domingo, 10 de dezembro de 2017

Crônica do pássaro de corda, de Haruki Murakami



Há romances que são bons pela solidão do personagem principal. É o caso de, por exemplo, "Fima", de Amós Oz, e "Dia de finados", de Cees Nooteboom. Esse "Crônica do pássaro de corda" pode ser encaixado na categoria se pegarmos as primeiras duzentas páginas. O narrador desse extenso livro de Haruki Murakami optou por abandonar a insípida vida de advogado de baixo escalão de um escritório de advocacia e passar seus dias trancado no micro-apartamento cedido por um tio para ele e sua esposa morarem. Sua esposa trabalha o dia inteiro e, muitas vezes, parte da noite, em uma revista de design, o que facilita ao leitor sentir o que, presumo, seja o fetiche mais procurado na obra de Murakami: a obsolescência urbana, a confortável desolação dos que não se coaptam à rotina efervescente de um Japão ultra-capitalista e utilitário_ o fetiche da rendição incondicional a um fracasso heroico rodeado pelas luzes e o eco do mundo externo que se insinuam dentro do pequeno exílio. 

Nisso, esse romance é excepcional, pelo menos para mim que adora todas essas nuances_ por isso, nessas primeiras centenas de páginas, realmente me deixei absorver por inteiro pelo hipnótico da obra. O narrador narra seus dias imutáveis, descreve a feitura de seu café da manhã, de seu almoço e jantar, a neve caindo na janela, a música clássica que ouve. Mas, em um calhamaço de 800 páginas, é natural que o leitor saiba que a coisa não ficará por aí. O segundo passo de Murakami, porém, ainda é convidativo, quando o narrador explora o beco que existe atrás de sua moradia e encontra uma casa abandonada, e passa a conversar com uma adolescente vizinha que também vive à parte da vida urbana consumista. Vem, logo em seguida, uma interessante reflexão psicológica suscitada por um confinamento voluntário no fundo do poço da casa abandonada. Daí para frente_ que deve ser, mais ou menos, a metade final do livro_, o livro passa a ser mortalmente irritante, a ponto do leitor suspeitar se foi boa coisa o autor abandonar o realismo de suas primeiras obras e se entregar ao fantástico e ao metafórico. Se tivesse escrito 800 páginas realistas sobre a exclusão passiva de seu herói, suponho que teríamos um grande feito em mãos, pois o ócio de Toru Okada por uma Tóquio climática e espiritualmente gélida é esplendorosamente descrito, com sutileza, elegância, introspecção e leveza. 

Mas, infelizmente, Murakami não sabe que não tem nenhum talento para a fantasia especulativa, e suas tentativas de construir mundos e personagens exóticos que representem sua pretensa dialética filosófica são simplesmente constrangedoras. Há no livro personagens que não fazem a mínima diferença no enredo, como duas irmãs videntes que tem pseudônimos de ilhas, que surgem, ocupam umas centenas de páginas com aparições absolutamente irrelevantes, e logo depois desaparecem sem nenhuma consequência. Há uma mãe e filho, também ambos com obscuros poderes sobrenaturais, que contratam Toru Okada para ser uma espécie de prostituto espiritual_ uma das coisas mais nebulosas e sem explicação do livro_, e que, em um dos últimos capítulos, também somem sem que suas passagens pelo enredo façam a menor diferença. Há uma narrativa histórica entremeada, bastante interessante_ artifício comum nos livros de Murakami_ com aproximações surpreendentes a Borges e Stevenson, que dariam excelentes contos ou uma novela concisa, mas que o autor faz questão de costurar na trama cada vez mais sem pé nem cabeça do romance. Há um pretenso vilão, o irmão mais velho da desaparecida esposa de Okada, que seria uma manifestação do mal assustadora nas mãos de Thomas Pynchon ou de qualquer competente autor best-seller secundário, mas que nas mãos de Murakami quase sequer aparece em cena, sendo criado e morto sem que qualquer interferência com o herói tenha sido promovida_ para o cúmulo da inanição narrativa, o que seria "o grande embate" entre ambos, herói e vilão, acontece em uma pálida e risível conversa via e-mails por computador. 

É tudo tão mal construído nesse livro que chega-se a se pensar se não seria essa fragilidade o que mais comove no autor: um raro caso de milhões de cópias vendidas para leitores que queiram viver no campo estético o isolamento murakamiano da própria literatura. A adolescente que completa as primeiras páginas do livro_ que, em uma ousada disposição de procurar interpretações simbólicas poderia ser interpretada como o "eu" ingênuo e puro de Okada_, reaparece como uma funcionaria de uma idílica fábrica de perucas escondida nas montanhas (????). Mas o mais indigesto no livro é a escolha do autor em concluir a trama com sonhos do narrador. Nada é pior para mim, na literatura, do que a narrativa de sonhos_ "Crônica de uma morte anunciada", por exemplo, com aquelas cenas iniciais de sonhos, se me afigura como a mais fraca obra de Garcia Márquez. E segue-se capítulos e capítulos em que Okada sonha, sonha, e sonha. É um atestado de extrema incompetência de Murakami que dois dos principais nós do enredo sejam resolvidos em sonhos: o reencontro de Okada com sua esposa desaparecida, e..., pasmem!, a morte do vilão (sim, o evento mais sagrado e arquetípico das narrativas do bem contra o mal, Murakami simplesmente dá a solução com a somatória de um taco de beisebol e os movimentos de R.E.M. do narrador). Mas vale a leitura? Sim, vale. A primeira metade é ótima, e, apesar de tudo, Murakami tem sua relevância, ainda que aposte demais em que o leitor escreva na mente o livro que ele apenas imaginou escrever.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Canadá



A violência sensorial do Brasil anda tão grande que a gente perdeu a capacidade de saber o que está acontecendo. Tudo virou clichê e tudo virou meme. Pelo que eu consigo compreender, Bolsonaro será o próximo presidente. Por onde eu vou eu escuto pessoas aprovando Bolsonaro. Não apenas o aprovando, mas o tendo como um ser altamente redentor. Ontem um amigo me chamou para uma roda de conversa (por pura sacanagem), enquanto eu pegava meu notebook no carro, e lá estavam todos falando que "enquanto Bolsonaro não for presidente deste país, a situação ficará assim". O tom é aquele tom rançoso do imbecil, corrupto, patriarcal, machista e misógino, que se acha o baluarte da moral, puro e cristão. Nessa roda de conversa falava-se as mesmas coisas de sempre: o que liderava o assunto se mostrava preocupado com o futuro do filho porque, não sendo ele casado com a mãe da criança, temia que a mãe, solteira, levasse o menino para o mau caminho. Era tanto clichê que me vinha a impressão de uma cena montada, de que eu vivia em um sketch televisivo de péssima qualidade. Horas mais tarde, me deparo com mais pessoas endeusando Bolsonaro. Leio manchetes que apontam uma aproximação do mercado com Bolsonaro; percebo a arregimentação estratégica em torno dele para fazê-lo representante dos interesses oligárquicos. De modos que eu não tenho dúvida: Bolsonaro vencerá as eleições do ano que vem. O Brasil é o país que não nos deixa em paz: é impossível você comprar um pãozinho, levar o cachorro para passear, beijar sua esposa e afagar seu filho sem que a portentosa sombra do país esteja ali, mostrando-se presente, não te fazendo esquecer que você vive nele, respira ele, come ele, o sustenta com onerosíssima sofreguidão. Por isso eu não tenho como negar que meu estado espiritual contínuo seja o do desespero. Volto para casa hoje de madrugada, após cumprir um plantão, ouvindo no carro a sinfonia Júpiter que finalmente consigo baixar, após uma luta de uma semana, no site do PQP Bach, e vejo o cidadão do carro em frente ao meu jogar uma latinha de Coca-Cola pela janela, assim, com incrível leveza, com a naturalidade de uma bailarina em seu passo de balé tornado exímia perfeição de tanto executá-lo. Lembro do conhecido vídeo da moça carioca racista gravado nos anos 80, em que ela esbraveja contra pobre, dizendo que as praias do Rio deveriam ser fechadas e frequentadas apenas pela elite, que pobre é sub-raça, e penso: será que estou me tornando assim? Será que eu entrei na loucura de pensar que eu não sou pobre? Será que, ao desprezar com solene resignação o ato do meu conterrâneo no carro à frente, eu me tornei um racista, um estúpido elitista, um obtuso idiota? Será que eu estou criticando demais o brasileiro, como se eu estivesse me colocando do lado de fora da brasilidade? Alerto-me diante os sinais de que a loucura nacional chegou a um nível tamanho que me faz duvidar se eu estou certo, se afinal os que vociferam Bolsonaro não estão certos. Lembro do filme "A fita branca", e o terror que mora perenemente em meu peito dá um salto, pulsa com maior presença. No povoado alemão do filme, o massacre vai se consumando sem que as singelas e dignas pessoas que ali vivem suspeitem que estão sendo enredadas, coaptadas, transformadas em assassinas. Não há o que fazer aqui. Eu penso em meus filhos e um fagulha da única esperança ressurge, a de que eu possa, na idade certa deles, retirá-los do país, levá-los para um país digno, exilá-los para sempre longe daqui.

