sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

348 páginas


Não chegou a ser um debate. Nessa hora do ano, em que no Brasil institui-se o costume de suprimir o pensamento de qualquer tipo até depois do carnaval? Mas, posto aqui esse mimo porque realmente fiquei surpreso com esse texto de Ernani Ssó, um escritor que respeito e que dele já publiquei algumas coisas aqui. O que me surpreendeu é ele pegar o melhor livro de Bolaño, 2666, entre tantas coisas menores e francamente ruins que Bolaño publicou, e divagar sobre seu número de páginas para concluir a mesma coisa, a banalíssima coisa que críticos apressados concluem em respeito dos grandes livros caudalosos: que o livro deveria ter tantas páginas cortadas para ficar mais digerível. No caso de Ernani, ele cismou com as 348 páginas de sua edição de 2666 correspondente à "Parte dos crimes", que se dedica a reproduzir, em linguagem empobrecida de jornal criminalista, os infinitos assassinatos de mulheres acontecidos na fronteira mexicana. Minha visão e a visão de Ernani sobre o que motivou Bolaño a proceder assim, destoam por completo. E... Ernani usa isso tudo para validar um livrinho de umas 70 páginas, chamado Festa no Covil, concluindo :  "2666 é muita digitação e pouca literatura, a Festa no covil é pouca digitação e muita literatura". Roubo, pois, o texto do Ernani, e abaixo coloco meus comentários e a resposta de Ernani. Segue.

FESTA DO COVIL, por Ernani Ssó

"Ando me sentindo muito chato ultimamente. Leio os livros badalados na imprensa e acho tudo uma droga. Aí venho aqui e escrevo notinhas sarcásticas. Isso piora meu humor. Se sigo assim, vão achar que não gosto de nada, nem de filé com fritas e mulher bonita. Não lembro bem, mas acho que o único autor de quem falei bem este ano foi o Kazuo Ishiguro, mas com ressalvas. Ou foi ano passado? Droga, será que minha sina é reler os clássicos?
Então, dia desses, me emprestaram a Festa no covil, do Juan Pablo Villalobos. Li numa sentada. Villalobos é fluente e engraçado, pra quem gosta de humor negro, como eu. Mais: faz uma coisa que o pessoal que mexe com literatura parece ter esquecido, contar de modo indireto, aludir, não discursar. Se o livro não fosse bom, a cena final o salvaria. Coisa de mestre a coroação. Certo, não direi mais uma palavra. Vão ler antes.
Vejamos. Em 2666, Roberto Bolaño empilha dezenas de cadáveres em La parte de los crímenes. São 348 páginas, na edição da Anagrama. São sem dúvida as 348 páginas mais chatas que li na minha vida. Mais: estão entre as menos eficazes. É óbvio, me parece, que se Bolaño contasse direito a história de um assassinato, apenas um, teríamos uma visão mais profunda da violência no México. Resumindo a história de dezenas, não temos nada. Não temos gente, não temos drama. Só temos estatísticas. É preciso uma imaginação monstruosa pra se emocionar com estatísticas. Estatísticas ficam bem em gráficos, no jornal. Num romance o que fica bem são personagens levados às últimas consequências. É o que vemos na Festa no covil.
Villalobos não mostra nenhum assassinato direto. Mostra um menino, que não entende direito o que se passa, falando de sua vidinha trancado em casa, do seu aprendizado do machismo, das brincadeiras com o pai, como contar o número de furos de bala nas paredes das casas. Villalobos não precisou de muito mais. Sentimos nessas poucas páginas um México assustador e um menino no meio dele, sem poder confessar o medo nem a si mesmo.
Querem contas? Com 73 páginas bastante arejadas, na edição da Companhia das Letras, Villalobos bota no chinelo as 348 compactas do Bolaño. Isso me alegra, como uma boa vingança. Porque em 2666, escondido atrás de um personagem, Amalfitano, Bolaño faz a defesa dos romanções torrenciais. Traduzo o trecho: “(o jovem farmacêutico) preferia claramente, sem discussão, a obra menor à obra maior. Escolhia ‘A metamorfose’ em vez de ‘O processo’, escolhia ‘Bartleby’ em vez de ‘Moby Dick’, escolhia ‘Um coração simples’ em vez de ‘Bouvard e Pécuchet’, e ‘Um conto de Natal’ em vez de ‘História de duas cidades’ ou de ‘O clube Pickwick’. Que triste paradoxo, pensou Amalfitano. Já nem os farmacêuticos ilustrados se atrevem com as grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminho no desconhecido. Escolhem os exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou o que dá na mesma: querem ver os grandes mestres em sessões de esgrima de treinamento, mas não querem saber nada dos combates de verdade, onde os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo que nos atemoriza a todos, esse aquilo que nos acovarda e confronta, e há sangue e feridas mortais e fetidez”.
Que papo é esse de que contos e novelas são exercícios, aquecimentos, e que romanções são os combates de verdade? A grandeza e a pequenez de uma obra não são medidas pela quantidade de palavras, mas pela eficácia com que essa obra dá conta do seu tema, ou “daquilo”. Se eu precisasse de provas pra refutar a tirada de Bolaño, bastava comparar La parte de los crímenes com a Festa no covil. Querem uma frase? Lá vai: 2666 é muita digitação e pouca literatura, a Festa no covil é pouca digitação e muita literatura.
Eu andava interessado nos textos críticos do Bolaño. Depois dessa, esfriei. Como alguém capaz de um raciocínio desses pode ser considerado um dos grandes herdeiros do Borges? Acho que sei. As vuvuzelas da crítica não leram Borges direito.
Arca de Noé
Uma história que me dava o que pensar, na infância. Quarenta dias de chuva, Noé sem baralho, a mulher dele sem tricô. Pra piorar, as roupas úmidas, o cheiro do cocô dos bichos. As histórias bíblicas são sensacionais, mas são como desenhos animados, onde se pode dobrar uma casa inteira e botar dentro da carteira. "

