domingo, 28 de novembro de 2010

E de Improviso, É Noite


Todo homem está só no coração da Terra, trespassado por um raio de luz; e de improviso, é noite.
                                                                                                                      (Salvatore Quasimodo)

sábado, 27 de novembro de 2010

Estrela Distante, de Roberto Bolãno

Por Charlles Campos


 O que poderia haver de errado, nesse começo de século pouco promissor para a literatura — no qual Norman Mailer lamentou que tudo pelo qual sua geração de intelectuais lutara tenha fracassado, e onde as mesmas formas eternamente combatidas de dominação tenham obtido uma vitória incontestável sobre qualquer resistência contrária — , com o fato de Roberto Bolaño ter sido escolhido como objeto de acirrada adoração pela mídia cultural mundial? Nessa época desencantada dos ilimitados milagres da eletrônica, onde Philip Roth vaticinou que a próxima geração a surgir trará incutida no gene o fim do interesse pela leitura, não é espantoso que o romance de mil páginas “2666” já tenha vendido mais de 23.000 exemplares em Portugal? E que “Detetives Selvagens” tenha movimentado o competidíssimo mercado editorial norte-americano; e que os outros livros de Bolaño já sejam por lá tidos como potenciais clássicos de um escritor genial? E o que poderia ser mais esperançoso do que vermos Bolaño ocupando o centro de vários debates culturais pelo mundo, seus livros aparecendo mesmo em locais exórdinos como na mala de viagem do apresentador da Globo Zéca Camargo ( que levou “A Pista de Gelo” para o acompanhar nas filmagens pela Tailândia, demonstrando os critérios práticos da simplificação de sua escolha)?

Mas essa iconização, por outro lado, é o reflexo de outros aspectos não tão festivos do atual momento cultural por que passa a América Latina. À exceção de Bolaño, de qual outro escritor latinoamericano se ouve falar com a mesma persistência? O cenário mostra-se desconcertantemente desértico, ainda mais em comparação à profusão de nomes de valor que existiam há cinquenta ou quarenta anos. A acreditarmos na tendência — o emprego de tal palavra talvez seja o mais maneirista dos eufemismos — do definhamento da escrita, essa espera pelo desaparecimento dos últimos grandes escritores sem que se veja o natural surgimento de uma geração que os substitua, é uma realidade não só das Américas, mas universal. Não que os escritores apareçam obedecendo a u ma determinada sistemática providencial, ou são produzidos em série para, no momento devido, virem com a resolução para os conflitos da pobre humanidade desgovernada. Mas o que ocorre é que o prognóstico lançado por Mailer, Roth, Vargas Llosa e uma dezena de outros escritores, sobre o futuro inglório que eles não verão , parece se encaixar com perfeição nos estágios velozes da técnica que já nos pegam pela frente, onde a escrita se torna irrelevante e descartada, e, com isso, o pensamento crítico, as nuances lingüísticas, a contestação às doutrinas dominantes, o reconhecimento de uma dimensão mental independente, a lentidão necessária para inteirar-se da constituição espiritual morta por fora pela extenuante falta de tempo da escravidão dedicada às empresas, ao Estado e ao modus operandi de consumidores infinitos.

Se a efervescência intelectual é expressão produzida pela intolerância alcançada aos conflitos históricos, como vemos os poderosos escritores surgidos na Rússia czarista, nos memorialistas do extermínio da Segunda Guerra mundial, nos inconformados contrários ao bezerro de ouro do capitalismo norte-americano, nos refugiados hispano-americanos que acusam as ditaduras assassinas em seus países, não há momento mais legítimo para a imposição da voz do que o que vivemos hoje. Se a desgraça crônica explode no desenvolvimento de pessoas comuns em contestadores que escrevem grandes livros, o estágio atual de desgraças seria mais que justificável para a descavernização desses anônimos, a fim de instigarem aos demais míopes silenciados as possibilid ades de um mundo lá fora.

E é aqui que a carga relegada a Bolaño demonstra-se demasiado pesada. Bolaño, em decorrência da degradação de sua saúde e da conseqüente falta de tempo para amadurecer sua escrita, aceitou resignadamente o trabalho que tinha e, como o albatroz com as asas quebradas, desmoronou-se em desistência para o interior de sua imensa depressão. E ficou com toda a soberba constituição de pássaro majestoso, mas incapaz de disfarçar para si mesmo o pouco tempo que lhe restava, e o quanto isto lhe destruiu a capacidade de ver com abrangência. Não venham me dizer que a proximidade da morte cause essas coisas; quase pela mesma época, Edward Said compunha sua biografia e um volume de ensaios onde se negava a afastar uma revificação solar de todas as idéias humanistas de seus outros livros, ele que também via o fim irrevogável se aproximando.


Bolaño não estava apto a continuar a resistência contra os antigos poderes de dominação vigentes e mais poderosos do que nunca na América Latina: a política patriarcal, a mídia a serviço desses poderosos, a grande alienação e o expansivo silêncio. (Não se mostrou apto a incorporar o intelectual que fala a verdade ao poder, na definição ativista de Said.) Resistência que se fazia com uma militância romântica (hoje tão anacrônica em suas singelas tentativas, que de imediato é taxada de ingênua e demagoga) pelos escritores do assim chamado boom da literatura hispano-americana: Miguel Àngel Astúrias, Juan Rulfo, Mário Vargas Llosa, Rômulo Galegos, Júlio Cortázar, Manuel Scorza, o jovem García Márquez.

Com seu nome valorizado nos mais altos índices de graduação pela crítica estrangeira como representante da atual intelectualidade latino americana, o seu quietismo raivoso, a sua falta de fé, o seu queixume derrotado, alinha-se ao pesado silêncio que mais uma vez assola nosso continente. E Bolaño é tanto mais decepcionante por sua desistência por não se poder dizer que os escritores atuantes em outras regiões do planeta perfaçam a mesma entrega de pontos e pacificação resignada; é só ver Ismail Kadaré, Amós Óz, Ohran Pamuk, Mia Couto, entre outros. J. M. Coetzee, por exemplo, continua insurgindo com uma revisão desafiadora contra o instituído ponto comum e politicamente correto em que coube calar a questão da guetização do negro e da miséria ainda reinante sob a edulcorada versão oficial de uma África redimida e liberta pós Nelson Mandela (como no magnífico romance-palestra “Margareth Costello”).

A crítica que cabe a Bolaño é a mesma que em outra época e sob óticas diferentes, D. H. Lawrence fez a Joseph Conrad, não perdoando por este ser um escritor tão inexoravelmente triste. Com todo esse potencial para o fantástico, e cedendo na primeira investida às formas aterrorizantes da falta de perspectivas do mundo real, era o que estava dizendo Lawrence, lamentando que a música bombástica da prosa exuberante de Conrad o engolisse antes que o arrebatasse para fora da cadeira. O que pode alimentar a interpretação de que os trópicos seja um cinturão global cujos atributos coincidentes são o desespero, a apequenização e o silêncio.


Bolaño, com seu estilo que parece ser independente de qualquer influência, sua profusão de histórias, seu talento em revirar a trama inúmeras vezes, seu humor surpreendente, suas frases que aparecem aqui e ali no relevo do coloquialismo como sentenças borgeanas, o que vemos é seu receio em mitificar, em ir além. Suas narrativas são todas sobre exilados que, mesmo professando a mais difícil e anti-moderna das artes — a poesia — , ainda assim são imediatamente descartados como poetas medíocres, mais uns versejadores outsiders que vão se silenciando e rendendo ao suicídio, à doença ou aos aspectos comezinhos da vida cotidiana. Em determinado momento de “Estrela Distante”, o narrador declara que o Chile ainda não está pronto para a poesia.

Os intelectuais que erram pelas páginas de seus livros não estão motivados a transformarem céu e terra, a bradarem seu canto selvagem sobre os telhados do mundo — mesmo que sempre quebrando a cara no final — , como os personagens de Saul Bellow; também não visam o sublime, como os desesperados que se apartam da mesquinharia mundana para seus territórios artísticos pessoais, como o dos livros de Thomas Bernhard. Seus personagens não tem o firme estoicismo intelectual dos de Philip Roth; ou o prosaísmo quixotesco dos de García Márquez; ou o provincianismo que conlui o submundo bairrista da infância com a experiência do militarismo regimentar dos livros de Vargas Llosa. Os seres de Bolaño não se encaixam nem ao mais niilista dos existencialismos; vivem apenas uma pobre e levianamente documentada aventura de passantes. Não existem dois personagens mais anêmicos e inexpressivos que Arturo Belano e Ulisses Lima.

