segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Kraftwerk


Já há algum tempo eu pensava escrever sobre a banda alemã Kraftwerk, uma das minhas preferidas. Almejava falar sobre as subliminariedades da música dessa banda, sua ironia, seu modo de brincar com a própria resignação diante a inevitabilidade dos efeitos colaterais da tecnologia, mas ia adiando por uma série de fatores. Um deles é que não quero recair mais uma vez na crítica baumaniana contra o "moderno", e outro é que algumas constatações adquiridas através de conversas tanto com amigos reais quanto virtuais me deixam em dúvida se a apreensão da vertente de ironia muito fina promovida pelo Kraftwerk é uma característica facilmente conseguida pelos ouvintes atuais. Posso ser criticado de elitismo de gosto ao afirmar que certos nuances significativos do humor e da crítica ficaram atrofiados com o correr dos anos, o que talvez seja mesmo um preconceito meu ao me espantar com o fato de algumas pessoas que viram a apresentação do Kraftwerk no Brasil (quando eles fizeram os shows de abertura do Radiohead) não saíram com uma boa opinião sobre a banda. O Kraftwerk foi um ícone para a minha geração_ para os estudantes da década de 1980 que hoje beiram os quarenta_, e essa forte presença formadora se conserva no mesmo alto grau de vinte anos atrás quanto a uma das maneiras cognitivas de vermos o mundo moderno que é uma das heranças preciosas dos irmãos Hutter, de Schneider e Schult: com um lirismo e um romantismo propositalmente piegas e retrógrado, com um humor decantado, que se resvala no conformismo. Uma das pessoas com quem falei sobre o show afirmou que os achou chatos, demonstrou que não entendeu bem o que há por detrás do minimalismo dançante das músicas (no mundo atual, já dizia Cortázar, o que realmente importa é o que subjaz atrás das coisas). Fiz uma coletânea deles e dei de presente a um amigo, mas esse só a escutou por educação ao meu lado, e nunca mais. De forma que Kraftwerk se torna aos poucos um dos meus tesouros secretos, que mais vale não os expor ao mundo circundante para não provocar estranhamento. Mas hoje me deparei com um post do Marcos Donizetti, do blog E Eu com Isso, que trata do Kraftwerk da mesma forma apaixonada, e em resposta a uma crítica depreciativa do Diogo Mainard. O Mainard foi ao show da banda no Brasil, e escreveu:

"Acompanhei seus primeiros discos. Autobahn e Radio-Activity. Em 1977, quando saiu Trans-Europe Express, eu já desistira do grupo. Tinha 15 anos. Era velho demais. Quase a idade de Mozart em 1775. Naquele tempo, o Kraftwerk evocava o futuro. Mas era uma imagem do futuro de 30 anos atrás. Ridiculamente datada. Embolorada. Caduca. Com seus uniformes aderentes, com sua imobilidade no palco, com suas letras afásicas, com seus arranjos elementares, com sua batida narcótica, com sua tecnologia rudimentar, o futurismo caipira do Kraftwerk era igual ao do seriado de TV com marionetes “Os Thunderbirds”.

Nada surpreendente partindo de quem parte. O Marcos Donizetti já coloca os devidos pingos nos is , aludindo a outro interessante blog que responde muito acima do nível do Mainard, quanto a uma defesa do Kraftwerk, mencionando os erros crassos sobre as datas cronológicas do lançamento dos álbuns da banda e outros detalhes que revelam o que todos já sabemos sobre Mainard: ou ele sofre de uma esclerose mental ou é apenas o leviano cheio de cacoetes e desinteressante que possui a estapafurdíce de usar a classe alta como distinção de cultura elevada. Mainard não entendeu absolutamente nada do Kraftwerk. O Kraftwerk não precisa de defensores, ainda mais contra quem, mas, assim como Donizetti e o Mário do blog Different Thinker fizeram, é bom brincar sobre os ataques de botinha da Gucci do Mainard. 

Antoine Badiou deu um prognóstico sobre a sociedade moderna, dizendo que a subjetividade das formas de dominação está tão cada vez mais avançada na mistura com as idiossincrasias do universo urbano atual, de forma que os poetas são mais importantes para compreendermos o que se passa na política, na economia e na velha Questão Social, do que os filósofos e analistas políticos. A poesia fria, concisa, sincopada, desprotegidamente infantil do Kraftwerk, serve como um tratado sobre as mentalidades na época em que as máquinas e o ciber-espaço se tornam o cenário aparentemente definitivo para o qual a humanidade vai se mudando a um rítmo acelerado. E o Kraftwerk foi um precursor dos sons do niilismo que vem sendo desenvolvido por bandas como Radiohead, Sigur Rós, Sonic Youth, através dos primeiros álbuns minimalistas da banda (que não são os citados pelo Mainard), álbuns totalmente instrumentais que  prefiguram a atmosfera cáustica de rendição que se vê nos principais álbuns da banda nos anos 70. Mesmo na também excelente banda anterior da qual partiram parte dos integrantes do Kraftwerk, a Neu!, vemos as atenas de percepção da eletricidade alienizante, ultra-veloz, que não permite que a atenção se firme no mesmo objeto por mais que rápidos segundos, nas longas sessões rítmicas de 10 minutos em que qualquer forma de canção é abolida e substituida por percussão e notas de teclado estendidas.

