terça-feira, 28 de maio de 2013

Bebê 59


Ah... algumas coisas ainda não se prestam ao riso. Um professor universitário disse em rede nacional que a vida é uma sucessão de agruras. Desde que nascemos somos afrontados progressivamente pelo mundo. Mas o que dizer dessa situação agravante de, assim que nascido, ser atirado na privada, revirar-se o pequeno corpo quase sem peso e quase sem visibilidade pelo tufão da água, descer túnel abaixo e sofrer o drama aparentemente irrevogável de ficar-se atolado no cano do esgoto? Tudo tem seu peso e sua visibilidade, afinal de contas. Isso não é forma de cumprir seu itinerário por esse mundo, por mais minúsculo e infenso que ele seja. Mesmo para essa sutileza complexa, essas pontas soltas de perversão  festiva, essa estaca cravada no zero absoluto da falta de dignidade, haverá que se impor um limite. Quem levará a sério que houve uma errática missão ali, mesmo a de se afigurar nas estatísticas dos que morrem antes de completarem o aniversário de um dia? Quem cogitará que houve envolvimento sensorial suficiente para tecer-se uma lembrança, o protótipo de um pesadelo desses que os bebês tem nos berços que os fazem acordar chorando, um pranto desesperado e selvático à busca de consolo, se falta a essa tragédia o mais ínfimo cenário, a mais efêmera contagem de tempo? Nascer e morrer em cinco minutos entre a porcelana com partículas de fezes na superfície da água e meio metro abaixo em um cano de nove centímetros de diâmetro. Nem Beckett pode com isso. Poderia-se criar gerações e gerações de roteiristas de desenhos animados americanos, dos mais politicamente incorretos, dos mais despudorados e chocantemente agressivos, que nem o mais genial deles conseguiria imprimir humor nisso. Ninguém riria, jamais!, por mais que sua cara, quando resgatado pelo grupo de bombeiros de dentro do cano, apareça achatada, branca, perdida entre as incompreensões geométricas da ótica de se saber se se trata de um anfíbio, uma fralda usada, um frango descongelado_ quem teria a disposição certa das retinas para adivinhar nisso um bebê? A cara que simula enfezamento pode parecer a de um palhaço em que lhe jogam uma torta cinematográfica, mas não há a atmosfera de fundo para que os espectadores riem. Quem sabe mais tarde, anos depois, consumadas as previsões clínicas, cada especialista neuromotor e cada autor dos ensaios psiquiátricos comportamentais tenham eles mesmo envelhecidos, em seus trinta, quarenta anos em que ele tenha testado a medida de muitas filosofias para ver se caberiam retroativamente com ele naqueles nove centímetros, alguém possa olhar as imagens e finalmente rir, "ah meu irmão, fizeram uma com você, hein?", "era você?", "fizeram-lhe uma brava". Mas agora não. Todos os rostos, sérios, olhando o frágil pedaço de carne atirado fora, o crânio quebrado, o pequeno pé torto, lacerado e vermelho. Agora não. Em uma sala a mulher que lhe retirou do útero e o fez cumprir a sentença pretendida de uma existência tubular, cujo destino seria nunca olhar a luz. Em outra sala, quilômetros de distância, ele, naquela solidão onde se constroem os futuros e mais terríveis sonhos claustrofóbicos, assistido de hora em hora por pessoas que também vão lhe abandonar, assim que desligado a câmera, assim que reportado sua comicidade seca e intransigente nos noticiários. A vida é uma sucessão de agruras e como ele é sério, como a impenetrabilidade a qualquer riso lhe faz indelevelmente injustificável. 

sábado, 18 de maio de 2013

Os envios recentes da Companhia das Letras



Pareceu uma cena de Pynchon: por volta das 10 da manhã de hoje, sábado, um homem bate à minha porta com um pacote em mãos. Uma encomenda da Cia das Letras para mim, entregue por uma outra empresa privada de correspondência, que não era os Correios. Não sabia que existem tais expedientes, e entregas nos fins de semana. Os livros do pacote são esses da foto: Jerusalém, a Biografia, de autoria de Simon Sebag Montefiore, altamente recomendado por ser o autor de duas excelentes biografias de Stalin; e o aguardadíssimo A Morte do Pai, de Karl Ove Knausgard. Estou ocupado a ler o Mishima que o amigo Luiz Ribeiro me mandou do Canadá, e logo, parto para esse romanção norueguês.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Santo Bulgákov, interceda por nós!



Uma das minhas mais gratificantes leituras dos últimos tempos foi O mestre e Margarida, de Bulgákov. Relinchei de tanto rir o romance todo. Cheguei a babar em grande parte dele. Há um capítulo em que toda uma repartição pública, dessas repartições públicas stalinistas que conhecemos bem por aqui, é possuída: a visita de um dos asseclas do diabo faz com que os funcionários dela passem a cantar uma ópera (baseada na obra) de Púskhin. Ri tanto nesse capítulo que achei mesmo que a possessão demoníaca extrapolara as páginas e caíra sobre mim. Imaginem as pessoas em um prédio do governo não tendo como se controlar, com os olhos desesperados, todos cantando em alto e bom som toda uma obra operística, até serem internados em um manicômio_ e os ônibus que os conduzem passando por uma plateia de populares que acham que é alguma das marchas marciais acontecendo na avenida? Outra cena espetacular é a transformação de Margarida em bruxa, seu voo pelas paisagens noturnas magníficas da Rússia até um distante rio da Sibéria, onde ela se encontra com outras das instigantes figuras infernais para uma espécie de batismo. De imediato, Bulgákov se tornou meu mestre. Anos e anos para que ele chegasse até mim dessa forma sem formalidades, como se não fosse um dos acontecimentos da minha vida, mas uma trivialidade a mais. 

O mestre e Margarida tem também uma narrativa sobre os últimos momentos de Cristo. Em certa época de minha juventude, eu lia tudo na alta literatura sobre Cristo: Barrabás, A última tentação, O evangelho segundo Jesus Cristo. Esses capítulos estão entre as melhores páginas apócrifas sobre o Cristo_ empatam com o magnífico e esotérico livro do Kazantzakis. Por que Bulgákov conta os momentos finais de Jesus em seu livro? Por que, em uma crítica fantástica que faz contra a corrupção do estado soviético, ele intercala esses momentos estranhos, deslocados? Seu cristo tem só um apóstolo, o cobrador de impostos Matheus. Todos são mencionados com seus nomes originais, o que causa uma maior ambientação humana no calor arrogante da Judéia, entre homens brutos cujas barbas parece que sentimos nas mãos: Jesus é Yeshua Ha-Notzri, Barrabás é Bar-Raban, Judas é Judas de Kerioth. Jesus está lá, trocando em miúdos, da mesma forma que Jesus está em Stalker, de Tarkóvski: um homem comum, bastante lelé da cuca, bastante medíocre em sua simploriedade constrangedora, inculto, mas que deixa Pôncio Pilatos fora dos eixos por suas enormes e inusuais palavras inéditas sobre o perdão, sobre a bondade intrínseca do homem. Jesus de Bulgákov é um homem que ninguém suporia, nem nos sonhos mais disparatados, ser algo mais que um louco de bom coração, vítima de sua própria desprovidão de astúcia. Mais uma vez, o Jesus de Bulgákov se encontra com o Jesus de Tarkóvski: em sua aposta de que a fragilidade é a verdadeira força.

