Eu li muitos romances neste ano de 2012. Não vou cair no pedantismo de enumerar um por um aqui, mas nesse ano tive descobertas valiosas, como os nove livros de Javier Marías que me caíram nas mãos, Javier Marías que é o escritor que mais comporta o epíteto de maior escritor vivo da atualidade. Li a trilogia magnífica de Seu Rosto Amanhã, uma jornada insuperável nas mais nostálgicas qualidades clássicas do romance, uma experiência que tenho como uma das mais fundamentais de minha carreira de leitor. E no entanto, cheguei à conclusão de que o melhor livro de Marías, seu trabalho mais delicado e transcendente, o que ele conseguiu criar uma impactante sutileza crítica, é Os Enamoramentos, essa obra que não me sai da cabeça e me vejo retornando a ela a cada dia tentando compreender, tentando captar todos seus sinais sublimes e subliminares. E nostalgia é a palavra que mais define o que está a acontecer com o gênero do romance e com os níveis de inteligência de hoje. Tenho a incômoda suspeita de que um romance como Os Enamoramentos não tem serventia nenhuma no universo do pensamento atual. Mesmo Marías, nas tantas manifestações públicas sobre essa ficção, parece se mostrar cético, auto-depreciativo, um tanto já ultrapassado a linha de cansaço. Intuo que logo Marías vai entrar nessa categoria estoica de escritores que declaram sua aposentadoria. Li algumas resenhas sobre Os Enamoramentos, e a maioria delas se divide entre o elogio plástico, de quem parece que não leu o livro mas leu sua sinopse, e dos que realmente leram mas não demonstram uma atenção à altura do que o livro tem a oferecer. Poucas revelam uma leitura cuidadosa e, em consequência, a apreciação exata da sua grandeza.
Em contrapartida, os romances tidos como revolucionários, deliciosos, canônicos e fundadores, que tem aparecido por aí, me causam espanto. Estou a 50 páginas de terminar A Visita Cruel do Tempo, de Jennifer Egan, um romance que vem com adendos de odes à sua excelência, retirados das tantas resenhas maravilhadas dos mais importantes jornais do globo, e me sinto constrangido de não compartilhar da festa generalizada em torno desse recente bezerro de ouro das letras. Os blogs literários fizeram frente também em decretar que A Visita... é uma obra-prima moderna. A nota principal dessas loas é sobre a agilidade da escrita de Egan, seu domínio excepcional das técnicas da ficção, etc, etc. E, contudo, a mim, tal livro não parece mais que uma competente (mas um tanto superficial) ferramenta de entretenimento, sem nada que destoe disto para bem e para mal. A Visita... me consumiu a tarde toda de ontem. Uma historinha bem montada, com doses certas, cronometradas, de ternura, a velha solidão do envelhecimento, os velhos suicidas revelados quando estamos por nos interessar pela paixão pela vida demonstrada por eles, e, o que é a lei inexorável de tal forma que se transformou em uma praga da literatura atual: as manjadas cenas de sexo, desde boquetes a torto e a direito, até as penetrações esfuziantes que ocupam longas e langorosas tardes suarentas de verão. E a tal prosa sofisticada de Egan, não é mais que o uso de uma aluna muito bem treinada e profundamente conhecedora da história da ficção, em que emprega a já manjada técnica de recuo e avanço no tempo para mostrar o choque sensorial de um personagem no auge de sua força física e, no capítulo seguinte, mostrá-lo em uma cama, entubado após dois derrames, e tão velho e vulnerável que a única saída natural que lhe resta é a morte. Coisa que gente como Virgínia Wolf e William Faulkner já fazia quando Egan ainda estava nos testículos do pai. E A Visita é tão pateticamente moldado para agradar e ser relevante, que se torna chato; é tão inevitavelmente linear em sua astúcia de ser bombástico, que a mim é evidente que com a mesma febre com que o veneram, o esquecerão no mesmo prazo recorde que levaram para calar sobre Liberdade, romance "mais importante do século" sobre o qual já ninguém mais fala.
A Visita é todo composto em cima da receita de Como Fazer um Grande Romance que a serialização da cultura produz nos cursos de escrita criativa. Fala sobre o universo traumático ultra-descolado do rock do final dos anos 70; tem um rebanho de personagens identificáveis pelo leitor que procura uma catarse para suas insuficiências de indivíduo urbano e inserido na ética do consumo; tem a homeostase matemática de profundidade cuja linha de controle nunca é ultrapassada para que a coisa não fique cabeça demais; é, em resumo, um romance feito na mesma fábrica dos seriados da tevê americana, com aquela inteligência coloquial cheia de insigths pretensamente iconoclastas que causam uma imediata impressão de ganho estético no espectador, mas cuja pobreza estrutural acobertada joga tudo no lixo da memória em pouco prazo. Romances como esse servem muito à sociologia americana, é uma ferramenta poderosa para compreender sobre a atual proficiência técnica do capitalismo que funde a mídia com as tendências controladas das modas de consumo, e sobre os mecanismos de escape e escoamento das frustrações comezinhas geradas por esse ciclo desespiritualizado_ é a forma mais funcionalmente grandiosa da utilização da arte para o apacentamento das massas, incluso aí parte das massas que se dedica a uma noção auto-elogiosa do apuro intelectual. Egan pode mesmo ser a maior escritora do que vem pela frente na mutação adaptativa do romance; ela tem a excepcionalidade da funcionária fiel altamente especializada; ela é o que escritores como Daniel Galera gostariam de ser: rápidas, situadas além da necessidade compulsiva de ter profundidade, que já teve a coragem madura e fenomenal de não pretenderem ser o novo Dostoiévski, para serem si próprias. E muito dessa excelência vem pela osmose de estarem no centro do mercado cultural mais efervescente do planeta, o que por si só já satisfaz grande parte dos fetiches da grande arte.
Ler esse romance ao mesmo tempo que se estuda a fundo a literatura russa de Dostoíévski e Tolstói é uma bruta de uma sacanagem com o livro. Mas é inevitável não sentir uma nostalgia profunda quanto aos romances que, na definição de Nietzsche, eram escritos com sangue. A Visita garante boas horas de diversão, esteja claro, mas não o envolvimento espiritual e perene de um livro como os de Marías, e tampouco como os dos russos pré-revolucionários. E não tem como não pensar em crise do romance quando se vê tal obra alicerçada como clássico instantâneo.