Lobo Antunes



António Lobo Antunes é um dilema. É o melhor escritor da língua portuguesa _ melhor que Saramago e qualquer outro. Ele escreve tão bem quanto Proust e Nabokov. Sua musicalidade é o que tem de mais sofisticado no mundo das letras, em qualquer idioma. Mas, ele parece implodir no meio de tanto talento. Seus romances são o exemplo mais literal de como o excesso de genialidade cansa. Leiam qualquer primeira página de um livro dele. Aconselho, por exemplo, as primeiras páginas de "Os cus de Judas" e "Conhecimento do inferno". Que maquinaria! Que estrutura perfeita! Que imediata sedução ao impacto do verbo superiormente produzido! Mas aí vem o problema: Antunes não sai da auto-lambeção de seu virtuosismo. É uma profusão de metáforas brilhantes e figuras poéticas de alto nível, de maneiras que o leitor se anestesia: a generosa oferta de arrebatamento a cada período paradoxalmente retira a possibilidade de redenção estética. Ele não vai além disso. Ele carece da indispensável mediocrização que toda grande obra de arte necessita. Com esse gravíssimo erro, seus livros são ourivesarias capengas que tanto não servem como romances como não servem como poesias, apesar de insinuar poderosamente ser o melhor que se pode ter dos dois. Li uns 5 romances de Antunes, me deslumbrei com seu manejo único do idioma (coisa que só raríssimos escritores possuem), mas saí sempre com a sensação de que estava diante uma espécie de angelicalidade aleijada, de sublimidade manquejante. Mas os livros dele trazem um enigma de enriquecimento: é indispensável lê-los. Talvez, como ele mesmo diz, a questão seja porque não são realmente romances nem poesia, mas um gênero novo, criado e habitado só por ele.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Para um amigo


Um dos meus grandes amigos trabalhou na zona rural toda sua infância e juventude e com muita luta conseguiu se formar na universidade. Fizemos o curso de História juntos. Quando ele foi diagnosticado com intoxicação por um pesticida de lavoura e o médico o proibiu de voltar a trabalhar no campo, seu pai aspergia o pesticida em seu quarto e dizia que filho nenhum dele ficaria sem trabalhar. Ele foi, de longe, o melhor aluno do curso. É o cara que mais entende de América Latina e Brasil que eu conheço. Leu todos os clássicos sobre esses tópicos. Constantemente nos falamos pelo telefone, e eu o consulto sempre, embora em sua humildade ele fale que eu que sou o cara culto entre nós dois. Ontem mesmo, enquanto eu caminhava em volta da represa, perguntei a ele pelo celular qual a melhor biografia do Fidel. Ele e todos seus dois irmãos são vitoriosos, passaram em concursos públicos e são combativos ideólogos contra a miséria e o vilipêndio do país. Durante nosso curso, alguns colegas de sala o achavam louco e excêntrico: a turma dos parvos que não deram em nada, as mulheres que se limitaram a esposas e mães e os homens com suas difíceis vidas impregnadas de ignorância e lugar comum. Ele era muito jovem na época e em seu direito ficou apaixonado por uma das colegas, que o desprezava, o que foi um benefício para ele e um malefício para ela, que se aventurou num casamento que teve tudo para não dar certo e realmente não deu, com terríveis consequências. Ele passou em vários concursos, inclusive alguns em que elementos do corpo docente da faculdade foram reprovados. Por recalque, esses doutores titulados negaram que ele entrasse como professor na universidade, relegando o cargo para os medíocres das familiocracias de sempre. Eu procuro retribuir às informações que me passa, lhe indicando os grandes livros da literatura, nos quais ele se lança com o mesmo afinco de sempre. Ele trabalha no Tocantins, como historiador, organizando expedientes das bibliotecas e de eventos culturais. Quando chegar aqui, em um dos tantos retornos para essa terra, esse presente vai estar esperando por ele.

domingo, 29 de outubro de 2017

O melhor dos mundos



Com os talões de água e luz em mãos perguntei, estupefato, à minha esposa como o brasileiro consegue viver nesse país. A vida nesse país é um absurdo, um milagre, uma improbabilidade. Mais da metade da população vive de um salário mínimo: como fazem para pagar as contas?, criarem os filhos, terem o que comer, pagarem transporte? Com os dois talões em mãos, fiquei ciente do enorme engano da esquerda e da direita: elas se ocupam com retóricas elevadas, com abstrações fantasiosas, quando o grande problema é que o brasileiro não tem tempo, condições e espaço para se preocupar com política. É por isso que ele não se revolta, porque sobre ele há uma barreira indevassável dentro da qual está labutando para tentar suprir suas necessidades mais básicas. Eu não conseguiria expressar como lamento isso. Essa é a maior violência que podem cometer contra um povo, cortar-lhe a dignidade e a profundidade. Ontem me deparei com essa matéria da foto, na GloboNews. A emissora a reportou sem nenhum traço de escândalo, sem nenhuma estridência, sem absolutamente a mínima crítica. Já estou acostumado com isso (mentira, nunca me acostumo!), a voz fria da apresentadora do jornal, suas tentativas monstruosas de fazer humor pueril, sua tranquilidade pesadelística como se tudo estivesse bem e vivêssemos no melhor dos mundos. Anunciam que o governo vai retaliar os deputados que votaram contra a absolvição de seus crimes, com uma naturalidade sonambúlica, mecânica. Me dá uma vontade de sair pela cidade e esfregar na cara de todo mundo esse absurdo, essa afronta, esse estupro, mas sei que a grande maioria dos que moram na minha cidade iria dar uma resposta convencional, expressando uma resignação plástica, e viraria para o outro lado, de volta ao ciclo imutável de agir da mão para a boca: "e eu com isso?".

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Creio que foram 10 segundos, não mais do que isso, que a âncora do jornal de ontem à noite da Globo News levou para ler as manchetes. 10 segundos dos mais repulsivos e acachapantes da história do pais, pensei. A história do Brasil, para qualquer um que se disponha a ler um dos tantos livros didáticos sobre o assunto, é plena de momentos repulsivos, de modos que, diante o que me parecia o mais repulsivo de todos, percebi estar diante algo realmente insuportável. Eram 4 as manchetes, lidas rapidamente: Aécio Neves retorna a seu cargo de senador; a recusa da denúncia contra Temer; Dória institui ração humana no lanche das crianças; e, para fechar o circo de horrores, Temer legaliza o trabalho escravo. Veio-me a constatação óbvia que viria a qualquer ser humano minimamente esclarecido: a de que, em qualquer outro país do mundo em que um jornal comportasse, em meros 10 segundos, tamanha fila de abominações, o que se seguiria seria a revolta da população, com a invasão do congresso nacional e o assassinato, com requintes de violência extrema, desses que abalizam com suas assinaturas porcas a morte e a vida indigna de milhões de pessoas. Seria legítima defesa genuína feita pelo povo. Mas eu sei que ninguém vai protestar; eu sei do material barato que é feito o estofo do brasileiro padrão. Mudo de canal, para não ver as tantas propagandas de carros (ironicamente dirigidas a um mercado consumidor à beira da ruína), mas retorno para ver um dos nobres comentaristas do jornal_ um nordestino_, falar sobre a decisão do Dória sobre a ração humana. Sim, o fato dele ser nordestino teria me dado alguma expectativa humanista, alguma espera de empatia representada pela parcela do povo neste país que mais sofre com a discriminação e a desigualdade social, mas acontece que eu já conheço a figura, com seu terninho de subalterno agradecido, ombros encolhidos para dentro, sua gravata desarranjada, sua boca que tende a juntar a baba nos cantos. O que ele diz não passa nem distantemente sobre a desumanidade brutal que é dar restos de comida processada para crianças em fase escolar, ele nem tange as nuances espúrias do quanto isso trará lucro para a empresa que diminuirá substancialmente os custos com seu lixo. O que esse ser bestial, comprado, corcúndico, diz, o que essa aberração de alma deformada fala é um pequeno discurso sobre os erros para a imagem política de Dória que são atos assim; sobre os números de reprovação do iminente candidato à presidência que devem ser retrabalhados, para que coisas assim não o atrapalhem politicamente. É isso que ele diz. O Brasil chegou a um patamar rasteiro para o qual já não há esperança. Reafirmo: o brasileiro é o ser mais solitário do mundo; ninguém se importa com nós, nem nós mesmos.

