estava estabelecida desde a visão que se tinha dele os ouvintes da década de 1970: uma banda retrógrada, com terninhos propositalmente idiotas, com uma posição de caipiras na imobilidade de seus integrantes nas performances ao vivo, com muito humor e uma capacidade adstringente de não se levarem e de não serem levados a sério. E, astutamente, nisso residia a sua suprema força.



sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O Modo como Vivemos Hoje

 
"Em épocas recentes, como nos anos 1970, a ideia de que o objetivo da vida era ficar rico e que o governo existia para facilitar isso seria ridicularizada não apenas pelos críticos tradicionais do capitalismo como também por alguns de seus defensores mais convictos. A indiferença relativa pela riqueza em si se disseminou na época do pós-guerra. Uma pesquisa entre estudantes ingleses realizada em 1949 mostrou que quanto mais inteligente o estudante fosse, mais tendência tinha a escolher uma carreira interessante, com salários razoáveis, em vez de um emprego que simplesmente lhe pagaria bem. Os estudantes e universitários de hoje conseguem imaginar poucas opções além de buscar um emprego lucrativo.

Por onde devemos começar para corrigir a criação de uma geração obcecada pela busca da riqueza material e indiferente ao resto? Talvez seja preciso começar lembrando a nós mesmos e nossos filhos de que nem sempre foi assim. Pensar "economisticamente", como temos feito nos últimos trinta anos, não é intrínseco aos seres humanos. Houve um tempo em que organizávamos nossas vidas de maneira diferente."
                                                            
                                                                            O Mal Ronda a Terra, Tony Judt


quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Algo Próximo a Intimidade

Ontem esse blog completou um ano. Só fui descobrir isso hoje, por coincidência. Estou lendo o último livro de Tony Judt, "O Mal Ronda a Terra", o que me remeteu ao primeiro post que fiz para o blog e que é, aliás, o texto que mais gosto. Como comemoração ou lembrança ou sei lá, republico esse primeiro post. Foi a morte de Judt que me fez, depois de dois anos sendo comentarista ranheta no blog do Milton Ribeiro, abrir esse site. Mas a razão principal é que a morte de Judt foi uma catarse para que eu desabafasse aqui a enorme tensão e desespero que me acometia na época. Foram seis meses, desde que os prognósticos médicos revelaram as sombrias chances de que minha esposa chegasse com sucesso ao término da gravidez, em que tudo foi pesado, premonitório, tristíssimo. Nesse dia que escrevi o que segue abaixo eu estava justamente numa das esquinas da mais terrível desilusão quanto ao futuro. O texto esconde mais sentimentos do que revela. O livro de Judt, contudo, é um sinal do resultado maravilhoso a que todos esses meses alcançou: o dia mais feliz da minha vida, 01 de outubro, o dia do nascimento da Júlia. Judt sofria as agruras tremendas de sua doença terminal quando ditou esse livro para um grupo de amigos. Apesar do tema apocalíptico, "O Mal Ronda a Terra" aponta para várias direções nas quais a humanidade pode ainda se salvar e se justificar.


Eu estava na livraria Cultura quando me veio a notícia da sua morte. De imediato não reconheci a figura da foto que indicava o morto, seu crânio liso completamente calvo, seu olhar que me parecia guardar ainda segredos de sedução cuja imagem de misantropia que lhe impingiram a imprensa mundial tornava improvável qualquer outro traço de personalidade que não fosse a do contestador supercerebral, o revisionista implacável.Por debaixo do terno fino, porém, fazia-se perceber a firmeza muscular de um lutador de jiu-jitso, que não sei se realmente o fora, mas que suas declarações de saúde, as longas caminhadas e a esnobe força taurina, dava a impressão que sairia bem com um dos da família Gracie no tatame. Quando li na Carta Capital, então, as várias linhas dedicadas ao elogio de suas conquistas intelectuais e de até onde alcançara a antipatia de sua pouca importância à opinião massificada, minha memória antecipara a averiguação de quem era o senhor da foto. No meio do círculo miúdo de leitores na revistaria da loja, eu disse em voz alta: porra, morreu o Tony Judt! No meu histórico de escritores mortos, nunca me acontecera até então perder o escritor durante a leitura. Estou em menos da metade de sua grande obra, "Pós-Guerra", e não deixa de ser uma espécie de orfandade saber que as próximas quinhentas páginas já não contam com a possibilidade da interferência interativa do autor, que mudaria alguma ideia ou opinião circunstancial nas futuras edições da obra. Acabara a latência por detrás das palavras e tudo agora se solidificara numa proeza pela qual seus inúmeros detratores esperarão desgastar o verniz da morte para criticar acirradamente o que ele escrevera em definitivo.

Não havia lugar mais sintomático da tristeza que me causara a notícia da morte de Judt do que um shopping center. Não há um lugar mais apropriado para se achar que é um mero exagero, e um isolamento esnobe, lamentar sinceramente que tenha morrido alguém que só existira num tipo de vivência interna, alguém que adotara, no máximo, uma intimidade cuja vida dependia apenas da voz que meu cérebro conferira às suas palavras. Era como se entristecer com a morte de Homer Simpson. Ou como as lágrimas não de todo poupadas do constrangimento quando aquelas pétalas caídas sobre Macondo decretara o luto a José Arcádio Buendia. E era tanto maior essa auto-averiguação de uma tendente falsidade quando, na fila do caixa, não parecia que minha dor (dor??) era mais genuína e tinha maior direito à legitimidade do que os velhos costumes exibicionistas que se vê em uma livraria, num domingo lotado em que do lado de fora daquela babel do consumo havia tendas gigantescas, com palco e carros de som alimentando uma quantidade multicolorida de pessoas vestidas com abadás. Os semblantes impávidos diante os manuais de direito; as conversas em voz alta não de todo indiferentes aos demais passantes sobre o melhor livro especializado em câncer; uma distinta senhora que falava com um português impecável à vendedora, anunciando ter lido de tudo de Orhan Pamuk. Eu sou vigilante demais para cair nessas imposturas, mesmo que perfeitamente inocentes, para ter me deixado ao livre balanço do choque que a morte de Judt me causara. Levo à sério aquela prédiga denunciadora do faresismo para ficar orando em praça pública, mostrando minha penitência a todos os donatários da velha colônia. O "Crime e Castigo", da editora 34, que segurava na fila, tinha a capa voltada para mim. Ter a tradução do Raskolnikov do Paulo Bezerra nas mãos envolvia a mesma fidelidade romântica de sair com a garota mais bonita do colégio não para confirmar a súbita ascendência social que essa sorte estupenda trás, mas para dar o livre curso da possibilidade de um amor sincero a tudo de delicadamente autêntico e secreto que há por debaixo daqueles exorbitantes atributos corporais.

