quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Volta à Ítaca

       



 

 Creio que nunca ficou sabendo, as fontes da onisciência que rondavam a faculdade nunca lhe disseram isso, mas eu fui atrás de você naqueles dias. Assim que chegamos da Europa eu testei minhas novas apreensões sobre a vida, a maleabilidade de humor a que a tradição homérica do jovem ocidental de classe média diz que a volta a Ítaca deve suscitar, e não sentia nenhuma mudança. Eu olhava para o silêncio do meu quarto no pavilhão das linguistas e não via nada do que deveria ver; havia uma grande deficiência no sentir daquela minha pessoa que retornara, algo que me angustiava. Era uma porta para o retorno revigorado de todos os traumas da minha não-aceitação e de meus complexos de inferioridade, que eram o que me movera a fazer um deslocamento tão radical não só na minha geografia como no ambiente da minha alma, e eu não poderia deixar que essas coisas voltassem, pelo menos sem antes exigir delas respeito ao prazo para que ao menos me fosse concedido o direito a algum espanto. Mas lá estava aquilo tudo batendo à minha porta, não sendo esse o termo correto, bater, já que a ausência de ruídos era uma característica nova, a planificação da qualquer dialética que envolvesse contestação fazia com que essas coisas me esperassem pacificadas, como se eu fosse o império britânico naqueles raios de parâmetros metafóricos e meus antigos medos fossem os hindus famélicos de um advogado raquítico professando a não-resistência. Eu me lembro que anos antes, quando eu era ainda mais nova, o que pode parecer uma redundância dizer isso porque não há como não sermos outra coisa além de mais novos quando dizemos “anos antes”, mas a incorreção serve para retirar um lastro de expressividade que as palavras em suas ordens regimentar às vezes não tem, pois só quando meu corpo começou a se tornar independentemente aviltante, arranjando por si novos contornos expansivos, por mais que minha vaidade tivesse ensejo em conter essas novas perspectivas com exercícios e dietas, só quando a energia se dissipou dele, do meu corpo, e ficar à frente da tv começou a ser uma nova forma eufemística de tentar pegar a redenção pelas bordas, essa redenção que vai ver estão muito certos os que desde sempre afirmaram que ela não existe, só quando essas coisas passaram a ocorrer é que me dei conta do quanto eu era nova, o quanto o tempo foi sarcasticamente generoso na porção de juventude que coube me dar, por amplas partes da memória que eu recorra eu encontrarei faces diferentes de minha juventude que chegam a ser incongruentes, será que era mesmo eu, será que eu fui mesmo assim tão afortunadamente jovem em um mundo e em uma biologia que só me faz perceber o tesouro disso de forma retrospectiva, quando já não posso mais ver e agir dentro desse avatar sabendo estar nele no momento contínuo do presente, mas observando de um futuro em que tudo isso virou vapor, sumiu, evanesceu-se.

           A odisseia fizera bem para Kyria_ que profunda inocência a minha, que falta sagrada de premonição para ter achado isso, diante tudo o que ela viria a sofrer_, fizera bem para meu pobre e errático Timos, mas não para mim, que continuava como era antes, acrescentada apenas com a frágil lembrança do ar da França e da vertigem dos alpes suíços, uma quantas geometrias velhas e umas cornijas eônicas apelando para alguma indevassável nostalgia da espécie. Eu sabia que tudo havia acabado entre nós dois, de forma beatífica, ambos deveríamos apresentar um sorriso letárgico, falar sobre nossos antigos problemas como velhos octogenários falam de seus brinquedos de madeira sumidos no parque da mansão desaparecida. Ah, dizermos como é inefável a vida e essas porcarias abstratas a que estão cheios os jovens, sempre achando que estão passando de uma revolução mental e uma subversão do olhar intermitentes. Daí eu fui ao seu dormitório, creio que duas semanas depois; fui na cara dura, sem ter inventado nenhuma desculpa para justificar um ato tão anacrônica naquela nova fase de nossas vidas, mas não o encontrei. Seus antigos colegas me disseram que você havia sumido, pago a parte do aluguel correspondente e se mudado para a casa de alguém, não me lembro, de uma tia que voltara de Albuquerque, não sei. Passei dias desesperada diante o aborto da lógica de saber que te amava, que tudo o que eu havia passado para exorcizá-lo tinha sido um esforço vão, que enfim você com seu rancor invencível pela estrutura do mundo, suas fobias sobre a dominação e seu ódio ao poder estavam certos, o que acabava o transfigurando como um super-homem para mim, olhe só o quanto eu estava perdida e o quanto eu precisava de ajuda a ponto de cair no erro de supor que ela deveria vir de você. (Não se magoe ao ouvir isso, foram duas décadas e meia atrás e eu analiso aquela que eu fui com o destemor amoral de saber que eu estava enfunado em um estágio muito para trás de todos os passos evolutivos que você com certeza deu para frente, no caminho da luz, ou, sem sarcasmo, no caminho pelo menos do distanciamento daquelas sombras que já não tinham capacidade de te assustar.)