Comentário meu:

Não li o Festa no Covil, ainda.
Sobre 2666 e o mérito superior dos romanções, discordo em número e grau. “A parte dos crimes” funciona justamente pelo que tem de excesso e enfastio, e só é eficaz em um romance de mais de 800 páginas (na edição da Cia), como 2666. Seria completamente fora do propósito de Bolaño narrar um único crime para mostrar o cenário de violência no México. Bolaño não quis isso; sua intenção clara era chatear o leitor, tirá-lo do sério, instigá-lo a pular várias dessas 348 páginas de insossa prosa estatística e jornalística, era fazer uma não-literatura, investir contra a eufonia e as regras de entretenimento do romance moderno. O que ele queria_ e realizou-o muito bem_ era cansar o leitor, mostrar a ele o quanto os números afundavam os significados humanos terríveis de tantas mortes em um abstracionismo banal, insensibilizado. Há um início de conto de Bolaño, em Putas Assassinas, que ele começa com uma frase magistral falando sobre a violência da América Latina e a inserção anestesiada do latino-americano nela. Talvez essas 300 e tantas páginas seja o que há de mais impactante nesse livro já monumental do chileno: tem o efeito das repetitivas cenas de pessoas reduzidas a formiguinhas urbanas subindo escadas rolantes e atravessando ruas em uma cidade feérica nas imagens aceleradas de Koyaanisqatsi. Em mim, pelo menos, tais páginas teve a catarse de, em reverso genial, me des-dessensibilizar quanto à violência brutal transformada em serialismo fábrico, os assassinatos disparados pela roldana do contabilizador da máquina que reduz uma vivencia interrompida a um número. Tenho muito o que apontar de imperfeição e equívocos em outras obras de Bolaño ( só gosto mesmo de 2666, que é uma criação superior, de Monsieur Pain, e Noturno do Chile), mas 2666 é maravilhoso e insuperável justamente pelo que tem de excesso, de excêntrico, da ilimitabilidade das grandes obras inacabadas, de imperfeito.

E os romances caudalosos são sim muito melhores que os romancinhos de 100 páginas. Posso numerar 100 livros de mais de 500 páginas fabulosos, em contrapartida e uns poucos que não se sustentam no peso das próprias pernas. (O próprio Quixote.)