Eu não perdoo que Bolaño seja tão triste. Quem lê “Putas Assassinas”, sai com a certeza de uns três ou quatro contos realmente muito bons, mas com uma sombra na alma que leva dias para desaparecer. Poderão me dizer que mexer com um material tão emocionalmente radioativo como a literatura é tarefa para quem tenha estoicismo suficiente para suportar doses cavalares de desencanto. Mas eu saio revitalizado depois de ler Bernhard, Beckett e Céline (para citar três escritores do desencanto). Ler “Extinção”, “Origem” e “Viagem ao Fim da Noite”, é percorrer uma indignação festiva, uma repugnância que recorda sempre a força de contestação juvenil, a desconstrução de toda certeza e gratidão imposta pela farsa da sociedade equânime; é literatura adrenérgica e viril, que, dependendo da época, deve ser naturalmente reprimida pelo sistema que estiver vigorando.


Já o Chile, Pinochet, as andanças sem rumo pelo México e pela Europa — até as cenas espetaculares numa guerrilha africana que aparece em “Detetives Selvagens” — , são incapazes de romper o isolamento de Bolaño; essa violência mundana não consegue suscitar nele nada mais que o aproveitamento, sob a devida distância, de matéria para sua prosa documental. Um conto de três páginas de Cortazar, “Grafite”, faz mais pela indignação, a denúncia e reação, do que “Amuleto” e aquelas últimas páginas de “Detetives Selvagens”. “Estrela Distante” vai mostrar mais uma vez isso, com um número inédito de aberrações e corpos mutilados, de que Bolaño renunciara à política, à filosofia e à poesia, e o resultado é um livro competentemente limpo de qualquer transcendência em qualquer sentido. O único símbolo sutil perceptivo é deixado à deriva, como se Bolaño, com seu cigarrinho entre os dedos, mandasse às favas o trabalho que daria dar escopo ao inteligente esquema do personagem central ser um serial killer. Como em Detetives, em que ele não consegue mitificar a procura por 600 páginas pela Cesária Tinajero, ele também não passa ao leitor aquela indagação após fechar o livro de “o que diabos ele quis dizer com aquilo?” O poeta fascista assassino Carlos Wieder representa o que? Bolaño não constrói vínculos inteligíveis em que se possa dizer: “Ah! É a desumanização que a rendição à ditadura causa!”, ou “Ah! Cesária Tinajero é o símbolo da liberdade perdida!” A prosa de Bolaño é indevidamente rarefeita numa época em que a literatura precisa de mais para prosseguir.

Mas vale lê-lo? Vale! Cada centavo empregado! Não sei se Bolaño é um grande escritor. Estou propenso a pensar o contrário, o que seria uma contribuição à mesma mitificação que favorece ao setor das compras antes do deleite da leitura. Um dos melhores livros que li foi escrito por um autor menor, “Pergunte ao Pó”, do John Fante, e pouca coisa há de mais singela que Arturo Bandini (que coincidência!) atirando seu livro publicado em direção às areias do deserto da Califórnia. Não estou dizendo que Bolaño seja medíocre. Mas contra a comercialização desarroada de sua imagem (que só imponho reação quanto às possibilidades críticas, e não contra o quanto se consiga vender de seus livros — é um aspecto de raríssimo otimismo ver Bolaño ocupar algumas listas de mais vendidos), eu creio que o Bolaño verdadeiro é aquele da foto e m que aparece sentado atrás de uma mesa atulhada de papéis, com o olhar perdido para dentro de si mesmo, frágil, solitário, equilibrado com seu cigarrinho eterno na fina linha de sua vida, com a cabeça cheia da música mais angustiante.

(Publicado originalmente no blog do Milton Ribeiro. Seleção de imagens: Milton Ribeiro)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Platero e Eu

Estava puxando pela memória algum livro infantil de que eu gostasse, e hoje me veio, de súbito, o “Platero e Eu”, do poeta espanhol Juan Ramón Jiménez. Muito popular na primeira metade do século passado, hoje exige atenção mais restrita e uma sensibilidade apurada, passando a ser destinado a crianças, poucas, que num momento descubram a felicidade de um mundo anterior onde as coisas eram menos autônomas, e havia espaço para a delicadeza. Charles Bukowski escreveu: “Onde foram parar as coisas doces e delicadas desse mundo?”. Um pouco delas está em Platero.




A Menininha


A menininha era o encanto de Platero. Quando se encaminhava para êle, entre os lilases em flor, com seu vestidinho branco e o chapéu de palha-de-arroz, chamando-o, dengosa, de Platero! Platerinho! o burrinho queria arrebentar a soga, e saltava como uma criança, e rebusnava como louco.

Com uma confiança cega, passava por baixo dêle, e dava-lhe palmadas, e punha a mão_ cândido nardo_ na bôca de Platero, ornada das ameias dos grandes dentes amarelados; ou, então, agarrando-lhes as orelhas e puxando-as até a altura de seu rosto, chamava-o por tôdas as variações de seu nome: _ Platero! Platerão! Platerinho! Platerete! Platerote!

Durante os longos dias em que a menininha navegou em seu berço de aurora, rio abaixo, até a Morte, ninguém se lembrou de Platero. Ela, em seu delírio, chamava por êle, triste:_ Platerinho! Da casa sombria e cheia de suspiros, ouvia-se, às vezes, o grito distante e choroso, do amigo a chamá-la. Oh! verão melancólico!

Como Deus cobriu de esplendor e beleza a tarde do ênterro! Setembro, rosa e ouro, como neste instante, declinava. Como vibravam os sinos naquele ocaso maravilhoso! Voltei pelo taipal, sòzinho e triste, entrei em casa pela porta do cercado e, fugindo do convívio dos homens, encaminhei-me para a estrebaria e sentei-me, a recordar, com Platero…

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Bestas Honoráveis


Se naqueles quatro meses que durou a fase mais terrível de seu sofrimento, o tio Márcio de 35 anos tivesse se apegado à decisão de que não havia mais motivos para continuar vivo após o pedido de separação litigiosa de sua esposa, teria evitado que o tio Márcio de 13 anos depois se tornasse um dos advogados mais ricos do país. Olhando do alto de sua condição estabelecida de sobrevivente muito bem sucedido, hoje deve lhe parecer uma das coisas enigmáticas daqueles anos já  por natureza  estranhos ter confiado a um trio composto por duas de suas irmãs e um pirralho de quinze anos a chance de lhe dissuadir de que  não haveria outras hipóteses que a de um conformado e alentador suicídio. E o pirralho dessa história era eu. Não sei qual dos atributos da minha distração caiu na má interpretação de minha mãe e de minha tia Tânia para que me escolhessem como espécie de guarda-costas do tio Márcio, vigia sentenciador e "cagueta" dos seus menores movimentos. Se o tio Márcio, no restaurante aonde íamos os dois jantar (eu comendo pela primeira vez língua de boi ao molho madeira, ele com o prato intocado), mostrava-se uma fração a mais além da introspecção dos que imaginam outras funções para as facas por sobre a mesa, era motivo para reportar minuciosamente o fato às duas irmãs: como estava seu olhar, se voltado totalmente para dentro ou se houvera alguma margem de interesse para os objetos e circunstâncias do ambiente, se ele falara alguma coisa, quantas vezes suspirara. Como ele executava os passos na caminhada ao largo da represa perto do apartamento, onde os corredores do cooper cortavam em sentido contrário ao nosso como lampejos coloridos que reafirmavam sobre nossa dupla taciturnidade a prevalência da saúde urbana; ele com o paletó amulambado, eu com o uniforme de colégio suado _ me tornaram tão comprometido  que me passava inadvertidamente a desatenção à higiene dos que pouco faziam caso com a existência. Minha mãe e minha tia de certa forma lamentavam que o agente mediador entre o tio Márcio e a morte padecesse da limitada experiência dos 15 anos, não tivesse bagagem suficiente para enxergar por debaixo do mosaico de homem traído os sinais significativos, as emissões de dor que partiam de sua alma arruinada. Elas tinham que acrescentar por conta própria o que vazava pelo filtro da minha infância e ficava faltando na compositura do retrato completo.