        Caí em um catastrófico mau humor; as espinhas pulularam meu rosto de forma que se não fique desfigurada foi porque a compadecida piedade do tempo ajudou enchendo minha pele de camadas extras de gordura, estufando a maioria dos buracos das cicatrizes das espinhas para fora. Fiquei emporcalhada, não tomava banho, vestia as mesmas roupas, aproveitando aqueles dias finais antes das aulas, imaginando onde estaria você, se você retornaria para seu curso, o mais natural seria que você fizessem como Ivan Karamázov e assumisse sua falta de teto, seu magistral desvinculo a todas as instituições terrenas, seu peripatetismo por entre as dores do mundo para colhê-las e as reportar para seu núcleo espiritual conservado. Então eu fui justamente recorrer à maior e a mais simbólica das falácias de nosso namoro, o violinista. Não soube porque, vai ver se eu fosse até onde estivera a possiblidade de nossa mais abrupta desavença eu cambiasse algo que ficou para trás indigerível e isso pudesse me trazer uma transformação empobrecida e de segundo nível que eu teria direito já que minha odisseia foi inaproveitada. Oskar Liebeumicth, era o nome dele, ainda me lembro. Nascera em Principado de Mônaco, essa exoticidade ajudara que eu memorizasse alguns pormenores literários de sua personalidade. Encontrei-o nos ensaios de um quarteto de Schubert, no centro cultural da faculdade de música. Para o desagrado dos seus temores profundos, ele havia cortado o feixe de crina equina, fazendo um topete que lhe conferia um substituto burguês e bem menos proteinizado da áurea de macho dionisíaco de antes. Assisti ao ensaio e depois fui falar com ele. Na verdade me ofereci explicitamente a ele. Sem nenhum pudor, ou ao menos eu imagino que fora assim, nessa altura da observação oracular em que a velha narradora em seu sofá de couro italiano com o terceiro cálice de camembert na mão supõe interpretar essas fraquezas tremeluzentes e profundamente aterrorizadas transfiguradas em ousadia. Agora pensando bem creio que, se Oskar Liebeumich, o paganini das terras lendárias da lavagem de dinheiro e do paraíso dos magnatas bancários, me viu naquela noite com os olhos enfeitiçados pela minha graça feminil despertadora de libido as circunstâncias da imprevisibilidade como eu me apresentei deve ter colocado um filtro de aparo diante seus sensores corporais para que ele se apresentasse muito polido, muito distanciado, muito cavaleiril. 