Uma confissão, de Liev Tolstói


É ousado dizer isso, pelos parâmetros do que eu acredito, mas eu sou cristão. Jesus Cristo, tendo existido ou não, foi o ser humano mais revolucionário da história. Toda a ortodoxia criada em torno dele usou de arquétipos das mais variadas religiões e crenças, mas não conseguiu tocar a originalidade inigualável de sua mensagem, expressa em sua maior parte no sermão da montanha. Coisas como "oferecer a outra face" e "perdoar seus inimigos" nunca tinham sido ditas antes: a primeira como a mais efetiva arma contra o mal, ou seja, uma reação que nada tem da passividade que sua leitura superficial atribui (mesmo Hannah Arendt cai nesse erro, em uma passagem belíssima sobre a bondade em "A condição humana"), e a segunda como o remédio espiritual mais pragmático. O Cristo em que acredito nada tem a ver com a monstruosidade que atende à egolatria de seus defensores, como o cristo dos macedos e dos olavos e dos barbudos propagadores do ódio da internet. O Cristo em que acredito prescinde da necessidade de ter existido. Eu acredito que um mendigo louco realmente apareceu e fez misérias na Galileia de 2000 anos atrás, mas isso é irrelevante. O que importa é sua palavra, é a busca que ele propõe. A busca entre os combalidos e os incompletos e mutilados. Eu acredito que, além dos evangelhos, e de maneira ainda muito mais profunda, sua palavra deixou outros evangelhos ao longo do tempo: o de Kazantzákis, o de Bulgákhov, por exemplo (como o Cristo de O mestre e Margarida é lindo, em toda sua singela e frágil loucura!, e como ele me fala de modo muito profundo e verdadeiro!), o de Dostoiévski. Passei anos sofrendo de depressão diante o que meu cérebro afirmava ser a passagereidade fútil de todas as coisas; e foi grande a luta para que eu aprendesse que essa descrença e esse desespero fazem parte da mensagem do Cristo. Assolava-me a brutalidade pascalina do silêncio desses espaços infinitos, até que eu compreendi_ ou, antes, senti sem compreender_ que a dúvida é tão inerente à mensagem que o ponto atingível é não se importar mais com a dúvida. Nós vivemos no inferno e, provavelmente, nós somos condenados pagando a pena em um matadouro a céu aberto, mas isso não descarta a maravilha de que somos também parte do cosmos e temos o mesmo direito à relevância que os buracos negros, as tempestades solares e a partenogênese. Por isso, esse livro de Tolstói é-me enormemente importante. Li-o em uma forma muito condensada no volume "Os últimos dias", da Companhia das letras, e depois o li em sua versão integral, traduzida do russo pelo Rubens Figueiredo e lançado pela editora MC. Eu senti tudo que Tolstói sentiu: o pensamento de suicídio perene, o olhar para as coisas e só ver um profundo vazio; a opressão comendo o peito e a certeza de que a alegria e a felicidade eram impossíveis. Lembro, perfeitamente, certa vez, quando eu tinha 17 anos, que me sentei em uma praça e, por longos 5 minutos_ mais do que isso seria fisiologicamente impossível suportar_, fui assolado por uma luz em negativo de que tudo era uma imensa gratuidade, de que tudo o que eu via já estava morto e extinto e tudo não passava de uma ilusão sem qualquer propósito. É uma comunhão adstringente saber que Tolstói pensou assim, e expressou de uma maneira crua e profunda nesse livro. Assim como o grande russo, eu achei o caminho da alegria da vida, ao descobrir_ ao sentir mais do que descobrir_ que o fato de estarmos vivos já é o mistério que nos foi dado. Isso nada tem a ver com agradecimento religioso, mas uma constatação cósmica salvadora.

Che, de Jon Lee Anderson


Não acredito em heróis. Nunca acreditei, nem quando tinha idade em que o culto a eles era perdoável. Enquanto alguns amigos da adolescência usavam camisetas com estampas de figuras iconizadas da política e da música, eu era rigorosamente sistemático em usar camisetas lisas, sem estampas (coisa que eu conservo até hoje). Eu tenho escritores e músicos que amo_ como William Faulkner, Hannah Arendt e Miles Davis_, pelo que eles produziram, mas não os cultuo pelas pessoas que foram. Ontem fui à fazenda de um amigo meu, um sujeito com o intelecto bastante desenvolvido e de muita cultura, e na despedida, quando ele me levou até o carro e viu o volume sobre o Che no banco do passageiro, perguntou como eu perdia tempo lendo um calhamaço de quase mil páginas sobre um assassino contumaz. Era provocação da parte dele, por isso eu ri e respondi com alguma piadinha ligeira. Admiração nada tem a ver com concordância: eu admiro o Che em alguns aspectos, mas não gostaria de tê-lo conhecido, e nem me simpatizo com ele. Quero entender o máximo sobre a América Latina e a leitura desse livro faz parte do propósito. Tenho outra biografia dele já faz uns 5 anos, a do Jorge Castañeda, mas o tom rançosamente poético me desmotivou da leitura. Jon Lee Anderson é um dos maiores jornalistas do mundo, sua análise é mais profunda e realista. Estou prestes a chegar à página 200_ ler usando um lápis para conduzir o foco dos olhos é imensamente proveitoso, atravesso páginas numa velocidade muito maior que a normal. Ainda estou no Che das viagens com La Poderosa, a motocicleta com a qual, na companhia de seu amigo Alberto Granado, atravessa parte da América Latina; o Che reflexo do direito de explorar as mucamas, empregadas semi-escravas, índias, negras e vindas de outras extrações mais baixas da sociedade, que trabalhavam nas casas da elite e eram estupradas pelos patriarcas e os filhos dos patriarcas. Em uma cena, reportada no livro baseado no testemunho de um dos amigos do Che, Guevara transa com uma mucama por cima da mesa, à frente da testemunha e pelas costas de sua tia, e depois retorna ao jantar como se nada tivesse acontecido. É repugnante. Alguns anos mais tarde, o biografado escreve um conto e entrega para seu pai, onde aparece a frase de Ibsen: "Educação é a capacidade de confrontar as situações criadas pela vida."

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Sobre nada


um antro já por si loteado por tudo que havia de criminosos defensores do direito de perpetrarem todo tipo de abominações autorizadas pelo costume. Aqueles que acreditam em sensibilidades do espírito não sabem a força que tem esses ambientes para tornarem fortes os estômagos; foi preciso duas visitas apenas a uma casa modelo do comportamento da região para que minhas ideias humanistas da universidade começassem a ser apagadas. Da primeira delas ainda permanece nítido em minha memória o olhar da menina rejeitada dirigido a mim do canto da distante porta da cozinha, enquanto seu pai, cujo conhecimento geral das barbaridades que impunha a ela me chegaria no trajeto de volta por meu assistente, falava com educação puritana o quanto vacinava seus bezerros e organizava primorosamente seus documentos oficiais com o estado. Era de uma assepsia de maneiras exemplar, os movimentos ponderados das mãos, encostadas gentilmente uma sobre a outra, remetendo a algum indeterminado manual de etiqueta do justo patriarcado czarista, hipótese que se dissolvia quando a sequência lógica do olhar do visitante procurava algum nobiliárquico brasão de família e só encontrava as paredes do casarão calcinadas pelo tédio das existências muradas pela bestialidade e concupiscência.
         Daí em diante, como por uma espécie de concessão à dureza paulatina a que somos promovidos, a providência vai nos ensinando sobre todo tipo de excrescências por fora da casca rompida, e se desfaz rapidamente nossa capacidade de asco. A segunda vez eu nem estava a serviço, atendendo ao pedido distraído de um oficial meu conhecido com o qual alimentava o ocioso hábito de discutir questões religiosas como a carnalidade de Cristo ou a virgindade de Maria, e lá fui eu assistir a uma ocorrência de suicídio. O corpo estava convictamente pendurado em uma trave de madeira, as pernas estendidas até o chão com uma prontidão que em vida não tiveram diante as mazelas do trabalho escravo na fazenda, como se a morte exigisse aquela disciplina marcial em agradecimento por tamanho alívio alcançado. A rósea luz do sol poente espraiava-se por entre as calmas folhagens das árvores em torno, e o pequeno telhado da cisterna resguardava o corpo de toda comoção alheia abraçando-o com uma indiferença que conferia à cena algo de uma serenidade enlouquecida. O oficial me narrava sobre os efeitos fisiológicos do enforcamento, apontando do alto de sua estatura rapínica o azul dos músculos do pescoço tentando enodar a corda; observava o rosto pendido em um surrealístico ângulo de 45 graus com uma deliciada curiosidade que lembrava um desenho antigo do Sherlock Holmes, e falava com uma mansidão que estava a um passo do canto, técnica que adivinhei ter sido desenvolvida para exercer suas pretensões de pastor de uma igreja assembleiana.
                 Essas coisas na verdade não chegavam a me tocar, senão eram uma espécie de nova alegria da minha estendida experiência cuja insinuação de desmazelo moral não era suficiente para me levar a analisa-las com seriedade. O que tinha eu a ver com incestos e com impossibilidades tais de suportar o sofrimento a ponto da opção se voltar voluntariamente para a não existência como única redenção requerida? Eu não era insensível, era antes o oposto disso. O olhar da menina atocaiada na cozinha me despertava nostalgias de justiça que me levava a ceder a um dos prazeres contra os quais eu me mantinha afastado, que era a tentativa de esquecimento pelo álcool, embora eu bebesse sozinho em minha casa e caindo muitas vezes no batismo renovado toda madrugada na poça do meu próprio vômito