Só conheço Judt há três meses, quando li "Reflexões sobre um Século Esquecido". A sua aparência de judeu férreo, trabalhador invergável, transparece em cada frase desse livro. Amós Óz certa vez fez um paralelo elucidativo entre o leitor atento e o leitor leviano. O leitor leviano vê em Nabokov o pedófilo enrustido, em Philip Roth o masturbador edipiano, em Anthony Burguess o homossexual lascivo; procura apenas os detalhes que ele possa tornar visivelmente retumbantes em uma obra complexa que oferece muito mais. De uma manifestação espiritual, o leitor leviano aproveita à sua maneira apenas os miasmas que possam divertir a carne mimadamente ofendida. O leitor atento, claro, é o oposto. Tony Judt tem uma série de apreciadores, mas também circundam em torno dele profissionais acadêmicos, políticos e da imprensa, comprometidos com várias causas particulares e cargos de ofício para serem seus denegridores incansáveis. Insistem , mal intencionados, em verem nele um detrator inconsequente.

 Em "Reflexões", realmente, Judt deixa pouquíssimas instituções e entidades em pé. Alguns são óbvios candidatos perenes à reavalição de suas importâncias históricas, como Kissinger, Nixon, Toni Blair, Margaret Thatcher, Kennedy. Outros, contudo, ainda são baluartes com elevada segurança para que alguém se aproxime sem fazer soar um alarme. E são estes que a proposital má interpretação de apanagiados de diversas vertentes do poder quer confeccionar uma imagem de irascividade iconoclasta em Judt. Pois dizer que Hobsbawn, apesar de confirmadamente ser um grande escritor e o maior historiador do século, é levianamente omisso em seu trabalho historiográfico sobre os crimes dos regimes de esquerda, não é descartar a importância de um intelectual do gabarito do alexandrino. Afirmar que Hannah Arendt não é uma filósofa, na acepção consistente e tradicional do termo, não só condiz com o que a própria Arendt dizia, como também, em desenvolvimento analítico, reafirma a vocação dessa pensadora em ser desatreladamente independente. Em contraposição, Judt recupera a afeição global de um Albert Camus injustamente enroldado à figura de Sartre, para dar-lhe por direito seu lugar entre os maiores narradores do século XX.

Mas são os fortes textos políticos que revelam o temor gargulesco que as visões instituídas sentem por Judt. Sobre Israel, ele desmascara o golpe de astúcia que esse estado cometeu na guerra dos seis dias, um tiro de aposta na apiedante visão de vítimas eternas da Shoá que saiu pela culatra e trouxe o decadentismo de uma nova imagem de assassinos sem restrições aos líderes israelitas. Sobre a auto-imagem alienante que os EUA fazem de si mesmos, Judt mostra o quanto a historiografia norte-americana sobre a guerra fria é ufanista e cheia dos ressábios imperialistas, desconsiderando a verdade e os demais países envolvidos. Judt faz, tanto no prólogo quanto no último capítulo, uma síntese da dominação neoliberal, do emburrecimento progressivo da espécie humana, da falta de oposição consistente ao fim do estado previdênciário e às garantias contra uma realidade cada vez mais presente em que as empresas acabrestam o cotidiano dos homens. Nisso a explicação do título de século esquecido, na repetição criminosamente ` inocente` dos erros do passado recente.

Na fila do shopping, lembrei-me de uma crença cósmica de um amigo que acredita em um universo espiritual inapreensível, chamado Dragões e liderado pelo espírito pérfido de um Savonarola desencarnado, cujo único propósito é a conspiração contra o desenvolvimento da espécie humana.  Talvez seja a imponência novamente esguia do padre dominicano que tenha determinado aos nossos algozes invisíveis que em dez anos tenha morrido Edward Said, Bolaño, Sebald e Tony Judt. Talvez esse número esporádico e cada vez mais reduzido de representantes capazes de nos retirar da bestialidade, enviados por uma contra-força cansada, seja realmente preocupante para toda uma galáxia de funcionários treinados para a manutenção de nosso atraso. Mas interrompi essa elogiosa divagação para atender ao pedido de uma elegante mulher de lhe passar a Playboy com a filha do Fábio Júnior na capa.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Plumbismo

De visita a um amigo, este circunavega o assunto até chegarmos a seu interesse principal dos últimos anos: uma antiga teoria da década de 1970, que diz que a espécie humana tornou-se excessivamente violenta pela contaminação com o chumbo. Aponta fatos precisos, estatísticas de assassinatos, aumento de internações de pacientes em manicômios, tudo ocorrido desde a revolução industrial e das grandes fábricas de Manchester, jogando toneladas de fumaça do chumbo fundido na atmosfera. Chumbo nos alimentos, em insumos agrícolas, e a absurda quantidade de chumbo utilizado nos produtos para as guerras. Esse amigo, advogado aposentado e ex-presidente da OAB, explica excepcionalmente bem para um rábula as consequências neurológicas dessa intoxicação. A encefalopatia ocasionada altera o comportamento, emburrece, e faz com que as pessoas adotem atitudes violentas. Lembro-me, então, que esse distinto senhor que me esclarece foi, até pouco tempo, um dos homens mais temidos do município. Não podia-se ficar a seu lado com completa desenvoltura. Seu andar ereto, sua barba aparada com esmero, sua forma em não cumprimentar sem que antes se lhe cumprimentassem, eram tidos como direito legítimo de uma personagem tão cerebralmente capaz. Um dia, enlameado do chapéu às botas pelo trato em seu jardim, seu cão o atacou por não reconhecê-lo. Passou muito tempo internado num hospital, e os médicos realizaram-lhe um enxerto muscular no braço direito. Desde então tornou-se um homem substancialmente diferente. A acepção unânime da cidade tendia a ver nisso a descida para a velhice. A doença o debilitara. Sua esposa, que há tempos dera aula na universidade para mim, diz que agora ele obtinha paciência para coisas que outrora o levavam a acessos de fúria. E vive obcecado, me disse a mulher, por essa teoria imerecidamente esquecida, de que todos, sem exceção, somos intoxicados pelo excesso de chumbo.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Homo ridens