O Kraftwerk, contudo, é o pai distante de todos os filhos que formam a música pop dos dias de hoje. Por mais que as bandas o celebrem, como é o caso da versão do U2 para Neon Lights, o riff copiado pelo Coldplay, a apropriação de solos sampliados por bandas de rap americanas, a forma de adoração do Radiohead em convidá-los para a abertura de seus shows, o Kraftwerk, a título de não abraçar a ruína cenográfica exercitada pelas guitarras tocadas com arco de violino, o uso do Teremim e as letras apocalípticas empregadas por essas bandas, traça um retrato dos efeitos colaterais da tecnologia onipresente com uma imparcialidade lúcida, que simula o mais perfeito conformismo. Como um crítico disse certa vez da obra de Samuel Beckett: ela é tão pessimista e não deixa vislumbrar a mínima fagulha de alívio, que acaba por oferecer chances ainda não possíveis de redenção; a música do Kraftwerk, adotando essa inversão beckettiana, aceita de maneira tão aparentemente saudável a imersão total nos computadores, na robótica, nos feixes de laser da transmissão de informações, que seu deslumbramento infantil diante uma calculadora, seu retardarismo cerebral frente os milagres dos campos atravessados por trens expressos, são tão purificados de reação que se tornam eles mesmos a forma mais impactante de resistência. Enquanto as bandas dos sons da ruína retiram o humano de suas músicas, numa mistura de stream of consciousness desindividualizado e coletivo, o Kraftwerk coloca um protótipo profundamente humano como sujeito de suas músicas, sujeitos que são tão antípodas da máquina que provocam na mente do ouvinte a sensação de estar vendo-lhes os olhos arregalados, cheios de um espiritual arrebatamento. Enquanto o indivíduo do Radiohead é o último a habitar a Terra, antes da catástrofe, o indivíduo do Kraftwerk é o primeiro homem, em seu estágio infantil diante o Advento, diante o paraíso tecnológico. Por exemplo, na sublime música Pocket Calculator, a letra não passa de uma constrangedora referência de como o personagem manipula sua calculadora de bolso:

I'm the operator with my pocket calculator
I'm the operator with my pocket calculator
I am adding and subtracting
I'm controlling and composing
I'm the operator with my pocket calculator
I'm the operator with my pocket calculator

I am adding and subtracting
I'm controlling and composing
By pressing down a special key, it plays a little melody
By pressing down a special key, it plays a little melody

I'm the operator with my pocket calculator
I'm the operator with my pocket calculator


( Eu sou o operador com minha calculadora de bolso
Eu sou o operador com minha calculadora de bolso
Eu adiciono e subtraio
Eu controlo e componho
Eu sou o operador com minha calculadora de bolso
Eu sou o operador com minha calculadora de bolso

Eu adiciono e subtraio
Eu controlo e componho
Apertando uma tecla especial, ela toca uma pequena melodia
Apertando uma tecla especial, ela toca uma pequena melodia

Eu sou o operador com minha calculadora de bolso
Eu sou o operador com minha calculadora de bolso)



E a magia reside nos mínimos detalhes: quando ele aperta uma tecla especial, a calculadora realmente oferece uma pequena melodia, que a ouvimos em sua forma mais simples e doce. E quem ouviu Neon Lights sabe do que estou falando, essa que é uma das músicas mais belas dos últimos 30 anos, uma perfeita canção de amor que oculta por completo qualquer amor ou alvo amado, mas que através das pulsões das luzes de neon que perfaz cada um de seus oito minutos de duração, vemos as ruas noturnas, o céu invisibilizado pela cidade feita de luz, e a voz fraca, desprotegida, do indivíduo que anda pela solidão magnânima de um mundo sintético que só não o devora em sua pequinez por ser ele que lhe dá referencial para existir, já que é o único dos dois que realmente possui espírito. A angústia nessa música que retrata algo semelhante à felicidade vazia de uma criança adquirindo lucidez numa noite de natal num shopping explode no solo em que é como a entrada por dentro da cintilância do neon, que envolve e submerge tudo. É realmente incrível que uma música com essa superfície seja tão tocante e tão sentimental de se ouvir.

