quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Dois Profetas em Sua Própria Terra: Thomas Mann e Günter Grass



Mann é um de meus cinco ou três autores preferidos. Tudo que foi lançado dele por aqui eu devorei como um devoto. Suas obras que mais me arrebataram: Doutor Fausto, Os Buddenbrooks, Montanha Mágica e os dois primeiros volumes da tetralogia de José e Seus Irmãos. Não sabia que houvera antipatia entre Mann e Bernhard; apesar das maravilhas do autor de Naufrago, para mim Mann é superior e um autor muito mais completo. 

Agora sobre Schoenberg, no livro do Alex Ross, O Resto é Ruído, o jornalista diz ter havido uma parceria harmoniosa entre Mann e o criador do método dodecafônico, tendo sido longas as sessões de aprendizado com o músico.

Acho que Doutor Fausto tem sim um forte significado como alegoria da Alemanha nazista, e não se pode ignorar isto, tanto pelo que há de visível na obra como por um atestado de maturidade política de Mann que, num curto momento do passado, chegara a defender o facismo. Doutor Fausto é por demais suntuoso para ser apenas um compêndio para fanáticos por música erudita, assim como dizer que O Perseguidor, o conto semi-biográfico sobre Charlie Parker, é um mero tributo do gosto de Cortázar pelo jazz. Neles há um inerente e incontornável estudo sobre a CONDIÇÃO HUMANA. Desde que li uma resposta sua a um comentário sobre Ulisses, acho que você caiu na armadilha natural de não resistir ao fardo destas expressões manjadíssimas como condição humana e modernidade. Mas o fato é que toda grande obra literária não foge a isto, e tanto é maior por nos oferecer a CONDIÇÃO HUMANA fresquinha, como se fosse a primeira análise do protótipo. Doutor Fausto é um entremeio de séculos de conhecimento humano, com uma roupagem proposital de reação à MODERNIDADE apresentada pelo estilo narrativo de Mann, que sempre foi condenado pelos críticos acadêmicos por ter fortes resquícios de oitocentismo, por ser barroco e pouco INOVADOR. E esses críticos, na mesma proporção em que eram calibrados na mais focal especialização, tendiam a ser obtusos como leitores, pois Mann era um autor independente, contrario a modismos e avesso ao mundo moderno. Adrian Leverkün, numa das passagens memoráveis da obra, grita que iria reinventar a nona sinfonia de Beethoven: abaixo a nona sinfonia. E ele acaba como um gênio fracassado, destruído por sua incapacidade em se manter afastado e imune à sociedade. Os asilados de Montanha Mágica são o símbolo mais óbvio deste pensamento manniano de afastamento e insolvência. O professor Settembrine, um dos alteregos de Mann, era a ponte entre o passado que ainda reservava uma esperança de evolução moral para o homem, e o presságio gritante de que as próximas décadas da história seriam a extinção completa de que essa evolução algum dia poderia vir; em seus brilhantes monólogos com Hans Castorp, a premonição de que todos aqueles confinados caminhavam para um lamentável estágio de obsolecência diante um mundo que trocara o humanismo pela técnica desenfreada. Toda a obra de Mann, numa radicalização total, é premonitória e reacionária. Quando esperavam que produziria, do alto de sua posição confortável de clássico vivo, uma obra que refletisse sobre a Alemanha pós-hitler, ele, em outro atestado de independência, escreve a magnífica tetralogia sobre… José, refugiando-se numa história bíblica, “a mais bela história que Deus inventou”; e mesmo nesse infinito quadro sobre um dos patriarcas judeus, vemos a alegoria sutil, a contestação, o empunhar da escrita como uma arma contra a mesquinhezação e a mediocridade, contra o avanço do poder sobre os homens e seus cenários. Como disse Phlip Roth em relação a si mesmo, desde jovem optou por se refugiar nos cantos do discurso. Por isto Doutor Fausto não é mais uma história da música que a história da decadência humana, do grande engodo do homem por ter optado pela senda avessa e mais larga. 

Te invejo muito por suas conversas com Caro. Canetti é outro dos meus preferidos. A obra que mais podemos aproximar dele de Mann não é o seu único romance, mas o grandioso ensaio sobre o poder e a dominação intitulado “Massa e Poder”. Também um grande conhecedor de música, o último capítulo desta obra é tão arrebatador quanto a nona sinfonia_ sem exageros. Outra arma para poucos que irão ler num mundo onde cada vez mais números e alienação e menos homens.

Toda o romance alemão a partir de Mann demonstra um saudosimo pessimista diante a destruição para a qual a sociedade segue. Num romance ,a seu modo particular bastante interessante, de Gunter Grass, o “A Ratazana”, também uma alegoria radical (e psicodélica) o homem na cápsula espacial que fala com a ratazana, tentado contornar de toda maneira o anúncio que o roedor faz de que toda a Terra que ele vê lá de cima está desprovida de um único ser humano e tomada pelos ratos, devido a uma hecatombe nuclear, o homem da cápsula espacial diz:

_ mas e se nós pudéssemos voltar atrás e refazermos tudo da maneira certa, compreendendo melhor, sendo mais caridosos e procurando dirigir a técnica à nosso benefício e não contra nós; e se nos fosse dado uma outra chance com base nesse compromisso.

Ao que a ratazana responde:

_ Ah, que belo sonho.