      Eu estava quase chorando, de pé entre os poucos senhores e algumas senhoras prussianas em seu camarim para lhe dar os cumprimentos, minhas pernas mal me sustinham por cima dos sapatos marrons estornil que eu comprara em uma loja chique da cidade grande em uma das minhas andanças solitárias; eu sentia a meia calça que lhe acompanhavam, silentemente desconjuntada nas pontas dos dedos dos pés que ficavam massacrados no bico fino, e que mais acima enlaçavam minhas belas pernas de então até se findarem no início representado pela liga da cintura, esquentando minha virilha seca tornada desesperadoramente dessexualizada embrulhada na calcinha depois desse exorcismo que nós três buscamos encontrar a dez mil quilômetros e só você e Kyria haviam encontrado. Eu estava para chorar, parada na porta daquela salinha onde os grandes astros do futuro se maquiam e respiram a solidão efêmera de antes da apresentação, e que naquele momento tudo eram apenas promessas, Oskar Liebeumich ainda estava um ou dois anos longe de ser famoso como um dos violinistas mais jovens e talentosos, assim como as mulheres não eram prussianas um milímetro na realidade afora na minha imaginação exercida em romances de exilados russos, talvez donas de casa, estudantes de arte em cursos vendidos em apostilas e em encontros quinzenais, sem reconhecimento pelo ministério da educação, assim como os magnatas não deveriam ser nada senão velhos donos de livrarias cults da parte mais arborizada da cidade. Eu também era uma formação insurgente do que alguns anos depois eu viria a ser, a solteirona convicta, mesmo que entre a verdade e o conceito houvesse um marido despachado sem cerimônia e com mútuo compadecimento pela erraticidade humana, parada ali olhando o ás do instrumento com os olhos de uma vampira exangue, uma noive do Drácula que algum van Helsin distraído arrancada com a estaca sua morticidade sem fazê-la soltar o grito de terror secular antes de a pele se dissolver com os ossos e sobrar apenas uma múmia de duzentos anos, sobrando por misericórdia uma dama sem charme e com os olhos e boca borrados e já escoada de qualquer conteúdo peçonhento. Oskar sorria e beijava os visitantes e foi aí que me viu; o tempo ficou suspenso, como se a natureza tivesse feito um foco em seu belo rosto de queixo viril e nariz insuportavelmente aquilino para mostrar que eu lhe causara uma apreensão suficiente para ter-lhe cortado o sorriso_ o sorriso que, junto a tudo o mais daquela perfeição adâmica o deixava perdido de ódio e medo, o medo macho santificado por todas as biologias de que o padrão genético angariado em algum mapa de superioridade quantitativa haveria de fazê-lo destruído e humilhado, castrado e vituperado. 

        Ele se lembrava de mim, claro. Ássia, uma das poucas vantagens de ter um nome subalternamente midiático, uma propaganda que toda pessoa culta quer se reconhecer no entendimento consagrado. Engraçado que se passaram oito meses, não havia nenhuma história, só havia em sua cabeça, Timos, em sua cabeça e posteriormente na minha, por tanta insistência sua. É para rir mesmo, temos que rir disso. Nós fizemos se abdicar todas as arraigadas narrativas de nossos pesadelos e de nossas cismas imaturas, e tínhamos agora o direito de sermos livres, de termos nascidos de novo, e era isso que eu sabia que você e Kyria estariam fazendo, de olhar radiante e claro, de pés firmes e cheios de vigor, desbravando a vida salutar, que não se exibe, a vida filosófica e carregada de fé sublime, e eu estava tão atrasada e caída em fracasso e havia traído tão profundamente o propósito que eu revertera meu curso e decidira voltar a uma dessas histórias, a mais banal e contraproducente delas. A história com Oskar Liebeumich, o violinista do País de Gales que fizeram meu ex-namorado ficar enlouquecido de ciúmes. Por que você teve a audácia de achar que poderia remover essa fantasma pesado de um Oskar Liebeumich de sua vida? Por que você tinha a petulância de achar que seria assim tão fácil? O que um mês nos Alpes, e uma noite em Paris onde se achara merecedor de um bacanal íntimo com duas irmãs, haviam feito de legítimo para te dar a certeza de uma experiência libertadora genuína? Isso não existia, meu caro! Foi isso que eu tinha descoberto no trâmite daquela ilusão toda. Não existem arrebatamentos, ou se existem não são concedidos assim tão levianamente para jovens cheios de empáfia como éramos nós. Um sono, um langor de eras e gerações, passados pelo sangue apaziguado até um incrível grau de indolência de nossos avós boçais, para nossos pais boçais, e inoculados com extrema confiança em nossos avatares juvenis boçais, olheiras, odor rançoso piorado com perfumes caros, e com nossos buracos e falos tesos e sem graça de tanta manipulação sem nenhum pingo de sagrado.

