Philip Roth, por detrás de seus temas centrais de incompatibilidade intelectual aos padrões de conduta e poder da América, e por detrás dos seus combates anárquico-sexuais pós-freudianos ao puritanismo, é o mais improvável dos escritores estadunidenses. Graças a essa casca que Roth tem um caráter primal de afastar possíveis leitores fora dos EUA, por estes caírem de maneira fácil na crença de tratá-lo como o artista americano padrão do fim do século, que simula reacionarismo auto-crítico através de sofisticados jogos estéticos mas chafurda cheio de gratidão na vida imperial da nação privilegiada. Mas uma leitura mais apurada de Roth revela o que eu disse acima: ele não se encaixa em nenhuma das classes distinguidoras do Autor Americano, apesar de todos os símbolos editoriais e da imprensa reforçarem que ele, mais do que ninguém, representa o Grande Romance Americano. Mesmo autores de obras declaradamente disjuntivas dos temas fundamentais da literatura daquela nação, como Thomas Pynchon e Foster Wallace, apresentam na própria contradição o vínculo inerente formalizado na acepção de contracultura, de usuários do lixo cultural despejado pela televisão, pela internet e por outros veículos da midia corporativa como matéria prima de suas produções. Quem se aprofunda nos romances eróticos de Roth, como Complexo de Portnoy e O Teatro de Sabbath, percebe que ele não segue minimamente os requisitos impostos pelo costume dos estimuladores sensuais à lá Henry Miller de passarem a mensagem legítima entremeando-a aos apelos de falar ao "pedaço de chumbo com asas"; nenhum leitor de Roth fica sexualmente excitado com suas descrições sexuais; suas musas não são apetecíveis a figurarem nas descrições testosterônicas de Miller como as que vemos em Trópico de Câncer, pois são garotas gordas, ou mulheres de meia-idade flagradas pela imaginação dos maridos que não a suportam em pleno ato de uma masturbação desesperada. Os heróis para os quais estão destinados os esplendores esportivos das mais lúbricas proezas copuladoras são homens degradados em todos os graus da experiência: desempregados às margens da mendicância, professores universitários caídos em desgraça, neurastênicos estóicos que sobreviverão ao câncer na próstata, e o arquétipo do filho da mãe judia ultra-castradora. Não são, pois, o estreante a gênio exilado em Paris e esbanjando saúde por todos os poros, dos romances de Miller. À semelhança de Lolita, os romances eróticos de Roth não falam de sexo; o sexo é o canal filosófico de contato com profundas ondas de rejeição que transitam na educação familiar de pais de classe média derrotados, de alcoólatras que em nada se parecem com as promissoras fotos da juventude, e refugiados nas mais excêntricas posturas de aberração contra o formalismo social. O sexo em Portnoy ainda mantêm a frescura dispensada das fortes ondas de desencanto do Roth tardio, com sua aproximação farsesca com o universo freudiano só para debochar dele. A própria fixação de Portnoy ao sexo solitário, suas arrojadas elucubrações em praticar o onanismo em todos os locais e com os mais estranhos objetos (como masturbar-se numa viagem de ônibus, e usando-se um fígado de boi), mostra que a pureza contextual de um romance erótico não funciona muito quando a maior parte dele se centra nas práticas individualistas. É fácil então, à par de uma leitura mais dedicada, perceber que Roth não manteve nenhuma das promessas do Grande Romancista Americano o qual era esperado na linha de montagem de sucessão a Nabokov, Miller, e mesmo Bellow.
