sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Boêmios


Valter Hugo Mãe disse que trocaria seus 7 livros por um filho. Cada filho é um universo diferente. Minha filha Júlia quase nunca me diz "eu te amo", por isso quando o diz, sempre apaixonada, quase me leva às lágrimas. No dia dos pais, seus colegas da escola escreveram nos cartões de presente "Eu te amo, papai", ela me escreveu "Papai é meu puxa saco". O Eric recolhe uma pedra do vaso de plantas que temos na sala e a leva à boca; dou-lhe uma reprimenda: "Na boca não!"; ele engatinha a relativa distância entre nós dois, e me entrega a pedra; eu lhe digo: "Você pode brincar com a pedra, só não a coloque na boca", mas ele abana a mão negativamente querendo dizer: "Não, meu chapa, fique com essa sua pedra, parece tão importante para você", e vai se ocupar com outras coisas. Essa foto foi tirada pela Dani às 5 da manhã de hoje. O Eric acordou às 3 da madrugada e se recusava a dormir, e eu o trouxe à sala, embalei-o entre minhas pernas ao som dos Brandenburgo. Quando a Dani nos viu, ambos já estávamos afundado no mais profundo sono, e no aparelho de som rolava Live Evil do Black Sabbath. Minha admiração por Valter Hugo Mãe cresceu, tanto que na lista das compras dos livros do próximo mês dois títulos dele estão agendados. Sim, Mãe, filhos são muito bons! A impressão é que esse anarquismo completo na ordem do dia (e da noite), é uma das coisas que mais conta nessa felicidade. Vou restabelecendo o contato duramente cortado para que se possa ler e escrever nessas horas inesperadas, em que são por total e irrevogável direito deles.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Ler Wislawa Szymborska é rejuvenescer