Mas o mais fascinante aqui é a comitiva de seres infernais do romance. Bulgákov é um gênio visual: seu romance se assiste, não se lê (estudei métodos de leitura dinâmica que defendem a imaginação da leitura como forma de rapidez sem perder concentração, e nenhum escritor se emprega melhor a essa técnica que esse russo). As cenas são tão ricamente descritas, seus personagens são tão vivos e naturais, que lembro das cenas como se as tivesse visto: na audiência de Yeshua diante de Pilatos, quando Yeshua fala com Pilatos informalmente, como se fossem íntimos, o escrivão que anotava as palavras pára a pena e olha de queixo caído para seu chefe, e isso é oferecido com tanta maestria que dificilmente o cinema seria mais elaborado que a mente do leitor. E os diálogos!: meus irmãos, tenho sido presenteado com o que há de melhor em diálogos em minhas últimas leituras, e Bulgakóv é uma festa à inteligência, é uma overdose. Que prazer e aprendizado saber, mais uma vez, que a literatura pode ser tão libertadora e ensinar tanto.

Os demônios de Bulgákov_ demônios sem nenhuma misericórdia, maus até a medula, e fascinantemente sarcásticos e elegantes_, são como agentes da transformação, como se Deus, após ter mandado os arcanjos para Sodoma e Gomorra, cidades cujo nível de pecado quase perverteu essas criaturas imaculadas (lembro de minha avó pentecostal me lendo a famosa passagem em que os habitantes avaliam o potencial libidinosamente consumível da carne desses seres etéreos), ficasse mais receoso e enviasse dessa vez capangas incorruptíveis, fascinados pelo cumprimento dos terríveis expurgos. Ver as maldades que Azazello, o ser mais feio do universo, Behemoth, o famoso gato preto que anda sobre duas patas, Korôviev, e Hella, uma mulher nua com uma extensa cicatriz no pescoço, fazem sob o comando de Woland, o próprio demônio que se apresenta como doutor em magia negra, é uma maravilha. Nietzsche, que adorava Petrônio, teria adorado Bulgákov. Este romance é um relicário, desses que os fiéis apertam contra o peito à espera de justiça divina, e Bulgákov dá uma ostensiva justiça luciferina em que a hipocrisia da sociedade e a corrupção generalizada que parte do estado soviético se cumpre com decapitações de intelectuais do partido, oligofrenia de poetas ponderados, a loucura de agentes da burocracia. Seria uma vingança meramente placebo, se Bulgákov não fosse tão superior e magistral, tanto que seu romance foi censurado, abreviado, condenado, rasgado, desprezado. Em sociedades tão encalacradas na corrupção e na idiotice como a nossa, Bulgákov ensina, otimista, que a única salvação é o humor libertário, o humor corrosivo, iconoclasta, satânico, insubmisso, subversivo, violento e visceral. Se eu ainda tivesse capacidade de rezar, rezaria ao Santo Bulgákov que intercedesse por nós, para que o Demônio expurgasse esse nosso triste e intranscedente país. 


terça-feira, 14 de maio de 2013

Sempre o fim do romance; a mediocrização da cultura; Cervantes em tablets e Damien Hirst_ Mario Vargas Llosa no Roda Viva de ontem



É difícil não pensar que a produção intelectual de uma vida de escritor e leitor profissional não esteja por detrás da lucidez de Mario Vargas Llosa, que aos 77 anos tem saúde de um homem de média idade para provocar polêmicas e manter um requinte crítico sobre as intersecções da política e da cultura. Ontem, assistindo sua entrevista ao Roda Viva, na TV Cultura, fiquei tão instigado a ouvir mais suas ideias sobre os eventos da contemporaneidade que parecia que não me bastava os tantos ensaios que li do Vargas tardio, do Vargas atacado pelos partidários do comunismo reacionário por suas defesas do liberalismo aos moldes dos pais do liberalismo americano, do Vargas repaginador dos intelectuais da escola de Frankfurt ao atacar a mídia corporativa que epidemiza o entretenimento barato e sem conteúdo, e o Llosa que é um baluarte da defesa da literatura e de sua importância capital para cercear os limites morais da política e o avanço do homem no ócio da imaginação. Llosa ontem me pareceu muito mais jovem que sua idade cronológica se faz mostrar em seu corpo de senhor grisalho e respeitosamente confortável em seu terno de intelectual premiado, apto há muito a estar aposentado, mas ainda na ativa, lançando um romance histórico conradiano, ensaios sobre a sociedade do espetáculo, uma análise sobre Juan Carlos Onetti, e estando com outro romance engatilhado a sair nesse ano. Llosa produz mais que a média dos novos escritores latino-americanos atuais e com uma relevância muito maior, fato apontado involuntariamente pelos seus detratores que perfazem a via sacra piedosamente previsível de tentarem desqualificá-lo por ele professar o oposto de seus cultos infantis a heróis e à doutrina de sovietismos sepultados.

Na entrevista, outro fator importante evidencia a distância de Llosa aos escritores latino-americanos de hoje: a política. A casta de repórteres foi astuciosa o bastante para perguntar-lhe sobre escritores atuais que ele recomendaria, e, quando trataram dos autores brasileiros, tiveram a finesa com os escritores nacionais recentes de se limitarem às impressões de Llosa sobre Guimarães Rosa (que Llosa, claro, disse ser um dos maiores do século, acusando, porém, que não era devidamente reconhecido no mundo hispânico pela péssima tradução espanhola, mas que na França, devido à tradução engajada, Rosa era largamente cultuado). O que Llosa diria de escritores brasileiros que se ocupam em escrever sobre assassinatos em estâncias paradisíacas (com bergamotas) e a extraordinária tristeza do leopardo-das-neves, ou sobre skates e desolações de insipientes e incipentes corações de eternas adolescentes das letras, que empesteiam o mercado editorial de produção brasílica? Llosa repetiu ontem o que diz em alguns ensaios recentes de Sabres e Utopias, que o escritor que é avesso à política presta um serviço ao definhamento de um dos papéis fundamentais da literatura, que é a de ser a fiscalizadora ativamente crítica da política. Llosa se mostrou preocupado com a ausência geral de política na literatura feita em todos os cantos do mundo hoje em dia, mas em especial com a ausência da política na escrita da America Latina, que tem por obrigação e tradição manter um diálogo acirrado com os desmandos dos poderosos de sempre e o atraso multitudinário advindo deles. Ele disse que países sem grandes conflitos políticos e mais próximos da plenitude social, como a Suécia, a Suíça e a Dinamarca são excepcionais em outras coisas, mas não em literatura; e os indícios apontam para uma renovação do romance em países que agora se mostram maduros o suficiente para terem voz própria, como os do nosso continente, que após anos de prisão alienante a ditaduras materiais e mentais de regimes de esquerda e de direita, se encontram num avatar da liberdade de expressão de poderem dizer o que realmente pensam, e reavaliarem com coragem o passado. Mas a percepção da verdade necessita de um espírito político do escritor, que, não o tendo, se anula com trivialidades, com emulações da arte pela arte, com vaidades virtuosísticas e ególatras vazias. Llosa repetiu diante as câmeras do Roda Viva, como grande expoente das letras que é, o que outros escritores apologizaram sobre o papel do escritor: o escritor não pode perder a fé na escrita, o escritor deve manter sua crença no frescor da imaginação como propulsor da evolução humana, seu apego fanático à palavra; seu anacronismo saudável de se apegar a valores que, apesar de sempre parecerem na contra-mão do andamento do dia e obsoletos, sempre estão no fundamento da indústria humana, salientando que essa teoria de que o romance está acabando nasceu junto com o romance, desde que Cervantes publicou seu primeiro volume do Quixote, ou Lope de Vega, já apareceu alguém dizendo que o gênero estava fadado a acabar imediatamente: e o romance sempre continuou.