Por natureza e por pressão das circunstâncias sempre fui um cara muito bem humorado. Minha esposa diz que eu excedo, muitas vezes. Gosta de contar às amigas fatos isolados que dão um nó na cabeça das coitadas para imaginar alguma graça por detrás da minha aparência temível. Seu preferido foi um dia que fomos comemorar nossa data de casamento em um restaurante italiano, em que comprei um vinho do porto e entrei na frente dela, que levava a garrafa, e fui direto ao garçom perguntar: essa moça pode entrar com essa garrafa? Na juventude passava horas inventando piadas de gago para antecipar-me aos colegas. O humor como sobrevivência. Quando trabalhava num cartório me impus um dia do começo ao fim de estóico humor para aguentar o tédio, e na primeira hora, quando caminhava para o trabalho todo fornido sob a pressão de me manter leve, um bezerro que estava na gaiola de uma caminhoneta estacionada (que desde a esquina distante vinha me encarando em desafio) me taca uma bostada na cara assim que passo por ele. Havia um sem número de pessoas sentadas em frente à casa, e todos caíram na gargalhada. Eu, com o firme propósito na cabeça, fiz que nem foi comigo, a bosta verde lustrosa e de uma beleza surrealista escorrendo pelo meu pescoço até a camisa. Entrei no cartório, cumprimentei os colegas, me juntei ao grupinho do café dividindo as impressões do fim de semana, todos boquiabertos e se entreolhando espantados sem dizer nada, e eu rindo e sendo o mais cordial possível, com aquela excrescência secando na cara. O humor sempre me pareceu assim, uma região solitária, onde você assume a coragem de se revelar por inteiro sem medo: você não quer competir porque observa tudo de uma altura que dá a devida medida ridícula das coisas.

domingo, 14 de agosto de 2011

Alex Ross, Radiohead e ebooks

Alex Ross é bem mais que um jornalista que escreve de forma informal sobre música, como as resenhas da imprensa nacional querem passar, e como opinam os puristas sobre a possível superficialidade do autor ao tratar da música clássica. Desde O Resto É Ruído, vem-se dividindo a aceitação de Ross entre os que gostam e os que o tratam com esnobe indiferença, sendo a primeira categoria afetada pelos maneirismos de leitores de revistas de música que o acham bom por ele ter uma escrita leve a aprazível e não oferecer dificuldades em tempos de informações tão imediatas, e a segunda denuncia sua impostura ao ficar transparente que o desprezam para enaltecer suas próprias qualidades de entendidos. Em seu último livro lançado por aqui, Escuta , fica um pouco mais difícil sustentar sua medianidade. São 20 textos coletados das contribuições de Ross para a revista New Yorker que mostram que, além de sua capacidade de demonstrar um entendimento estético, histórico e técnico sobre todos os tipos de música, o cara escreve bem pra caralho! ; há uma desenvoltura inebriante em ensaios como o que Ross acompanha uma série de shows de Bob Dylan por festas folclóricas e estádios interioranos dos Estados Unidos, e sobre suas impressões sobre a turnê do Radiohead no lançamento de Kid A, que não ficam por dever em nada à sofisticação do jornalismo literário de gente como Gay Talese e Tom Wolfe. No ensaio sobre Kurt Cobain, em que ele não poupa sua admiração ao antológico álbum Nevermind, Ross reafirma seu talento de escritor. Escreve ele: "A raiva que sentimos diante dos suicídios talvez seja motivada por amor, mas é o amor que vem da posse, não da compaixão." Mas o melhor mesmo é perceber que o prazer de ler alguém que conhece de tudo da música e não cai no cansativo preciosismo de sobrepor um gênero musical sobre outro se revela na rapidez com que o tempo passa quando nos embrenhamos na leitura. O livro me foi entregue na sexta-feira, e já estou por chegar ao final de suas 400 páginas.

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Fui um dos primeiros conhecedores do trabalho do Radiohead aqui no Brasil. Tenho muito orgulho disso. Ninguém falava dos caras, eles não apareciam na mídia, sua música não passava nas rádios e nem na MTV. Um dia do ano de 1998, entrei numa loja de discos de um shopping center e perguntei ao vendedor se ele conhecia de quem era a música sublime que passava numa propaganda de televisão em que dois garotinhos brincavam num carrossel. Era uma propaganda tocante, um dos menininhos tinha síndrome de Down, e o sentido era que ele era tão normal quanto o outro. A música era arrebatadora, parava-se tudo que se estava fazendo para ouví-la, era inigualável por sua delicadeza melódica e pela voz sofrida mas infinitamente meiga que a cantava, e o mais forte era o contraste do que podia-se apreender depois da tradução da letra: falava sobre cirurgias obstetras e  homens de borracha. O vendedor sorriu e foi direto à prateleira, como se essa consulta lhe fosse algo rotineiro, e retirou os três cd´s do Radiohead. A música, ele disse, é essa que está no segundo cd, e se chama Fake Plastic Trees. Foi algo engraçado, pois comprei apenas esse segundo cd, como um test-drive; era uma noite de chuva, e recordo que mal abria o shopping no outro dia, lá estava eu ansioso para adquirir os outros dois discos. Hoje eles são o que são, mas eu acompanhei já como fã a escalada deles ao topo de músicos mundialmente conceituados. Quando lançaram Kid A, fiz uma viagem de trezentos quilômetros até a loja mais próxima para comprar o álbum (compras pela net? Não existiam como hoje). No livro de Ross, Thom Yorke declara que sempre foi vítima de bullying na escola e universidade. Consideravam-no uma espécie de corcunda com seu copo mirrado e a paralisia de nascença de seu olho esquerdo. O ensaio de Ross mostra as brigas ferrenhas da banda contra o mercado fonográfico, o que acabou descambando na atitude inédita de disponibilizarem seus discos, a partir de In Rainbows, pela internet, para que se pague por eles o preço que fôr, ou nenhum preço; mostra também o quanto a banda é intelectualizada e culta, e o quanto promovem em seus shows os músicos sem lugar na mídia, como o Sigur Rós e o Autechre.
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Vejo num programa de televisão que só nos Estados Unidos, o mercado de livros digitais para tablets faturou no início desse ano 90 milhões de dólares, superando as vendas dos livros de bolso de papel. Espero para ver a matéria completa após os comerciais, meio que estarrecido com o advento estranho desse milagre, e eis que a voz monocórdia da repórter aparece fazendo fundo às imagens de livros infantis coloridos nas telinhas dos tablets. Uma mãozinha acaricia a tela e uma espécie de círculo de luz translúcido voa por cima das cabeças dos grilos, coelhinhos e o típico casal de crianças que são os personagens dessas histórias. Imagino como o sinergismo entre imagens em movimento e texto vai evoluir nos próximos modelos de tablets, Kindles e diabo-a-quatro dessa tecnologia, e como isso vai se adaptar à concentração necessária para a leitura. Está-se lendo, por exemplo, Moby Dick, e o leitor terá uma série de ferramentas para suavizar o peso da leitura, como anagramas ultra-sofisticados em que o capitão Ahab aparece com a cara de Jack Nicholson a caráter de marinheiro desleixado oitocentista vociferando na tela, e a baleia branca, terrível através dos óculos de 3D, saltando de encontro ao rosto do leitor, de maneira que haverão comunidades no Facebook para louvar o quanto se pode sentir verdadeiramente os respingos de água salgada na pele. Os poderes da imaginação estarão restringidos a um grupo de apreciadores persistentes e retrógrados, mas que garantirão a sobrevivência do livro impresso. Seremos, nós os verdadeiros leitores, tão pomposos e devotos como os tabaguistas e os enólogos.