sábado, 8 de julho de 2017

Fima, de Amós Oz






Fima é um livro escrito lentamente, quase revelando um certo despropósito e despretensão. Casa com a confissão de Oz de que ele trabalha com a escrita disciplinadamente, todas as madrugadas em seu escritório isolado no frio do deserto. Aliás, é isso que Fima mais tem: frio e isolamento. Aqui neste romance Oz consolida sua cidade literária, uma Jerusalém invernal, cercada por muros, com uma geografia urbana caótica e inóspita, mas mesmo assim tornada acolhedora. A originalidade de Oz é receber influências sem se deixar sucumbir por elas, transformando-as em uma assinatura serena e totalmente intimista: por isso, as fontes em que bebe para compor essa obra, que a mim parecem ser Kafka e o romance-ensaio no estilo de O planeta do sr. Sammler, transparecem mas não são afrontosas. O personagem homônimo dessa tradução brasileira anda pela cidade à noite, é um solitário que escolheu para si o fracasso e a segregação, e tem uma vida cerebral acidentada entre a intensidade e a sornice. Não há grandes começos em Oz, como se pode encontrar em excesso no estilo suntuoso de Bellow, e o símbolo que do cotidiano de uma região em constante guerra entre dois povos insolventes que em Kafka atingiria as instâncias de interpretação psicológicas-religiosas é contido pelo autor em sua primeira instância. Mas isso não quer dizer que sua prosa seja menos bela e sua mensagem menos profunda. Oz é um escritor para se conhecer tarde_ pelo menos para mim conhecê-lo depois de uma boa bagagem de suas possíveis influências me parece vantajoso. Oz é o escritor certo para o leitor extenuado, exausto de querer acompanhar um cânone antigo e defasado de gigantes. Por isso ler Fima foi um prazer tão genuíno, aumentado ainda mais pelas suas fraquezas e improvisos evidentes. Há uma inexplicável atração intelectual pelo desmazelo doméstico do personagem, por sua degradação adulta de se parecer com um meninão desamparado que começa a engordar; há a atmosfera gélida sempre cativante da Jerusalém inventada, um símile de Londres dickensiana e Paris dupiniana, em que se repete a cara tradição literária do peripatetismo por ruas estreitas e escuras. Não se pode dizer que se tem reservas quanto a um livro tão idiossincrático, mas a resolução que Oz arranjou para amortecer a infelicidade do herói nas páginas finais perde o compasso em sua aproximação involuntária com os enredos de novelas televisivas. Mas tudo o mais é entorpecidamente primoroso.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Olavo de Carvalho sem demônios



Descobri ontem em uma página privada do Facebook que o Olavo de Carvalho, o filósofo tiririca que só existe para uma turma seleta de eugenistas nacionais, disse sabe-se lá onde que Paulo Bezerra, o conceituado tradutor do russo de obras de Dostoiévski, fez de sua tradução de Os demônios uma plataforma para mensagens subliminares de doutrinação esquerdista.
Na verdade, alguém que se diz pesquisador, e óbvio seguidor do astrólogo brasileiro, fez um post dizendo que ia escrever sobre Os demônios, e perguntava aos inscritos na página se a tradução de Bezerra era confiável, dado seu "notório" (nas palavras dele) esquerdismo. Isso é para rir. Isso mostra o quanto a indigência mental é uma constância entre os brasileiros médios.
Penso o que levou Olavo de Carvalho a falar tal coisa, e concluo que o astrólogo nunca leu Dostoiévski. Nunca leu mas, como todo mundo, sabe que o russo escreveu livros intitulados "Gente Pobre", e "Humilhados e Ofendidos", logo, para o cultor das flagrantes superfícies, Dostoiévski deve ter sido esquerdista, comunista, adepto das teorias marxinianas. Ninguém que não o fosse daria tais títulos a seus livros. E, juntando os pontos, se Paulo Bezerra foi chamado para traduzir um autor comunista, logo ele aproveitou disso para perverter ainda mais o texto e fazer dele um amuleto hipnótico irresistível para converter o máximo de pessoas possíveis à causa. É o que se poderia chamar de Literatura com Partido.
Sei que Olavo é o rei das sandices, que fala muita abobrinha. Mas essa avaliação infantil sobre Bezerra mostra que ele desconhece por completo "Os demônios". Este romance é o ataque mais devastador contra a esquerda revolucionária, tanto que até hoje assusta o poder premonitório que ele tem, lançado 35 anos antes da revolução russa. Seria impossível para qualquer um fazer deste livro uma propaganda comunista. Mesmo que Bezerra fosse o professor Xavier e tivesse um cérebro mutante turbinado, seria impraticável que ele subvertesse de maneira tão extrema uma obra com fins tão evidentes. Seria o mesmo que um tradutor radicalmente machista e misógino transformasse o "Queer", o brilhante romance de William Burroughs, a obra mais homossexual que eu conheço, em um panfleto do macho supremo.
Dostoiévski, sob vários aspectos, poderia ser enquadrado nas frentes de um pensador de direita: em seus textos no Diário de um Escritor, ele defende a pena de morte e critica a abolição dos escravos. Mas vamos lá: retornemos ao acadêmico que pretende escrever sobre Os demônios, mas que pergunta de maneira tão pueril sobre uma tolice dessas. Imagine se isso for um demonstrativo do que está sendo produzido nas faculdades brasileiras. Gente que não lê, que acredita em conspirações sem pé nem cabeça, e que escuta nulidades cômicas como Olavo de Carvalho.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Na pior em Paris e Londres, de George Orwell


Esse livro me foi entregue ontem e eu o li inteiro, deitado na biblioteca (ouvindo Soft Machine). Uma obra imprescindível, visceral, (bastante engraçada, como não deveria de deixar de ser), e muito humana e instrutiva. O relato dos anos de miséria absoluta em que Orwell viveu em Paris e Londres, desempregado ou submetido a sub-empregos devastadores. Claro que me passou pela cabeça como seria o impacto de um livro destes se o brasileiro médio o lesse (e nessa categoria coloco várias pessoas que se acham bem colocadas na sociedade, doutores, professores, funcionários públicos, mas que purgam no mais lancinante atraso). Quem entre essa espécie iludida continuaria a defender as reformas trabalhistas e o resto da destruição de tudo que está a acontecer no Brasil hoje. Quem entre esses cegos lastimáveis, vítimas de si mesmos, continuariam a ter essa visão rasteira sobre manifestações socais e sobre "vandalismos" de se quebrar vitrines de bancos ou janelas de prédio públicos, após ler essa obra-prima de Orwell. Orwell consegue um emprego de auxiliar do auxiliar de garçom em Paris. Trabalha 16 horas por dia, de segunda a segunda. Ganha menos do que seria possível para sobreviver. Trabalha em porões sem ventilação, sob uma temperatura que vai de 40 a 55 graus Celsius (está tudo lá, com amplos detalhes, basta ler), entre outros homens mantidos em tal sub-humanidade que se xingam, são acometidos por várias doenças, levam socos de seus patrões, são chutados para o lixo diariamente pela escala quase infinita de sub-chefes. Mesmo depois de sair dessa situação e conseguir, anos depois, uma certa estabilidade financeira, esses anos cobraram caro do autor: Orwell morreu jovem, aos 47 anos. Na época_ anos 1930_ , a França não tinha salário mínimo e nenhuma espécie de seguridade trabalhista, tanto que nos relatos do livro fica claro que os empregados eram descartáveis, substituídos pelos que vinham na sequência na fila dos famélicos do lado de fora. Que bom seria um pouco só de esclarecimento neste país angustiantemente assolado pela doença dos que se acham melhores do que os outros. Somos todos pobres, todos nós brasileiros. (Eu sei, eu fico com um grande peso de consciência de falar de literatura nesta hora em que se cobram ações imediatas e contundentes. Tudo que não seja a denúncia indignada contra a dilapidação assassina que fazem contra o Brasil, é frivolidade.)