                                                                *  *  *

Eu uso Gunter Grass para medir o desencanto que a grande arte _em todas as suas manifestações_ ganhou no mundo de hoje. Qualquer livro de Grass, até o best-seller "O Tambor", revela isso que ele afirmou acima, que sua pátria é a literatura. Grass escreveu o que quis, do modo como quis. Parecia pouco importar em tornar qualquer coisa que escrevia degustável; diante sua escrivaninha não havia nenhuma dimensão aberta para intrusão de terceiros, só ele e sua benéfica solidão de criador. Lendo "O Tambor," se vê desde a primeira frase o quanto lhe deliciava sua arte. Palavroso, detalhista, repetia Stendhal em sua afirmação de que nunca resistia a lugares que o convidava a sentar para escrever; e quando sentava, como escrevia bem. Como demonstrava conhecimento da literatura alemã, e como afastava o perigo de sucumbir ao seu peso demonstrando que sua proficiência abarcava todas as literaturas, e a História. Estava muito bem municiado aos trinta anos, e sabia quem tinha que matar, no conselho didático de Hemingway; e conseguiu um feito raro, que é produzir um primeiro livro que já fosse, de imediato, uma obra prima.

"O Tambor" deslinda as hipocrisias, o vazio, a desesperança, a fé atirada no abismo mais profundo (a fé num demônio astuto que levara a alma da Alemanha), a grosseria, a ingenuidade, a inocuidade da História. Mas seu maior feito é mesmo a falta de sutileza, ou, mais precisamente, a falta de etiqueta. Era capaz das grosserias mais nojentas. Seus personagens engolem engias, refugiam-se debaixo de mesas para surpreender pés concupiscentes roçando por debaixo de saias de matronas ditas respeitáveis, são crianças famélicas que tem tanto talento para a degeneração sexual que veem seus próprios corpos fornicando, à distância, uma contemplação que seria oriental se não diagnosticasse um niilismo incontornável. Essa grosseria grassiana, contudo, é capaz de, em contraponto, revelar num impacto cenas de beleza assustadoras. 

Em seu melhor livro _ na minha opinião_, o barroco “Anos de Cão”, a menina Tulla, personagem das apaixonadas cartas de seu primo amante no campo de batalha da segunda guerra, é uma devassa de primeira. Seu “buraco”, nas palavras nada eufemísticas de Grass, era usado como material de troca por todos os homens que ela conhecia. O contraste do amor que seu primo lhe dedica, e o quanto ela é incapaz de enxergar algo sublime no sexo além da mera sobrevivência, cria um vácuo nos sentimentos do leitor. Parece ao leitor que deva encarar os personagens como são mostrados: bichos insensíveis de um intervalo longo no inferno. Mas essa grosseria, essa dessensibilização instrumental, nos faz engolir em seco nas mortes trágicas desses personagens. Grass nos leva além da percepção trivial ou da piedade norminativa para podermos interpretar da forma mais fiel o quanto a humanidade ficou mutilada pelo século passado, e o quanto os frutos daninhos da queda do que nos afirmava como humanos está crescendo e dominando tudo à nossa volta (ler o “A Ratazana”, em que ele encena o fim do homem); o quanto a História está engendrando novas catástrofes e novos tempos de fúria, sem surpresa e previsívelmente.

Ontem li algumas das cartas do ator inglês John Gielgud. A mesma desilusão diante o definhamento da música, do teatro, da literatura, do cinema, e a mesma resignação exilada da prostituição que assola todas as manifestações do que antes era atribuída ao espírito. Quando Grass lançou sua autobiografia, “Nas Peles da Cebola”, a crítica viu a “confissão” de um ex-adolescente que por um momento não resistiu à filiação à brigada jovem nazista, como se isso fosse a desmistificação de um herói nacional pio e incorruptível. Disseram ser o desespero de Grass por vender que o tivesse feito apelar para atitudes polêmicas. No que Tony Judt escreveu em sua belíssima e fundamental compilação de ensaios sobre o século XX,”Reflexões Sobre Um Século Esquecido”, o esquecimento compulsório das mazelas do referido século não nos faz bem. Nos tornam mais alienados e invulneráveis às velhas forças da História; a não-reavaliação da esquerda nos dá uma esquerda amorfa e infantilizada, dormindo com as luzes acesas para não vermos o fantasma do armário; a complacência em repudiarmos o pensamento para nos enganarmos de sermos intelectualizados pela internet, nos faz aceitarmos a espoliação dos raros benefícios conseguidos no século XX, o fim do estado previdenciário, o fim dos direitos trabalhistas, a volta feroz do neoliberalismo, a burrice extrema e a insensibilização de confinados egoístas. Quem acusa Grass da impiosidade do nazismo não leu, não aprendeu, que a maioria absoluta das pessoas sucumbe ao mal quando não pensa, quando adota o comportamento de rebanho (nas palavras de Nietzsche).

                                     cena do filme "O Tambor", de Volker Schlöndorff (1979)

(Dois comentários meus postados no blog do Milton Ribeiro)

Um comentário:

  1. Thomas Mann é, pra mim, o maior escritor alemão contemporâneo. A reinterpretação do mito de Fausto feito por Mann é tão fundamental para nossa época quanto o Fausto de Goethe foi para o seu tempo. É pena que hoje ele praticamente não seja lido na Alemanha, parte por ainda ser considerado um exemplar do germanismo que ele mesmo rechaçava, parte por conta do hermetismo da sua linguagem.

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