Uma das minhas suspeitas do por que o tio Márcio só tolerava (ou fingia tolerar, para manter o pouco de atenção às exigências familiares que ainda tinha que ter) a minha presença nesse dias, era a de que as vidas pessoais de suas irmãs evidenciavam que elas estariam defendendo o lado errado da contenda. Por minha mãe ser uma divorciada com dois filhos, e a outra irmã uma mártir do casamento suportando o marido alcoólatra, pela fidelidade compulsória ao Sagrado Sofrimento Feminino, as duas no fundo dividiam a alegria libertária por sua esposa ter-lhe pregado um par de chifres. Mesmo em meus 15 anos, a insurgência da verdade de gênero do Eterno Macho Dominador que falava em meu sangue me permitia interpretar as vezes em que meu tio firmava o olhar nas duas e um tremor de medo passava por seu rosto. Elas tinham com ele apenas o compromisso formal de impedir que o sofrimento fosse insuportável a ponto de lhe levar ao suicídio, mas o que havia abaixo desse limite mensurável em flagelo didático deveria ser bebido por ele até a última gota. Elas se referiam à sua esposa com toda a sinonímia à disposição do consolo _ o que não se importavam que eu ouvisse _ : aquela vadia, aquela puta devassa, a biscate desavergonhada, a mulher que havia colocado a buceta à frente da família. Era um teatro que, à maneira de Sherazade em ludibriar com as artes de contar uma história por noite o sultão de tirar-lhe a vida, elas encenavam para meu tio o que só era suficiente para mantê-lo vivo. (Isso é tanto verdade que hoje, as duas são fervorosas amigas da minha tia Valéria, a ex-esposa do tio Márcio.) Por isso então eu, com minha cara de alienação, meus modos reservados e meu coração cheio de amores platônicos, era o único elemento daquele ensaio de psicopatologia cotidiana que meu tio via como o que carregava menos conotações de justiça feminina e culpa.

Nesse fim de ano que eu recordo como um dos mais chuvosos e cinzentos, minha mãe, minha irmã e eu estávamos instalados no apartamento de minha avó que morava nos EUA, devido ao incidente com o Césio que fizera com que interditassem nossa residência original, e meu tio Márcio se mudara para lá depois que a tia Valéria lhe anunciara querer o divórcio por estar apaixonada por um médico carioca cinquentão que conhecera num congresso. O apartamento de minha avó _ ironicamente, também ela havia deixado o país  trinta anos antes por ter descoberto que o marido estava tendo um caso com uma das empregadas do casarão colonial onde viviam em Minas Gerais_ estava se tornando o refúgio oficial de parte da família; de tempos em tempos alguém batia na porta da minha mãe solicitando as chaves por duas semanas, uma tia que tinha que fazer hemodiálise, um outro que precisava vender uma casa, outro cujo caráter ubiquamente conhecido requeria a sensatez de não se perguntar o por que precisava se esconder por algumas semanas. Entre esses exilados, alguns dos quais compartilhei  a presença naqueles meses em que o prosaísmo sinistro de um acidente nuclear havia acontecido sob nossos narizes, o tio Márcio era o mais triste, o mais deslocado, o que transparecia o que nos outros era a verdade disfarçada com desmascarável laconismo: estava ali pela lucidez insuportável de se ver como um pai ausente e um marido sem a capacidade de carinho, um homo laborians comprometido animalescamente com a sobrevivência social, mas cujas portas adentro de sua casa revelavam sem eufemismos o que não escapava nem a suas irmãs, o direito outorgado a um estranho a vir substituí-lo no que fracassara de maneira tão inexorável.

                                                                      * * *

Treze anos depois ele se tornara obscenamente rico. Ganhara um ação histórica contra a Petrobrás, e os donos de postos e refinarias de petróleo que o contrataram abarrotaram sua conta com quarenta milhões de reais de honorários. Escrevera uma matéria de duas páginas inteiras para a Folha de São Paulo explicando em linguagem despermeabilizada de juridisquêz todo percurso burocrático da aventura. Até seus detratores e os ascetas ao dinheiro estudavam suas palavras na busca dos sinais da predestinação. Quando me chamara para conversar, dividi na minúscula saleta de espera de seu escritório, num edifício destoante que ganhara a mítica justificativa de ser uma camuflagem, o espaço joelho a joelho com senhores de terno e pastas de couro, alguns com o desespero indisfarçável do empresário falido atrás de um empréstimo, outros com as insígnias vocabulares dos desembargadores. Fiquei uma semana em sua companhia, dormia no condomínio fechado onde ficavam em perfeita plenipotência fotográfica a sua nova esposa e seus outros dois filhos, aguardava nas salas ao lado da sua até que o expediente findasse, me entupindo de café na máquina de expresso. De tardezinha íamos a um clube fechado onde na mesa ampla senhores de bermuda esporte e os rostos vermelhos saturavam-se de whiskey. Cada um tinha uma moça de seus dezessete anos do lado, que definitivamente não eram suas filhas. Uma das moças estava acompanhada pela mãe, uma senhora que havia vestido sua melhor roupa e não se continha de felicidade por sua filha ser a escolhida, nenhuma delas se importando que o homem às vezes falasse com a esposa pelo celular. Meu tio era uma espécime diferente de besta honorável, não era imune ao universo de macho alfa para o qual sensibilidades eram atrasos na obtenção de todo hedonismo que o dinheiro tinha para oferecer nas horas de folga do cotidiano acirrado em que tinha-se que obtê-lo, mas ainda via em seu infinito traquejo e sua genialidade em angariar simpatia o menino provinciano, o cara simples que em caminhos paralelos teria conseguido ser feliz com bem menos que isso. Ao mesmo tempo que interrompia a conversa séria com um desembargador, num corredor do Centro Administrativo, para apresentar-me como seu sobrinho veterinário, eu o ouvi instruindo taxativamente sua filha, que lhe insistia por telefone que precisava levar o bicicleteiro que havia atropelado para um hospital particular de ortopedia, a deixar que o SAMU cuidasse do caso, "quando ele descobrir de quem você é filha, vai pedir uma senhora de uma indenização". Em sua cadeira rotativa ele me deu um conselho que deve estar talhado em madeira na porta de entrada de seu santuário íntimo: "a gente passa a vida toda que nos resta tentando consertar as besteiras que fizemos na juventude". Anda hoje penso o que teria me salvado da proposta que me fez, em meus trinta anos, de estudar o curso de direito totalmente bancado por ele, e ser um de seus estagiários. Se não tivesse sido a aprovação no serviço público, qual  outro fator inviolável teria feito com que eu virasse as costas para a porta de seu escritório e seguisse a minha própria vida ?


terça-feira, 23 de novembro de 2010

Twitter


“Os tais 140 caracteres refletem algo que já conhecíamos: a tendência para o monossílabo como forma de comunicação. De degrau em degrau, vamos descendo até o grunhido.” (José Saramago)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Weird Fishes




Há uma sensação descrita por Schopenhauer que me impressionou pela perenidade que evoca em minha vida: quando eu era criança, o filósofo diz, eu sempre corria eufórico quando alguém chamava em frente de casa, para abrir a porta, pois sabia que eram sempre boas novas e informações interessantes que esse alguém trazia; já quando me tornei adulto e mais conhecedor do que o mundo tem a oferecer, quando alguém bate à minha porta eu me refugio debaixo dos lençóis, com um medo profundo. No meu caso, os três prédios onde morei até meus vinte e cinco anos, com suas escadas infinitas, sua ausência de charme e seu cinza hermético que nem o rosa e o amarelo mais alegre conseguiam esconder, me deixavam de sobreaviso sobre as desgraças da chegada sempre que, ao voltar das escolas que frequentei, eu via ao longe suas figuras ameaçadoras de galeões atracados confrontando solenemente o céu da tarde. Meu pai me dizia que seria impossível eu sobreviver numa cidade grande, pois a genética que herdei do seu pai meio índio determinaria para sempre que eu nunca faria parte dos que toleram morar na vertical. Talvez por isso eu vivia em estado de premonição, e ainda hoje, que moro numa casa bem estabelecida pelas leis da física e pelas garantias de posse cartorial (no caso de um prédio cair, o proprietário tem direito a quê (se sobreviver)? uma parcela do espaço aéreo?) bem colada à terra, tenho o mesmo sonho complicado e terrível, caríssimo pelo que exige de cenários e efeitos especiais, de que nunca consigo sair de dentro de uma escadaria labiríntica, da qual pelas portas eternas que a margeiam aqui e ali, nos andares, eu apenas encontro um salão de tamanho cósmico lotado de cubículos com vasos sanitários (ah, credo!).