Resposta de Ernani:

Charlles, não entendi bem. Quer dizer que um romancista gasta seu tempo escrevendo pro leitor pular centenas de páginas de chatice, superficialidade, personagens rasos, encheção de linguiça? Era mais fácil deixar essas páginas em branco mesmo. Se há uma coisa que realmente me estranha são as explicações mirabolantes pra justificar maus livros. E que regras de entretenimento são essas do romance moderno? A literatura está ligada ao prazer desde seu nascimento. Quanto ao número de páginas, se extensão fosse documento, a poesia não seria considera o gênero mais profundo. Eu também escrevi minha resenha de 2666. Está lá no Coletiva. Posso mudar de opinião, claro. Quando me provam com argumentos claros que errei, sou o primeiro a reconhecer.

Resposta minha:

Não é uma explicação mirabolante, Ernani. Olha só a quantidade de leitores que amam 2666. Você parafraseará Bernard Shaw dizendo “eu estou certo, mas o que sou eu diante milhares?”. Será que estamos errados? Para mim está muito claro que as 300 páginas da Parte dos crimes foi feita para mostrar o quanto a violência na América Latina é narcotizante. Deixar estas páginas em branco? Outros escritores usaram o mesmo artifício da fadiga para passar uma determinada mensagem de excesso aos leitores: Saramago gasta duas páginas apenas com nomes de pessoas que foram mortas na inquisição católica, em "O evangelho segundo Jesus Cristo". Ele poderia ter deixado essas páginas em branco anunciando antes, “imagine esse branco preenchido com nomes de assassinados pela igreja católica”? Não teria o mesmo efeito. Joyce usa o recurso da enumeração prolongada de objetos na posse de Bloom, e também os tantos nomes de santos irlandeses historicamente irrelevantes, em Ulisses. Pedir para editarem e retirar isso, nas próximas edições de Ulisses? Em “O Urso”, excerto do romance-contos “Desça, Moisés”, Faulkner usa o pedantismo da exposição de recibos e notas de compra de armazém para mostrar, genialmente, como uma micro-sociedade rural era absorvida pela urbanidade, perdendo o escopo de suas tradições e a religiosidade minuciosa de seus costumes consuetudinários.
“A literatura está ligada ao prazer desde seu nascimento”. Claro! Não nego. Mas que tipo de prazer é esse? De modo algum é o mesmo prazer imediatista que divide “entretenimento” e “chatice” das tantas formas de mídia baseada na velocidade que temos por aí, desde jogos da internet a filmes de violência gratuita da televisão. O prazer da leitura está ligado a um tipo muito específico de recolhimento, a leitura é uma espécie de tabagismo. 2666 foi um livro que me deu intenso prazer de leitura, inclusiva o desfastio das 300 páginas da “parte dos crimes”. Li esse calhamaço em 4 dias, se bem me lembro. E está para soar o clique que me fará relê-lo a qualquer momento.

E querer comparar poemas com romances não me parece coerente. A leitura de poemas cobra um tipo de envolvimento completamente diferente de leitura.
Acho que o problema aqui é que você está ignorando o aspecto estético do romance enquanto objeto (frase irritantemente acadêmica, reconheço; desculpe). E não foi Bolaño que inventou isso, de maneira alguma.

Ernani:
Você garante que 300 de tédio, muitas vezes mais superficiais que a seção de polícia dos jornais, sem um personagem lembrável, são grande arte. Não está mais aqui quem falou. Boa releitura. 

Eu:

O conjunto é uma ótima leitura, Ernani. O conjunto! Tipo: o livro “Passagens” de Walter Benjamin, é todo de compilações de notícias jornalísticas, cartazes de propaganda, fichas de estatísticas, e é grande no CONJUNTO, é um dos livros mais aclamados de Benjamin. Mas, pegue alguma desses recortes e o publique separado, e a coisa não presta. 2666 é grande por inteiro, com seu livro maravilhoso da parte dos crimes.
msm

Espaço para ser preenchido com as palmas.


31 comentários:

  1. Excelente debate. Tenho a ficar do seu lado, Charlles, mas você parece defender apenas o romanção. Poucas páginas também pode ser boa literatura. Seus argumentos para defender o 2666 estão perfeitos. O Ernani deve preferir Villalobos a Joyce, então?