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Fragmento


Minha mãe começava a passar mal pela manhã e assim seguia pelo dia todo.  Tinha ânsias de vômito, tonturas, fraquezas debilitantes. Se dava dois de seus passinhos do quarto à cozinha, logo era acometida por uma bambeza das pernas que a fazia apoiar-se nas paredes e procurar o assento mais perto. Nem precisa falar a quantas andava o seu já dilacerado humor por causa disso. Eu evitava entrar em seu campo visual, o que afligia por no final me tornar evidente a ponto de poder fazer com que me chamasse aos corretivos, mas logo vi que ela sofria de tal maneira que me desconsiderava por completo.
       Vivi esse período com alívio. Sei que é repreensivo dizer isso e na época talvez uma comichão moral me fizesse deter o olhar por certo tempo, antes que a felicidade pela liberdade suscitada pela supressão de seu julgamento me atinasse a não perder tempo com ruminações ridículas. Ela estava tão prostrada pelo sofrimento, tão removida de sua normalidade, que a coisa não lhe cedia espaço para se espantar; via-se que sua mente arguta, treinada a ver entre as complexidades mais intranscendentes do trivialesco, agora estava direcionada em tentar entender aquela nova configuração de seu organismo_ que para ela poder-se-ia usar talvez o mesmo sentido que se usa para “alma”, embora não lhe sobrasse tempo nesses esquemas de excesso de realismo para que ela adquirisse esses entendimentos esotéricos.
        Havia algo mais que a irritava, além da dor em si. Algo que eu não ousava expressar em pensamentos, mas cuja intuição me oferecia meios de entendimento amplos para suspeitar o que era. Isso consistia, falando a grosso modo, em que ela se sentia ultrajada em seu direito de ser deixada em paz; ela sabia que estava no núcleo de uma família que não se poupava de especular entre si os detalhes sobre o sofrimento dos outros integrantes cujo alvo da má fortuna os faziam humilhados e enfraquecidos diante a maledicência. Minha mãe não era uma dessas faladeiras, se pararmos para analisar bem: talvez porque fosse ocupada demais, não porque tivesse um coração melhor que lhe incutisse uma moral inédita entre os seus consanguíneos; mas simplesmente porque suas labutas eram sérias demais, concentradas, demasiadamente humanas, para que ela tivesse tempo para alimentar tal luxo de leviandade. Mas, pelo contrário dela, os outros integrantes do apartamento se deixavam levar por qualquer coisa pela paixão dos estudos sobre a vida alheia. Eu os ouvia conversando fervorosamente sobre vários personagens do prédio que eu mesmo sequer conhecia, gente que aparecia em suas historietas e em seus julgamentos pormenorizados e de tom de voz acautelado que me fazia pensar no quanto era infinito a babelia daqueles blocos de concreto com janelas e escadas onde morávamos. Uma pessoa podia preencher toda sua vida com apenas essas ocupações e já teria um álibi espiritual suficiente para dizer de si mesma que levou uma existência produtiva, na qual fora usado com parcimônia o poder das faculdades cerebrais lhes dadas pela divina providência. Eu ficava pensando no quanto eu era prisioneiro de meu recolhimento mesquinho a ponto de me passar despercebido tantas entidades interessantes, tantas figuras carregadas de fulgurantes idiossincrasias, de maravilhosos pecadilhos e deliciosos estupores de estupidez e ódio. Eu ficava atocaiado em meu canto na cozinha ou na sala, fazendo-me de criança diligentemente ocupada com meu mundo apartado da realidade e idiotizado, às vezes com minha bola giroscópica na mão ou com meus indiozinhos americanos, mas o que ocupava toda minha atenção rigorosa não eram as imagens que vinham da bola nem das novas aventuras do índio, e sim aquelas conversas todas que aconteciam entre meus tios e tias e avó pentecostal, sobre a mulher do porteiro que estava se deitando com o Fancir, o faxineiro do bloco B, sobre a crise de cirrose do barbeiro cartaginês em que alguém havia tomado conhecimento que no laudo médico havia o prazo de apenas seis meses de vida; sobre a portuguesa do 208 que recebia moleques quando seu marido viajava para as entregas em seu caminhão, e por aí vai. Eles não se importavam comigo, sequer pareciam ter a menor ciência de que eu estivesse por perto, de modos que eu aos poucos me aproximava mais, ficava sentado aos pés deles no tapete, e no final já não precisava usar das desculpas da bola e do índio. Ouvia-os na cara, deixando escapar exclamações de surpresa e espanto, mas que nem meu tio Sólon, nem meu Tio Jétson e nem as tias satélites e a avó pentecostal tinham o potencial minimalista de captar uma filigrana daquela minha presença. Eu era invisível para eles, o que muito me satisfazia.
       Mas voltemos a falar sobre minha mãezinha. Foi numa dessas sessões de estudos sobre a devassidão alheia que me veio pela primeira vez a palavra que atormentaria minhas faculdades de julgamento. Foi numa delas que minha tia Tércia proferiu pela primeira vez a palavra “enjoo”. Claro que eu não a ouvia pela primeira, primeiríssima vez; já a tinha escutado em inúmeras outras ocasiões, inclusive dirigida contra a minha pessoa. Mas agora o tom de voz em que ela era empregada é que fazia toda a diferença. Minhas tias tinham esse estranho talento, sobre o qual um dia eu terei que gastar bem mais que uma página para tentar cercear, anatomizar e procurar a fundo a razão de que simples palavras em suas bocas ganhassem tamanha dimensão com tantas evocações sufocantes de significado. Talvez porque elas fossem tão medianamente previsíveis, seus comportamentos pudessem ser deduzidos sem qualquer probabilidade de surpresa de uma tabela normativa de comportamento, em que a escala gradual partisse da solenidade à mesa até a externalização de uma visão de mundo absolutamente insossa e desinteressante, que fizesse com que tais palavras, ditas em suas vozes monocórdias e atonais, soassem inesperadamente oraculares. Era tão assustador para mim como achar em uma barriga de um sapo uma folhinha de papel não digerida em que viesse escrita em uma letra provençal uma lista de compra. A banalidade era o cerne da questão, mas a disparidade em que ela repousava em seu núcleo anacrônico a fazia aterrorizante.
            Por isso eu não gostava que elas falassem sobre mim quando eu estivesse doente. Coisas como “febre” ou “dor” na boca delas ia além do que a gramática clássica dessas palavras guardava em suas centenas de anos de significados consolidados, e elas pronunciarem esses diagnósticos me fazia pensar que eu estava próximo não só da morte, mas de uma forma de morte recém inventada para a qual o horrível carecia de definição.
           Dessa maneira, a palavra “enjoo” na boca delas, empregada para se referir ao estágio da minha mãe, trazia algo de fantasticamente melífluo e veladamente insultante. Nessas horas em que elas pronunciavam essa palavra, pela primeira vez, como em um sinal concordante que estivesse à superfície da descansada indiferença nutrida quanto a mim, todos pareciam sentir um frêmito de pesar e por um brevíssimo segundo voltavam suas cabeças e dedicavam-me um olhar apressado, o que aumentava o enigma. Eu, que não era bobo, apesar de há muito ter superado o artifício de fingir que brincava para não provocar suspeitas, conservava a bola e o índio nas mãos e, imediatamente, mas sem que ficasse evidente a descontinuidade dos atos, os remoía em murmúrios íntimos e concentradamente apartados da realidade, como se assim fosse eternamente e que em qualquer ocasião estava ali para comprovar que o menino não fazia parte desse mundinho de assuntos sérios e diligentes em que eles viviam. Mas isso já era algo tão aceito para eles_ o que deveria me encher de orgulho por ser tão convincente_, que eles só me lançavam aquela fagulha de nota sobre a minha existência não para me pouparem de ter minha ingenuidade ferida, mas como se para sublinharem com maior ênfase o teor do que estava sendo omitido.

quarta-feira, 1 de março de 2017

O trivial



Não estaria sendo sincero se eu dissesse que estou triste pelo anúncio de que a Fnac vai fechar. No Brasil de hoje os motivos são tantos para a desmotivação e a descrença, que parece óbvio em retrospecto que a Fnac teria mesmo esse destino. É apenas a repetição de uma realidade que eu venho assistindo desde que me conheço por gente: o melhor e maior espaço de um shopping, dedicado à cultura e aos livros, naturalmente é anacrônico e fadado à extinção, em um país que tem os índices culturais e educacionais como o nosso. Semana retrasada, antes de ser anunciado o fim, eu estava na Fnac, vendo as pessoas sentadas em poltronas confortáveis, sob uma boa música atmosférica e o ar condicionado, cada uma lendo sossegadamente um livro, e me veio à mente: isso aqui não pode existir; é bom demais para que exista em nossa realidade. E eis que vai sumir do mapa e, mais uma vez, verei uma loja de celulares ou eletrodomésticos ocupar seu espaço, de maneira tão veemente que só com um esforço de memória alguém poderá se recordar da antiga loja. Eu comprei muitos livros ótimos e baratos por lá. Fica o desbaratino de eu não saber mais para onde ir quando tiver que passar uns dias na capital, a 32º cidade mais violenta do mundo, sem parques apropriados para o entretenimento, com preços extorsivos que promovem o eremitério compulsório nos tristes apartamentos, com o trânsito suicida e estúpido e depressivo. Estamos em um país assassino e atrasado, em que vivemos como escravos regidos pela alienação, e o fechamento da Fnac é só mais uma trivialidade que não causa espanto.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