       Por que Kyria iria realizar de forma tão escorregadia e pacificada sua vocação ao comando mundial, sua imersão ao mundo empresarial, apenas porque ela atingira uma certa disposição interpretativa auto-convincente de ter esquecido o que deveria ser esquecido

          Por que você, Timos, iria atingir o próximo passo natural de ser um Ivan Karamázov ou o que é que diabos você gostaria de ser afinal das contas após tanta trama deixada pelo meio e tanta paixão intelectual cujo fim lógico era sempre escamotear o objeto visível para que ele continuasse não-visível e suficientemente obnubilado, para assim dar ensejo maior ao que você não queria ser? E por que apenas eu dessa tríade havia feito o trajeto santificado, a via sacra transformadora, tendo caído na armadilha de abrir os olhos antes da coisa ter se completada e assim visto os mecanismos expostos que não deveriam ter sido vistos, contemplado a farsa de tudo?

           Quando Oskar Liebeumich dispensara as visitas, tendo me agarrado pela mão na frente dos olhares questionativos, bocas arreganhadas querendo perguntar se a grande promessa musical afinal tinha uma namorada mas sem a coragem para o fazer, me levando para o carro tendo retirado o casaco do terno e envolvido meus ombros com ele, eu fiz o que não poderia fazer na situação, chorei, em silêncio mas bombasticamente, você sabe que eu não tinha esse talento que algumas mulheres frágeis e belas tem de se tornaram exponencialmente ainda mais frágeis e belas quando choram, a ponto de se tornarem insuportavelmente hipnóticas para os homens; os homens, pelo contrário, estavam passivos a se desinteressarem de vez ao me verem chorar, fico vermelha em excesso, músculos até então relegados a um sono eterno eram chamados a darem sua contração máxima em meu rosto, de forma que se via algo do que havia reservado para o sortudo detrás daquela beleza prometêica dali a umas boas décadas, quando nem o rímel sutil nem a hena indiana mais cara poderiam esconder a velha murcha que eu estava destinada a ser. Mas mesmo assim, Oskar Liebeumich estava suficientemente interessado para que me colocasse no carro minúsculo, francês, estilo como é aquele do Mr. Bean da séria de televisão, e me levasse até seu apartamento. Ele só me dizia que estava tudo bem, me olhava com surpresa enquanto girava o volante dirigindo sua máquina enxuta e prosaicamente funcional até sua moradia querendo saber mas não perguntando o que havia acontecido. Subimos, não tinha porteiro no prédio, um prédio escuro de paredes descascadas, de certa forma tendo algo a ver com a disciplina ilesa de desejos desviantes dele, serviria para o deixar mais concentrado, me fascinava com algumas pinceladas de sombra a capacidade dessas pessoas de transportar toda sua necessidade estética para um mundo inoculável e hermeticamente privado apesar do cimento horroroso e do cinza prostrante. 

          Ah, Timos, o violinista era o oposto de todos nossos temores_ meus e seus. Onde estava meu pensamento, em que substrato do hades ele titubeava as pernas para me fazer enxergar toda a situação como a de uma mulher fragilizada que estava prestes a ser sodomizada pelo seu protetor ocasional, que tanto seria uma sodomização passível da mais purgativa critica bíblica pelo agente infrigidor ser um violinista, um ser devoto à arte, devoto do silêncio. Eu não seria puta nas mãos dele. Ele me cedeu sua cama, eu já não chorava mas mantinha-me calada. No rol das vergonhas aquela era até uma espécime pouco vistosa, com sua desprovidão de brio e sem desenhos peculiares nas secas asas presas ao corpo cravado na placa. Era como se minha derrota me devesse aquela pausa em todos os processos cerebrais e preconceitos civilizatórios, me dando o direito de ser estúpida, sem entraves do que eu julgava ter criado de socialmente importante em minha personalidade. Que se danasse meu academicismo, minha cultura, os tantos livros que eu li, os idiomas que eu aprendi, que se fodesse eu saber as trintas aulas avançadas do diagrama chinês. Eu tinha o direito de me livrar daquela entidade em que eu me encarnei de uma menina ocidental predestinada. Eu não era nada, e como era bom ser nada em um apartamento pequeno, iluminado como uma caverna tangida de amarelo cheio de calor e recolhimento, com os objetos aparecendo apenas o suficiente para o olhar apontar sua existência sem intuir suas funções e seus significados, uma moradia povoada na discreta medida certa de totens, amuletos, pequenos quadros paisagísticos, uma mesa com livros que eram tão sofisticados que prescindiam da necessidade de serem lidos, estavam ali porque tudo ali tinha apenas essa exigência descomplicada: existirem sem justificativa, ou então com uma justificativa que o estágio em que elas e eu estávamos na ocupação do espaço e do tempo não precisava ser adquirida agora. Um sursis. 