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    1. Deixei isso transparecer, de que poucas páginas não são boa literatura. Desculpe. Eu tenho um sem número de pequenos romances que amo incondicionalmente, como "Todos os belos cavalos", "Vida selvagem", "Ninguém escreve ao coronel", "Notas do subsolo", "Vitória" (Knut Hamsun), e tantos mais. Mas sou daqueles leitores que se deleitam muito mais com os "Guerra e paz" e "Arco-íris da gravidade".

      E o mais engraçado é que Ernani é o tradutor do Quixote, e li um ótimo texto dele em que defende Llosa e "Conversa na catedral".

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  2. Ele não gostou do que julgou ser dispensável e que não é.
    Meu romance vai ter em torno de 120 páginas, mas no futuro quero escrever um romanção.

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  3. Puxa, Charlles, a prosa desse seu amigo é uma delícia. É brasileiro? Pelo visto, andei perdendo boas coisas aqui.

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    1. O Ssó já é um autor consagrado, Milton. Tenho um dos excelentes livros infantis dele aqui sobre folclore. Traduziu o Quixote na bela edição lançada esse ano pela Cia das Letras.

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  4. Eu concordei com o Ernani. Não sei se conseguiria gostar de 2666...

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    1. Uma coisa é não gostar do livro, outra se basear em conceitos equivocados para "desconstruir" tal livro. Não gostei de Detetives Selvagens, do Bolaño, apenas porque o romance não me agradou, mas vi ali o que os que gostaram dizem que tem.

      A propósito, todos os dias me lanço a escrever sobre a chatice na literatura, baseado em uma coisa que li da Susan Sontag, mas não consigo. E penso em você, em tudo que você acha de chato em Ulisses, Moby Dick e por aí vai. Sontag desbanca os critérios de "chatice" usados nas diversões massificadas, afirmando o que eu sempre achei, que tais critérios não podem ser usados para avaliar o prazer da leitura. A maioria dos grandes livros seriam chatos.

      (P.S.: estava vendo a caixa de comentários em seu novo antigo blog transfundindo, o cara que te sacaneia com a Martin Claret, rindo e pensando: até quando a Fernanda vai aguentar. A qualquer momento ela chuta o balde e fecha definitivamente os comentários. A coisa daqui por diante só tende a piorar. E depois você me pergunta por quê.)

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    2. Confesso a você que estou bem aqui. Preparar um textinho destes que aparecem por aqui, com todos os seus defeitos e falências, mas com uma energia pura e convicta, e ver neguinho usando a linguagem cifrada, preguiçosa e idiotizada da net, te sentando o pau nos comentários _ gente estúpida com quem a graça divina te deu o direito de não precisar conversar ou ouvir no dia a dia real_ não é, em definitivo, a coisa que eu pretendo com um blog. E ter que dividir algo sobre Faulkner e Bellow com um comercial de margarinas ou título de capitalização aparecendo nas beiradas da página, ou um astrólogo que vai te dizer o que você foi em uma encarnação passada. Eu iria pedir as contas na primeira semana.

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    3. Você está certo sobre meu desgosto, ou futuro desgosto, mas não é exatamente da forma como você pensa. Aqui e ali apareciam comentários idiotas no meu blog no seu antigo endereço, coisas que eu nem ao menos comentava ou simplesmente não aprovava. Como o sujeito que disse que eu faço sociologia de buteco, o que um amigo disse que foi um elogio (involuntário) e eu adotei.

      Perceba que o meu blog não tem comentários, aquele comentário foi feito no Sul21. Eu posso (já vi nas configurações) deixar o meu blog sem comentários, mas nada posso fazer sobre aquela área comum. O que me preocupa muito é a transferência do CDiurno. No PorFora tudo bem ler idiotices, mas no meu blog pessoal é diferente. Tenho pensado sobre isso.

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    4. Meu, cês tão falando do que? *Intrometido* Obrigado.

      ---

      Não li e já não gosto do Bolaño. Tudo que leio sobre ele me deixa mais desanimado e com uma centopeia pra trás. Sei, examinar pelos olhos de outros é uma coisa, avaliação pessoal outra, mas já não o SUPORTO. Sua imagem, sua cara de professor acadêmico de Universidade Federal, pau no cu desse chileno. Me deu vontade de dizer, sem nenhum sentido, nenhuma conexão (eu acho), só por dizer mesmo, e já faz uns dias, que Houellebecq é demais e muito melhor. Pau no cu do Bolaño.