Nessa entrevista valiosa, Llosa fala de tantas coisas importantes que lamentei não acompanhar o programa com um caderno de anotações em mãos. Perguntam-lhe sobre o embate entre o livro em papel e o livro eletrônico, e Llosa responde que Cervantes jamais escreveria para um tablet, que o tablet não foi feito para a alta literatura, mas para leituras ligeiras. Ele mesmo, diz, nunca leu em tablets e nunca escreveria para o formato do tablet. Tirando esses pequenos temas, Llosa depois se lança a bater contra a mediocrização da arte, o que me pareceu a parte mais salutar dessa entrevista. A mediocrização do receptor da arte_ o público_ e seu baixo grau de exigência, devido à perniciosa democratização do gosto e à perda do reconhecimento do limite entre o que é boa arte do que é má arte, faz com que fenômenos grotescos como a canonização de Damien Hirst como grande artista plástico sejam aceitos. Damien Hirst, diz Llosa, ele mesmo confessou ser um péssimo artista, mas mesmo assim, Llosa continua, estando em Londres durante uma exposição de Hirst, haviam filas de virar o quarteirão diante o museu. Hirst é o artista mais bem pago da história da arte, o que é revelador sobre o conceito distorcido sobre produção cultural contemporânea, mas o que ele faz é medíocre, serializado (uma equipe faz por ele), de péssimo gosto, como sua instalação de um cadáver de tubarão se decompondo em um gigantesco cubo de vidro (a peça mais cara do mundo!). Hirts seria aceitável em um circo, Llosa diz, mas, quando até a instituição mais rigorosa em questão de arte como o museu de arte contemporânea britânico o expõe, algo preocupante está acontecendo não só na cultura, mas na capacidade de intelectualização de valores do homem.

É uma alegria ver o dissidente Llosa falar com tanta juventude.

sábado, 11 de maio de 2013

Biblioteca Pessoal, de Jorge Luis Borges


De Borges, tenho uns três volumes de sua obra apócrifa (entrevistas, e um livro curioso por sua desigualdade resgatado das anotações feitas por alunos de umas palestras de Borges sobre literatura inglesa medieval), e os quatro volumes das assim chamadas "Obras Completas", de sobrecapas amarelas publicados pela editora Globo. Esses livros tem um forte apelo sentimental para mim. Foram, praticamente, os primeiros da minha biblioteca. Como meu começo de século foi determinado pelo peripatetismo, eu não tinha como colecionar livros: comprava-os, lia-os e, imediatamente, trocava-os em sebos, dando dois por um. Não importava o quanto bons eram, eu não tinha lugar para eles naquele momento da minha vida; tal disposição de princípios me fez ler toda a obra de Graham Greene sem ter nenhum exemplar, comprar e recomprar exaustivamente Garcia Márquez, e deixar por aí uns três romances de Paul Auster que me acalentaram em noites frias. Quando me instalei neste que parece ser meu pouso permanente, ganhei dois livros da coleção de Borges, um no natal, e outro no dia dos namorados. Pareceu uma astúcia bem matematizada de quem me os dera, pois os livros e a namorada ficaram para sempre. Por mais que eu goste do volume 1, que tem o que fez de Borges Borges, o que eu mais leio e mais amo com certo acento de culpa é o volume 4, aquele em que o fac-símile da foto interna mostra um senhor octogenário já descansado de suas glórias passadas e remoedor das pontas bem amarradas de seu antigo talento: um Borges que dista na mesma proporção de fôlego de seus contos do Aleph ao jovem de pele lisa e soberba vontade do fac-símile da foto do primeiro volume. 

Tirando os cinco ensaios maravilhosos de Borges, oral, e alguns prólogos longos de Prólogos com um prólogo de prólogos, toda a produção tardia inserida neste volume 4 é de textos breves, alguns cobrindo uma página ou metade de uma página. Dizer isso de qualquer outro autor seria um desabono, mas de Borges, é fácil se viciar nestes textos como um constitutivo de uma grandeza secundária do grande argentino. Em Borges, oral, há um ensaio único e simplesmente magnífico sobre ninguém menos que o místico Emanuel Swedenburg, o que assinala uma das qualidades muitas vezes ignoradas de Borges, a sua fixação e apologia a escritores marcados pelos símbolos do exótico e do esquecimento pelo cânone acadêmico. Em um texto equivocado, o escritor nacional Joca Terron insinuou que a criação ortodoxo de Borges seria responsável por uma certa empáfia preconceituosa que teria determinado o leitor Borges como um restringido aos clássicos; provavelmente Terron foi vítima de seu próprio diagnóstico, tendo lido apenas o Borges clássico de Ficções e O Aleph, mutilando-se enormemente do Borges paralelo mas não menos representativo que trouxe de volta para as livrarias gente olvidada do prelo como Chesterton, Ellery Queen, Stevenson, Kipling, entre vários outros. Se houve um autor menos discriminativo nos gêneros da literatura, esse foi Borges, o que prazerosamente se pode ver no volume 4 das suas obras completas. Ele fala com a mesma profundidade de Kafka quanto do autor de ficção científica Olaf Stapledon, de Faulkner quanto do escritor de romances policiais pulp-fiction S. S. Van Dine.