Roth frustrou todos os critérios estabelecidos, menos aquele que remete ao mais intrínseco e inescapável deles e que assola escritores esotéricos como Ralph Ellison, Isaac Bashevis Singer e Saul Bellow: a busca pela noção mítica do pertencimento, pelo que Lacan definiu como "o grande Outro", mas que em Roth aparece com um grau de orfandade definitiva mais acentuado que nos seus colegas. Não à toa que Roth tenha empregado tanta influência da psicanálise em O Complexo de Portnoy, embora até nessa aplicação de uma modística literária freudiana ele tenha sido infiél e anarquista, visto que colocou a psicanálise num diálogo transloucado com o judaísmo tradicional (em sua forma transplantada nas famílias de classe média americanas), sendo a sua ácida ironia em não sobrepor a primeira um centímetro sequer de distinção científica acima da segunda. Roth demonstrou desde o princípio que usaria o humorismo sem freios e sem qualquer respeito às ortodoxias a que presumia-se preso (o psicanalismo da vida urbana; o judaísmo tribal das antigas colônias deportadas) como método fixador de seu eterno não convencimento, não coaptação, a sua eterna indagação e mofa por procurar o pertencimento e saber pela prática tortuosa de que ele é um fetiche, de que não existe. Portnoy é mais uma orgulhosa exibição do quanto seus dotes literários estavam em maturada plenitude, e vamos encontrar mais acirradamente a busca por pertencimento de Roth em romances já assumidamente mais sérios e ambiciosos, como em O Avesso da Vida, em que seus personagens confrontam de maneira quase contra-panfletária os dogmas do catolicismo e do judaísmo. É um romance em que o Roth tardio aparece pela primeira vez, o Roth de uma inteligência áspera que alguns anos mais tarde se embrenharia numa trilogia da história americana do século XX (a história espiritual americana, o que em si mesma é o mimetismo da narrativa da desfragmentação e da derrocada). Mas aqui vemos as armadilhas do excesso de confiança de Roth em sua simplória descrição interpretativa dos rituais judáicos, em que para cada gesto dos fiéis em frente ao Muro das Lamentações ele interpõe uma visão de superioridade jocosa, que transparece em sua gratuidade provocativa apenas a resposta às críticas das comunidades judáicas americanas que cobravam ao menos mais pudor por parte de um escritor judeu que se negava a se dobrar à tradição. Essa leviandade de Roth foi atacada de frente em uma carta que Mary McCarthy lhe dirigiu, e que o autor publicou e respondeu em Entre Nós.
Mas em O Avesso da Vida surgem também os outros temas que se tornariam recorrentes dali para frente nos romances de Roth: a doença como filtro inexorável para ver o niilismo por detrás do glamor americano, o fracasso da instituição do casamento, e o isolamento como necessidade básica para o escritor. Dali para a frente, quase a maioria absoluta de seus personagens principais manteria uma relação íntima com a doença, uma doença progressiva que estipula o acionamento do tique-taque para a detonação final no curto prazo de covalescênça em que seu portador teria tempo de se resignar a algum tipo feliz e idiossincrático de significado. Roth se torna profundamente dostoiévskiano na exploração das hipóteses pessoais da graça, sendo a sua graça destituída de cristianismo e penitência para, com isso, ser mais eficazmente moralista que a graça de Dostoiévski. A graça de Mickey Sabbath, por exemplo, é a iluminação auto-suficiente de suprema inteligência shakespereana que lhe serve para conseguir sobreviver num estágio de eletricidade mordaz mesmo ao mais terrível abandono. É a doença física que faz Sabbath abandonar sua profissão de titereiro, devido a artrite nos dedos das mãos, e é a doença espiritual que o faz perder seu cargo de professor e seu casamento, e é a degradação advinda com a doença que o faz se aproximar a um estágio de beatitude em não precisar de mais nada a não ser a aceitação prazerosa e plena de si mesmo, com todas as suas deformidades e todas as suas peculiaridades repulsivas. É o câncer de próstata que faz Nathan Zuckerman não participar mais da vida competitiva e se refugiar numa pequena casa no meio do mato, e, em decorrência, achar três grandes temas capitais nos três personagens insuspeitos com os quais convive na cidadezinha provinciana vizinha à sua casa. Três renegados que, assim como ele, abdicaram da sociedade, e lhe presenteiam com suas histórias pessoais que se entrechocam com o que há enterrado por debaixo do tapete da História da Grande América.
Nenhum outro escritor americano, pois, se aproxima de Roth em sua obsessão por descobrir o que subjaz do mais interno verniz das aparências humanas. Nessa pesquisa, Roth foi mais longe que Bellow, e como paga, não conseguiu imunizar sua biografia do contato deletério de tais materiais radioativos. Assim como Zuckerman, Roth priva pelo isolamento, depois de passar pelo fracasso do casamento e pela extenuação da vida pública de intelectual gabaritado. Sua busca por pertencimento renegou a corrente do psicologismo, do cientificismo, do judaísmo; sua série de entrevistas e ensaios sobre escritores da Europa Oriental (o magnífico Entre Nós) mostra o quanto o significado real o preocupou na sua visão da América quando ele afirma que o sofrimento proporcionado pelas ditaduras, processos democráticos e revoluções políticas deu uma dignidade notável e legitimou a função da escrita para escritores como Milan Kundera e Ivan Klima. No vazio da vida americana Roth perseguiu e conquistou seu motivo temático legítimo.
Por favor. Considere que escrevo essas notas empuleirado sobre uma tigela de sucrilhos.