sábado, 13 de agosto de 2011

O Esquecimento Perfeito

Lembro-me que no final do mês enfrentei a fila de banco para retirar o minguado salário de professor substituto, e parti eufórico para a livraria no outro canto da cidade. Quando a moça do caixa contou o dinheiro que lhe entreguei para poder levar o livro que haviam me reservado, anunciou faltar o equivalente hoje a uns 5 reais. Voltei correndo ao banco antes que acabasse o expediente e confrontei o funcionário, que fechou o caixa e depois de uns dez minutos de balanço confirmou o erro e me passou o restante do dinheiro. Às seis horas as moças me esperavam ainda à porta da livraria e eu, suado, pude pegar de vez O Don Silencioso, de Mikhail Sholokov. Eu tinha uns 22 anos e esperava reaver toda a maravilha dos grandes russos com aquele volume de 500 páginas, e pelo mês de férias da faculdade e das desgastantes aulas de substituição, o devorei sendo atendido em todas as minhas expectativas. Era uma história que abarcava a saga de algumas famílias, desde os tempos feudais das extensas pradarias do Don até a formação do estado soviético. Era o Tolstoi do século XX, como dizia um crítico na contracapa, cheio de vigor, de juventude, de sabedoria. Depois achei um livrinho de contos do autor, e também me deixei maravilhar pelas aventuras de um bom garoto de aldeia que tem que atravessar milhares de milhas para anunciar ao povo a advento feliz de que Lênin chegava. Ao final da viagem, deitei a cabeça no travesseiro com o mesmo sentimento de orgulho pelo dever cumprido que o bom menino sentiu, ao retornar à simples casa dos pais camponeses.

Convido a digitarem o nome de Mikhail Sholokov no Google. Convido a teclarem depois a seleção de imagens. Viram? O mais perfeito esquecimento! Uma descoberta notável que pode ser útil nas conversas entre amigos letrados quando surgir o tópico "qual o escritor mais esquecido?". Se acharem uma foto de Sholokov no Google, por favor, me avisem, para que eu possa colocar nesse post. Na procura rápida que acabo de fazer, não achei nem o link da wikipédia, o que é assombroso. Pode-se encontrar de tudo no Google, do agricultor inglês medieval Jethro Tull à biografia completa do Bandido da Luz Vermelha, mas não se acha quase nada sobre Mikhail Sholokov. Só achei essa foto que condiz com o desaparecimento asséptico completo, por sua capa horrível e os sinais evidentes de uma última e distante edição. Não se publica mais Sholokov, apesar de ter ganho o Nobel e ter sido declarado pelo partido soviético como o maior e mais representativo romancista da Rússia de meados do século XX (ou, mais apropriadamente, por esses dois motivos). Não sei se é justo ou não. Não sei se, com o passar do tempo, quando se desgastar o peso por um dos maiores fracassos políticos da história, Sholokov irá voltar, purificado e justificado, como um grande escritor. Só sei que me rendeu o deleite verdadeiro da boa leitura, mas isso também foi há muito tempo, e, por mais que peleje, não me recordo muito além da história do garotinho mensageiro.

P.S.: Tá bom, o Google é infalível. Achei.


sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Philip Roth _ A Busca pelo Pertencimento