          Eu dormi com uma alegria que eu não sentia desde que era criança, desde que meu pai me vinha à noite da loja de armarinhos que tinha e me dava um beijo, cheirando a cola e a raspas de madeira, os talos do bigode se dobrando com uma incrível maciez contra meu rosto me enchendo da sensação de que tudo tem sua plenitude no universo, tudo tem sua tenridez e delicadeza, tudo está moldado em uma escala do sagrado e talvez o drama nessa terra fosse apenas um incidente involuntário resultado de nossa procuração não permitida em tentarmos achar o nível de calibragem certo, o peculiar e ultra-fino tom que nos dê o indicativo da posição correspondente de cada nota nessa melodia imorredoura e perene e eterna. Meu pai que era dono de uma loja de antiguidades e que trabalhara por 30 anos como professor de mecânica quântica na universidade central, e junto ao qual eu aprendera tanta coisa que não vem ao caso falar agora. Será que Freud e Lacan, ou a revista de psicologia, ou os anais de psiquiatria tem que ser codificadas com a mesma leveza que eu senti naquele apartamento? A nostalgia do pai. Descubra o perfume que o pai usava a você vai fazer com ela o que quiser. Mas que merda, será que foi realmente a isso que nossa pífia capacidade de transcendência nos levou? É disso que nós fugimos, abraçando essas experiências forjadas com unhas e dentes e querendo receber o arrebatamento pelas beiradas, por dedução, atingir o reino perdido com a indolência da sensação do choque do acidente que é querer obtê-lo e não pela limpidez impossível de um pouso seguro. Não há pouso seguro. Lembra daqueles reis todos das dinastias chinesas, e os vinte czares Románov. Eles enforcavam bebês e evisceravam mulheres grávidas, empalava embaixadores e samurais titubeantes, desmembravam irmãos, envenenavam mães, mandava para o exílio no ártico como gratidão as noivas rejeitadas. Tudo no mundo é um choque contínuo e de energia inesgotável em que a mínima percepção do inominável é um efeito colateral não estabelecido nas leis desse lado de cá, o que torna a fagulha de obtenção um milagre. Você estava certo mais uma vez, como sempre esteve certo e eu me recusava a sequer levar a sério essa sua lacônica cosmogonia. Não podia ser tão simples, minha vaidade intelectual prenhe de vitalidade não podia admitir que a aspiração ampla para uma multifacetada dialética fosse acondicionada em uma teoria tão sem graça e coesa, sem reverberação e perfeitamente prática. Sua teoria do segredo da existência era uma fórmula de bakara infalível.

           Tudo era vão, o ser humano era inconfiável e em última instância tendente ao morticínio, e a paz poderia ser simulada através do isolamento. Você era o santo da não-coaptação, o São Francisco cínico da negação. De uma forma diferente na finalidade das sombras, Kyria era semelhante a você. Ela chegara à mesma apreensão da verdade por caminhos próprios, com uma capacidade mais sólida que a sua, com um ingrediente feminino não-filosófico que era mais avançado e menos tediosamente amparado em uma melancolia heroica que a sua. Não há personagens femininos relevantes nos Irmãos Karamázov; ela não poderia nem ser associada àquela que mais pareceria com ela no panteão de mulheres melífluas e fortes de Dostoievski, a M..., pois Kyria era impermeável à maldade, e a bondade e os infernos das dúvidas espirituais estavam longe a uma distância impossível dela. Uma vez você me disse que sua vida poderia ser, na melhor das hipóteses, a continuação nunca escrita dos Karamázov, realizada no século posterior e em uma sociedade material outra que não a Rússia de aldeias de estradas de terra enlameadas do romance original.