Por serem tão poucos, cada poeta que me marcou tem seu momento temporal em que entrou em minha vida bem guardado na memória. Eliot foi-me apresentado no colégio, com as incipientes discussões filosóficas de minha classe de amigos. Os homens ocos era um hino elegante que nos alertava de uma distante maturidade contra a qual deveríamos nos manter em guarda_ e ter acesso às raríssimas edições de Quarta-feira de cinzas era ler agraciado um antigo evangelho pós-cristianismo. Uma tarde em que eu vagabundeava matando aula da universidade me deparei com O canto da estrada aberta, de Whitman. Estava em um volume velho de poetas universais em uma biblioteca na praça universitária, e não sei se foi por curiosidade em ler um poeta que meu preconceito identificava imediatamente como o representante falconesco da América imperial que me movera a lê-lo, achando eu que meu repúdio iria vir com fiel precisão. Sentei-me no chão entre as estantes e quase chorei diante aquilo. Era tão arrebatadoramente belo e verdadeiro, tão selvagem e celestial e ao mesmo tempo profundamente humano, que eu tinha que parar a leitura por alguns segundos para poder respirar. Foi a primeira vez, creio, que eu cogitei além de meros exercícios fantasiosos em abandonar tudo e seguir o que aquele cara ordenava. Livre e saudável, sigo pela estrada aberta. Era um livro que não se podia retirá-lo da seção especial em que ele ficava e levá-lo para o andar debaixo para a máquina de xerox, de modos que ia todo dia para copiá-lo à mão em meu caderno. Recito esse poema ainda hoje e o farei para sempre; sei-o de cor em português e em inglês. Uma noite de chuva peguei um ônibus vazio e fui até o shopping comprar uma coletânea do Seamus Heaney, um poeta telúrico bastante idiossincrático que surpreendentemente também se tornou fundamental para mim. Eugenio Montale eu conhecia desde a minha adolescência e o admirava, mas ele só foi entrar em minha vida de vez em uma etapa das mais difíceis em que o lia com a mesma fé com que alguns leem os Salmos. Thiago de Mello é o único que escreve em português que os caminhos erráticos e incompreensíveis da minha admiração aceita como imprescindível_ foi um grande amigo que me apresentou e meu amor por ele conta com reminiscências muito pessoais. Resta mais 4 poetas fundamentais. Maiakóvski é um dilema: odeio e amo na mesma medida, e não vivo sem ele. Salvatore Quasimodo tem sempre uma palavra amarga sobre tudo que me consola de uma maneira serotonínica. Juan Ramón Jiménez é meu poeta infantil e menor que me provou que há poetas menores que tem a mesma estatura espiritual dos gigantes, e é fundamental justamente porque a preguiça do idioma simplifica as coisas com esse erro estratégico de conceituar o conteúdo através de medidas volumétricas que não dizem nada. A outra poeta eu conheci há 4 anos, o que infere que cada um deles apareceu concordante com o encaixe exato em meu processo de maturação como indivíduo. Pois Wislawa Szymborska é uma mistura de todos esses outros poetas, com o acréscimo de fazer pouco caso de si e não ter o mínimo espalhafato vaidoso de achar que sua poesia seja libertária, revolucionária, meiga, iconoclasta ou que traga uma mensagem espiritual subliminar. Analisando a linha dessa minha apreciação tem-se um retrato bastante significativo sobre mim mesmo, sobre o que eu sou_ o que me espanta. É como se eu tivesse nascido com minhas necessidades estéticas e minha sede pelo aprendizado que vem da poesia já prontas, e meu único dever era descobrir passo a passo os poetas previamente assinalados que preenchiam essa cabala. Wislawa, julgo, é o desfecho de tudo que a poesia em não-prosa tem para enriquecer a minha existência. Todo o estrondo dos outros poetas continua quando os leio ou os recito de cor, mas na casa dos 40 anos, a sabedoria despojada de Wislawa, seu honesto hedonismo pela vida, sua nota embargada de velha senhora nonagenária que sobreviveu a tantos terrores da história, me cala profundamente e me acalenta de uma forma que hoje é dela que me sinto mais próximo. É uma escritora que atingiu há tempos a real compreensão de seu ofício, descarregou-se de toda pompa e todo fardo dos clichês modisticos de como um escritor deve se apresentar, e tal lucidez está em cada uma de suas obras: uma maturidade humana plena, uma voz que se desobriga da tolice de qualquer virilidade para se fazer ouvida, uma nudez belíssima em que a esbelta senhora explora sua visão desse mundo com essa sabedoria rara que se refresca com um falar para si mesmo que vai além da literatura. Nesse segundo volume de poemas que ora a Companhia das Letras lança da Wislawa no Brasil _ um fato que atesta o quanto ela é querida por aqui, visto que poucos poetas, mesmo os nobeliados, conseguem permeabilidade de vendas que autorize a publicação de outra obra_ , lemos ela dizendo em seu discurso em Estocolmo que não se considera uma boa poeta, que não faz poesia "muito bem". Em certo sentido, é isso que o leitor percebe, e os leitores superficiais somam na balbúrdia dos estúpidos da web comentários de que é injustiça premiar Wislawa e não poetas maiores que ela (como, certa vez vi citado, Cecília Meireles, na sempre tosca cobrança de ufanismos patrióticos). Eu percebo que Wislawa nunca se importou com isso; o que ela escreve vai além da poesia, é uma forma de expressar sua mais íntima experiência de vida através de observações que, mesmo as mais pueris, são carregadas de um espontâneo arrebatamento. Não é raro uma lágrima fugaz escorrer pelo rosto quando se a lê, nem deitar o livro no colo e ficar olhando o tempo com um maravilhamento novo. Ler Wislawa é rejuvenescer. 