Desse volume, a obra a que mais retorno é Biblioteca Pessoal, de 1988. São vários prólogos escritos com aquele desconcertante paradoxo borgeano de serem espartanamente concisos e helenisticamente belos e profundos. Sempre achei, sem o mínimo exagero, que Borges apenas assinalou a funcionalidade de seu talento na imagem do aleph, o ponto circunscrito que visualizava tudo no universo. Ler esses prólogos de Borges tem um nível de envolvimento que repete o envolvimento dos livros apresentados. Borges é generoso aqui quanto a frases antológicas, como a que me marcou em definitivo que diz ser a leitura de Dostoiévski tão memorável como a descoberta do amor e a descoberta do mar (no prólogo a Os Demônios), entre tantas e tantas outras. Esse livro me lembra um antigo álbum de figurinhas da minha infância sobre capas de álbuns de rock e jazz. Vendo as capas de Dark side of the moon, de Led Zeppelin IV, de Kind of blue, coisas que me eram absolutamente estranhas, fiquei por anos imaginando o mistério aveludado que teria a música por detrás dessas capas, de modo que quando a ouvi, já fazia parte de mim e era só um mero derivativo cronológico. Esses textos de Borges fazem sonhar com a obra não lida, são quase místicos, quase fundadores da religião da leitura: pode-se perfeitamente dispensar o quase.

P.S.: o amigo João Antonio Guerra mandou por e-mail essa preciosidade rara, que ora divido com os demais visitantes do blog. Mais uma vez: obrigado, João!

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Silly Words

Meu ingresso para o show do Paul McCartney, muito provavelmente, foi um dos primeiros a serem comprados, quando a venda foi disponibilizada pela internet na meia noite de três semanas atrás. Minha irmã, Aline, e eu, havíamos combinado que o primeiro que se deparasse com a possibilidade de comprar os ingressos, o faria imediatamente, adquirindo três, um para mim, outro para Dani, outro para ela. Pois Aline viu os ingressos à venda e os comprou. Eu já tinha resolvido a questão de uma licença no trabalho, de dois dias, pois o show estava marcado na data insólita de uma segunda-feira. Todas as noites ouvíamos uma parte da discografia dos Beatles e do Paul, e repassávamos as letras, e a Dani e minha irmã escreviam alguma coisa sobre a esfuziante espera pelo Facebook. Minha fascinação pelo Paul, que eu considero, indiscutivelmente, o beatle mais talentoso, não era assim tanta hoje em dia, como o fora na juventude, e eu ficaria muito mais entusiasmado se fosse o Jethro Tull, ou o Van Morrison, ou o Neil Young, ou alguém definitivamente inesperado, como a Kate Bush, mas no fim, Paul McCartney é Paul McCartney. Como diz um dos personagens de Houellebecq, em referência a grandes astros do rock, como Jagger e McCartney, eles são seres materialmente investidos de todas as raras vantagens da deidade de uma forma que nunca se viu antes na história: são muito maiores que os faraós em seu tempo. Se há uma semana me perguntassem se eu acreditava com toda certeza em uma determinada coisa, eu diria peremptoriamente que era minha ida ao show do McCartney.

Os ingressos foram caros, mas não para o padrão de um Beatle em Goiânia. 160 reais, mais 20 de propina para uma tal de "taxa da internet". Como esperávamos que ocorreria o mesmo que em Minas Gerais, que teve todos os ingressos esgotados no primeiro dia, compramos como bons consumidores ludibriados sem nenhuma outra alternativa. Os ingressos, porém, só foram se esgotar um dia antes da apresentação. Minha irmã disse que pagaria o meu, pois era presente dela por meu aniversário. Minha irmã aventou a hipótese de comprar os outros dois ingressos como meia entrada, e depois providenciar duas carteiras estudantis falsas com um colega especialista nisso; eu respondi que não deixaria de assistir ao Paul se as duas fossem presas no momento de conferir os ingressos na portaria do estádio. E a fiança por estelionato seria muito mais cara que o valor dos bilhetes na íntegra. Ela desistiu.

McCartney tem já seus 70 anos e eu nunca o vi nem nunca o verei mais. Quatro dias antes do show aconteceu isso. Meu primo Gustavo, 33 anos, um dos parentes da família pelo lado da minha mãe de quem mais gosto, caiu de uma altura de oito metros do monumento público mais recente e cartão postal de Goiânia. O acidente foi às cinco horas da manhã de quinta feira. Ele teve múltiplos traumatismos cranianos, e uma fratura exposta do fêmur. Assim que levado ao hospital, passou por uma cirurgia de seis horas na cabeça. Está em coma, respirando por aparelhos, e o último boletim médico deixa claro que só um milagre poderia salvá-lo. Meus tios, os pais dele, estão em estado de choque. Esses tios me criaram por um bom período da minha infância e juventude. Foram eles que providenciaram os melhores médicos quando mais precisávamos. Eles que são o esteio da bem-aventurança da família. Estão ali prontificados sempre que precisamos. Uma vez a Dani perdeu o ônibus de volta para casa, à noite, e quem me veio na cabeça para ir buscá-la foram eles. Esse tipo de gente que toda família tem como um símbolo inevitável, mesmo as piores famílias.

O que aconteceu com o Gustavo, na apuração das gravações das câmeras do posto de gasolina e das lojas próximas que foram requisitadas pela investigação, parece ter sido o seguinte: o monumento urbano por sobre o viaduto, onde aconteceu a fatalidade, leva o nome de um antigo coronel de Goiás, que, como é de praxe com as grandes pestes, parece ser eterno e imortal, pois concorrerá ao senado ano que vem e sua vitória é incontestável; o monumento (duas torres pontiagudas muito altas, inclinadas uma sobre a outra como duas espadas, uma "arte" de péssimo gosto) é sobre as duas pistas da mais movimentada avenida da cidade, que passam numa curva côncava entre os paredões laterais onde, acima, está a rua onde Gustavo estava. No momento, um acidente de carro na avenida de baixo havia chamado a atenção do Gustavo, que pegou o celular para, o que tudo indica, chamar auxílio policial. Gustavo escorou o corpo no ironicamente chamado "guarda-corpo", o para-peito ou corrimão, do viaduto, e o "guarda-corpo" cedeu com ele, e ele caiu os 8 metros. O "guarda-corpo" de um viaduto construído recentemente, coisa de cinco anos, que é o cartão-postal mais difundido da cidade; um viaduto sobre o qual já caíram acusações anteriores de superfaturamento, devido aos tantos pequenos desabamentos de sua estrutura feita com materiais de baixa qualidade. A prefeitura da cidade está sob o domínio de um partido, o governo do estado sob o domínio de outro partido, e o herói do atraso homenageado com o monumento do viaduto de outro partido. Os três maiores e mais poderosos partidos do país juntaram-se ali para cometerem a tentativa de assassinato contra Gustavo. Dessas coisas que trazem intrusões de percepção sobre a triste história de nosso paisinho, de nosso povinho, de nosso retardo intelectual. (Pessoas como Bolívar e Naipaul já tem a certeza que não se trata de um mero retardo intelectual, mas algo mais incorrigível: um retardo espiritual.)