             Algumas vezes você me dizia que sua história alternativa pretendida não giravam em torno das grandes questões humanas, não queria saber o que seria do mundo se Hitler tivesse ganho a guerra, ou se Lênin não tivesse morrido, ou melhor ainda, se Tesla não tivesse sido destruído pela campanha difamatória dos magnatas que não queriam que os automóveis fossem movidos a eletromagnetismo e nem que a energia elétrica fosse distribuída de graça. Você gostaria muito de ver a história alternativa em que o velho Dostoiévski tivesse vivido mais uns bons 5 anos para que escrevesse a continuação daquela inusitada jornada de dois irmãos cujas opções já haviam sido extintas no primeiro livro. Aliosha Karamázov e Ivan Karamázov_ já que a terceira perna desse painel metafísico, o hedonista Dmitri, fora suficientemente coerente para morrer dentro da capacidade cumulativa de transtornos que a quantidade de anos que sua faixa etária lhe deu sobre essa terra. Aliosha era o santo, o homem que alcançara toda pureza e visão leve e compadecida, e Ivan era o filósofo, o errante questionativo e a mente que não para. Dois espíritos muito antigos, forjados talvez não no início do cosmos, como aquele outro mais sagaz e transposto em definitivo para outro planto que está nas escrituras, mas no princípio computável das mazelas e dos horrores que tão bem se serviu a mente que os inventara, mil anos talvez, ou talvez no início dos Románov, 1613, ou talvez eles fossem reencarnações assustadas pela imprevisibilidade do relógio teológico de samurais ninjins, que traíram a coligação por não verem mais razão na morte, nem que fosse o assassinato autorizado pelo qjin e por deus de seus inimigos. Eu também gostaria que algo do que seria esse livro viesse a tona, contanto que minha curiosidade seja menos predisposta que a sua por me entregar a enredos que me destituísse da narrativa convencional dessa realidade_ levei tanto tempo para me acondicionar a ela, me desviando o máximo possível dos seus percalços, que não iria querer me abster do animal semi-domado (ou do animal que presume ter nos esquecido por um tempo, em nossa idade avançada e já não despertadora de seu interesse). Mas você quis saber como seria fazendo-se de si mesmo a reencarnação da trama inexistente.

           O fato de não ter um cérebro megatômico de tal potência por detrás, regendo seus destino e seus pensamentos_ estar livre de um Dostoiévski como um deus, o mais dicotômico e dual dos deuses, espargindo ternura e estridente loucura e eventuais mortes estapafúrdias pelo caminho, talvez como seja o próprio deus ortodoxo que, mudando-se aqui e ali em detalhes de somenos importância e tangidos de cores diferentes, é o deus de todas as religiões desde o começo do mundo. Estando livre de um deus assim, você pode ser um herói adâmico com uma liberdade ainda mais insuportável e extasiante do que a do Ivan Karamázov. Ivan se escandalizava de deus permitir a morte de uma criança, o que Timos Karamázov não poderia enriquecer essa incongruência brutal com tudo que ele sabe do século XX que Ivan não soube? Se Ivan não suportava a complacência de um deus que permitia que os cães de um nobre da corte czarista trucidasse o filho pequeno de uma das servas da propriedade, ou que a menina morresse de frio no porão da casa no inverno cumprindo o castigo do pai de se sentar sobre o barril de água, o que ele pensaria das tantas e tantas filhinhas desse mesmo deus que morreram nas desapropriações de terra dos kolkhozes, vítimas da fome, do canibalismo das próprias mães; o que Ivan pensaria dos fornos crematórios de Auschwitz e Treblinka, dos massacres de Ruanda, das crianças prostitutas das beiras do asfalto no Brasil, das crianças índias albinas caçadas e massacradas e tantas tantas e tantas outras. Eu havia lido Tolstói e Turgueniev quando estava no colegial e alguns anos antes, meu pai e minha mãe revezavam na leitura de Gógol, A dama do cachorrinho e tudo que fosse publicados nas línguas que eles conheciam do áspero e desestabilizador e comovente Checov, mas do dostoiévski eu confesso que nunca me atraia muito, eu tinha com ele uma ligação pouco venal e determinantemente respeitosa em que eu lhe dava a concessão de aceitar sua grandeza sem precisar comprová-la. 