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    5. http://www.sul21.com.br/jornal/2012/12/moby-dick-e-a-violencia-como-prazer/

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    6. Ah! É que eu estava procurando no post inteiro, por isso não achava. =)

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    7. Sei lá, Matheus, também estou cheio de Bolaño. Comprei essa briguinha sem consequências com o Ssó, sei eu lá porquê.

      Vou ter que ler o francês.

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    8. Pô, vai parecer que eu não faço nada além de ficar de frente para o computador. Liguei-o agora e vi o seu comentário.

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    9. — Tenho como pagar uma puta por semana. Sábado à noite, seria ótimo. Talvez eu acabe por fazer isso. Mas sei que alguns homens podem ter a mesma coisa gratuitamente, e além disso com amor. Prefiro tentar. Por ora, prefiro tentar.

      Não pude, claramente, responder-lhe nada, mas voltei pro hotel bastante pensativo. Realmente, eu me dizia, em nossas sociedades o sexo representa, clara e abertamente, um segundo sistema de diferenciação, completamente independente do dinheiro; e se comporta como um sistema de diferenciação no mínimo tão impiedoso quanto o outro. Os efeitos desses dois sistemas são, de resto, estritamente equivalentes. Assim como o liberalismo econômico sem freios, e por razões análogas, o liberalismo sexual produz fenômenos de pauperização absoluta. Alguns transam todos os dias; outros, cinco ou seis vezes na vida, ou nunca. Alguns transam com dezenas de mulheres; outros, com nenhuma. É isso que se chama de 'lei de mercado'.

      Num sistema econômico em que a demissão é proibida, cada um consegue, de um jeito ou de outro, encontrar o seu lugar. No sistema sexual em que o adultério é proibido, cada um consegue, mal ou bem, encontrar o seu parceiro de cama. Num sistema econômico totalmente liberal, alguns acumulam fortunas consideráveis; outros chafurdam no desemprego e na miséria. Num sistema sexual totalmente liberal, alguns têm uma vida erótica variada e excitante, enquanto outros estão reduzidos à masturbação e à solidão. O liberalismo econômico é a extensão do domínio da luta, a sua extensão a todas as idades da vida e a todas as classes da sociedade. No plano econômico, Raphaël Tisserand pertence ao campo dos vencedores; no plano sexual, ao dos vencidos. Alguns ganham nos dois campos; outros, perdem em ambos. As empresas disputam alguns jovens diplomados; as mulheres alguns rapazes; os homens disputam algumas garotas; a confusão e a agitação são enormes."

      (A Extensão do Domínio da Luta, 1994)

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    10. O aperitivo, o momento de convivência do dia no Espaço de Recreação, estava amenizado com um pouco de música. Essa tarde, três tipos tocavam o tam tam para uns cinqüenta presentes que se mexiam agitando os braços em todas as direções. De certo se tratava de danças da colheita, que se haviam praticado em algumas oficinas de danças africanas. Quase sempre, ao cabo de algumas horas, alguns participantes caíam ou fingiam cair em um estado de transe. Em sentido literário ou obsoleto, o transe designa uma inquietude muito profunda, o medo ante a idéia de um perigo iminente. "Prefiro jogar a chave por debaixo da porta antes de seguir vivendo transes semelhantes" (Emile Zola).

      Bruno ofereceu um copo de vinho de Charentes à católica. "Como te chamas?", perguntou. "Sophie", respondeu ela. "Não danças?", perguntou ele. "Não", respondeu ela, "As danças africanas não são as minhas preferidas, são demasiado..." Demasiado o quê? Ele compreendia o seu problema. Demasiado primitivas? Claro que não. Demasiado rítmicas? Já estava quase no limite do racismo. Era óbvio que não se podia dizer nada sobre aquelas porcarias de danças africanas.

      Pobre Sophie, que queria fazer o melhor possível. Tinha uma cara bonita, com seu cabelo negro, seus olhos azuis e sua pele tão branca. Devia ter uns peitos pequenos, porém muito sensíveis. Devia ser bretã.

      "És bretã?" perguntou. "Sim, de Saint Brieuc!", respondeu ela, alegremente. "Mas adoro as danças brasieiras...", emendou, evidentemente para se perdoar por não apreciar as danças africanas.