Não tinha como ir ao show do Paul McCartney, quando meus tios estão num estágio psicológico tão lastimável, quando meu primo está no coma, com novos quadros surgidos como acrescências bizarras à sua condição de saúde: ontem foi anunciado que ele está com pneumonia, e uma diabete insípida. Faz parte do ritual de iniciação na família que meu tio Pedrinho, o pai do Gustavo, conte da vez em que eu, com oito anos, subi no sofá onde ele estava desmaiado, coloquei um pé de um lado e outro pé do outro de seu corpo, baixei meu calção e urinei na boca dele. Eu mirei o jato de urina bem no centro da boca dele. Foi a única vez que ele procurou me pegar para me dar uma sova, mas minha tia Tânia me protegeu. Ninguém nunca soube, pois eu nunca contei para não estragar a graça do causo, que fora a tia Tânia que me deu a ideia e me provocou a fazer isso. Tio Pedrinho era alcoólatra, e a tia Tânia dessas mulheres bravas mas imensamente compreensivas, mesmo com o rolo de macarrão bordoando sobre o lombo do meu tio. Eu vivia com eles, eu era o filho estepe e eles meus pais estepes. Uma noite, quando chegávamos de uma pizzaria, havia um caixote de papel pardo de frente à porta. Era o Gustavo, com seis meses de idade, envolvido com fronhas, cobertores, uma malinha de roupas do lado, e um bilhete por sobre a mala. Alguém sem condições pedia a eles, que por anos tentaram sem sucesso ter filhos, para criarem o bebê. Um bebê negro. Eu estava lá nessa noite e eu vi. Depois de cinco anos, eles conseguiram ter uma filha por contra própria, mas, assim-assim, todos percebiam que o Gustavo tinha o amor especial, um amor de dissidentes. O tio Pedrinho parara de beber quando viu o bebê no caixote.

O mandatário do estado soltou uma nota na imprensa oficial (lê-se: toda a imprensa do estado), parabenizando o povo goiano por ter se comportado bem no show do Paul McCartney. Me pareceu algo no estilo: "obrigado por terem se controlado e estado no nível de recepção requerido a um músico britânico; obrigado por, contra todos os temores, não terem sido bárbaros e jecas ao menos naquela noite". O tipo de coisa que o dono do povo, que faz o que quer com ele, diz, por saber que faz o que quer por tal povo ser um tanto bestializado. 

quinta-feira, 9 de maio de 2013

A morte do pai, de Karl Ove Knausgard



Algumas coisas me deixam entusiasmado no capítulo publicado para degustação do livro do escritor norueguês Knausgard, na edição desse mês da revista Piauí. É uma peça literária de força, bela, dura, sincera, delicada. O que mais me entusiasma é a contramão vitoriosa de Knausgard estabelecido desde essa primeira de cinco partes volumosas de sua obra. É um desses eventos que deixam todo decadentista do papel do romance nos tempos atuais com uma trave na língua. Knausgard faz sucesso, é muito lido, detêm prêmios importantes, não por fazer parte da corrente de escritores nórdicos de literatura policial que se afileira nas listas de best-sellers, mas por, incrivelmente, trilhar os passos da memorialística idiossincrática e recolhida de Proust. Isso, num vislumbre superficial, é um milagre, num vislumbre médio, é motivo de orgulho diante um inesperado indício de um público exorbitado da boçalidade da cada vez mais imperiosa indústria do entretenimento fácil. Numa análise mais detida, a possibilidade da existência de um escritor como Knausgârd é, em oposição ao sentido da afirmação anterior, uma notação lógica de mercado. Poucos sabem que Proust é um dos escritores mais vendidos do século XX.

Após terminar a leitura desse capítulo disponibilizado pela Piauí, hoje de manhã, corri para a internet para ver a quantas andam a possibilidade de já adquirir o A Morte do Pai, a primeira parte do ciclo de romance memorialístico inevitavelmente proustiano de Knausgard intitulado Minha Luta. Ainda não foi publicado pela Cia das Letras, apesar de já estar no site da editora e como pré-venda na Livraria Cultura. Tem mais de 500 páginas, esse primeiro livro. O capítulo lido fala de maneira tocante sobre a fisiologia inescapável da morte e se ampara por completo nas trivialidades da vida caseira do autor, que está casado pela segunda vez e tem três filhos pequenos. Pode ser que eu esteja enganado, mas a escrita do norueguês me acionou a percepção imediata de que se trata de um escritor notável. Ele junta uma descrição sobre um quadro da velhice de Rembrandt com quase o mesmo grau de sublimidade esotérica que Benjamin imprime em seu texto sobre o desenho do anjo da história_ um pouco mais na leitura da obra por inteiro e o encontraria com a linha na precisão certa de seu barômetro de concentração interior. Para nós daqui é difícil não estranhar os desmazelos da boa vida social da Noruega, que torna possível que um escritor viva de seus cheques esporádicos de direitos autorais e reviva a crença na literatura com a mesma convicção dos tempos de um jovem Bellow, mas a prosa filosófica de Knausgard transcende e identifica a mesma procura, o mesmo sequiosismo de significado, o mesmo vazio retumbante e irracionalmente intuitivo que acomete alguém com o direcionamento espiritual ensombrecido de qualquer lugar do globo. Na descrição da felicidade que seus filhos lhe causam, mesmo com os gritos e a selvageria da infância, ele diz que seria perfeito se o que procurasse fosse a felicidade: e revela que a contemplação do quadro de Rembrandt lhe provoca mais satisfações no que instiga do que a presença dos filhos. E nisso, ele conclui, ele já tem 40 anos, logo 50, logo 60 e 70, e depois acabou. Enquanto lia seu relato sobre as crises de ânsia de sua filha de dois anos, de como ele precisa pegá-la nos braços e a sacudir com força para conseguir chegar até o mais profundo dela, a tirar do quadro de similaridades com uma possessão e reativar o controle paterno sobre ela, não pude deixar de pensar as consequências futuras de sua história familiar, como sua filha vai ler depois da morte do pai.

Espero que não me engane. Literatura de primeira e com um salutar e revelador anacronismo.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

O dinossauro



Gosto sim do mini-conto do dinossauro. Não me lembro a primeira vez que o li, se foi graças a uma entrevista de Garcia Márquez, se em alguma matéria sobre contos brevíssimos, mas o impacto que essas sete palavras imprimiram em mim foi equivalente a uma mensagem, a um ensinamento, a um desses aforismas que transformam a vida de um sujeito pela simples razão de o fazer pensar em coisas icognoscíveis. As palavras escrupulosas de Monterroso foi um tapa na minha cara.

                                       Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.