Pois bem. Quando tinha lá meus dez anos, a primeira premonição se concretizou. Cheguei da escolinha onde estudava, trazido pela mão de uma antiga funcionária do apartamento 210 de um edifício chamado Dom Abel onde morávamos, e, antes de subirmos pela portaria, fomos atraídos pela multidão parada em estado de perplexidade dentro da garagem. Ficamos lá parados, esperando que a onda se decidisse e nos passasse um pouco de esclarecimento, quando um homem de camisa social aberta no peito, gravata e calças de brim, os cabelos despenteados e as chaves do carro nas mãos revelando o atarantamento de ter sido pescado da normalidade cotidiana para um dos nós do absurdo (aqueles nós contra os quais, mesmo no fundo da nossa descrença, rezamos todas as noites para que nunca os encontremos, nunca um deles paire sobre o caminho para tornar nossas vidas interessantes, nunca!) atravessara à nossa frente. "É o pai dela.", ouvi alguém dizer. A multidão foi se abrindo para a passagem do homem, e aí pude ver o que estava no centro do tumulto, o que o homem pegou do chão sem nem pensar em enrolar de novo no manto branco que alguém havia depositado por cima, e que o homem voltou pelo sentido em que havia vindo com um choro ainda não concretizado, não acreditando ainda, e passou por mim gritando algo que não me lembro se era "saiam daqui", ou "o que vocês estão olhando", ou alguma outra admoestação contra nós, o bando de moscas em torno para sugar o chorume de sua desgraça. Só vi a perninha escapada do pano e pendurada das mãos dele: a menina de oito anos que se precipitara janela afora do décimo segundo andar, que não a conhecia, que de repente todos, ao longo dos dias que se seguiram de ruminação sobre o acidente, se viram perplexos por não guardar nenhuma lembrança de que aquele homem arruinado um dia houvesse dividido o espaço do elevador com um de nós,  se sentado num dos bancos do térreo de frente ao playground, com um jornal nas mãos, ou que algum dia houvesse aberto o porta- malas do carro e se visse a estampa acolchoada do Ursinho Puff ou da Turma da Mônica na frente da lancheira rosa, algum indício da radiância de boa digestão e de conformismo feliz que enxotasse um pouco a imagem de dor e o tornasse humanizado pelas provas de que havia sido mesmo pai. Falaram que a menina era surda muda, que a trancavam em casa por vergonha, que, contudo, a empregada que se distraíra do cuidado dela teve que ser defendida pelo síndico para não apanhar do homem. E cada noite, pelos próximos mêses, eu julgava ver a menina parada em frente à minha cama, como se também aquele processo pela qual passara a aprisonara nas escadarias opressivas e ela se amparasse em mim para achar a saída.

Corre o tempo. Tenho quinze anos. Moro em outro prédio. De frente a esse, há um grande e surrealístico depósito de ferro velho, do qual todo dia ao acordar vejo de lá do décimo andar seu telhado espraiado e descontínuo, a compostura de cobra velha saindo aos poucos do negror da madrugada para evidenciar as chaminés das quais saem a fumaça das fundições vindas de dentro. As pessoas que moravam lá não paravam de trabalhar, ou, ao menos, labutar seus exercícios secretos entre uma bebedeira e outra. Era uma profusão de homens e mulheres que eu não sabia distinguir quem era quem, muito parecidos em seu ar indolente e reservado, me lembravam os Morlocks do livro de Wells, saindo das catacumbas do depósito, só de shorts (os homens) e vestidos de chita desbotados e sujos (as mulheres). Apesar de nunca fazerem nenhum tipo de contravenção contra nós _ a não ser a música alta e a pose individualista de a-civilidade _, alguns moradores haviam tentado tirá-los de lá por não sei quantos recursos jurídicos, em vão. Quando estava na esquina, voltando do Colégio Marista, a cena se repete, com alguns acréscimos sofisticados: uma multidão tampava a porta do edifício por toda a rua; policiais saíam e entravam do depósito e faziam bloqueio em frente. Pensei: porra, finalmente aquela alegria toda de Cannery Row, aquela bonomia simpática de supermendigos caiu por terra, nada mais de vinhos à noite correndo de mãos em mãos, cumpriram o esperado e um dos maridos esfaqueou a mulher ou foi uma chacina geral. Um vizinho, no cordão externo de gente que nos impedia de sequer chegar a dois metros do portão de casa, me passou o que conseguiu depreender da coisa: um dos homens do depósito achara uma pedra radioativa de uma máquina de Raios-X, nas ruínas de um hospital, a trouxe para cá e a desgraça estava feita. Ficamos mais dois dias no apartamento, até que autoridades govenamentais deram ouvido aos especialistas sobre contaminação nuclear que haviam aportado em Goiânia do mundo inteiro, e determinaram a evacuação de toda a rua. Dias depois se propagou que aquele era o acidente nuclear mais grave da história, proporcional ao que ocorrera em Chernobil. A pedra, catalogada como exemplar do Césio 137, matara a maioria daqueles homens e mulheres, matara a menina Neide Aparecida das Neves, uma das crianças que morava no depósito, deformara uma porção outra de pessoas, incluso um colega advogado de minha mãe que, maravilhado pela beleza do Césio, comprara um dos fragmentos do funilero e a guardara no bolso da calça (os médicos lhe amputaram a perna, e por muitos anos ele participou d grupo de altíssimo risco que recebe do goveno federal remédios para controlar a imunosupressão).

Nesses dois eventos, o que falaram para mim sempre foi: fique aqui, não vai lá! No periodo de quarentena em que ficáramos desprovidos de nossa casa, minha família e eu fomos morar em um outro apartamento. Lá, a terceira novidade shopenhaureana a me esperar quando voltava da escola foi um tio trancado no sombrio e silencioso apartamento, o qual, ao contrário da norma, minha mãe já da portaria me instigara: "Corre e vê se sobe lá para impedir que seu tio se suicide!". Mas esse é tema para outro texto.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Dois Profetas em Sua Própria Terra: Thomas Mann e Günter Grass



Mann é um de meus cinco ou três autores preferidos. Tudo que foi lançado dele por aqui eu devorei como um devoto. Suas obras que mais me arrebataram: Doutor Fausto, Os Buddenbrooks, Montanha Mágica e os dois primeiros volumes da tetralogia de José e Seus Irmãos. Não sabia que houvera antipatia entre Mann e Bernhard; apesar das maravilhas do autor de Naufrago, para mim Mann é superior e um autor muito mais completo. 

Agora sobre Schoenberg, no livro do Alex Ross, O Resto é Ruído, o jornalista diz ter havido uma parceria harmoniosa entre Mann e o criador do método dodecafônico, tendo sido longas as sessões de aprendizado com o músico.