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

A Júlia e o blog vão fazer 6 anos



A Júlia com 1 ano, e a Júlia e o Eric


Eu sempre falo que comigo todos os clichês da redenção pela paternidade aconteceram. Eu só descobri o que é mesmo o amor depois de ter filhos; eu só descobri o que é a felicidade plena depois de ter filhos; eu só descobri o quanto devemos respeitar milimetricamente cada pessoa e todo mundo depois de ter filhos (porque todo mundo é filho de alguém); eu só entendi de forma profunda o quanto meus pais me amaram, e o quanto eu lhes dei motivos para preocupações, depois de ter filhos. A Júlia me mostrou que eu não poderia amar duplamente um ser como eu a amo, e aí veio o Eric e me provou que eu posso, porque amo os dois da mesma maneira e na mesma intensidade. Fico os olhando por horas, enternecido, carregado de orgulho e mágica por eu ter contribuído por tamanhas perfeições. Um dia um colega meu criticava para mim a "coragem" de um amigo dele em expor seu filho recém nascido no Facebook, porque o menino havia nascido com o lábio leporino, e eu, antes mesmo de me conter, respondi a ele me admirando o quanto ele era estúpido em falar algo assim, porque um filho meu poderia ser de qualquer jeito que eu sentiria absoluto orgulho dele. A primeira gravidez da minha esposa, a Dani, foi de altíssimo risco, e o médico nos dissera com sinceridade que o bebê poderia nascer com alguma deficiência. Eu amaria a Júlia mesmo se ela tivesse nascido um rabanete, e ela nasceu minúscula, murchinha, cabia quase na minha mão; nasceu com uma imensa fragilidade de forma que eu tinha receio em pegá-la e machucá-la sem ver. O dia que eu as trouxe_ a Dani e ela_ para casa, enfrentamos uma chuva intensa na estrada, e viemos ouvindo no carro todo tipo de música abençoada, Pink Floyd abençoado, Led Zeppelin abençoado, Van Morrison abençoado, porque eu dirigia em estado de graça vendo as duas lá atrás pelo retrovisor, o ratinho rosa que era a Júlia em volta em mantas dormindo no bebê conforto, e o olhar da Dani repetindo o meu com o brilho do êxtase, a descansada e vaidosa plenitude da maternidade e da paternidade. Nós sabíamos que nada de ruim poderia acontecer com a gente. Chegamos à casa antiga em que eu morava, minha casa de solteiro caindo aos pedaços, com a auto-suficiência aristocrática dos permanentemente saudáveis e felizes, e colocamos a Júlia no berço junto à nossa cama e ficamos babando em cima dela, a menininha que, aos 3 meses de gestação, a Dani recebera o prognóstico de que ela tinha uma margem pequena de chance de nascer. E agora ela estava ali, o milagre do qual nunca duvidamos (o milagre do qual eu tinha tanta certeza que nem cheguei a pedir a Deus). Cinco anos depois, o médico da Dani autorizou que tivéssemos mais um filho; em uma semana engravidamos e sentimos o mesmo deslumbramento da gravidez. E aí nasceu o Eric, uma bola grande e gorda que era fisicamente o oposto da irmã. Hoje ele já está esbelto e dando seus primeiros passinhos pela casa. Amanhã será a festa de aniversário de 6 anos dela. As avós estão em casa e mais uma turma de amigos e parentes. E a vida, a resiliência e a ausência de medo, o amor e a luz, são sempre maravilhosos.

sábado, 17 de setembro de 2016

Leitura, a falta que você me faz



Já nas primeiras páginas o Gaspari fala do quanto o militarismo era corrupto, com fraudes na construção de hidrelétrica e dos planos de construção da bomba nuclear brasileira que custou, na época, o desvio de vultosos 30 milhões de dólares dos cofres públicos_ projetos que nunca chegaram a ser finalizados porque, além de corruptos, os militares eram muito ineficientes (a única coisa que sobrou do projeto da bomba atômica, diz o autor, foi um buraco de trezentos metros de fundura em que os sábios cientistas da ditadura intentariam explodir as bombas experimentais, valha-me santa Sucupira!). Gaspari_ que deve muito de seu estilo a Garcia Marquez_, brinda o leitor com uma impagável descrição carregada de ironia da "bravura" e "pragmatismo" dos generais e coronéis, apontando como eram bons em acumular papéis em seus escritórios e ficarem com suas caras de sono suportando o expediente até o fim. Aí vem essa gentinha miúda e iletrada, que infelizmente grassa em grande quantidade por toda a geografia, querendo a volta da ditadura, elogiando a austera "pobreza" dos presidentes e altos caciques militares após o fim do regime. Como a falta de leitura e o completo desinteresse pelo conhecimento é de extrema letalidade.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Molares