         Creio que tinha lido a história do Ralkolnikov, que todo mundo minimamente declarado pensante havia lido, e só. Peguei os Karamázov na biblioteca da universidade antes do feriado da páscoa, motivada pelas tantas referências que você fazia da obra, e o li uma sentada, como dizem, li dividindo o livro com tudo que me estivesse pela frente, comida, lavar as louças, atender o telefone com a ligação de algumas das meninas que foram para a casa dos pais, com a ida ao supermercado para comprar gorgonzola, e finalmente na cama, com o cobertor puxado até o queixo com um cuidado redobrado pois eu entrava na aldeia invernal em que Dmitri Karamázov estava amarrado pelos mujiques para passar pelo seu destino definido do julgamento de assassinato. Talvez seja mesmo o maior romance já escrito. Ele me envolveu tanto que após ler, após passar pelos meninos que bateram no pai do pequeno D., depois pelo Grande Inquisidor (recebendo o sopro de tudo o que eu havia lido do existencialismo), e sobre o monólogo do Ivan e do stárets Józima, após fechar o livro em sua última página foi que percebi que a experiência havia sido tão cativante que nem cheguei a pensar nos ganhos que sua leitura teria em nosso namoro. O quanto eu estava inconscientemente me preparando para chegar mais próxima a você, meu pequeno Ivan, para onde mais o Ivan libertado dos grilhões da moral e do pensamento iria após ter enxergado tão longe senão para uma clínica de abortos?

            Naquela época você era uma promessa, como Oskar Liebeumich, a seu modo turvo e impactante. Eu passava horas de adolescente apaixonada tentando imaginar o que você estava destinado a se tornar, mas sua completa deflação a tudo não permitia ver o que seria. Um escritor, um ensaísta, era a aproximação mais cabal a que eu chegava. Mas para isso eu cogitava que seria necessário um certo empenho, e sua extraterrenidade não era compatível com uma carreira acadêmica ou com os processos bajulatórios para angariar uma bolsa de doutorado. Você brigava com todo mundo, era algo que me afligia no que eu tinha de mais feminino e pragmático. Eu confesso que pensava que nosso namoro poderia dar em algo maior, mais duradouro, eu era uma moça esperançosa por debaixo de minhas ambições pessoais irrestritas, eu chegava a acalentar um andamento temporal em que nós sobrevivêssemos ao enfado e à necessidade de conhecer novos amores e alcançássemos vitoriosos um patamar depois de realizadas nossas ambições profissionais pessoais, e viéssemos a nos unir em um desses casamentos metalinguísticos e elegantemente possíveis a toda contradição em que se lançam escritores, cientistas e importantes sumidades mundiais. 

           Não vai rir de mim agora se eu disser que meus moldes eram ternamente ambiciosos, a nível de uma Angel e Marie Curie e Sartre e Bouviar. Eles não podiam ser tão infelizes como aparentam nas fotos e nas fofocas oficiais, tão estranhos, reptilínicos, doentes e obcecados na promoção do sofrimento mútuo; não podia ser que alguma missão outorgada nesse mundo viesse com o adendo perverso de que os super-homens e as super-mulheres devessem se comportar no refúgio do lar como cobras peçonhentas; deveria ser a imprensa específica para esse tipo de gente ousada e rara que não sabe que não se tece sobre ela as mesmas aberrações que se tece sobre as pessoas comuns, as que morrem de sífilis e que introduzem nos canais vaginais das esposas objetos impossíveis. Eu pensava que duraríamos, mas o que você poderia ser? Desde o começo eu soube meu lugar, o que eu seria, mas e você? Ivan karamázov não podia se casar, levar uma vida comum, suburbana. O grande vazio era seu único deus, e sua existência, atravessando gerações e cláusulas atemporais no registro das encarnações sucessivas só se presta ao eterno diálogo com esse deus silencioso, imóvel e mimado, que quer tudo de seu servo para si. Uma relação bem mais doentia que a das sumidades artísticas dessa terra; você já tinha o seu Angel Curie e seu James Joyce; seu deus era quem te mandava torpedos com uma letra concupiscente trêmula no papel amarfanhado te pedindo obscenidades para mais tarde.

          Desculpe, fui longe demais. Sobre o violinista? Não, mais uma vez eu tenho que ser