Philip Roth, por detrás de seus temas centrais de incompatibilidade intelectual aos padrões de conduta e poder da América, e por detrás dos seus combates anárquico-sexuais pós-freudianos ao puritanismo, é o mais improvável dos escritores estadunidenses. Graças a essa casca que Roth tem um caráter primal de afastar possíveis leitores fora dos EUA, por estes caírem de maneira fácil na crença de tratá-lo como o artista americano padrão do fim do século, que simula reacionarismo auto-crítico através de sofisticados jogos estéticos mas chafurda cheio de gratidão na vida imperial da nação privilegiada. Mas uma leitura mais apurada de Roth revela o que eu disse acima: ele não se encaixa em nenhuma das classes distinguidoras do Autor Americano, apesar de todos os símbolos editoriais e da imprensa reforçarem que ele, mais do que ninguém, representa o Grande Romance Americano. Mesmo autores de obras declaradamente disjuntivas dos temas fundamentais da literatura daquela nação, como Thomas Pynchon e Foster Wallace, apresentam na própria contradição o vínculo inerente formalizado na acepção de contracultura, de usuários do lixo cultural despejado pela televisão, pela internet e por outros veículos da midia corporativa como matéria prima de suas produções. Quem se aprofunda nos romances eróticos de Roth, como Complexo de Portnoy e O Teatro de Sabbath, percebe que ele não segue minimamente os requisitos impostos pelo costume dos estimuladores sensuais à lá Henry Miller de passarem a mensagem legítima entremeando-a aos apelos de falar ao "pedaço de chumbo com asas"; nenhum leitor de Roth fica sexualmente excitado com suas descrições sexuais; suas musas não são apetecíveis a figurarem nas descrições testosterônicas de Miller como as que vemos em Trópico de Câncer, pois são garotas gordas, ou mulheres de meia-idade flagradas pela imaginação dos maridos que não a suportam em pleno ato de uma masturbação desesperada. Os heróis para os quais estão destinados os esplendores esportivos das mais lúbricas proezas copuladoras são homens degradados em todos os graus da experiência: desempregados às margens da mendicância, professores universitários caídos em desgraça, neurastênicos estóicos que sobreviverão ao câncer na próstata, e o arquétipo do filho da mãe judia ultra-castradora. Não são, pois, o estreante a gênio exilado em Paris e esbanjando saúde por todos os poros, dos romances de Miller. À semelhança de Lolita, os romances eróticos de Roth não falam de sexo; o sexo é o canal filosófico de contato com profundas ondas de rejeição que transitam na educação familiar de pais de classe média derrotados, de alcoólatras que em nada se parecem com as promissoras fotos da juventude, e refugiados nas mais excêntricas posturas de aberração contra o formalismo social. O sexo em Portnoy ainda mantêm a frescura dispensada das fortes ondas de desencanto do Roth tardio, com sua aproximação farsesca com o universo freudiano só para debochar dele. A própria fixação de Portnoy ao sexo solitário, suas arrojadas elucubrações em praticar o onanismo em todos os locais e com os mais estranhos objetos (como masturbar-se numa viagem de ônibus, e usando-se um fígado de boi), mostra que a pureza contextual de um romance erótico não funciona muito quando a maior parte dele se centra nas práticas individualistas. É fácil então, à par de uma leitura mais dedicada, perceber que Roth não manteve nenhuma das promessas do Grande Romancista Americano o qual era esperado na linha de montagem de sucessão a Nabokov, Miller, e mesmo Bellow. 
Roth frustrou todos os critérios estabelecidos, menos aquele que remete ao mais intrínseco e inescapável deles e que assola escritores esotéricos como Ralph Ellison, Isaac Bashevis Singer e Saul Bellow: a busca pela noção mítica do pertencimento, pelo que Lacan definiu como "o grande Outro", mas que em Roth aparece com um grau de orfandade definitiva mais acentuado que nos seus colegas. Não à toa que Roth tenha empregado tanta influência da psicanálise em O Complexo de Portnoy, embora até nessa aplicação de uma modística literária freudiana ele tenha sido infiél e anarquista, visto que colocou a psicanálise num diálogo transloucado com o judaísmo tradicional (em sua forma transplantada nas famílias de classe média americanas), sendo a sua ácida ironia em não sobrepor a primeira um centímetro sequer de distinção científica acima da segunda. Roth demonstrou desde o princípio que usaria o humorismo sem freios e sem qualquer respeito às ortodoxias a que presumia-se preso (o psicanalismo da vida urbana; o judaísmo tribal das antigas colônias deportadas) como método fixador de seu eterno não convencimento, não coaptação, a sua eterna indagação e mofa por procurar o pertencimento e saber pela prática tortuosa de que ele é um fetiche, de que não existe. Portnoy é mais uma orgulhosa exibição do quanto seus dotes literários estavam em maturada plenitude, e vamos encontrar mais acirradamente a busca por pertencimento de Roth em romances já assumidamente mais sérios e ambiciosos, como em O Avesso da Vida, em que seus personagens confrontam de maneira quase contra-panfletária os dogmas do catolicismo e do judaísmo. É um romance em que o Roth tardio aparece pela primeira vez, o Roth de uma inteligência áspera que alguns anos mais tarde se embrenharia numa trilogia da história americana do século XX (a história espiritual americana, o que em si mesma é o mimetismo da narrativa da desfragmentação e da derrocada). Mas aqui vemos as armadilhas do excesso de confiança de Roth em sua simplória descrição interpretativa dos rituais judáicos, em que para cada gesto dos fiéis em frente ao Muro das Lamentações ele interpõe uma visão de superioridade jocosa, que transparece em sua gratuidade provocativa apenas a resposta às críticas das comunidades judáicas americanas que cobravam ao menos mais pudor por parte de um escritor judeu que se negava a se dobrar à tradição. Essa leviandade de Roth foi atacada de frente em uma carta que Mary McCarthy lhe dirigiu, e que o autor publicou e respondeu em Entre Nós.
Mas em O Avesso da Vida surgem também os outros temas que se tornariam recorrentes dali para frente nos romances de Roth: a doença como filtro inexorável para ver o niilismo por detrás do glamor americano, o fracasso da instituição do casamento, e o isolamento como necessidade básica para o escritor. Dali para a frente, quase a maioria absoluta de seus personagens principais manteria uma relação íntima com a doença, uma doença progressiva que estipula o acionamento do tique-taque para a detonação final no curto prazo de covalescênça em que seu portador teria tempo de se resignar a algum tipo feliz e idiossincrático de significado. Roth se torna profundamente dostoiévskiano na exploração das hipóteses pessoais da graça, sendo a sua graça destituída de cristianismo e penitência para, com isso, ser mais eficazmente moralista que a graça de Dostoiévski. A graça de Mickey Sabbath, por exemplo, é a iluminação auto-suficiente de suprema inteligência shakespereana que lhe serve para conseguir sobreviver num estágio de eletricidade mordaz mesmo ao mais terrível abandono. É a doença física que faz Sabbath abandonar sua profissão de titereiro, devido a artrite nos dedos das mãos, e é a doença espiritual que o faz perder seu cargo de professor e seu casamento, e é a degradação advinda com a doença que o faz se aproximar a um estágio de beatitude em não precisar de mais nada a não ser a aceitação prazerosa e plena de si mesmo, com todas as suas deformidades e todas as suas peculiaridades repulsivas. É o câncer de próstata que faz Nathan Zuckerman não participar mais da vida competitiva e se refugiar numa pequena casa no meio do mato, e, em decorrência, achar três grandes temas capitais nos três personagens insuspeitos com os quais convive na cidadezinha provinciana vizinha à sua casa. Três renegados que, assim como ele, abdicaram da sociedade, e lhe presenteiam com suas histórias pessoais que se entrechocam com o que há enterrado por debaixo do tapete da História da Grande América. 

Nenhum outro escritor americano, pois, se aproxima de Roth em sua obsessão por descobrir o que subjaz do mais interno verniz das aparências humanas. Nessa pesquisa, Roth foi mais longe que Bellow, e como paga, não conseguiu imunizar sua biografia do contato deletério de tais materiais radioativos. Assim como Zuckerman, Roth priva pelo isolamento, depois de passar pelo fracasso do casamento e pela extenuação da vida pública de intelectual gabaritado. Sua busca por pertencimento renegou a corrente do psicologismo, do cientificismo, do judaísmo; sua série de entrevistas e ensaios sobre escritores da Europa Oriental (o magnífico Entre Nós) mostra o quanto o significado real o preocupou na sua visão da América quando ele afirma que o sofrimento proporcionado pelas ditaduras, processos democráticos e revoluções políticas deu uma dignidade notável e legitimou a função da escrita para escritores como Milan Kundera e Ivan Klima. No vazio da vida americana Roth perseguiu e conquistou seu motivo temático legítimo.

Pequena Contribuição ao Ateísmo da Moda


Surpreso por ver uma ferradura pendurada na porta da casa de campo do físico Niels Bohr, um colega cientista que o visitava exclamou que não compartilhava com a crença supersticiosa de que as ferraduras afastavam os maus espíritos; Bohr retrucou: "Também não acredito. Deixo aí porque me disseram que funciona mesmo quando não acreditamos."

                                       Slavoj Zizek, Primeiro Como Tragédia, Depois como Farsa.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Dublinesca




Um dos álibis que se pode alegar contra os sinais anunciados da tão aclamada morte do romance é que mesmo seu definhamento consegue servir de tema para toda a obra de um dos mais relevantes romancistas da atualidade. Praticamente todos os livros do espanhol Enrique Vila-Matas tratam da morte do romance, utilizando-se para evidenciá-la de uma série de personagens cuja reação ao avanço de uma era de iletralidade é a da abstinência criativa ou a recusa pura e simples de escrever. Vila-Matas tece um jogo curioso de referências diretas aos mais importantes escritores da literatura, de forma a fazer produzir no leitor a “doença da literatura” que incapacita espiritualmente seus heróis, mas tem o cuidado mercadológico de não incorrer em modelos muito herméticos, abrindo as janelas de suas narrativas para que o ar de dias ensolarados tenha livre acesso. Vila-Matas, pois, se presta ao que grandes escritores que se recusaram a ser objeto de fetiche de uma minoria de apreciadores especialistas fizeram para alcançar o grande público: administraram suas caixinhas de truques e surpresas de forma a serem bastante permeáveis às vendas exponenciais, e com isso, mais uma vez, reforça a duração do romance. Recheia seus enredos de sombras, chuvas, sonhos, personagens misteriosos, equivalências que supõem a mágica, viagens para aprazíveis cidades históricas européias, micro-ensaios bem estruturados sobre livros, fofocas atuais ou muito antigas sobre escritores; além de servir-se da internet para propagar os personagens cuja face impressa jura que existem mas que as consultas pelo Google revelam inventados. A astúcia desse procedimento é que o leitor, na consulta, cai na rede de fãs que o autor arrebanha pelo mundo, à semelhança dos que se descabelam na escavação de códigos nas páginas de Thomas Pynchon.