Acho que Doutor Fausto tem sim um forte significado como alegoria da Alemanha nazista, e não se pode ignorar isto, tanto pelo que há de visível na obra como por um atestado de maturidade política de Mann que, num curto momento do passado, chegara a defender o facismo. Doutor Fausto é por demais suntuoso para ser apenas um compêndio para fanáticos por música erudita, assim como dizer que O Perseguidor, o conto semi-biográfico sobre Charlie Parker, é um mero tributo do gosto de Cortázar pelo jazz. Neles há um inerente e incontornável estudo sobre a CONDIÇÃO HUMANA. Desde que li uma resposta sua a um comentário sobre Ulisses, acho que você caiu na armadilha natural de não resistir ao fardo destas expressões manjadíssimas como condição humana e modernidade. Mas o fato é que toda grande obra literária não foge a isto, e tanto é maior por nos oferecer a CONDIÇÃO HUMANA fresquinha, como se fosse a primeira análise do protótipo. Doutor Fausto é um entremeio de séculos de conhecimento humano, com uma roupagem proposital de reação à MODERNIDADE apresentada pelo estilo narrativo de Mann, que sempre foi condenado pelos críticos acadêmicos por ter fortes resquícios de oitocentismo, por ser barroco e pouco INOVADOR. E esses críticos, na mesma proporção em que eram calibrados na mais focal especialização, tendiam a ser obtusos como leitores, pois Mann era um autor independente, contrario a modismos e avesso ao mundo moderno. Adrian Leverkün, numa das passagens memoráveis da obra, grita que iria reinventar a nona sinfonia de Beethoven: abaixo a nona sinfonia. E ele acaba como um gênio fracassado, destruído por sua incapacidade em se manter afastado e imune à sociedade. Os asilados de Montanha Mágica são o símbolo mais óbvio deste pensamento manniano de afastamento e insolvência. O professor Settembrine, um dos alteregos de Mann, era a ponte entre o passado que ainda reservava uma esperança de evolução moral para o homem, e o presságio gritante de que as próximas décadas da história seriam a extinção completa de que essa evolução algum dia poderia vir; em seus brilhantes monólogos com Hans Castorp, a premonição de que todos aqueles confinados caminhavam para um lamentável estágio de obsolecência diante um mundo que trocara o humanismo pela técnica desenfreada. Toda a obra de Mann, numa radicalização total, é premonitória e reacionária. Quando esperavam que produziria, do alto de sua posição confortável de clássico vivo, uma obra que refletisse sobre a Alemanha pós-hitler, ele, em outro atestado de independência, escreve a magnífica tetralogia sobre… José, refugiando-se numa história bíblica, “a mais bela história que Deus inventou”; e mesmo nesse infinito quadro sobre um dos patriarcas judeus, vemos a alegoria sutil, a contestação, o empunhar da escrita como uma arma contra a mesquinhezação e a mediocridade, contra o avanço do poder sobre os homens e seus cenários. Como disse Phlip Roth em relação a si mesmo, desde jovem optou por se refugiar nos cantos do discurso. Por isto Doutor Fausto não é mais uma história da música que a história da decadência humana, do grande engodo do homem por ter optado pela senda avessa e mais larga. 

Te invejo muito por suas conversas com Caro. Canetti é outro dos meus preferidos. A obra que mais podemos aproximar dele de Mann não é o seu único romance, mas o grandioso ensaio sobre o poder e a dominação intitulado “Massa e Poder”. Também um grande conhecedor de música, o último capítulo desta obra é tão arrebatador quanto a nona sinfonia_ sem exageros. Outra arma para poucos que irão ler num mundo onde cada vez mais números e alienação e menos homens.

Toda o romance alemão a partir de Mann demonstra um saudosimo pessimista diante a destruição para a qual a sociedade segue. Num romance ,a seu modo particular bastante interessante, de Gunter Grass, o “A Ratazana”, também uma alegoria radical (e psicodélica) o homem na cápsula espacial que fala com a ratazana, tentado contornar de toda maneira o anúncio que o roedor faz de que toda a Terra que ele vê lá de cima está desprovida de um único ser humano e tomada pelos ratos, devido a uma hecatombe nuclear, o homem da cápsula espacial diz:

_ mas e se nós pudéssemos voltar atrás e refazermos tudo da maneira certa, compreendendo melhor, sendo mais caridosos e procurando dirigir a técnica à nosso benefício e não contra nós; e se nos fosse dado uma outra chance com base nesse compromisso.

Ao que a ratazana responde:

_ Ah, que belo sonho.

                                                                *  *  *

Eu uso Gunter Grass para medir o desencanto que a grande arte _em todas as suas manifestações_ ganhou no mundo de hoje. Qualquer livro de Grass, até o best-seller "O Tambor", revela isso que ele afirmou acima, que sua pátria é a literatura. Grass escreveu o que quis, do modo como quis. Parecia pouco importar em tornar qualquer coisa que escrevia degustável; diante sua escrivaninha não havia nenhuma dimensão aberta para intrusão de terceiros, só ele e sua benéfica solidão de criador. Lendo "O Tambor," se vê desde a primeira frase o quanto lhe deliciava sua arte. Palavroso, detalhista, repetia Stendhal em sua afirmação de que nunca resistia a lugares que o convidava a sentar para escrever; e quando sentava, como escrevia bem. Como demonstrava conhecimento da literatura alemã, e como afastava o perigo de sucumbir ao seu peso demonstrando que sua proficiência abarcava todas as literaturas, e a História. Estava muito bem municiado aos trinta anos, e sabia quem tinha que matar, no conselho didático de Hemingway; e conseguiu um feito raro, que é produzir um primeiro livro que já fosse, de imediato, uma obra prima.

"O Tambor" deslinda as hipocrisias, o vazio, a desesperança, a fé atirada no abismo mais profundo (a fé num demônio astuto que levara a alma da Alemanha), a grosseria, a ingenuidade, a inocuidade da História. Mas seu maior feito é mesmo a falta de sutileza, ou, mais precisamente, a falta de etiqueta. Era capaz das grosserias mais nojentas. Seus personagens engolem engias, refugiam-se debaixo de mesas para surpreender pés concupiscentes roçando por debaixo de saias de matronas ditas respeitáveis, são crianças famélicas que tem tanto talento para a degeneração sexual que veem seus próprios corpos fornicando, à distância, uma contemplação que seria oriental se não diagnosticasse um niilismo incontornável. Essa grosseria grassiana, contudo, é capaz de, em contraponto, revelar num impacto cenas de beleza assustadoras. 

Em seu melhor livro _ na minha opinião_, o barroco “Anos de Cão”, a menina Tulla, personagem das apaixonadas cartas de seu primo amante no campo de batalha da segunda guerra, é uma devassa de primeira. Seu “buraco”, nas palavras nada eufemísticas de Grass, era usado como material de troca por todos os homens que ela conhecia. O contraste do amor que seu primo lhe dedica, e o quanto ela é incapaz de enxergar algo sublime no sexo além da mera sobrevivência, cria um vácuo nos sentimentos do leitor. Parece ao leitor que deva encarar os personagens como são mostrados: bichos insensíveis de um intervalo longo no inferno. Mas essa grosseria, essa dessensibilização instrumental, nos faz engolir em seco nas mortes trágicas desses personagens. Grass nos leva além da percepção trivial ou da piedade norminativa para podermos interpretar da forma mais fiel o quanto a humanidade ficou mutilada pelo século passado, e o quanto os frutos daninhos da queda do que nos afirmava como humanos está crescendo e dominando tudo à nossa volta (ler o “A Ratazana”, em que ele encena o fim do homem); o quanto a História está engendrando novas catástrofes e novos tempos de fúria, sem surpresa e previsívelmente.

Ontem li algumas das cartas do ator inglês John Gielgud. A mesma desilusão diante o definhamento da música, do teatro, da literatura, do cinema, e a mesma resignação exilada da prostituição que assola todas as manifestações do que antes era atribuída ao espírito. Quando Grass lançou sua autobiografia, “Nas Peles da Cebola”, a crítica viu a “confissão” de um ex-adolescente que por um momento não resistiu à filiação à brigada jovem nazista, como se isso fosse a desmistificação de um herói nacional pio e incorruptível. Disseram ser o desespero de Grass por vender que o tivesse feito apelar para atitudes polêmicas. No que Tony Judt escreveu em sua belíssima e fundamental compilação de ensaios sobre o século XX,”Reflexões Sobre Um Século Esquecido”, o esquecimento compulsório das mazelas do referido século não nos faz bem. Nos tornam mais alienados e invulneráveis às velhas forças da História; a não-reavaliação da esquerda nos dá uma esquerda amorfa e infantilizada, dormindo com as luzes acesas para não vermos o fantasma do armário; a complacência em repudiarmos o pensamento para nos enganarmos de sermos intelectualizados pela internet, nos faz aceitarmos a espoliação dos raros benefícios conseguidos no século XX, o fim do estado previdenciário, o fim dos direitos trabalhistas, a volta feroz do neoliberalismo, a burrice extrema e a insensibilização de confinados egoístas. Quem acusa Grass da impiosidade do nazismo não leu, não aprendeu, que a maioria absoluta das pessoas sucumbe ao mal quando não pensa, quando adota o comportamento de rebanho (nas palavras de Nietzsche).