Por alguns anos acreditei que para fugir da história bastava me forçar a uma profunda estupidez onírica. Minha aparência típica de um médio-europeu me ajudava nisso, meus olhos próximos, os músculos da minha boca em um sorriso imutável da vítima evadida das circunstâncias, meu nariz que quase se tornava uma cartilagem seca quanto mais velho eu me tornava, e minha estatura que remetia aos lacaios dos romances sociais russos do século XIX. Exerci com perícia uma cara de quem só entende sobre suas pequenas preocupações cotidianas, estando num limite bem aquém de se interessar por notícias. A sociologia sempre superestimou a inteligência; o começo da libertação era se fazer acompanhar com um tratado político nas noites de descanso da fábrica. Trótski estudando nos vagões de carga dos trens siberianos até São Petersburgo; as prisões reformuladas por Stalin para que seus segregados não usufruíssem da distração estratégica dos czares em tornar os livros acessíveis para os presos do regime. Até um Onassis catando guimbas no porto, o horizonte de suas possibilidades ampliando-se em seu cérebro turbinado, se trata de uma desfaçatez na compreensão de como o homem comum programa o uso de sua vida. Para a maioria de nós, a única e verdadeira bênção é ser capaz de se exorcizar dessas ilusões do heroísmo individual criadas pelo rancor daqueles que tem um conceito fanatizado sobre a derrota. 
                 Não que eu não tenha minha parcela de erudição. Formei-me em história em meus anos de juventude na Hungria, mas meu pé no chão quanto a cobrar meu lugar de conforto pelo mérito está longe de ver alguma ironia nisso. Cheguei a escrever para um jornal de oposição ao regime que então recém se instaurara, e a tentação de botar meu senso da verdade em jogo em nome do heroísmo não foi pequena. Tive que fugir pela fronteira junto ao grande rebanho de ameaçados de morte. Cheguei a Londres sem falar uma palavra em inglês, e um senhor me aceitara como guarda noturno de seu cinema. Eu dormia em um quarto ao lado da sala de projeção. Nesses dias me serviram muito mais que meu diploma a felicidade lembrada de meu pai quando retornei de meu primeiro dia com a caixa de graxas para sapato nas costas. Um reconhecimento sagrado de cumprida sua missão paterna. Meu pai já havia desaparecido quando me servi de sua mensagem; morto pelo desgosto com um ataque cardíaco fulminante na mesa de jantar. Muitos de seus antigos companheiros não tiveram a mesma disposição em exigirem bem pouco da Musa Iconográfica. No jornal, até conhecidos meus das mesas ao lado resolveram pelo suicídio. Naquele quartinho apertado, ouvindo as vozes dos filmes que contavam sobre assassinatos em preto e branco para uma plateia de casais de adolescentes, eu agradecia a meu pai. Minha cara foi se tornando ainda mais adequada à condolência desatenta das pessoas. Vocês não sabem, por exemplo, o poder que é não ter os molares. Fui perdendo-os paulatinamente depois dos 30 anos, vítima não da falta de higiene, mas de um processo de descalcificação que aprendi a aceitar como natural devido a estar longe da minha raiz. Confesso que me era impossível fugir da nostalgia do frio, das cornijas carregadas de gelo das casas, da neblina de 20 graus abaixo de zero. Nas pessoas susceptíveis isso provoca a queda de cabelo, o câncer; em mim fazia cair meus dentes. A distância entre uma foto minha ainda rapaz, tirada no estribo da faculdade, em que apareço com um sorriso encenando confiança, os incisivos brancos e fortes parecendo imunes à deterioração, e como estou hoje, é enorme. Um de meus incisivos foi se desgastando até ficar a metade do tamanho, e se entorteceu, tombando para a esquerda pelo seu próprio peso. Era impossível eu ver; nos espelhos parecia que continuava em sua densidade juvenil; até que uma senhora em uma fila do açougue o mencionou simpaticamente. Eu achava que a dentição era um dos assuntos vetados para os ingleses, mas ela sorria e me apontava meus dentes como se falasse de um detalhe peculiar em uma luminária de rua. Ela, inclusive, foi quem me esclareceu sobre essa ideia de que meus dentes foram se enfraquecendo por eu estar longe do “lar”. Morar nesses bairros planificados e nessas charnecas assoladas pelo fog, tendo a chuvinha miúda constante por sobre os guarda-chuvas, dão uma crença sagrada ao conceito de “lar”. Eu posicionava dois espelhos contrapostos para poder ver meus incisivos da maneira certa, mas eles me pareciam normais. Tirei uma foto 3x4 com um sorriso que estranhou o manejador da máquina, que deve ter juntado isso a todo o resto de meu aspecto para me achar um abobado, e corri para casa para apreciar da devida forma aquela revelação. Eram horríveis, amarelados, placas bacterianas incrustadas nas laterais como hera em crescimento progressivo. Fiquei horas no quartinho olhando embevecido a foto, e pensando o quanto é tendente estarmos sempre enganados quanto a nossa destruição. Há sempre um resquício de vaidade a ser eliminado.