Mas engana-se quem achar que Vila-Matas é apenas um leitor cuja leitura de todos os livros não deixou outra opção que fazer-se ele mesmo um funcionário de sua memorialística literária. Como na comprovação da excelência das costureiras, pode-se perceber o grande calo profissional que Vila-Matas tem na mão em seu recente romance, Dublinesca. Trata-se das aventuras de Samuel Riba, um editor aposentado que vive para ruminar os dias gloriosos do romance, dos quais participou ativamente, mesmo sem nunca ter encontrado o jovem gênio das letras que sempre procurara, e que, como ato ritual ao que ele vê como “o fim da Galáxia de Gutenberg” e a consagração decisiva da era digital, encena com um grupo de amigos o enterro do romance indo para Dublin no Bloomsday. Desde a primeira página vemos que só sobra a Riba o encerramento tortuoso no qual sucumbem os pacientes terminais; a cada passagem de seus dias na Espanha, à espera que chegue a data prevista para a viagem, intrudam-se elementos de pesadelos tomados da literatura que não lhe possibilita saber onde prossegue a realidade e onde se irrompe o sonho. Mesmo as visitas habituais a seus velhos pais, todas as quartas-feiras, que no mais não passam de tediosas obrigações cumpridas à risca, são contaminadas pelo onírico que escapa dessas frestas do cotidiano.

Mesmo Riba sendo o que ele vê como uma versão mais velha e culta de um hikikomori, nome que se dá aos jovens japoneses que já se alienaram do mundo trancando-se nos quartos das casas dos pais e não saindo de frente do computador, pois ele mesmo sucumbe às horas pesadas de exposição ao Google, não lhe escapa a verdade de que a cada dia vai se tornando mais e mais obsoleto. Sua esposa se converte ao budismo, e, numa determinada cena em que Riba a observa dormindo, está mais jovem e possuída de uma beleza plena. Sua viagem a Dublin, a qual era a última chance de integrá-lo a algum significado de pertença_ mesmo que fosse de pertencer a um grupo que se enterrava sob um réquiem de resignação à modernidade_ se mostra, apesar da beleza da paisagem em que Riba se identifica como pertencendo ao mar da Irlanda, um completo fracasso na comunicação com os amigos.

A bela editoração da CosacNaify complementa a alusão de que Vila-Matas trata de temas profundos com uma leveza que não se corrompe por nenhuma das duas opções (deixar de ser leveza aniquilando-se na imanência das matérias tratadas, ou tornando-se superficialidade pura): a ilustração da capa, as letras grandes, a feição corporal de objeto perfeitamente comestível e um quê do requinte de ornamento de mesa de catálogos fotográficos. Mas Vila-Matas prescinde desses artifícios, ainda que eles complementem a sua arte. O livro vale por suas reflexões requintadas sobre a modernidade, sua ironia fina sobre a geração de cultores virtuais em que a maioria da humanidade está se tornando, sua prosa que não é permissiva e não faz concessões, seus resvalos gratificantes numa premonição de níveis mais profundos do discurso. Mesmo as partes que cairiam na ineficiência e no desgaste, Vila-Matas as convertem em agilidade perfeitamente convincente.

Gabriel Garcia Márquez _ O Velho Rei Cagando na Latrina


(Texto sem revisão)
Quem passou a ler Garcia Marquez nos anos 80 e era um adolescente, como eu, sabe do enorme assombro que tal descoberta envolvia. Me lembro bem que a leitura que nos chegava aqui nesse canto de mundo, a leitura requintada e importante que tínhamos que ter para nos tornarmos cultos, era a que estava construída dentro dos moldes tradicionais dos escritores europeus e norte-americanos. Nos anos 80 eram poucos os livros de autores contemporâneos que o restrito mercado editorial nacional oferecia_ afora os best-sellers fúteis que reafirmavam o quanto eram quentes as aventuras sexuais e de vinganças que transitavam no mundo financeiro lá de fora_ , e nosso atraso quanto às novas produções intelectuais era suavizado pela impressão de que a leitura da tradução da tradução de Dostoiévski era um instrumento efetivo para alargarmos nossos horizontes de compreensão. Jovens colegiais, como eu era na época, se embeveciam com Kafka, embora para nossas mentes incipientes A Metamorfose era apenas uma história de suspense tresloucada sem nenhuma sub-liminariedade. Um conto que fez furor entre a rapaziada de 17 anos, Erostrato, de Sartre, por exemplo, nos cativava pela figura cinematográfica do assassino serial que quase escapole da polícia. Assim, ler Cem Anos de Solidão era algo comparável a um desvirginamento, uma experiência real mais forte e substancial que as experiências de certa forma mastigadas que outras pessoas já mortas e que viveram a quilômetros haviam nos passado. Ler Cem Anos de Solidão foi, para minha geração, o primeiro contato sério e inescapável com o que poderíamos definir como nossa política, nossa história, nosso povo.

E o interessante é que, apesar de minha iniciação política ter vindo de García Márquez, eu já defendi acirradamente diante uma banca de acadêmicos a ideia de que o colombiano é o menos político dos autores hispano-americanos. Mas isso é uma outra história e não importa aqui. O que quero reafirmar agora é o quanto minha juventude foi assolada pelas possibilidades inéditas que fluiam do grande romance de GGM. Uma vez, conversando com um amigo também devorador de livros, invoquei o assunto de como cada um de nós chegara ao universo da leitura. Esse meu amigo lembrou que passou a consumir dois livros por semana graças às leituras iniciadas nos volumes sobre questão social e de movimentos de esquerda que editoras como a Expressão e Cultura publicavam. Da história dos movimentos campesinos, ele passara de Che para Jared Diamond, Bauman, Todorov, Saramago, etc. Eu, pelo meu lado, confessei que minha entrada foi feita por caminhos nada políticos. Como eu sempre fui apaixonado pelo frio, ou pela ambientação geográfica de povos tradicionais como os judeus poloneses, eu comecei a ler sobre o fog londrino, as tramas pitorescas que ocorriam entre prosaicos casais de vilas siberianas perdidas, ou sobre fantasmas que resolvem aparecer em pleno inverno. Iniciei-me lendo Conan Doyle, Checov, Stephen King, Sheridan Le Fanu, etc.