Isso teve a tragédia anunciada das grandes profecias, o engulo seco dos terríveis diagnósticos, a fugacidade insuportável dos momentos capitais perdidos, as reviravoltas não-apreendidas senão tardiamente_em vão_ da história. Quando meu jovem pai fugiu de sua cirurgia de úlcera pela janela do hospital, o câncer incipiente ainda estava lá. Me recordou as pessoas desesperadas que se masturbavam para esquecer a fome, ou a peste, ou a sentença. Quando gozou, a corda da forca ainda estava lá; o nódulo ainda estava lá. Lembrou-me do último sono de Walter Benjamin, a pouco de chegar na fronteira espanhola: quando levantou a cabeça momentaneamente tranquilizada  de sua mochila de fugitivo, o exército nazista ainda estava lá. Me doeu a lucidez fustigante de todo povo derrotado que, ao acordar dos hinos marciais e das cornetas da pátria, o atraso ainda estava lá, a morte crônica e a onipotente corrupção ainda estavam lá. Quando findou o último acorde de McCartney, Marconi ainda estava lá. Como toda sublime mensagem espiritual, o conto de Monterroso traz a possibilidade de redenção na desgraça inescapável que pressagia. É o oximoro além da relatividade, além da teoria das cordas, além da não-existência, além da fé e além da inutilidade de todo martírio. O homem de Monterroso que acorda de seu instante de sonho lenitivo, se esfumaça na neve do primeiro segundo tanto com a camisola do condenado quanto com a armadura do escravo rebelado. É tanto João Batista quanto Espártaco; Gregor Samsa quanto o adolescente solar Augie March; o retardado infinitamente ofendido e sem direito de misericórdia do conto A Enxada de Bernardo Élis, quanto o livre Huckleberry Finn. E o dinossauro... quanta revelação Monterroso nos deu ao vislumbrar essa figura de possível obsolescência, desencontradamente infantil, como fonte de ameaça cósmica. O dinossauro de Monterroso tem essa leveza desamparada em que cabe todos os traumas e todo inferno da poesia: tanto rosebud quanto o grito explosivo que soou em algum beco solitário, ouvido por ninguém, da primeira dor suportada pelo maníaco estuprador quando ele ainda era uma criança.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Um ato de extrema coragem


A verdade é que quando acontecem essas raras ações libertadoras há um nó complexo de motivos por detrás. Não há como elencar apenas um e dizer: "fiz isso porque fulano de tal me visitou aquela tarde e eu vi o quanto seguir a vida por suas normas cotidianas é algo insuportavelmente pesado para o espírito". Ou afirmar categoricamente que tudo não passou de um lapso neurológico que mais tarde poderá ser explicado no ultra-som definitivo como um dos sinais da degeneração final, da demência. Fulano de tal, um grande amigo de épocas passadas, realmente me visitou há duas semanas, na companhia de sua jovem esposa doente e da filhinha de colo que estava abaixo do peso. Ele realmente se sentou comigo em uma cadeira de fio na garagem e os anos nos pesaram de forma constrangedora, até um ponto em que o riso forçado diante a relembrança de antigos planos acabou de súbito, deixando um ralo vestígio de silêncio, e ele se virou para mim e gesticulou com a cabeça mencionando a sua mulher, que estava na sala com minha esposa, e disse: "só vive doente, ... cheia de doenças!". E sua filhinha de colo me olhando de entre os braços grossos do pai com incríveis olhos anêmicos cheios da lucidez premonitória da primeira infância, quase rindo se sua posição oracular de remeter-se a uma camada supraciente de percepção não a obrigasse a uma seriedade límpida, a ser lembrado por mim por vários anos. 

A esposa desse amigo é uma das entidades da minha vida. Na vida a gente conhece poucas entidades no meio de um batalhão, de uma miríade de personalidades comezinhas e sem graça. Ela é uma das duas ou três entidades com voz, espírito, paciência e reflexão que conheci, e vai ver por não conseguir suportar isso é que me distanciei dela. Dessas pessoas superiores que são admiravelmente indefesas. Nesse dia em que nos reencontramos, ela saiu para a garagem e disse que seu sonho era voltar a morar aqui nessa cidade. Morar na capital a deprimia de maneira nefasta. Estar longe de sua mãe, de seu pai, de seus antigos amigos. Mas seu esposo, policial civil, não podia pedir transferência para cá porque aqui não existe UTI. Ela tem um problema genético gravíssimo de arritmia, e só nesses últimos meses precisou ser internada seis vezes às pressas na UTI. Três dessas vezes usaram um desfibrilador nela. Ela fala essas coisas com tanta leveza, com uma simpatia distanciada, que acentua, no meio da minha gigantesca distração em olhar os carros passando sem conseguir sequer avizinhar-me de uma solução, sua constituição extra-corpórea. Como se ela se observasse movimentando com o peso de seu corpo de uma altura segura. Daí ela volta para dentro da casa, chamada por minha esposa para tomar um suco de melancia, e seu esposo, meu grande amigo das antigas, me olha com um olhar do qual não gosto nem um pouco, faz um gesto depreciativo com a boca, e me diz mais uma vez: "cheia de doenças! Não sei o que vou fazer. Está com gordura no fígado e o médico ordenou que emagreça dez quilos, mas ontem mesmo ela comeu churrasco me dizendo para deixá-la ser feliz".

Fomos grandes amigos, ele e eu. Uma vez me flagrara ouvindo Kind of Blue em meu carro, numa noite em que eu sentei na praça de um boteco e coloquei o som baixinho só para mim, a porta aberta, tomando um vinho. No outro dia apareceu em minha casa me convidando para sair. Não me conhecia, estava tão absolutamente sozinho nesse povoado de costumes aborígenes celerados que precisava de alguém com quem se identificasse urgentemente, senão ficaria louco. Eu era solteiro e senti um tédio descomunal para começar aquela nova amizade, mas me reconheci naquele apelo honesto, corajoso. Desde então, por uns dois anos, vivemos nosso on the road particular e geograficamente restringido. Ele tinha tanta energia e tanta carência de se mostrar um cara inteligente, descolado, carregado de juventude, que acabava sendo mesmo fascinante. Não parava de conversar, de ter planos artísticos; levantava-se para gesticular algum prosseguimento de seus sonhos visionários. Passava por um divórcio em que as pessoas culpavam-no de ser um tirano. Vizinhos alegavam ouvir-lhe gritando e espancando a mulher. Todos tinham muito medo dele. Uma vez, quando voltávamos de um bar, numa tarde de domingo, ele puxa o freio de mão e quando eu tenho tempo de me situar, o vejo do lado de fora, apontando sua pistola .40 para seis rapazes ajoelhados com as mãos na cabeça. Ele trabalhara três anos no entorno de Brasília e esse assunto era a única coisa do qual ele jamais falava. Uma vez insinuou, quando estávamos muito bêbados, ouvindo Ten Years After no alpendre de um casa de frente a um lago onde eu morava, que havia matado duas pessoas quando trabalhava lá. Gente que não faria falta alguma para a humanidade. Mas foi só e eu nunca quis saber. Em uma madrugada, o telefone toca e é sua ex-esposa, que eu nunca vira e nem adivinhava como conseguira meu número, e que me toma uma longa hora contando coisas abomináveis, entre lágrimas. Uma voz bonita, altamente estética e auto-consciente disso.

