segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Solar, de Ian McEwan


McEwan não funciona bem quando cisma em escrever como os escritores americanos. Ele só consegue mostrar melhor a que veio quando admite sem peso de consciência a sua descendência direta de Jane Austen e Henry James, do romance elizabetano e da narrativa amparada pelos cacoetes da tradicional ficção da Grã Bretanha, ou seja, nas descrições das tragédias pessoais provocadas pelos bombardeios em Londres, na Segunda Guerra, nas tramas de espionagem, no thriller não muito movimentado maneirado na pomposidade dos súditos da rainha. Quando McEwan se deixa ser um típico escritor inglês, ele produz peças que se sustentam por si mesmas com mérito, como é o caso de Reparação e Amsterdã.

McEwan é um desses escritores cuja autocrítica não lhe faz bem. Quando se cansa de seu inglesismo, da frase bem construída, presa ao dever de honrar a pureza do idioma extirpando-a de neologismos e palavrões, lhe vem a vontade de escrever com o desprendimento e as corrupções lingüísticas dos seus contemporâneos do outro lado do Atlântico, aí ele se dá mal. Torna-se tão artificial que sua produção sob esse modo poderia ser usada exemplarmente em cursos de escrita criativa sobre o que não se deve fazer em um romance, ou como o escritor decai da originalidade quando sucumbe à escrita programática, seguindo modelos estipulados. McEwan já foi autor de roteiros para a televisão.

Em seu novo romance, “Solar”, McEwan não só quer escrever como os americanos como elege um, especificamente, como objetivo de imitação: Philip Roth. Se em “Sábado”, ele seguiu na cola de Saul Bellow (também não tendo os melhores resultados), em “Solar” McEwan compõe uma encarnação desproteinada de Mickey Sabbath em seu personagem principal, o Nobel de física Michael Beard. Como Sabbath, Beard é um dissidente ultra cerebral das sutilezas sociais e dos valores familiares, e ambos trabalham com ardor para conspurcar a máscara da estabilidade moderna com seu niilismo sarcástico e autodestrutivo. O sexo é a palavra chave para esses gêmeos devassos. Michael Beard enxerga o longínquo jovem que fora como um avatar desaparecido que, num lance de genialidade, teve sua única ideia, a mesma que lhe conferiu o Nobel e a fama mundial. É por demais preso ao ciclo hedonista de suas mulheres, colesterol e álcool, para acreditar uma vírgula no projeto patrocinado por um político inglês de desenvolver energias alternativas no intuito de salvar o planeta de dois séculos de combustão industrial. McEwan aqui faz o que mais sabe: a construção de um clima de presságio amparado em desenganos, anticlímax e situações pitorescas que dão a certeza de que o herói encontrará seu final funesto. E Beard realmente não poderia ser um personagem de novela das seis, pois não está fadado à felicidade conjugal, à fortuna financeira ou à conversão paulina a uma bondade humanista.

Até aqui tudo bem, mais um romance em que se é apresentado um cordeiro humano cujo sacrifício progressivo é ditado sem surpresas pela conseqüência de seu mau caráter e seu espírito frívolo. Era uma especialidade de Dostoievski, muito antes de Bellow e Roth impingirem suas marcas judaico-americanas no romance. McEwan claudica o passo quando tenta, à maneira desses escritores, se aprofundar na intimidade de seu personagem Michael Beard, explorar a sua degradação passo a passo para nos dar a constituição de seu coração sombrio. E o que resulta disso são passagens mal engendradas e propositadamente omissivas, mostrando que McEwan é um inglês muito acadêmico e diligente com sua família para ter demônios pessoais à mão para consultar e tornar verossímil seu modelo de depravado simpático que passou por seis casamentos e rejeitou uma filha. Ao longo de “Solar”, Michael Beard caminha em sentido avesso ao pretendido por McEwan, tornando-se cada vez menos íntimo do leitor. McEwan perto do realismo lúbrico e da crueza impiedosa de Bellow e Roth fica parecendo o adolescente recém iniciado que quer por tudo exibir a sua malvadeza na forma desaforada de andar, mas que na hora de cortar a cara do inimigo com uma garrafa não consegue dissimular a crença em uma boa conversa reconciliadora. Mas claro que estamos, afinal, falando do autor de “Reparação”, um profissional com inteligência acentuada e horas de ofício para ter a noção de contornar todos esses sinais de fraqueza, o que resulta em uma série de estratégias e técnicas romanescas que, à força de consertar um lado, reduz a obra a uma apenas competente peça de diversão e leitura rápida. É visível que as três partes do romance foram escritas em separado e costuradas para dar a impressão de continuidade.

O que vale do livro, como sempre, é a inteligência de McEwan, o humor que, nesse caso, ganha com sua gratuidade por aparecer sem relação à trama (o melhor é o acidente banalíssimo quase fatal que Beard sofre numa viagem ao pólo norte), além da atmosfera de sarcasmo quanto à burocracia desmiolada que move os ambientalistas em esquemas de atender a seus interesses pessoais enquanto a espécie humana se dirige para uma nébula de provável destruição. Mas fica chato essa obsessão do autor pelo tecnicismo minucioso que vem empregando desde “Sábado”, a descrição pormenorizada de uma série de inventos e teorias científicas que faz o livro parecer um dos Best-sellers de encomenda da Patrícia Cornwell ou um episódio da C.S.I. Em “Sábado”, páginas são preenchidas com a exploração do cérebro de um dos bandidos da trama, num retrato fiel de um procedimento neurocirúrgico; já em “Solar”, McEwan coloca na boca de Beard um longo discurso sobre as mais modernas propostas de energia renovável retirada do sol, contrabalançando o didatismo com a narração dos acessos de náusea do personagem.

O que McEwan deveria fazer seria anular a sua autocrítica quanto às tendências comerciais do romance contemporâneo e tornar a produzir sob o estigma de seu inglesismo elisabetano que ele soube tão bem traduzir para a narrativa moderna. Dessa forma voltará a transitar pelos extremos que mostrou ser mestre: na complexa densidade psicológica de “Reparação”, e na leveza ágil e iluminada de “Amsterdã”.

7 comentários:

  1. Delete este comentário: sisma é cisma, acho.

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  2. Agora, outra coisa.

    Posso publicar esta crítica no Sul21, área de Cultura?

    Abraço.

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  3. Pesquisei no Google para confirmar: sisma é sinônimo da palavra do mais douto portugues vernacular "encasquetar", e tá lá no post no sentido de sismar. Cisma vem de cisão, que é outra coisa. Obrigado pela inferência.

    Claro que pode, será uma honra!

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  4. Por isso que não boto fé em oráculos: no Houaiss encadernado tá lá a coisa certa, é CISMA mesmo, de meditar.

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  5. OK.

    Pode me mandar um e-mail para miltonribeiro -- arroba -- sul21 -- ponto -- com -- ponto -- br?

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  6. Oi Charles,
    Sua crítica é quase um "tratado".
    Vou pelos caminhos mais simples.
    Muito bem escrito.
    Bom trabalho,
    www.morellifala.blogspot.com

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