Tem também a sinfonia eletrônica Autobahn, que descreve por sons uma viagem pelas grandes pistas de asfalto da Alemanha moderna, com os amortecedores passando pelos grooves de atenção, as faixas de sinalização atravessando em velocidade hipnótica por debaixo do carro, o anoitecer visto pelo parabrisa, os faróis batendo no rosto, vindos da pista contrária, e os belíssimos solos de guitarra que se consubstanciam no teclado que revelam a mesma criança kraftwerkiana se embevecendo com a natureza nas margens da rodovia. E o acréscimo crítico subliminar de que era uma ode ao carro em plena crise do petróleo da década de 1970. Tem o sombrio álbum Radio-Activity, um experimento de sons que se inicia com uma peça de 7 minutos que congela a circulação com as emissões de rádio que se assemelham a um código morse premonitório, dizendo na mesma cadência de cantiga de rodas costumeira: Radioactivity Is in the air for you and me.

A maneira do Kraftwerk em ser à frente do seu tempo_ que fatalmente não foi entendida pelo colunista daquele hebdomadário_ já estava estabelecida desde a visão que se tinha dele os ouvintes da década de 1970: uma banda retrógrada, com terninhos propositalmente idiotas, com uma posição de caipiras na imobilidade de seus integrantes nas performances ao vivo, com muito humor e uma capacidade adstringente de não se levarem e de não serem levados a sério. E, astutamente, nisso residia a sua suprema força.



5 comentários:

  1. Apenas uma ressalva: a mente embrionária responsável por toda a subversão que a música eletrônica e suas inúmeras ramificações proporcionaram no século XX tem um nome: Karlheinz Stockhausen - sem ele não haveria Krafwerk e companhia.

    Abraço,
    Rodrigo

    PS: Me instigou muito seu texto acerca do livro do Alex Ross: tão logo o comprarei. (ainda mais sendo um devotado admirador de Radiohead)

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  2. Claro, o Stockhausen, que aliás os Beatles haviam cogitado que ele fosse o arranjador do Sergeant Peppers.

    Quando você ler o Ross, vai ver lá que o Messiaen também está por detrás das composições do Radiohead, como no Kid A.

    Obrigado, Rodrigo.

    Grande abraço.

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  3. Pois é, não tem jeito: todos bebem de uma determinada fonte. No caso do Radiohead, não é de se admirar que eles tenham tido influência do maior compositor da segunda metade do século XX: Messiaen. Se pensarmos em rock veremos que os grandes artistas deste gênero - Beatles, Frank Zappa, Emerson Lake & Palmer, Pink Floyd, King Crimson, Yes,... - buscaram estro em compositores tais quais: o já citado Messiaen, Bach, Bartók, Schoenberg, Copland, Varèse, Mussorgsky, etc.

    Gostaria de escrever mais... porém o sono me arrebata,
    Até,
    Rodrigo

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  4. Bá, pena q o sono tá abatendo uns aí.

    Gosto do pouco q conheço krafwerk. tem uma música q procuro há séculos, desde qdo fizemos um trabalho com trilha sonora na facul de jornalismo, e era lá uma deles, sempre acho q é autobahn, mas creio q nunca a ouvi do mesmo modo desde então. [coloquei agora pra tocar, e certamente teu post será a senha pro reencontro; o q me lembro é q tinha a referência da autoestrada, mas isso é uma pista vaga].

    Seguinte, nada a ver, mas já q deixou a dica da neon lights, de q gostei, deixo uma clássica, mas q tbm vai nesse sentido de q era uma música perdida pra mim até há pouco, a vinda do paul a porto. a primeira parte dessa belíssima música fazia o fundo de um vídeo de festa aniversário de um primo. sempre via aquilo e queria saber do som.
    http://www.youtube.com/watch?v=R3wA4ZxGd3U

    Arbo

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  5. Meu beatle preferido sempre foi o Paul. Acho que ele foi mais longe em vários sentidos não só musicais mas conceituais sobre auto-imagem, mídia etc, do que o John, apesar de amar de igual maneira os dois. Paul fez músicas sublimes depois dos Beatles, Band on The Run foi uma delas. Mas gosto muito de Too Many People, a belíssima Waterfall e Tug of War. Todas essas canções iluminadas podem ser ouvidas nessa coletânea indispensável:

    http://www.filestube.com/5AcLrrkgQesn9WfGxyGP18/Paul-McCartney-Wingspan-Hits-and-History-2001-iTunes-AAC-rar.html

    Kraftwerk é muito bom. Depois de ter escrito isso aí que fui lá no link ler o que o Mainarda escrevera sobre eles. O cara é por fora demais, chega a ser muito constrangedor. Kraftwerk é lovado por gente como o Bowie e uma cambada de outros, aí vem um zero a esquerda apalermado igual o Mainarda querer crescer pra cima dos caras. Bem... deixa pra lá.

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