Nessa mesma casa do lago, ele cismou com um vizinho que não lhe teria cumprimentado por preconceito racial, e de madrugada saiu da mesa onde conversávamos alegremente, abriu o portão, me disse "veja só", foi até a casa do desafeto imaginário, desceu a barguilha e mijou na porta de entrada. Foi a única vez que perdi a paciência. Quando voltou, eu apontei para sua cara e disse que se o vizinho tinha achado mesmo que ele era um negro sub-humano sujo, ele acabava de confirmar isso. Ele ficou deitado na sala com um sorriso infantil de vergonha mas dava para ver que estava mortalmente constrangido. Durante a noite ele roncava quase ao ponto de fazer tremer as paredes, e soltava peidos fantásticos que me fizeram levar meu colchão para o alpendre. Soltava um peido descomunal e me parecia que ria com um riso melífluo de alguém que fingia dormir, só para me dar a resposta compensatória por ter ficado bravo com ele.

Uma vez entraram na minha casa, arrombando a porta, e levaram um celular e uma pasta de cds. Ele me presenteou com um 38 prateado, cano longo, muito bonito. A arma atraía meu olhar e não o soltava a cada vez que eu a via. Passamos um fim de semana pelos campos atirando em alvos de latas de cerveja e troncos de árvores. Levamos nosso amigo Galheb para caçarmos carneiros. Enquanto Galheb ficava no alto do morro certificando-se de que não havia nenhuma alma viva por perto, e eu me preparava para chegar com o carro e abrir rapidamente o porta-malas, ele mirava com sua .40 o grupo de carneiros no plano do morro e atirava entre os olhos de um deles. Colocamos o animal morto no porta-malas, todos muito apressados e afobados, e o levamos para sangrar para debaixo de uma ponte. Galheb disse: "Isso é que é bando de ladrões preparados: levamos até um veterinário para fiscalizar a qualidade da carne". Galheb usou toda sua arte culinária preparando por uma semana a carne de carneiro, e a comemos em um sábado memorável em que nada tirava de nossos cabeças a silenciosa e delicada certeza telepática de que éramos três irmãos.

Eu nunca duvidei dele. Sua ex-esposa era cocainômana. Casara-se de novo com um traficante que meses depois fora preso. Ele, ao conhecer minha amiga, me disse estar apaixonado por ela. Eu os apresentei e a reação inusitada dela foi a mesma. Seis meses depois se casaram. Uma noite, para comemorarmos, cada um dos casais levou um vinho do Porto para nosso barzinho preferido, o local onde eu e ele nos conhecemos. Coloquei Kind of Blue no toca cd e sentamo-nos debaixo das palmeiras que não eram centenárias mas era como se o fossem, com suas folhas canoras e o vento atonal por entre elas. Os dois estavam tão resplandecentemente felizes que mal tocaram nas garrafas. Eu tomei os vinhos praticamente sozinhos, e me deixei contagiar com a marca registrada da energia dele. Cada história que eu contava eu titerizava figuras imaginárias com os gestos complementares das mãos. Quando fui levá-los em meu carro para sua casa, ele soltava peidos festivos que incendiavam o carro e faziam com que eu, minha esposa e minha amiga procurassem ar pelas janelas. Eu dirigia devagar por estar iluminado além da conta pelos Porto e ele soltava peidos prodigiosos que pareciam nunca ter fim. Deixei-os em casa e minha amiga, com sua voz valvar doce, sua plenitude da presença, me olhou com os olhos que não parou de ter de uma foto em preto em branco em que aparece aos dois anos de idade, de frauda, ao lado do pai, morrendo de rir com uma mangueira jorrando água, e me agradeceu. Minha esposa sabe que eu amo essa amiga e nunca teve o mínimo ciúmes depois que a conheceu. Fomos embora para nossa casa comentando o controle sobrenatural esfincterológico de meu amigo, e, intimamente, eu o invejava por isso, uma estranha e ridícula inveja. Eu era muito sistemático com esses despudores escatológicos. Eu nunca peidara perto de nenhuma namorada; aliás, nunca peidara perto de pessoa alguma, e se isso tivesse acontecido eu seria capaz de morrer. Uma vez eu obriguei a uma namorada a sair da minha casa e me esperar do lado de fora, pois o banheiro era acoplado ao quarto e minha desobrigação fisiológica era tão iminente que ela ouviria com toda certeza. Outra vez eu desfiz um namoro de três anos porque a moça, quando eu voltara da cozinha para a sala, havia empesteado todo o ambiente e não teve como ela não confessar que havia emitido um flatus que lhe pareceu pequeno o suficiente para evadir-se da atmosfera antes de eu voltar mas que lhe revelara de uma traiçoeirice tremenda. Levei dois meses para acabar o namoro, um namoro que prometia e do qual eu me comprometera acirradamente hospedando-me na casa dos pais da moça em São Paulo durante os feriados de natal e ano novo, mas que não me era mais possível olhar aquele rosto angelical e aquela educação europeia exemplar sem me remeter à verdade subliminar do horror atmosférico daquela lembrança. Eu nunca peidara na frente de ninguém, ontem eu pensei nisso com tristeza, no alto de meus bobos e irredencionistas 40 anos.

Ontem, de tarde, sentado em minha poltrona na biblioteca de casa, lendo o final de O Mestre e Margarida, com minha filha de dois anos Júlia sentada no carpete folheando pranchas das pinturas de Van Gogh, eu tomo fôlego, e grito para a minha esposa que estava na sala: "Dani, daria para você vir aqui, por favor?". A Dani deixa o que estava fazendo e aparece na minha frente, prontificada. Eu lhe mostro meu dedo indicador da mão direita, colocando o livro do Bughákov no peito, e digo: "acho que desloquei esse dedo em algum lugar, daria para puxá-lo?". Ela olha para meu dedo e o pega com todo o pendor doméstico com uma das mãos, e o puxa. No mesmo instante, já estando na posição planejada com as pernas abertas com os pés em uma das traves de uma das estantes de livros, eu solto um peido descomunal, com bolhas sonoras arredondadas firmes, sincopadas e cheias. Uma obra-prima. A Dani arregala os olhos pasmada e sai diligentemente, numa espécie de choque de efeito retardatário, com a mão na boca e dizendo: "Meu Deus, que horror! Que horror!" Eu sinto uma vergonha que não é só clinicamente uma vergonha, mas algo mais, algo inominável. Eu rio com gargalhadas verdadeiras, a Júlia se levanta, pega meu dedo e diz: "minha vez, papai! Minha vez!". "Que carniça!", ouço a Dani dizendo além da porta. Sigo a Dani depois de um minuto e lhe abraço, lembrando das tantas vezes que a vi vomitando, das vezes em que ela, grávida e doente, usara o banheiro do hospital comigo a segurando pelos braços, naquela época em que todo mundo, menos eu, achava que ela morreria. "Nunca desista de mim, Dani, que eu nunca desistirei de você", eu digo, lhe abraçando. Ela ri e me responde: "nossa, um homem tão culto fazer isso!". Eu digo: "Homens cultos também tem cu, Dani". E ela: "por que não escreve sobre isso em seu blog? Hoje eu pedi para minha esposa puxar meu dedo e soltei um tremendo peido". E hoje eu me sentei aqui e escrevi: A verdade é que quando acontecem essas raras ações libertadoras há um nó complexo de motivos por detrás.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Método José Echegaray de escrita