ResponderExcluirPortnoy's Complaint me parece bastante emblemático da relação de Roth com o judaísmo tradicional. Acho no entanto que ele nunca abandona Eretz Itzrael. Quer dizer, a Eretz mesmo ele abandona. Até onde eu sei temas como Zionismo e o conflito em Gaza passam sumariamente ignorados nos romances do autor (no sentido militante ou no sentido tenro de sermão de sinagoga)
Roth pode não deslindar pelo Hassidismo de Wiesel. Ele não transita pelo folclore Ashkenazi de Bashevis Singer. Ele certamente afasta a chantagem de A. B. Yehoshua - o puxão de orelha daquele que acena de Sião com grave expressão no rosto aos expatriados que decidiram não voltar da Babilônia. Roth parece ter se achado na tradição Judaíca que saí de Moses Mendelssohn. Eu o leio como um desses "espíritos livres" do Iluminismo Judaíco que não conseguem romper definitivamente com o Elohim de Abraham, Ytzak e Yakov. Acho que é justamente no Judaísmo de Freud que Roth melhor se acha. Daí a relevância de T&T e C&D para ler Portnoy's Complaint. Tudo não passa de um grande deboche do Zeitgeist psicanálitico da época de certa forma. Mas há também uma dependência do Édipo Freudiano, não só em Portnoy, mas por todo o resto da obra de Roth, que denuncia por detrás do deboche o conflito Edipiano levado a uma das mais sérias apreciações. É como o Reb de Vienna diz lá no T&T. Elohim é a sublimação dos mais primais sentimentos de remorso e attachment oriundos do ato primevo de banquetear-se o animal totêmico -que é também o Pai - morto pelas mãos do Filho.
Portnoy's Complaint é justamente o monólogo de um desses filhos que antropofagia o Pai para vê-lo ressurreto com muito mais vitalidade na sua consciência de Édipo não-emancipado - chame esse Pai pelos nomes de Judaísmo, tradição, Eretz ou Moral Americana.
O que dizer, Luiz? Dissestes tudo. O judaísmo desses escritores americanos só pode ser entendido quando imerso e dependente da cultura americana_ até mesmo em Singer. A pressão por externar os vínculos étnicos era tão grande, mesmo em autores iconoclastas como Roth, que em algum momento a produção intelectual se voltava a uma forma de proselitismo. Bellow compôs Ida e Volta a Jerusalém, Roth compôs Operação Shylock. Mas creio que Bellow mostrava-se mais completo em sua crítica ao judaísmo materialista norte -americano, invocando o excesso de luxúria.
ResponderExcluirCARAMBA! EU LI O COMPLEXO DE PORTNOY EM 1973. DE LÁ PARA CÁ, RELI-O MAIS UMAS DUAS VEZES. EM 1991 PARTICIPEI DE UMA ENTREVISTA COM O SR. ROTH, EM NOVA IORQUE. ME DIZ UMA COISA: ELE SABE QUE O LIVRO DELE É COMPLICADO ASSIM?
ResponderExcluirSINCERAMENTE,
AUGUSTO LESSA
Augusto, se já lestes o "Entre Nós"_ que são as maravilhosas entrevistas de vários escritores e artistas a Roth, assim como uma releitura de Roth aos romances de Bellow, entre outras análises_ se lembrará que nada sobrevive às suas primeiras superfícies para esse romancista.
ResponderExcluirMas também pode muito bem ser pura viagem da minha parte, o que talvez seja o mais provável.
Mas ó meu caro amigo Charlles, ainda não reparaste que não há sexo nos livros de Philip Roth, há apenas o ser humano no seu pior?
ResponderExcluirMas alguém melhor do que Roth consegue descrever o ser humano tão bem como ele?
Nunca, em tempo algum, alguém descreveu tão bem um ser repelente/abjecto como o fez Roth no livro absoluto "O TEATRO DE SABBATH" - soberbo!
"INDIGNAÇÃO" - um livro absolutamente magistral!
E "PASTORAL AMERICANA" - nem Camões...
Tanta conversa para quê - PHILIP ROTH é o melhor escritor americano vivo. Fabuloso!
Concordo, SEVE. Há por aqui no blog uma resenha do Teatro de Sabbath. Digo nela que o romance erótico de Roth não tem sexo, senão como estudos sobre a degradação. Sabbath é uma das melhores coisas que já li.
ExcluirMas, atualmente, tendo a achar que Pynchon é o melhor escritor norte americano vivo.
Pynchon - não conheço, nunca li, mas vou estar atento!
ResponderExcluirObrigado
Grande blogue este, para quem como eu viciado em livros!