À caça de Nabokov



Dois pequenos textos meus sobre Nabokov, inclusive em que ele não aparece bem, e eis-me atacado por uma obsessão inesperada por esse autor que eu julgava entre os nomes do meu segundo time. Estou lendo frouxamente Lolita no original_ aquelas últimas páginas de um romance de concentração tão extrema são irretocáveis_, e vendo, mais uma vez admirado, o quanto Nabokov era destemidamente pródigo no uso de adjetivos. Em cada frase ele usa uma profusão deles. Para cada conceito e observação e descrição, ele os envolve com adjetivos que, na contramão da severa ortodoxia novecentista da escrita, soam assertivos, inteligentes e deslocadamente histriônicos. Borges também adorava adjetivos, escritor que se aproxima muito de Nabokov. Agora começa minha batalha pessoal de como encontrar todos os livros publicados aqui de  Nabokov. Tenho Fala, memória, Contos Reunidos, Fogo Pálido, Lolita e A Verdadeira Vida de Sebastian Knight, além do volume de aulas sobre literatura russa. Quem estiver lendo isto aqui e quiser me vender algum outro, podemos fazer negócio.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

A verdadeira vida de Sebastian Knight



Terminei hoje A verdadeira vida de Sebastian Knight, de Vladimir Nabokov. Como tudo relacionado a esse autor, estou bastante embevecido mas com uma indeterminada impressão de logro. Tem partes tão maravilhosas e belamente escritas que, sem dúvida, é a melhor coisa que li dele: mas não muito, fica um tanto apenas acima das memórias e dos contos. Embora não seja tão exuberante quanto Lolita, é nítido o ébrio e inatacável deleite que movia o autor em seu ofício. Nabokov escrevia com incrível alegria; imagino o estado em que deveria ficar quando encerrava o expediente, com a nítida certeza de ter vencido o mundo ao qual não sem espanto tinha que retornar após a recolhida labuta. Aliás, aos grandes escritores como Nabokov não cabe a palavra "labuta"_ nunca caí nessa mentira de que a escrita para eles é um martírio. Ele brinca, ri como um louco excessivamente inteligente, se entrega a todos os tipos de descomposturas: é uma criança em sua própria órbita, em que nada fora dela tem a ver com ele. A impressão de logro é suscitada pela adivinhação de que para ele bastava esse jogo estético intrincado, essa música em que fazia sua desforra com toda a escrita tão disciplinadamente estudada em seus intensos anos de leitor. Há uma suspeição de falta de experiência espiritual que tornaria a arma de seu talento incontestavelmente legítima, e por isso o que o leitor vê é uma vingança sistemática contra todos aqueles escritores cuja a História não privara do exílio purificador, contra todos que não foram atirados ao confinamento mais estúpido de todos em um Estados Unidos que nada poderia oferecer ao espírito, como ele o fora. Lendo esse romance, compreendi melhor as 200 páginas de road-movie, sem sentido e gratuitas, em Lolita, em que se pretende retirar a película de intranscendência da paisagem americana e tentar inutilmente ver alguma redenção nos hotéis de beira de estrada e nas cidadezinhas afundadas em uma chuva entediante e estupidificadora: ali Nabokov tentava chegar à frente do ambiente carregado de generosos significados de seus gloriosos conterrâneos falecidos em um país que não mais existia e do qual ele fora expulso sem tempo de reavaliar suas sensíveis novas diretrizes: seus amados Tolstói e Turguêniev, e seu farsescamente admitido como adversário impróprio, Dostoiévski. Há uma certa tristeza por detrás dessa felicidade narrativa inexorável, a mesma tristeza que derruba o observador enternecido com a prodigiosa imaginação de uma criança solitária. 

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Hope

Ainda existe muita bondade humana. Não é época para a depressão e perda da esperança. Vejo bondade de pessoas que não conheço dirigidas a mim cotidianamente, as mais sutis e menos perceptíveis, que revelam algo profundamente bom. Esses dias eu ando esmorecido com tanta barbárie que está acontecendo; e hoje, na rua, um homem negro, cego de um olho, maltrapilho, alto, à sua maneira belo, me chega e pede dinheiro. Ele tem um sotaque ou uma deficiência na rapidez da fala que me faz pensar ser um refugiado, o que é estranho na pequena cidade onde eu moro (e que é também estranho eu nunca tê-lo visto). Eu demoro a entender que ele me pede dinheiro, e quando o faço algo no meu inconsciente associa idiossincraticamente a sua erradia nobreza com a disparate de estar precisando de dinheiro. Dou-lhe o que tenho, que acabo de guardar na carteira, muito pouco, mas para ele, não sei mesmo por quê, parece ser um milagre. Ele me aperta a mão e diz muitas coisas, muitas bênçãos, me acompanha pela metade até meu carro, e sai cantando feliz da vida pela calçada. Absurdamente belo. Sinto uma vontade enorme de ir com ele e fazer-lhe todo tipo de pergunta. Não, o sujeito bom aqui não sou eu, não estou de maneira alguma dizendo isso. O sujeito bom é ele. Sua leveza e sua nobreza me contagiaram e me alegraram o dia. Me fez pensar na máxima do Dostoiévski, de que "a beleza salvará o mundo". Um carro de som pelas ruas do Espírito Santo tocando "Imagine", uma música tola e que pouco tem a ver com a situação, mas como é comovente, libertador e um farol de esperança ver a cena. Como é arrasadoramente belo. Como é inevitável que eu pense que esse negro cego é Cristo. Mesmo que tudo em mim, até minhas mais recônditas sinapses, saiba que não é; e que um de meus múltiplos eus insilenciáveis cogita que pode ser um criminoso, um ser mal dissimulado. Mas a beleza é absurda, o ser humano é absurdo, e sempre quando estou no melhor e mais lúcido de mim eu tenho certeza de que o absurdo é que salvará o mundo. Por isso, tenho a mais clara certeza de ter me encontrado com Cristo hoje.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

O que importa



Eu sempre meio que repudiava fotos de famílias. Achava-as egoístas, porque pretendiam mostrar uma felicidade nuclear reservada, que necessariamente para manter seu poder excluía o que estivesse de fora. Mesmo depois de ser pai e compreender, ainda se conserva em mim um resquício de policiamento. Mas como eu disse, eu compreendi: o tipo de compreensão que está tão incutida em mim que se tornou um puxão de orelha quando eu penso fora dela, quando eu simulo que eu ainda não sei. Não tem nada disso: o frescor dos meus filhos e o meu sorriso e a proximidade deles e da Dani em vez de me isolar me lança mais para fora; em vez de me fazer achar que eu tenho algum privilégio exclusivo, me deixa agraciado por essa felicidade ser tão natural, tão constitutiva de meu ser e de minha espécie, tão simples e fácil. É isso que essas pessoas que aportaram generosamente em minha vida me deram: a simplicidade e a facilidade. É uma antídoto revigorante e maravilhoso!

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Sobre vacas pichadas e o hino nacional