      Isso bastou para exasperar Bruno. Já estava farto daquela estúpida mania pró brasileira. Por que o Brasil? Pelo que ele sabia, o Brasil era um país de merda, povoado por brutos fanáticos por futebol e corridas de carros. A violência, a corrupção e a miséria chegavam ao céu. Se havia um páis odioso era precisa e especificamente o Brasil.

      "Sophie", exclamou Bruno com arrebatação, "Poderia ir de férias ao Brasil. Passearia entre as favelas, em um ônibus blindado. Observaria os pequenos assassinos de oito anos, que sonham em chegar a chefes; as pequenas putas que morrem de AIDS aos treze anos. Não teria medo, porque a blindagem me protegeria. Isso, pelas manhãs; às tardes iria à praia entre riquíssimos traficantes de drogas e gigolôs. Em meio a essa vida desordenada, no meio de tanta urgência, esqueceria a melancolia do homeme ocidental. Sophie, tens razão: assim que voltar, vou pedir informação em uma agência da Nouvelles Frontières."

      Sophie se virou olhando com cara pensativa e um vinco de preocupção na fronte. "Deves ter sofrido muito", disse ao final, com tristeza.

      "Sophie", voltou a exclamar Bruno, "Sabe o que Nietzsche escreveu sobre Shakespeare? 'O que esse homem teve de sofrer para ter a necessidade de bancar o palhaço! Shakespeare sempre me pareceu um autor hipervalorizado; mas ainda assim, um palhaço notável'." Se interrompeu e e se deu conta com assombro de que estava começando a sofrer de verdade.

      As mulheres, às vezes, eram tão amáveis... contestavam a agressividade com compreensão, o cinismo com doçura. Que homem se portaria assim? "Sophie, eu quero chupar a tua xoxota...", disse com emoção; mas desta vez ela não lhe olhou. Havia se voltado ao monitor de esqui que esfregou sua bunda três dias antes e havia começando a conversar com ele.

      Bruno ficou desconcertado alguns segundos; logo cruzou de novo o gramado em direção ao apartamento.

      (Partículas Elementares, 1998)

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  5. Essa discussão que o Ernani levanta, Charlles, é a nossa velha e interminável sobre Ulisses...

    Não li a obra do Bolaño mencionada, mas se é exatamente como o Ernani diz, então, meu amigo goiano, não tenho a menor dúvida de que, se ler 2666, um fastio irá brotar em mim. Não necessito de trezentas e tantas páginas descritivas sobre a violência mexicana, pois já a conheço a exaustão: basta acompanhar com cuidado o que está a acontecer há décadas naquele país; outro exemplo é o Haiti ou, ainda, a Colômbia; não necessito de nenhum autor a relatar-me o caos em tais países: ora, basta uma olhadela nas “imagens do Google”, “carâmbolas!”, a carambola pertence ao jogo de bilhar: não é preciso carambolar trezentas páginas para concluir o óbvio.

    Essas reflexões me fazem lembrar dos filmes do Glauber: uma tremidinha aqui outra acolá se aguenta, mas um treme-treme geral – haja saco! Nunca consegui ver um filme inteiro do baiano: vou adormecendo durante; quando acordo o bicho tá no fim; assim tive que assistir muitas vezes a muitos filmes para poder conhecê-los – haja sono!

    Por outro lado, existe o método da exaustão que consiste em se encontrar a área de uma figura inscrevendo-se nela uma sequência de polígonos cuja soma das áreas converge para a área da figura desejada. Bem, isso é coisa de matemáticos, não de cineastas e muito menos de escritores.

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    1. Isso! Faço minhas as tuas palavras.

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    2. Gracias, Caminhante...

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    3. Bah, concordei com o Ramiro. É a magia do Natal! (Brincadeira, cara).

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    4. Embora atrasado: gracias, Matheus...

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  6. Conhecer a realidade pelo Google! Dissestes tudo. Há algo de experiência pragmática genuína "conhecer" atravessando 300 páginas de atenção sinestésica, aos poucos policiando-nos quanto nossa própria indiferença. Só sabe quem é despertado em certo sentido por essa interação ativa. Uma grande obra de arte nos molesta, nos atormenta e faz sofrer, inclusiva com o tédio.

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    1. “Conhecer a realidade pelo Google!”