             Pois bem, o cinema pegou fogo e eu tive que sair de Londres antes que as investigações avançassem. Alguma manifestação juvenil; coquetéis molotov atirados indiscriminadamente em bancos, universidades, delegacias e no meu cinema. Os jovens revoltados com o sistema não faziam distinção, ou talvez a coisa fosse muito sutil para que eu percebesse. O cinema passava filmes ingleses de produtores locais, açucaradas novelas de campo, nomes que eram difíceis se lembrar no momento quanto mais depois de tantos anos. Adaptações de Jane Austen e Trollope feitas com verbas do departamento de cultura. Essa expressão de uma frivolidade regimentar implantada de alto para baixo deve ter deixado alguns daqueles jovens leitores da escola de Frankfurt sem paciência. Embora o que eu via nas ruas era a mesma grandiloquência exagerada da procura pela mudança, pessoas que pregavam panfletos nos postes e tinham olhares esgazeados, sob o efeito de drogas modernas. Talvez seja romantismo supor que eles tivessem um pensamento com nuances complexas para atacarem um cinema por causa dos filmes que passava. Assim como eu não me atinara à destruição de meus dentes, eu sub-repticiamente superdimensionava a inteligência.
            Na fuga levei três caixas de filmes. Queria devolvê-las para o generoso senhor que me dera abrigo. Algo do bom-mocismo de meu estoicismo pessoal me contaminara, eu achava que seria enternecidamente condizente com minha insignificância mostrar aquelas preciosidades resgatadas para ele. Na certa havia uma astúcia em ganhar com isso algum outro abrigo em um possível local seguro, onde eu poderia continuar com meus pequenos estudos e minha pequena vida em geral. Mas de novo a história passava com sua patrola indiferente ao que estivesse embaixo na terra, sem querer contemporizar com os vermes (sei que é um termo coloridamente autoindulgente e exagerado, e que ninguém se oferece em tamanho sacrifício à sobrevivência assim, mas deixem que eu continue).  Nos jornais noticiaram o incêndio do cinema sem que se fizesse referência ao cigano que pernoitava em suas instalações (para a apressada visão coletivista da época, todos nós, húngaros, armênios, tchecos, éramos ciganos), mas era fácil sentir as investigações em sigilo da polícia local apontadas para todas as nuances exóticas. Lembro que peguei um navio três ou quatro dias depois, e jamais pude me encontrar com ele. O navio tinha um desses nomes institucionais, Saint Ethiene, HMS Victory, não mais que uma sucessão consonantal para o não-emigrante estrangeiro; para mim parecia uma ortodoxia já esvaziada de sentido de uma religião antiga, que minha não participação esforçava-se para não pensar em sua fria função de me expulsar, me mandar para bem longe.
                 Foi quando cheguei em São Miguel. Dezessete dias de trajetória singrando o Atlântico. Na escrita pode-se colocar toda aquela imensidão sensorial em umas poucas palavras. Quem dera pudesse ser assim na vida real. Poupar os sentidos de tanta cobrança de respostas, o corpo de tanta autoconsciência de seus limites. E havia a tristeza do mar, isso que até então eu só compartilhava da literatura. Uma tristeza sem fundo, que deixava a despreocupação de que se poderia morrer sem que se perdesse alguma coisa. Era como se minha busca pela insignificância houvesse enfim me contaminado até um nível absoluto. Olhava as águas batendo em seu fio contínuo no casco cinco metros abaixo e pensava que tanto fazia se eu desaparecesse. Mais tarde me disseram que era um sintoma típico da viagem. Um senhor esloveno, chapéu de velho madrugadino se inclinando para a testa ao efeito do vento equatorial que dava suas primeiras aparições, barba branca e rosto encavado que pouco estava aí para qualquer coisa, sentado ao meu lado nos cabos de arribação. Não era sua primeira viagem e se espantava de não ter visto até agora alguém se atirando ao mar. Eu me vi tão carente de uma expressão de bondade que aceitei que ele estivesse me precavendo, como se suas palavras estivessem me retendo pelo braço. Aportei em uma capital da América do Sul, e dali uma mistura de inspiração e informações me levou até São Miguel.
                A palavra que eu repetia a torto e a direito era: disappear. Era uma das palavras de meu restrito inglês de reflexões pessoais. Where i can disappear? Essas cidades de ninguém têm sua relojoaria séria, executada em prol da manutenção instintiva da vida, seus descarregamentos de carne de porco salgada e arroz encaroçado, tonéis de óleo de linhaça e fardos de peças aleatórias de ferro acondicionadas para o conserto de fogões e televisores, haveria quem entendesse aquelas palavras proferidas por alguém que não ligava para a constituição rígida e fanática da permanência da espécie. Iriam acabar me entendendo. Achei um dos caminhões que transportavam sacos de mantimentos e fui dispensando os vilarejos que me pareciam mais aprazíveis. Pedia com meu sorriso de coitado e meu olhar destituído de inteligência ao motorista se eu não poderia prosseguir. Proceed. Se as casas tinham algo que me agradava e me lembrava de espairecidas tardes de sol, eu acenava com a alegria dos tolos, tão treinada por mim, e dizia proceed. Se eu notava um ar atarefado ou uma mulher com algum sinal de que pudesse haver alimento suficiente para as conversas malévolas sobre a vida alheia_ se havia notas de possibilidades de que houvesse vida alheia suficiente para tecer maledicências_ eu me aprumava em meu canto da cabine e insistia, como o cãozinho sarnento que abana o rabo para agradar o dono mais um tanto e não ser atirado para fora: proceed. Aí chegamos à última aldeia, que consistia apenas em uma rua de terra com casas grotescas sob um sol inclemente, onde nem quando o motorista deu seu grito de alerta pareceu que não iria surgir alma viva para nos receber. Umas dez casas. Mas logo o caminhão fez sua manobra entre as bifurcações do mato e parou em frente a uma saleta de porta de metal corrida aberta, que compreendi ser o mercado do lugar. Não havia mais para onde proceeding, me disse o motorista. E lá fiquei. Era o lugar mais distante que podia ir para fugir à história.