Nunca fui um leitor diletante. Não via no fato de gostar de ler nem o mais leve sinal de que deveria propagar o gosto pelos livros nas outras pessoas. Eu sempre soube que a leitura deixa a inteligência turbinada e proporciona novos ângulos de visão, e a fazia em meu canto, recolhidamente. Pelo contrário do que algumas pessoas achavam, eu sentia era uma espécie de vergonha quando me viam com livros (e me veem toda hora com livros); quase comprei um leitor digital para que pudesse, assim, ler em filas de bancos e em praças públicas sem despertar a impressão de que eu era um alienígena ou um esnobe. Certa vez, no campus da universidade, eu estava deitado num banco no bosque, durante o horário de almoço, e fui flagrado lendo "Visível escuridão", do William Golding. Meu colega pegou o livro e o revirou nas mãos, caçando o segredo da funcionalidade daquilo, e me devolveu com um ar de pânico_ depois disso seu comportamento comigo mudou em definitivo; ele me evitava, falava comigo como se eu fosse um idiota ou uma criança. Meus ambientes na vida nunca foram literários ou intelectuais: esse colega, um japonês, era o primeiro da classe de veterinária, e refletia milimetricamente a impermeabilidade a toda coisa que não fosse a doutrina da produção e aquisição de dinheiro e status social. No curso de veterinária eu via o martírio inglório que era para um velho espanhol ter sido incumbido de dar aulas de filosofia e deontologia; era como ensinar sutilezas para feras cujos hormônios da discórdia, do tédio e do deboche estivessem no auge. Ele fingia que não via os ares gerais de que aquilo era papo de afrescalhados e levava a obrigação com astúcia, deixando que colassem deliberadamente nas provas e evitando o máximo de profundidades possíveis. Eu mantenho até hoje a convicção sem fundamento de que aquele professor era uma espécie de párea na universidade, cujo pagamento por algum obscuro crime administrativo impôs que ele enfrentasse aquele inferno. Pode parecer que gente como eu, afrescalhada e meditativa, tenha sofrido no curso, mas não. Desde muito cedo eu me decidi que não iria seguir a carreira acadêmica e nem o humanismo ortodoxo: a leitura para mim é indissociável ao prazer, e como eu sou um leitor inveterado que leva o vício aos extremos do sagrado, seria uma tortura ter que me ocupar de títulos de autores que não me diziam nada, mas que aos quais teria que entregar a vida para ter êxito profissional. Sendo assim, eu me mantinha bem em meu núcleo de observação segregado. Quando aguentava, eu ria com eles e os acompanhava em festas, quando não, apenas observava. Uma vez picharam com mata-bicheiras uma vaca doente, escreveram palavrões, apelidos, no corpo dela. O professor, um sujeito caricaturalmente doutoral que ensinava cirurgia em grandes animais, que pegava alunas e venerava como a um bezerro de ouro os alunos que chegavam em grandes caminhonetas, ria com aquilo, em silêncio. Era o fruto do deboche com a deontologia. Eu ficava pensando onde esses colegas estariam dali alguns anos; se seus sonhos fanatizados acalentados em uma instável segurança fervida no banho-maria do desespero seriam concretizados. Uma vez vimos o professor de equinocultura chegar à faculdade em um fusca, e um dos que estavam do meu lado se arrepiou em uma comoção mística; seus olhos se arregalaram de tal maneira como se um ponto dimensional tivesse se aberto diante deles, e ele proferiu em tom de reza devota: eu não estou estudando para isso. Muitos anos depois, quando precisei ir ao prédio da faculdade pegar um xerox de um histórico colegial para que pudesse me matricular no curso de história, encontrei um dos machos alfa da turma, parado com sua camisa xadrez e seus jeans da cultura sertaneja diante a porta de entrada. Ele me deu um cutucão e me estendeu a mão, mas eu demorei reconhecê-lo. Estava com uma calvície esplêndida que se ajuntava à transformação física total em identificá-lo com o fenótipo de um grande fazendeiro: sua materialidade transbordava pelos botões da camisa, sua pele tinha a lisura juvenil inchada do uísque; mas ele estava bem mais doce do que o portento sexual que subira em um dos bancos em certa tarde e declamara para uma garota uma poesia improvisada da qual me lembrava por ele tê-la comparado à "sétima sinfonia". Eu apertei-lhe a mão embasbacado, pensava que a natureza não deveria ter feito isso, que era um insulto tal deformação em um cara que era muito bonito, uma espécie de Rick Martin viril e Dennis Quaid infalível, sem pompas e brutalmente elegante. Seus olhos mostravam a rendição, o quanto se tornara bovinamente maduro. Não estava em uma caminhonete, mas em um carro popular. Era vendedor de produtos agropecuários e rodava o estado todo. Ficamos conversando um tempo; quando lhe disse que meu propósito ali era pegar documentos para cursar história, ele concordou com a cabeça e me disse sinceramente que era uma excelente coisa. Voltei a ver alguns colegas pessoalmente, e pelo Facebook. Nada aconteceu com eles que sugerisse o extraordinário. O japonês se casou com uma colega nossa de sala, e posta fotos com cãezinhos em algum lugar do sul, onde trabalham em uma empresa de nutrição animal.

Tergiverso. Pouco encontro leitores na vida real. Uma vez vi uma moça lendo Doze contos peregrinos no ônibus. Fiquei olhando-lhe os cabelos. Já vi um cara cruzar por mim com um Beckett na mão; voltei para vê-lo pelas costas. Uma vez eu fui surpreendido: desci do ônibus e fui seguido por uma moça sorumbática, loura e linda, que me abordou dizendo que sempre me observava porque eu era a cópia física de um ídolo dela. Perguntei quem? e ela me respondeu Robert Smith, do Cure. Eu ri e disse que lamentava por não ser o Dostoiévski, num ato de esnobismo ridículo e totalmente involuntário, do qual meu subconsciente em alerta decretou que eu havia destruído por completo qualquer possibilidade com ela. Na primeira conversa tu lhe tasca um Dostoiévski. ó ser deplorável. Daí, para minha extrema surpresa, ela começa e discorrer que eu teria que ter bem menos cabelos, uma barba rala, e um olhar destruído pela epilepsia para atingir meu objetivo. Foi um dia de sonho, frio, insípido e atonal, dos que são meus ambientes espirituais perfeitos, e eu estava andando com uma moça linda de olhos azuis que, pelo que tudo indicava, estava me cantando. Se ela lesse Dostoiévski, tudo estava perdido, eu não iria suportar. Eu nunca me dei bem com as mulheres, sempre me policiei pela tendência à ignobilidade e à síndrome do capacho. Perguntei, fremente, se ela lia Dostoiévski, e ela me respondeu sobre qual livro dele eu gostaria de falar. Eu deveria ter juntado as coisas: Robert Smith, Desintegration, existencialismo... Dostoiévski. Falamos durante o percurso sobre Crime e castigo, eu sentindo que ela maneirava a coisa para não me humilhar. Ela fazia música, piano. Sobrenaturalmente, morava a uma quadra de mim, mas eu nunca tinha visto ela. Cheguei em casa destruído, ciente que estava em um grau instantâneo de paixão irrecuperável. Ouvi o Desintegration, que na época era um dos meus álbuns preferidos, comprado o vinil nas Americanas, e fique horas no espelho notando que, porra, eu era mesmo a cara do Robert Smith e nunca tinha me dado conta disso. Pintei meus olhos com lápis preto, espetei os fartos e longos e desgrenhados cabelos que tinha na época e, porra, me parecia pra caralho. Ganhei a menina. Li avidamente o que eu tinha do Dostoiévski e no outro dia, assim como pelos outros dias, ficava a procurando no ônibus. Estava desconsolado e já desmotivado, quando, indo para o ponto, ela se aproxima pelas minhas costas e me dá um tapinha com um oi. Eu abro o maior sorriso infantil do mundo, destruindo as horas de treino em ser smithianamente taciturno, e lhe gaguejo uma série de frases sobre onde ela andava, que eu a tinha procurado, etc_ enfim, nada que Robert Smith diria. Falamos até quase chegarmos ao ponto, e ela abre uma pasta e me entrega uma partitura, dizendo que quando a tocava no piano lembrava sempre de mim. Pegamos ônibus diferentes, porque eu tinha que ir a uma aula na praça, e quando me sento vejo que a partitura é do hino brasileiro. De imediato me cai uma certeza terrível, que me revela o quanto nesse mundo diante a felicidade se ergue uma sequência atroz de barreiras: ela é louca. Analiso a evasão do seu olhar, sua incapacidade de sair da introspecção inteligente; a maneira como fala e não me ouve; um pulsante desespero submergido pela química que não a deixa ser natural. A encontro nos outros dias, e vejo claramente a confirmação de minhas suspeitas. Uma vez passo pela casa dela e uma moça muito parecida com ela mas cujas feições são dotadas de linhas bem menos sublimes, mais comezinhas e pragmáticas, me acompanha e me conta que sua irmã sofre de distúrbios mentais sérios, que ela está em tratamento, que ela realmente cursa música e é extremamente talentosa. Fala essas coisas com uma naturalidade de alguém acostumada com a realidade burlesca; também nisso deve ser um rascunho inverso da irmã, sem nenhum talento para a música e a leitura, alguém cujas contas de luz e a formação profissional suplanta qualquer perda de tempo com Dostoiévski. E ela não fala com a preocupação de que eu possa fazer algum mal à irmã, que eu seja sequioso e aproveitador, ou me alertando para que com pessoas como a irmã eu não deva me envolver emocionalmente. Vou com ela_ seu nome, a da moça linda e música que pensava em mim em momentos em que deveria se plantar em pé com a mão patrioticamente no peito, era, é, não sei, Inamar_, uma vez a uma reunião em que ela pleiteava uma bolsa para completar os estudos na Rússia. Depois desse dia, nunca mais a vi. Na verdade, eu evitava vê-la; me sentia muito sozinho ao lado dela; me sentia tão depressivo quanto ela deveria se sentir, quando fechava a tampa do piano à noite e era conduzida para o momento das pílulas pela mão prestimosa, severa e acolhedoramente terrena da irmã, e depois era colocada nocauteada na cama. Imaginava o quanto sua beleza deveria ficar destruída nesses momentos, o quanto a pele rósea deveria ter algo de paquiderme, de bicho atocaiado pelo medo; os murmúrios sem charme, a posição assináptica do corpo.