                                     cena do filme "O Tambor", de Volker Schlöndorff (1979)

(Dois comentários meus postados no blog do Milton Ribeiro)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Um Lear Americano


Ao longo dos anos de vivência pessoal em que nada de muito diferente resta a nos esperar pela frente e do aprofundamento cada vez maior numa era tecnológica onde os prazeres intelectuais se amoldam a modelos rápidos e superficiais, é uma surpresa poder ler um romance como O Teatro de Sabbath, lançado há apenas recentíssimos quinze anos. Nessa epopéia que não se presta a nenhuma classificação convencional, Philip Roth atinge a marcação histórica de finalmente lançar a pedra fundamental de sua escrita no escore dos grandes nomes literários do século XX, após uma série de obras menores e três acertos que, sem o salto olímpico que o autor se reservava dar na produção do sexagenário, provavelmente se perderia numa bibliografia limitada a uma prosa competente, mas perecível. A trajetória de Mickey Sabbath, o herói enroldado em um triste ciclo orgiástico adotado como contra-dogma para suportar a bestialidade cotidiana, compõe a mais poderosa, engraçada, virulenta, desesperada, sequiosa por vida e paixão e, ao mesmo tempo, desapaixonada e suicida, sequência de episódios sobre a deploração humana, construída numa prosa igualmente retumbante, fluida e genial. São 507 páginas na reedição da Companhia das Letras (que teve a misericórdia de atender aos vários pedidos de leitores postados no site da editora, para que se relançasse esse título há muito esgotado) em que o completo domínio de Roth por seu projeto transparece tão nitidamente que o leitor tem aquele privilégio raro de compartilhar a felicidade do trabalho, o cansaço, a volúpia e a impressão de vazio nostálgico após a leitura concluída, que o autor sentiu ao escrever. Algo que só se sente com os grandes romances e que a mim se liga ao manuseio físico do volume em que este apresenta no final os sinais da intimidade adquirida, o amarelar da lombada das páginas, a perda do brilho da capa, a aparência de que foi espremido e digladiado com volúpia.

Como outro romance erótico _ Lolita _, o tema de O Teatro de Sabbath está longe de ser o sexo. E nisso é bom demorarmos um pouco. Tendo a achar que com os outros leitores aconteça a mesma falta de entusiasmo que eu sinto diante ao romance erótico. O que poderia ter de mais desalentador do que confrontar-se com uma promessa não cumprida, uma propaganda onde as fotos ilustrativas coloridas abundantes não correspondem ao cenário real do destino da viagem, o filme revolucionário que repete mascaradamente as mesmas técnicas de espanto exploradas em excesso pelo cinema europeu? Pois romance erótico é um rótulo fadado desde o início ao banho gelado do anti-clímax, considerando uma classe de leitores bem intencionada para a qual o clímax ainda desperte um desejo estético de reavivamento nostálgico de antigas descobertas. Nada pode haver de novo no domínio da imaginação erótica que ganhe restrito potencial na palavra escrita, que possa prescindir da imagem visual e dos recursos da sonoplastia, bastando-se naquilo que hoje só compreendemos com uma generalizada percepção antropológica em O Amante de Lady Chatterley, Nexus, A Filosofia da Alcova, nos relatos de Anaïs Nin , etc. Nenhuma perversão hoje em dia é velada o suficiente para acharmos que não será na net, nos shows das cantoras do show business avalizadas pela Camile Páglia, ou nos eventos sociais da multidudinária vida cosmopolita noturna, mas nos livros, que encontraremos a redenção carnal de lubricidade inédita nunca alcançada. E um autor como Roth é inteligente o suficiente e comprometido por demais com áreas de exploração espiritual menos enredadas com as exigências industriais para não se ater a orgasmos, adultérios e primadas descrições de cópulas para tornar o romance interessante a uma fatia do mercado. Como em Lolita, O Teatro de Sabbath fala sobre a redenção pela repulsa, extrai do verniz colorido e frenético do sexo comercial tornado onipresente nas vitrines midiáticas a única forma ainda provocante de tornar a narrativa sexual genuína e legítima: o sexo como fator de omissão aos estereótipos sociais, como um desvio padrão insuficiente para expor as escoriações profundas da alma humana e das indagações apagadas mas não menos angustiantes que ela continua fazendo à filosofia, e que contudo se firma como uma opção subalterna poderosa por revelar a insuficiência inexaurível da normatização da vida oficial. Não é à toa que a cena mais excitante de O Teatro de Sabbath, a que consegue motivar aquele adolescente curioso pelo livro proibido de ginecologia que por ventura ressurge no leitor, é justo a que Sabbath imagina a sua esposa alcoólatra de quase sessenta anos se masturbando na cama. A esposa a qual Sabbath não sente nada além de um asco suficiente para abandonar o relativo conforto do lar e se tornar um mendigo em Nova York. Outra cena lúbrica é a da já famosa nota de rodapé mais extensa da literatura, a reprodução ipsis litteris do diálogo telefônico entre um Mickey Sabbath jovem e vigoroso com uma aluna prestativa ao extremo, com invocações diretas a todos os fervores sexuais que sua ainda não destruída saúde tinha direito a ponto de ser a causa de sua futura ruína social. Pareceria pornografia consistente se Roth não deixasse claro que a ninfeta tem um ar de retardamento alienado e pesa bem mais que o exigido para certos padrões do gênero.

Outro mérito de Roth é ser completamente decantado da necessidade de excessos de tinta para pintar esse painel já carregado de excessos de outros níveis. Em mãos apenas talentosas, o romance ofereceria espaços atrativos para a ironia, a caricatura e a sátira de tal forma que o autor não poderia recusá-las. Um dos passatempos preferidos do Sabbath velho e artrítico é visitar o túmulo de sua amante Drenka Balich de madrugada, num cemitério deserto e afastado, e se masturbar tristemente diante o retângulo de terra onde está enterrada a mulher que mais amou na vida. Sempre que está enredado nessa tentativa de absolvição solitária, lhe acontece algo ainda mais inusitado: o filho de Drenka, o patrulheiro do condado que o odeia profundamente, surge por entre as sombras para agredi-lo. Uma cena tal como essa é um ímã inevitável para que um romancista empregue sua verve rabelaisiana a fim de tornar a coisa convincente, extirpando os apêndices incômodos da inverossimilhança que provocam descrédito no leitor. Mas Philip Roth não usa de nenhuma ironia ou astúcia humorista para descrever essas cenas: a impressão de absurdo vem ao leitor, mas de uma forma que causa uma identificação com a inerente propensão humana a se desvestir das aparências sociais e se entregar ao desamparo. Todo o repúdio que Mickey Sabbath provoca, um personagem de carne e osso dos mais reais da literatura, se anula pelo seu gritante desamparo.

O Teatro de Sabbath, assim como Complexo de Portnoy, é desbragadamente engraçado. É um presente de prazer estético tão recheado de inteligência e gênio que só as cenas hilariantes já justificariam sua leitura. Sabbath foi enxotado de casa pela mulher, que não agüenta mais as humilhações a que o velho libidinoso a obrigava a passar, e, sem casa, vagando pelas ruas de Nova York com as roupas em estado lastimável, de repente se vê caído nas graças de um amigo de universidade que, ao contrário de si, prosperou exemplarmente. Esse amigo o leva para seu gigantesco apartamento de frente ao Central Park, o alimenta, o convida a ficar o tempo necessário até que Sabbath rearranje sua vida. E as forças que determinam que Sabbath sempre seja ingrato a qualquer tipo de bondade que bons samaritanos bem intencionados lhe destinam, o fazem cair mais uma vez no seu incansável vício de promiscuidade. As tentativas de Sabbath para levar a mulher desse amigo para a cama, e as fantasias a que Sabbath se entrega no quarto da filha do casal (explorando as gavetas das calcinhas da menina que está universidade), são carregadas de um pedante suspense que se resolve num riso solto não excluso de culpa.