domingo, 4 de setembro de 2016

The night of



Sim, o Faulkner estava certo: existem sempre os mesmos temas capitais para a arte, que falam sobre a coragem, a dignidade, o sofrimento, a luta contra a opressão, a fragilidade, o erguer-se na derrota, a perseverança, o sacrifício, o amor e a resiliência. Toda a grande literatura e a ficção, não importa de qual época e vertente, falam sempre dessas coisas. É com esse pensamento que eu acabei de ver o oitavo e último capítulo agora de The Nigth of, após tê-lo colocado para gravar faltando sua imprescindível meia hora final e tendo conseguido só hoje baixar o episódio inteiro. É tão genial e soberbo quanto a primeira temporada de True Detectives. Confesso que após o primeiro inesquecível episódio, cheio de silêncios e suspense, pensei que a série iria se implodir em um arremedo das velhas tensões e lugares comuns da televisão, disfarçado com a sofisticação da lentidão de uma ótima fotografia, e questionei o gosto de colocar o personagem de John Turturro (um ator sempre excepcional!) com uma característica repulsiva como a grotesca alergia desfigurativa. Mas a partir do quinto episódio, a obra assume status de obra-prima: é tudo soberbo, atuações, enredo, diálogos. E a última cena da temporada, a última cena, é belíssima e comovente. A grande série americana traz também uma marca registrada: consegue limpar a alma. Estou agora assepsiado pelo contato da grande arte.