Na verdade não sei por que escrevi esse texto hoje. Perdi o sono às 3 da manhã. Tem temporadas que sofro de desespero noturno e perco o sono. De noite tudo me parece sem esperanças e sem propósitos, e vejo até as pessoas que não gosto com profunda piedade. Semana passada acordei de um sonho recorrente, o de que sou só. Suportei a solidão por muitos e muitos anos, e acho que perdi o jeito completo da coisa, não suportaria mais ser só. Acordo disposto a chorar como um garotinho desamparado desses sonhos, e a tristeza que sinto é horrível. Mas, o propósito desse texto, se é que ele tem algum, foi motivado pela alegria de ver leitores reais pelo universo cibernético. Hoje uma amiga me disse que ficou totalmente tocada pelo Origem, do Thomas Bernhard, livro que eu lhe indiquei. Ela chorou, riu, e se emocionou profundamente com esse livro único. Assim vamos, fragilidade; a arte está aí para mostrar o quanto somos frágeis e inadequados para a solidão. O quanto somos um coletivo, ainda que só nos encontremos com a identificação em efêmeros momentos aleatórios, dispersos pelo tempo e pelo espaço, e o quanto estamos de alguma forma seguros mesmo nessa sucessão deplorável de esperanças infundadas e desconexão espiritual. Me lembro agora do velho Nietzsche, quando disse que nossas naus, após tempestades e desencontros e infernos múltiplos, estão destinadas a se encontrarem, sempre e inexoravelmente estão destinadas e se encontrarem, em algum lugar em um futuro cósmico. Se até o mais ferrenho niilista apostava nisso, quem sou eu para discordar. 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Nabokov e Dostoiévski



Em um vídeo sobre o álbum Bitches Brew, um músico de jazz depõe que achava estranho os críticos de jazz mais radicais, na época de seu lançamento, terem desprezado e condenado esse trabalho, pois, segundo esse músico, essa música já não era mais jazz, era algo novo, sob o qual não cabia mais o direito de ser criticado por um nicho específico. Essa é uma das minhas constatações corriqueiras quando li o leviano e excessivamente ácido texto que Nabokov fez sobre alguns dos principais romances de Dostoiévski. Como é de se imaginar, Nabokov destrói por completo qualquer possibilidade de que algum dia uma pessoa como Dostoiévski tenha tido talento literário. Tudo, aos olhos aristocráticos do autor de Ada ou ardor, perpetrado pelo autor de Os demônios, é grosseiro, infame, mal escrito e tosco. Das dezenas de páginas dedicadas em decantar Dostoiévski, as únicas que se ocupam com o que se pode chamar para os padrões nabokovianos de elogios são atribuídas a uma cena específica de Memórias do subsolo, nas quais o russo expatriado nos EUA reconhece justamente o que pouco é apontado: que Dostoiévski era uma grande comediante. Para firmar que realmente gostara apenas dessa cena, Nabokov a reproduz em toda sua extensão, o que ocupa 3 páginas do ensaio. No restante das avaliações_ que só se lê porque, afinal de contas, foram escritas por Nabokov, e porque para um leitor contumaz de literatura russa soam de uma desfaçatez e suprema arrogância divertida_, a impressão que se pretende passar é a de que Dostoiévski era algo assim como um sujeito pouco inteligente, desprovido da mínima capacidade de refinamento intelectual, e que é tão mau escritor e tão irrisório que sua imortalidade só se explica através da constatação óbvia de que a humanidade é uma ralé reflexa do autor. Nabokov chega à graça melíflua da bravata colegial de afirmar que a tese do assassinato e da vontade de potência por detrás de Crime e castigo é mal costurada e absurda, o que ele teria que rever toda a literatura do século XX que nela se embebedou à farta se alguém lhe confrontasse para se explicar (a questão limitante de todos esses textos, contidos no volume Lições sobre literatura russa, é que ele os escreveu para ministrara em obscuras aulas universitárias para alunos americanos, antes da fama).

Sim, Nabokov é um escritor extraordinário. Cometeu 3 obras primorosas, a autobiografia, Lolita e os Contos Reunidos. Também escreveu livros rasteiros e sem expressividade alguma. Mas no todo, Nabokov é algo um nível acima do excepcional virtuose estilista. Em sua autobiografia, Fala, memória, por exemplo, há páginas e páginas sobre espécimes de borboleta e sobre a personalidade de seus tutores educacionais, o que deveriam ser de uma chatice sem igual mas são absolutamente fascinantes. Há cenas de uma futilidade sublime em que ele se deleita em rememorar nostalgicamente os anos em que sua família era da aristocracia dos Románov; descreve o perfil nobiliárquico da mãe, o porte marcial do pai, os vestidos e roupas e detalhes sobre etiqueta. Descreve com minúcias a escrivaninha de seu gabinete de trabalho. E tudo é igualmente interessante e parece alimentar o leitor, ainda que Nabokov não esteja fazendo outra coisa que se vangloriando. Tudo nele é vaidade e exibicionismo. É por demais evidente que ele sabe que é um dos maiores estetas do século, e na delícia calma e onanista de se consumar em seus próprios poderes, ele acaba oferecendo isso aos leitores. Se formos estudar a fundo seus principais romances e contos, eles não dizem muita coisa: mas brilham com uma luz indizível. Lolita é uma caso patológico, aliás clinicamente não muito diferente do caso do Raskólnikov, que ele acusa de implausível, e que contêm uma história que, escoado o caráter equivocadamente erótico que serviu para potencializar sua fama, hoje soa banal. Seus contos são, quase todos, o que Picasso fazia: uma infindável exposição de genialidade artística que se afirma mais na metalinguagem e na anatomia estrutural da composição do que no enredo_ em um dos mais representativos, o personagem está viajando em um trem e o autor explora em 3 páginas as opções de que ele seja assassinado ou de ser inserido em algumas das formas clássicas da literatura.

Já Dostoiévski é o contrário extremo de Nabokov. Neste mês li O adolescente da única forma que se pode ler Dostoiévski, concentradamente, em uma semana. E para recuperarmos a comparação não finalizada que inicia esse texto, Dostoiévski não pode ser alvo de uma crítica literária, pois o que ele fez vai além da literatura. Em O adolescente, romance soberbo que mostra de ângulos inusitados porque Dostoiévski é um gênio superior, já no início nos pega em uma das páginas mais magníficas em que o personagem do título confessa que é dominado por uma ideia; que por essa ideia sacrificou todos os outros referencias de sua vida, a ponto de voluntariamente passar fome. O narrador faz algo que Nabokov nem em delírios ousaria fazer: se admite um sujeito com pouca inteligência, que não sabe descrever as coisas e que purga a deficiência cognitiva natural de seu 22 anos. O que ele faz ali, tanto o autor quanto seu narrador, é confessar sem brios que não é literatura, numa sucessão de afirmações de que é incapaz_ ou são incapazes_, de dizerem minimamente o que pretendem dizer. Mas é justamente assim, nessas insuficiências e nessas declarações de astuciosa ingenuidade, que Dostoiévski transforma seu livro em algo impagável, em algo extraterreno e para o qual as formas de estilo se mostram incapazes e empobrecidas para emoldurar. Se Dostoiévski parece não cumprir a tarefa insinuada de transformar seu narrador em um monstro moral equiparável a outros de sua extensa legião de casos espirituais, já que ele se abstém ao longo da obra em ser o mega capitalista desalmado que freme de vontade infernal no início, o romance não perde em qualidade ao ser desviado para o estudo de caso sobre o alvo cabal que é a juventude em uma sociedade politicamente fragmentada. E é aí que Nabokov se engana, assim como se enganou ao afirmar que eram medíocres escritores como Mann, Cervantes e Faulkner. Dostoiévski é uma bomba cerebral tão seriamente engajada em sua missão exploratória sobre deus, a humanidade, a política, as aberrações e deformações a que nos prestamos sob o cotidiano, etc, etc, que sua estética é muito mais profunda e pretensiosa que o mero luminar linguístico. Ele é muito mais visceral como escritor que não se estaca nas regiões mais baixas do profissionalismo: não escrevia apenas pela arte. Em seus textos maravilhosos no Diário de um escritor (lançado aqui em uma edição indispensável da editora Hedras, da qual se espera o cumprimento da promessa de editarem os outros 5 volumes da coleção), vemos nitidamente seu método de trabalho, ao tratar temas como a libertação dos servos na Rússia imperial e a severidade das penas capitais aos crimes contra a vida por todos os lados possíveis, suscitando nos mais distraídos a impressão de incorreção política.

Não há como comparar Nabokov com Dostoiévski. Pode-se passar bem sem Nabokov, ainda que se sinta falta de suas proezas da mais alta prestidigitação estética, mas Dostoiévski é indispensável. Nabokov, mesmo em seus momentos mais delirantes, é o mais rigoroso controle. Dostoiévski, o que soa um clichê, é uma fúria deliberada, uma profusão de energia e vigor. Nabokov, em seu ponto-morto idiótico, diz que Crime e castigo é literatura juvenil rasteira, cuja frase que lhe marcou como sintoma da mediocridade da obra foi: "A vela bruxuleava no quarto miserável, iluminando precariamente o assassino e a prostituta, que liam juntos o livro eterno". Ele nada fala sobre Dostoiévski escrever os melhores diálogos da literatura; de ter trazido para a literatura os mais amplos questionamentos filosóficos, ou o de ter criado algumas das entidades mais definidoras do homem do século XX. O que soa como imperfeição e pieguismo para Nabokov, na verdade é a sinceridade nua e plena de um escritor que, para parafrasear Nietzsche (um admirador de Dostoiévski, por sinal), sempre escreveu com sangue. Nabokov não fundou uma literatura; Dostoiévski sim.