Outros fatores que tornam esse romance grandioso é a exuberância da escrita de Roth onde tudo se encaixa sem revelar o molde e a premeditação, numa naturalidade que confere ao leitor a certeza de estar em boas mãos, de que o autor não vai escorregar um milímetro sequer, nem nas cenas em que Sabbath recorda o irmão morto na guerra. E a inteligência de Sabbath, sua música interna selvagem que ecoa Shakespeare, sua argúcia que não se rende ao pensamento institucionalizado e o desmoraliza até nos altos escalões da filosofia e do academicismo por conhecê-lo tão bem. A erudição e a lucidez de Sabbath parecem brincar com o pensamento recôndito de que tem algo de invejável ser um mendigo excessivamente culto, que opta pela dissolução por vontade própria e por um senso de rebelião que é o único digno e verdadeiro. Roth mais tarde escreveria uma trilogia de romances também com uma estatura tão assertiva, mas é com O Teatro de Sabbath que ele garantiu seu lugar entre os maiores escritores que a língua inglesa já produziu. 

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Rock- Uma nota para capa

                                                                   Frank Zappa
por Salman Rushdie

Frank Zappa e The Mothers of Invention estão se apresentando no Albert Hall. É o começo dos anos 70. (Como dizem, se você lembra a data exata é porque não estava lá.) Na metade do concerto, um enorme negro de camisa roxa brilhante sobe ao palco. (A segurança era mais leve naqueles dias inocentes.) Ele oscila um pouco e insiste em tocar com a banda.

Zappa, imperturbável, perguntou, sério: “Sim,senhor, e qual é o seu instrumento preferido?”.

“Trompete”, resmungou o Cara de Camisa Roxa.

“Dê um trompete para o cara”, Frank Zappa mandou. No momento em que o Cara de Camisa Roxa toca a sua primeira nota terrível, fica claro que a habilidade dele com o trompete deixa muito a desejar. Zappa parece brevemente perdido em um pensamento, queixo apoiado na mão. “Humm.” E vai ao microfone. “Estou pensando”, ele medita, “no que q gente podia tocar para acompanhar esse cara com o trompete.” Ele tem um estalo, uma inspiração trombeteira. “Já sei! O poderoso órgão de foles do Albert Hall!”

O poderoso órgão de foles do Albert Hall estava efetivamente interditado à banda, mas agora um dos Mothers começa de fato a escalar a grande fera, se encaixa na cabine do organista, puxa cada uma das alavancas e quase põe teatro abaixo com uma versão ensurdecedora de “Louie, Louie”. Fom-fom-fom/ fom-fum!

Enquanto isso, no palco, o Cara de Camisa Roxa apita, absolutamente feliz, totalmente inaudível, enquanto Frank Zappa o observa carinhosamente, como o benevolente e subversivo pensador que é.
                                   
                                                                     * * *

Essa vivacidade não é geralmente uma qualidade associada ao rock, e quando se escuta os grunhidos de Cro-Magno da maioria das estrelas do rock, rapidamente se entende por quê. Apesar das Spice Girls, porém, o rock-and-roll tem uma longa história de achados e acertos musicais.

Tem Elvis dizendo ser tão agitado como um homem alérgico numa árvore felpuda.

Tem a agilidade verbal de John Lennon. (“Como você achou os Estados Unidos?” “Virei à esquerda na Groenlândia”.)

Tem Randy Newman, que prova, em “Sail Away” [Navegar para Longe], que uma canção pode ao mesmo tempo ser um hino e satírica. (“Na América, tem muita comida/ Ninguém precisa ir para a floresta e gastar os pés.”)

Tem as letras surrealistas associativas de Paul Simon. (“Por que eu tenho coração tão mole/ se todo o resto da minha vida é tão duro?”)

E tem o trovador que fica acima de qualquer categorização, Tom Waits, contando suas ásperas histórias de vagabundo sobre gatos de rua e cães vadios. (“Tenho as cartas mas não tenho a sorte/ tenho as rodas mas não tenho o caminhão/mas, ah, eu sou grande no Japão.”)

Em tudo isso já há muita coisa para o pessoal literário estudar e admirar. Não faço parte da escola de exagero dos fãs de rock que acham que letra de música é poesia. Mas sei que ficaria ridiculamente orgulhoso de ter escrito qualquer coisa assim tão boa. E adoraria ter o talento, humor e a agilidade mental que Frank Zappa mostrou no Albert Hall aquela noite.

(De Cruze esta Linha, lançado pela Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira, maio de 2007)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Patagônia

                                                                     Vladimir Safatle

Recuperei alguns amigos através da net, amigos da universidade, de bairros onde morei por algum tempo, de cidades onde a aventura do diploma recém ganho me fez ir e que me ficaram na memória como remansos que só existiam enquanto estive lá, com sua vida prosaica e sua população de mil habitantes. A net resgatou todos eles para mim, me mostrando que a distância os transformaram em diversos níveis de profundidade. Um dos meus melhores amigos, José Canavarros, que não o vejo há doze anos, o maluco despojado com quem aprendi muita coisa e formamos uma banda despretenciosa com um nome um pouco menos (God´s Sound), me fez ver o quanto eu mesmo me tornei outra pessoa. José tem dois filhos, assim como eu, e deve sentir a espécie de aturdimento que eu sinto pela roupa do adulto sereno e atarefado ter-lhe caído tão bem no corpo. Quando o vi pelo Facebook me passou uma fagulha de vergonha de reconhecimento por termos traído aquelas ideias seriíssimas de liberdade, e me doeu calmamente a memória de que quando o dia prefixado chegou, nossos pés se desviaram da longa trilha da Patagônia com a qual sonháramos tanto. Eu estudei espanhol, ele, que já o sabia, comprou e aprendeu a tocar um charango.

Também tive o choque de descobrir que um outro amigo dos tempos da veterinária morreu escorado a uma árvore. Poderia-se ter imaginado por detrás de seu olhar que não pousava mais que alguns segundos nos objetos, que as drogas o cosumiriam? Minha primeira namorada se casou, teve dois filhos, o marido a deixou, seu irmão deu-se um tiro fatal no ouvido, e a encontrei com o carro roubado acionando o seguro em  alguma esquina do Google. Ontem, porém, ou antes de ontem, me aconteceu o maior choque dessas redescobertas todas. Assistindo ao Jornal da Cultura, vejo que um dos usuais professores universitários que comentam por lá, não me era de forma nenhuma estranho. Aguardei o anúncio de seu nome e, era ele: Vladimir Safatle. Meu Deus, há quanto tempo não pensava nele! Estudamos juntos no Colégio Objetivo de Goiânia, e tínhamos 16 anos. Desde então, depois que nos afastamos, por uma incrível distração eu o havia apagado da memória. Não, é mentira. Uma ou outra vez,  trazido por alguma correlação de pensamento, punha-me a cogitar o que a vida tinha feito dele. Lembrava-me que um amigo daqueles tempos, que hoje, aliás, o encontrei médico pelos espaços virtuais, dizia que não chegaria aos trinta anos, um suicídio o aguardava cordatamente pela frente. Nunca compartilhei com essa teoria.

O Vladimir hoje, abaixo da calvície que lhe saiu melhor que o receio (entre os ruivos e os negros, a calvície cai bem, azar o meu!), é exatamente igual ao quando tinha 16 anos. Era um cara para lá de excentrico, e dono de um senso de humor que se firmava nas reticências e no olhar de resignação diante sua superioridade intelectual entre nós, os outros moleques. Conseguia despertar o riso alheio por se misturar a um senso de vergonha que compartilhávamos diante ao segredo que levava. Ele chegava à sala de aula sempre com alguma novidade chamativa no corpo, disfarçada como algo naturalíssimo. Ia com alfinetes enfiados na carne das bochechas, com a cara maquiada ou simplesmente com um risco enigmático rosa traçado da orelha  à boca. Dormia com o rosto no tampo da mesa religiosamente durante todas as aulas, insistindo em se levantar como um Lázaro ressuscitado por alguma besteira dita pelo professor para lançar com sua voz rouca (embargada ainda mais pelo sono) a verdade sobre o tema. Os professores não o gostavam muito, compreensível. Chegava quinze minutos antes das provas, com um olhar de desconhecimento simulado, e, com um caderno emprestado em mãos, em sua modéstia ostensiva mostrava o quanto sua concentração era primorosa por apreender o conteúdo de uma vez.