sábado, 3 de setembro de 2016

Terapia da música



Seguindo por esse tempo de necessário isolacionismo, estando a Oi em seu prosseguimento natural de espoliar confortavelmente a crendice estúpida e conformada do brasileiro (em todo o estado de Goiás, eu confirmei, está um martírio acessar a internet da Oi), acolhi o conselho do eferim (obrigado, meu chapa!) em ouvir a banda Godspeed You! Black Emperor. Esse álbum aí em cima é uma das melhores e mais gratificantes músicas que ouvi nos últimos tempos, e casa espetacularmente bem com o momento em que vivemos. Mistura de música erudita, com pós-rock, rock progressivo e experimentalismo. Aconselho a não baixarem pelo torrent, porque não vem os encartes dos álbuns, necessários e complementares à obra: baixei em um site que foi criado por alguém apenas para disponibilizar a discografia, creio que é o primeiro link do Google, e nele vem as formidáveis e imprescindíveis capas e encartes. Estou viciado nessa música; fiz caminhada ontem ouvindo este álbum e olhando a massa de nuvens tempestuosas que se criava em cima da represa. O eferim me aconselhou a passar essa música de madrugada no tratamento musical que faço para o sono de meu filho Eric, de dez meses, mas acho inapropriado: tem muitos espaços vazios e muito maravilhoso silêncio musical, o que só pode ser apreciado em um volume mais alto, o que de madrugada fica impraticável. O Eric acordava vinte vezes por noite; a Dani ficou tão exausta, que uma manhã, lá pelas sete horas, eu peguei o Eric e ela desmaiou sentada no sofá, com a cabeça apoiada no encosto, o que resultou em um torcicolo e uma câimbra na perna quando acordou uma hora depois, brava comigo por não tê-la chamado para se deitar na cama (mas, meu amor, eu pensei que você estivesse brincando, eu respondi, absolutamente sem saber na verdade porque a deixei lá, mas muito provavelmente sendo porque o Eric nos deixa a todos desbaratinados). Depois que compramos um sonzinho mediano para colocarmos no quarto, com um pen drive repleto de música clássica e alguma música inclassificável de porte, o Eric se curou. Foi uma dessas descobertas mais estupefacientes da minha vida. Eu queria escrever um tratado sobre essa maravilha e não apenas um post. Na primeira noite, ouvindo Márie Brennan, uma cantora irmã da Enya que está na raiz do namoro entre a Dani e eu (ambos a amamos e só dormíamos, na época do namoro, quando ela dormia em minha casa, ouvindo-a), e logo depois, entre outros sons, os concertos para violino do Mozart (Anne-Sophie Mutter) e as sonatas para flauta de Bach (Aurèle Nicolet), o Eric acordou três vezes. Três vezes apenas! Na segunda noite, com a ração narcotizante dos Concertos de Brandenburgo e a cantata dos camponeses e mais as sonatas para piano de Mozart, o Eric acordou duas vezes. 2!!! Na terceira noite, como num padrão sucessivo, acordou apenas uma vez. A Júlia veio dormir em nosso quarto porque quer participar da musicoterapia, e hoje nós a pegamos dormindo sentada no colchão de casal que eu coloquei ao lado da cama (para que eu pudesse caber nesse esquema todo), no que foi provavelmente uma inútil tentativa dela acordar mas em que foi derrubada pela Maria João Pires. Minha casa se transformou em um templo de música, e isso me enche de uma felicidade sagrada. De madrugada eu acordo e escuto a música que está passando, e o efeito sempre é maravilhoso. O Eric e a Júlia sabem bem o que fazem.