Eu procurava romances habitáveis, com mobiliários que permitissem um aconchego de frente à lareira. Digo tudo isso apenas para chegar ao ponto capital: GGM tornou consumível para meu gosto atmosférico as ruas empoeiradas batidas por um sol inclemente, e as casas modorrentas em que lá dentro os habitantes descansavam as sestas da tarde, com os corpos cobertos de suor. As vilas esquecidas do interior da Colômbia, que ele traduzia em seu universo pessoal centrado na mítica Macondo, passaram a ser tão convidativas quanto as vielas londrinas, e as paisagens de neve pelas quais passavam trenós carregados de nobres festivos das histórias de Tolstoi. Pode parecer pouca coisa, mas eu, assim como a maioria quase absoluta de jovens da minha idade, éramos infestados da cultura televisiva, por mais que ela nos soasse desde já deletéria, propagada pelos filmes hollywoodianos dos pacotes de atração anuais da Globo. Vivíamos nos resquicios disfuncionais de uma ditadura que, culturalmente, tornava o Brasil tão fechado para o mundo externo quanto eram quaisquer outros países latino-americanos. Assim, as primeiras palavras de Cem Anos foram como aprender a ler de novo; os Buendias e os Arcadios e tudo que infestava suas vidas de indios subdesenvolvidos formaram uma aquisição de lucidez violenta que atirava janela afora, sem delicadezas, todo o substrato de uma visão de mundo pequena, mesquinha e agrilhoada aos padrões de consumo ditadas pelas mídias corporativas de um Brasil muito feudal e estacionado no tempo. Cem Anos veio com a adstringência salvadora de mostrar que o olhar voltado para nós mesmos não precisava ter o pedantismo auto-condescendente e já imbuído de pedido de desculpas que havia em novelas televisivas como O Bem-Amado, e nos filmes em que o catolicismo aparecia flagrantemente nas frestas de um suposto reacionarismo político, como O Pagador de Promessas.

GGM foi o primeiro dos escritores latino-americanos que nos mostrou como realmente somos, sem a mínima maquiagem, sem o mínimo eufemismo. E sua revolução conceitual foi a de dizer que não precisávamos de maquiagem e nem eufemismos, que assim como éramos estávamos no mesmo patamar distintivo de qualquer europeu ou norte-americano, e nossos bêbados de esquina e nossos barbudos apedrejadores de prefeituras eram tão carregados de um misticismo nobre quanto o Rei Arthur e Thomas Pain. Por detrás dos escatologismos aparentemente idiotizados de seus personagens; por detrás das caras estupidificadas dos donos de botequins e das meretrizes de axilas rescendendo a cebolas, havia a entidade legitimamente representativa de nossa latinoamericanidade em que estuporavam a inteligência e a graça, algo que não podíamos nos envergonhar e que não abaixava a cabeça diante a velhice postural dos outros continentes. Na melhor novela curta de GGM, Ninguém Escreve ao Coronel, por exemplo, o velho coronel de guerra que passeia com seu galo pelas rinhas do povoado enquanto espera por um cheque de aposentadoria que nunca vem, inicia a história acocorado sobre um pinico, esforçando-se por botar seus excrementos para fora. E a força inigualável da escrita de GGM se encaixava nessas exposições isenta de regionalismos ou traços da escrita provinciana que até então serviam para atolar as literaturas nos limites das efemérides dos intelectuais de prefeituras. Como diz Hobsbawn sobre GGM e Cem Anos, em A Era dos Extremos, o maior acontecimento literário do período final do século passado não aconteceu nos centros acadêmicos de Paris ou veio de alguma região urbana dos EUA, mas nasceu de um pequeno país latino-americano cujas notícias são sempre relacionadas ao narcotráfico, e promovido por alguém que tentava, como GGM disse várias vezes, apenas reproduzir o tom que sua avó Tranquilina empregava nas histórias que lhe contava em criança.

Cem Anos de Solidão ainda perdurará por bons anos como a maior realização do romance latino-americano. Na certa temos escritores melhores que GGM, que conseguiram estender sua qualidade por mais que os três livros realmente imortais do colombiano, mas nenhum deles conseguiu realizar um romance cujas proezas são tão imediatamente identificáveis como a saga dos Buendía. Cem Anos de Solidão oferece um universo tão completo da história, das características étnicas e das mentalidades latino-americanas_ com todos os seus humores e tragédias_, que esse livro exemplar extrapola a terrenicidade do seu autor. Sou um dos que julgam que GGM morreu após escrever O Amor nos Tempos do Cólera, e também me soam fúteis e totalmente dispensáveis a obra de não ficção em que ele ensaia seus posicionamentos políticos_ de uma forma em que o comentário de Bolaño de que GGM se encanta demasiadamente com generais e papas transforma em interpretação diagnóstica seu obliterado retrato de um ditador, O Outono do Patriarca. Mas Cem Anos de Solidão superou seu autor e adquiriu uma vida própria que o isola como um expoente estético e ideológico que pouco tem a ver com a figura dissipada que o escreveu.

domingo, 7 de agosto de 2011

Saul Bellow


(Procurarei cumprir meu objetivo de fazer um texto sobre cada um de meus autores preferidos. Nesse intento, reposto um sobre Saul Bellow.)
A ambição de Bellow era usar em seus livros uma linguagem semelhante às músicas de Mozart: simultaneamente ágil e profunda. A construção de sua carreira literária, já partindo desse primeiro intento, exigia uma reavaliação das pesadas heranças que recebia, tanto da literatura de altíssima qualidade produzida nos Estados Unidos, na primeira metade do século XX, que tinha seu centro em Faulkner, tanto das tradições do judaísmo que mantinham ainda sólidos padrões de conduta  culturais e religiosas em sua  fortalecida repaginação  no capitalismo norte-americano . No conselho de Hemingway, Bellow tinha muita coisa para matar. Era um judeu canadense urbano erradicado em Chicago, perfeitamente assimilado pela vida social frenética dos E.U.A, apaixonado pela nova vertente imperial das revelações de alcova da insurgente indústria da fofoca sobre os homens e mulheres do poder, enebriado com o vício de consumo de ideias que a indústria cultural havia determinado seu  país de adoção como o porto de chegada para os mais importantes intelectuais do pós-guerra. Sua alta inteligência avaliativa tinha plena liberdade para materializar o novo escritor que a América precisava, que estivesse condicionado a defini-la em seus novos ciclos evolutivos, sabendo que o regionalismo mitológico de Faulkner já havia sido esgotado por Faulkner, e que a heróica távola de grandes escritores sociais formada por Steinbeck e Dos Passos já não produziria descendentes para os novos problemas que a América ultra-capitalista e ultra-urbana requisitava. Na verdade, Saul Bellow era o mais efetivamente acabado produto dessa América espiritual que se vendia ao oportunismo redentor de ser a nação dirigente do mais luminoso estágio da democracia neoliberal da História, e teria sido inexpressivamente consumido por ela, se não possuísse a voz autêntica de desbravar tudo que havia de deletério, efêmero e devastador subjazendo sobre o seu hedonismo babilônico.