Ele tinha ido ao programa do Jota Silvestre e ganho o prêmio máximo de conhecimentos gerais. Sua figura de garoto esfalfado por uma felicidade estranha desvinculada aos brinquedos comuns dos outros garotos rodara o Brasil inteiro, a criança prodígio do Fantástico. Claro que um garoto cabeludo com a cara cheia de timidez estúpida como eu não poderia interessá-lo, e meu nível de autismo social era muito grande para também ele me interessar. Mas aí me deram um prêmio de literatura e ele se achegou a mim. Passou a me instruir em vernissagens que serviam bebidas alcóolicas, me apresentou ao García Márquez, ao Joy Division, e me emprestou o Crime e Castigo em volume duplo. Fui a uma apresentação de sua banda "Oficina de Testes", e até hoje não compreendo o disparate da música dark que ele compunha aceitar um vocalista rebolante que queria ser o Paulo Ricardo.

Uma vez eu levei a melhor sobre ele. Para fugir ao martírio de assistir ao Beijo da Mulher Aranha, anunciei ao bilheteiro que tínhamos 16 anos. Em represália, quase fomos linchados pelo público impressionado de Alienígenas do Espaço, quando ele passou a comentar alacremente cada cena do filme em voz alta. Sua casa tinha um ambiente pesadamente intelectual. Ele era uma cópia do pai, taciturno, avidamente grudado a suas crenças políticas, se havia carinho por ali era segredo para horas noturnas, escondido do olhar alheio e da consciência de autoimportância. Minha família também tinha o mesmo hermetismo, mas essa semelhança em vez de me alegrar me deixava mais deprimido. Preferia os amigos com radiosa normalidade burguesa.

Nossa amizade chegou ao fim por causa de um aspirador de pó. Havíamos comprado, cada qual, o LP que trazia a melhor canção nunca cantada pela Madonna, "Maria Madalena", de uma tal de Sandra . Estávamos na casa de minha mãe e ele, num de seus arroubos de inconstância, olhou para o aspirador de pó  e, sentenciando-o como objeto fútil da burguesia, lançou-se a destruí-lo com os pés e mãos até reduzir a coisa a fragmentos de plástico. Rolamos no chão na porrada, um enforcando o outro até não sei quem obter a rendição. Ele saíu pela porta, para minutos depois voltar para pegar a Sandra que havia esquecido por sobre a mesa. Nunca mais nos vimos, o que pode ser razão da bolha de supressão que minha memória criou.

O que eu posso dizer agora, do alto da minha maioridade, caso Vladimir tenha um tracking tão bom a ponto de cavucar esse blog obscuro. Cara, eu também odiava aquele aspirador!

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Solar, de Ian McEwan


McEwan não funciona bem quando cisma em escrever como os escritores americanos. Ele só consegue mostrar melhor a que veio quando admite sem peso de consciência a sua descendência direta de Jane Austen e Henry James, do romance elizabetano e da narrativa amparada pelos cacoetes da tradicional ficção da Grã Bretanha, ou seja, nas descrições das tragédias pessoais provocadas pelos bombardeios em Londres, na Segunda Guerra, nas tramas de espionagem, no thriller não muito movimentado maneirado na pomposidade dos súditos da rainha. Quando McEwan se deixa ser um típico escritor inglês, ele produz peças que se sustentam por si mesmas com mérito, como é o caso de Reparação e Amsterdã.

McEwan é um desses escritores cuja autocrítica não lhe faz bem. Quando se cansa de seu inglesismo, da frase bem construída, presa ao dever de honrar a pureza do idioma extirpando-a de neologismos e palavrões, lhe vem a vontade de escrever com o desprendimento e as corrupções lingüísticas dos seus contemporâneos do outro lado do Atlântico, aí ele se dá mal. Torna-se tão artificial que sua produção sob esse modo poderia ser usada exemplarmente em cursos de escrita criativa sobre o que não se deve fazer em um romance, ou como o escritor decai da originalidade quando sucumbe à escrita programática, seguindo modelos estipulados. McEwan já foi autor de roteiros para a televisão.

Em seu novo romance, “Solar”, McEwan não só quer escrever como os americanos como elege um, especificamente, como objetivo de imitação: Philip Roth. Se em “Sábado”, ele seguiu na cola de Saul Bellow (também não tendo os melhores resultados), em “Solar” McEwan compõe uma encarnação desproteinada de Mickey Sabbath em seu personagem principal, o Nobel de física Michael Beard. Como Sabbath, Beard é um dissidente ultra cerebral das sutilezas sociais e dos valores familiares, e ambos trabalham com ardor para conspurcar a máscara da estabilidade moderna com seu niilismo sarcástico e autodestrutivo. O sexo é a palavra chave para esses gêmeos devassos. Michael Beard enxerga o longínquo jovem que fora como um avatar desaparecido que, num lance de genialidade, teve sua única ideia, a mesma que lhe conferiu o Nobel e a fama mundial. É por demais preso ao ciclo hedonista de suas mulheres, colesterol e álcool, para acreditar uma vírgula no projeto patrocinado por um político inglês de desenvolver energias alternativas no intuito de salvar o planeta de dois séculos de combustão industrial. McEwan aqui faz o que mais sabe: a construção de um clima de presságio amparado em desenganos, anticlímax e situações pitorescas que dão a certeza de que o herói encontrará seu final funesto. E Beard realmente não poderia ser um personagem de novela das seis, pois não está fadado à felicidade conjugal, à fortuna financeira ou à conversão paulina a uma bondade humanista.

Até aqui tudo bem, mais um romance em que se é apresentado um cordeiro humano cujo sacrifício progressivo é ditado sem surpresas pela conseqüência de seu mau caráter e seu espírito frívolo. Era uma especialidade de Dostoievski, muito antes de Bellow e Roth impingirem suas marcas judaico-americanas no romance. McEwan claudica o passo quando tenta, à maneira desses escritores, se aprofundar na intimidade de seu personagem Michael Beard, explorar a sua degradação passo a passo para nos dar a constituição de seu coração sombrio. E o que resulta disso são passagens mal engendradas e propositadamente omissivas, mostrando que McEwan é um inglês muito acadêmico e diligente com sua família para ter demônios pessoais à mão para consultar e tornar verossímil seu modelo de depravado simpático que passou por seis casamentos e rejeitou uma filha. Ao longo de “Solar”, Michael Beard caminha em sentido avesso ao pretendido por McEwan, tornando-se cada vez menos íntimo do leitor. McEwan perto do realismo lúbrico e da crueza impiedosa de Bellow e Roth fica parecendo o adolescente recém iniciado que quer por tudo exibir a sua malvadeza na forma desaforada de andar, mas que na hora de cortar a cara do inimigo com uma garrafa não consegue dissimular a crença em uma boa conversa reconciliadora. Mas claro que estamos, afinal, falando do autor de “Reparação”, um profissional com inteligência acentuada e horas de ofício para ter a noção de contornar todos esses sinais de fraqueza, o que resulta em uma série de estratégias e técnicas romanescas que, à força de consertar um lado, reduz a obra a uma apenas competente peça de diversão e leitura rápida. É visível que as três partes do romance foram escritas em separado e costuradas para dar a impressão de continuidade.

O que vale do livro, como sempre, é a inteligência de McEwan, o humor que, nesse caso, ganha com sua gratuidade por aparecer sem relação à trama (o melhor é o acidente banalíssimo quase fatal que Beard sofre numa viagem ao pólo norte), além da atmosfera de sarcasmo quanto à burocracia desmiolada que move os ambientalistas em esquemas de atender a seus interesses pessoais enquanto a espécie humana se dirige para uma nébula de provável destruição. Mas fica chato essa obsessão do autor pelo tecnicismo minucioso que vem empregando desde “Sábado”, a descrição pormenorizada de uma série de inventos e teorias científicas que faz o livro parecer um dos Best-sellers de encomenda da Patrícia Cornwell ou um episódio da C.S.I. Em “Sábado”, páginas são preenchidas com a exploração do cérebro de um dos bandidos da trama, num retrato fiel de um procedimento neurocirúrgico; já em “Solar”, McEwan coloca na boca de Beard um longo discurso sobre as mais modernas propostas de energia renovável retirada do sol, contrabalançando o didatismo com a narração dos acessos de náusea do personagem.

O que McEwan deveria fazer seria anular a sua autocrítica quanto às tendências comerciais do romance contemporâneo e tornar a produzir sob o estigma de seu inglesismo elisabetano que ele soube tão bem traduzir para a narrativa moderna. Dessa forma voltará a transitar pelos extremos que mostrou ser mestre: na complexa densidade psicológica de “Reparação”, e na leveza ágil e iluminada de “Amsterdã”.