      Charlles, não disse exatamente isso. No meio do segundo parágrafo, do meu comentário, há um “SE”. E, portanto, tudo no referido período está no condicional. SE, de fato, as trezentas e tantas páginas do Bolaño são uma sequência de minúcias, torturantes, quase intermináveis, sobre até onde a violência humana pode chegar: caro Charlles, dispenso tal leitura, pois já tenho conhecimento suficiente até que ponto o ser humano é erudito sobre tal tema.
      Quanto ao Google: é apenas um instrumento a mais, disponível, ao conhecimento; o que importa na realidade, como quase tudo nessa vida, é QUEM está utilizando-o e, principalmente, para qual objetivo. Utilizo o Google tal qual uma calculadora: o que importa, efetivamente, é se os cálculos que estou a fazer representam uma determinada realidade de interesse diante de mim. Outro exemplo é o Excel: pode ser utilizado como uma planilha de custos para otimizar um prostíbulo; porém, pode ser utilizado para resolver numericamente uma integral que representa um complexo fenômeno físico-químico.

      PS.: um excelente tema de pesquisa no Google: “métodos de tortura elaborados pela Santa Madre Igreja no período da inquisição”. Boa pesquisa a todos!

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    2. Complementando: como não sou hipócrita; às vezes, utilizo o Google para ver uns clips pornos... Mas não sou tão estúpido a ponto de comprá-los. Sou apenas um pouquinho estúpido.

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    3. Ramiro, tive a iluminação! Você enfim me convenceu! Vou rasgar todos os meus livros e nunca mais vou perder tempo com essas porcarias. Só vou acreditar naquilo que me basta numa superfície muito tênue de experiência ótica, vinda de programas de televisão e resumos claros sobre a situação do mundo. E vou bater punheta em segredo assistindo vídeos pornôs pela net.

      Heehehhehehehe. Acabei contigo agora, hein, hein...

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    4. Mas,Charlles, qual é o problema em bater punheta em segredo?

      Não é melhor do que tramar o genocídio de um povo, ou o assassinato de crianças inocentes?

      Charlles, além de trepar, você não bate punheta?
      É estranho, muito estranho... Talvez a explicação esteja no Bolaño!...

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    5. Hahahaha. Tava esperando aqui a sua resposta...

      Me fez lembrar quando fui atrás de meu pai em 1992, quando abandonei faculdade e atravessei 3 mil quilômetros de ônibus, carona e barcos, até chegar a um povoado de casas de madeira rústica chamado São Miguel aonde enfim o encontrei. Havia lá um porteiro da escolinha que a comunidade improvisou para dar aulas às suas crianças, e esse senhor de 70 anos dizia que batia duas punhetas por dia, estoicamente.

      Só não podemos responder aquilo que o personagem de Kevin Spacey respondeu quando foi flagrado pela esposa: "Esse é o melhor momento do meu dia".

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    6. Pois é! Viu, em três linhas, você disse, não dizendo, toda a complexidade do amor humano...

      PS.: Charlles, vou parar, nessa discussão, por aqui. Preciso sair...

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  7. A beleza brasileira é mais retada que a americana. O dobro de vezes! Aos setenta! Pode ver que ele toma dois copos de pinga por dia (meu avô o faz, aos 87, tendo começado aos 15).

    Comecei a ler 2666 exatamente para dar uma descansada do Ulisses. Não terminei o Bolaño. Na verdade, só li a primeira parte. É muito instigante, e se lê sem parar, à toda velocidade. Espero que o resto do livro mantenha ao menos a qualidade. E devemos nos lembrar que é um livro inacabado. Talvez o Bolaño teria cortado alguma coisa, como Tolstoi fez com o Khadji-Murat, que, dizem, tinha umas 2000 páginas (!!) em sua primeira versão.

    Noturno do Chile, por outro lado, é uma obra-prima difícil de ser superada, em sua obra. E só tem 119 páginas, se não me engano.

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    1. Noturno do Chile é, no meu ver, o melhor de Bolaño. O chileno é um autor menor na literatura latino-americana, mas conseguiu o prodígio de fazer um grande romance que é o 2666. Li a resenha do Ernani do livro, e, definitivamente, não é o mesmo livro que eu li.

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  8. Não tiraria uma linha sequer do 2666.

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