O mais incrível de se observar no estilo de Bellow é que ele é altamente vendável. Na maioria das páginas de seus livros acontece tanta coisa, expressa-se tantas ideias, trafega-se por cenários cosmopolitas de tantas descrições de prédios, escadas de incêndio de subúrbios, tribunais rescendendo a decisões do poder sobre  a vida de cidadãos anônimos, carros e os aparatos luxuosos dos muito ricos, que essa euforia cativa o leitor, resgatando-o da literatura existencialista sombria e comparativamente inerte que se fazia até pouco tempo antes dele. Bellow se tornara ágil e profundo como as sinfonias e concertos de Mozart. Suas frases são curtas, seus personagens, apesar de super-cerebrais, são entidades que acreditam na realização do impossível que há por debaixo da trivialidade cotidiana, lançando-se em aventuras que sempre estão na contramão do manual de Wall Street sobre sucesso financeiro. São ingênuos intelectuais de Q.I. altíssimos que estão nas mãos de beldades femininas dominadoras e esquizofrênicas, de gângsters que usam os ternos mais caros e depredam Mercedes com tacos de beisebol, e que são tão jocosamente grotescos que os seguram pelos braços enquanto fazem suas necessidades em banheiros públicos. Bellow abraçou a heresia de não se deixar influenciar diretamente por nenhum dos grandes escritores canônicos, nem Thomas Mann, nem Kafka, nem Faulkner, nem Joyce. Apesar de seus dois primeiros romances serem expressões de suas leituras de O Processo e Metamorfose, quando finalmente alcança seu estilo independente, é a  vigorosa natureza espontânea  dos poetas beats, dos escritores marginais da contracultura, dos autores de policiais noir urbano, que se vê em seus livros. Como um empresário que domina com total controle desde a linha de produção, as cores da propaganda que agradam ao público, até a venda sedenta do produto acabado, Bellow entregava ao mercado editorial romances em que escrevia o que queria, contra o que queria, e eles vendiam milhões de exemplares. Herzog, uma de suas cinco ou seis obras-primas, por exemplo, renova o gênero do romance ensaio e fica por 54 semanas encabeçando a lista dos best-sellers do New York Times.

Quando da espera de que a Academia Sueca notificasse o prêmio de literatura de 1976, vários jornalistas se posicionaram diante a casa de Jorge Luis Borges, pois era fato consumado que aquele ano o Nobel seria dele. Saiu para o Bellow. Perguntado o que achava dessa decisão, se era algo injusto, Borges respondeu que não poderia avaliar, pois nunca tinha lido o laureado. Essa afirmação só conta como demérito para a vasta cultura livresca do grande argentino. Alguém que já havia traduzido boa parte da produção de Faulkner para o espanhol, e que por muitas vezes fizera resenhas que evidenciavam sua admiração por Faulkner, desconhecer o único sucessor à altura do autor de O Povoado, era uma brecha vazia em sua vida de leitor profissional.

Bellow, como escreveu Philip Roth, no indispensável Entre Nós, alternava seus romances entre os que mostravam sua veia extrovertida, expansiva e exuberante (desculpem a aliteração), e os que mostravam seu lado introspectivo e filosoficamente desencantado com o mundo. Na linha dos primeiros, temos As Aventuras de Augie March, O Legado de Humboldt, Trocando os Pés pelas Mãos, Henderson, o Rei da Chuva; enquanto entre os últimos, temos O Planeta do Sr. Slammer, Herzog (que tanto pode ficar entre os primeiros quanto entre os segundos), A Mágoa Mata Mais, e Dezembro Fatal.


Bellow certa vez escreveu que todos os grandes livros são esotéricos. Suas análises deslumbrantes sobre a América espiritualmente decadente e promíscua, que recheiam seus romances, mostram que era não só o maior escritor em língua inglesa da metade final do século passado, como o mais independente. Numa época em que dizer-se ateu ou agnóstico, apegado aos milagres da Ciência, é um dever dos intelectuais, Bellow falava que as certezas produzidas por nosso pensamento tão limitado a essa faixa da existência nunca o convenceram. O inesquecível sr. Sammler, em um de seus maiores livros, um judeu exilado na vida moderna de Nova York, sobrevivente de um campo de concentração, desiludido e cético quanto às crenças iluministas da superioridade humana, se compraz a ler, diariamente, na biblioteca municipal, o mesmo trecho do frade medieval Meister Eckhart, sobre os pobres de espíritos abençoados por Deus. "O Sr. Sammler não podia dizer que literalmente acreditava em tudo o que estava lendo. Podia, porém, dizer que não desejava nenhuma leitura a não ser aquela", Bellow escreve.


Cada livro de Bellow passa essa sensação, de se estar lendo algo muito moderno e assimilável, mas de que, na verdade, vem de uma mente para a qual a última palavra sobre as coisas ainda está longe de ser dita, de um senhor indignado com o rumo que a situação humana tomara e que só aparenta estoicismo, de uma alma antiga, em suma.

"E tudo isso deverá continuar. Simplesmente continuará. Haverá mais seis bilhões de anos de vida da humanidade. Chega a paralisar o coração o contemplar tamanhas cifras. Seis bilhões de anos antes que o Sol venha a explodir. Seis bilhões de anos. E o que será de nós? Das outras espécies e de nós? Como chegaremos àquele fim? E quando tivermos de abandonar a Terra para seguir em direção a outro sistema solar, que dia mais portentoso será esse! Mas, então, a espécie humana terá se tornado muito diferente, pois a evolução continua. Olaf Stapleton calculou que cada indivíduo do futuro viverá milhares de anos. A pessoa do futuro, de tamanho colossal, seria de um lindo colorido verde, com uma mão que terá evoluído, transformando-se numa espécie de caixa de instrumentos, ferramenta forte e sutil, o polegar e o dedo indicador capazes de exercer uma pressão de milhares de libras. Cada intelecto pertenceria a uma maravilhosa, analítica e coletiva mente, estudando e resolvendo seus problemas matemáticos e físicos, participando de um todo sublime. Seria uma raça de gigantes semi-imortais, esses nossos verdes descendentes, parentes e aparentados, levando, porém, em si, inevitavelmente, alguma forma das nossas amargas características, tanto como dos nossos poderes espirituais. A revolução científica estava apenas com trezentos anos. Como ficaria dentro de um milhão ou um bilhão de anos? E Deus? Continuaria escondido, mesmo entre irmãos poderosos no espírito, continuaria fora de alcance?"
                                ( O Planeta do Sr, Sammler, p. 186, tradução de Denise Vreuls, editora Abril)