Às vezes não dá para manter uma certa intuição musical quando escrevo e eu recaio conscientemente naquilo que eu chamo de método José Echegaray de escrita. Geralmente, a única imposição que o escritor que por ventura jaz em mim estabelece para ser externado é a de que eu decida em qual das modalidades sonoras ele vai agir. Eu tenho muitas modalidades sonoras da escrita, aprendidas ao longo de mais de três décadas de leitura. Eu recorro com total naturalidade a elas para cada coisa que escrevo: se vou fazer um textinho de fantasia para meu filho desenhar na parte de baixo de cada página, aciono a tecla dos escritores infantis brasileiros que me deslumbraram na infância, e a coisa flui; na faculdade de história, se tinha que compor uma monografia distinta, eu acionava a tecla dos meus ensaístas preferidos (se fosse um texto mais voltado para a informação sofisticada, era Hobsbawn; se fosse uma monografia mais intimista e reacionária, com direito a uma quase lírica manifestação crítica, era Edward Said_ com as grandes pitadas de Conrad, o mentor de Said), e a coisa acontecia. Claro que não me pretendo médium de nenhum escritor, assim como repudio o plágio estético: quando escrevo ouvindo os assobios discursivos desses autores, dentro de minha independência duramente conquistada eu sigo os contornos de seus movimentos, os intervalos de suas respirações, a maneira deles fecharem a porta do quarto quando percebem que aquele trecho exigirá um recolhimento mais profundo, uma ternura mais perigosa. Mas, por um motivo ou outro, gerados pelo cansaço ou pela pressa, eu não estabeleço nenhum panorama de conforto para meu escritor interno, e ele ou não se manifesta, ofendido em seus brios profissionais, ou o faz sendo vítima da completa insegurança irresponsavelmente conseguida pela minha falta de diretrizes. É o método José Echegaray de escrita, e meu escritor interno, tão bem quanto eu, sabe que o que sair desse processo de escrita será imediatamente incinerado depois de passado o surto, pois qualquer indício remanescente desses ataques anarquistas traria um enorme constrangimento a nós dois.

Esse termo nasceu há uns vinte anos, quando eu adquiri por um preço irrisório parte da coleção dos ganhadores do prêmio nobel de literatura. Tirando alguns volumes que se destinavam a autores ainda na rabeira do ostracismo_ como Kipling, Tagore, Romain Rolland e Hamsun_, a maioria dos outros 15 livros eram de laureados já descansados da relevância no mais profundo e intocável oceano do esquecimento. Eram todos de antes da segunda guerra mundial, alguns mesmo antes da primeira guerra, o que se podia ver nos textos introdutórios dos presidentes do prêmio que diziam coisas que soariam hoje comovedoramente obsoletas como ser o galardoado "inspirado por nobres ideias", a "sua simpatia e amor à verdade", "sua apreciação pelo idealismo sublime". Esses livros me traziam um conforto estranho, um prazer preguiçoso, a graça de uma nostalgia de um tempo imaginado com um romantismo utópico, como se tivesse, esse tempo, sido muito mais simples que o tempo em que eu vivia. Recordo que li um desses livros, intitulado Minna, que me deixou enternecido, apesar das heroínas puras e rosáceas e da tragédia singela sem mais consequências espirituais: pequenos reinos idílicos de uma Europa que parecia eterna em seus dramas provincianos. Mas daí passei e folhear o volume dedicado ao poeta espanhol José Echegaray, que ganhou o prêmio de 1904, e a atmosfera de placidez edulcorada mudou radicalmente. O texto introdutório sobre o poeta fora escrito por alguém da minha época, alguém cheio de ódio tardio e indisfarçável pelo escritor. Um professor acadêmico de literatura espanhola chamado pela repartição de Estocolmo instalada em Madri para escrever sobre aquele distante homem das letras já perfeitamente sepultado. Fiquei toda uma tarde lendo, admirado, aquela defesa apaixonada da mediocridade do que, me parecia, ser o pior escritor da história. Imaginei o professor antes de ter se sentado na escrivaninha de sua sala e enfrentado a tarefa, imaginei-o nas semanas antecedentes em que ele caminhava meio cabisbaixo pelas travessas de trás da grande biblioteca na qual consumiu horas de estudo vazio, sua maneira de torcer as mãos uma na outra e falar sozinho. O preparativo tenso a que teve que se submeter para cumprir o trabalho inglório de fazer um longo ensaio sobre nada, sobre um poeta que era tão antiquado que parecia não ter escrito em espanhol, mas numa desinência arcaica de outra língua estranha a Cervantes e José Cela. 

Já li um ensaio em que seu autor mostra não prezar em nada a arte feita pelo escritor analisado. Trata-se do ensaio de Coetzee sobre Sandor Márai. Coetzee mostra tanto desprezo e ridicularização    pelo romancista húngaro, que cai na cogitação direta por parte do leitor do propósito de ter perdido tempo em escrever sobre alguém que para ele não tem nenhum interesse. Um escritor profissional como Coetzee tem autonomia para escolher sobre quem escrever, o que causa estranhamento sua escolha por Márai. Mas a alternativa da desistência parece não ter sido oferecida ao professor nomeado para escrever sobre José Echegaray. O único recurso que ele teve foi compor seu martírio   de forma a não ter uma aneurisma, o que seria uma ironia morrer pela maior nulidade das letras mundiais, que lhe cabia horas de escrita ortodoxa porque a academia cometeu o erro inimaginável de ter escolhido essa mediocridade das mediocridades em vez de Tolstói. Pois bem: o professor acabou produzindo uma peça cômica que transcende sua própria lucidez sobre a situação. Quando o li, vi-o se levantar da cadeira para acender um cigarro e ficar parado dez minutos de frente à janela sentindo o ódio adstringente percorrer-lhe as veias, e, com um estalo, voltar a se sentar diante a folha e escrever com intenso prazer mais algumas páginas em que desforra-se de toda sua acrimônia contra o poeta Echegaray. Ele cita longos trechos do estilo ilegível de Echegaray, sua incompetência quase fisiológica em escrever uma frase sequer com o mínimo estilo, sua ausência devastadora de imagens e brilho, sua incapacidade de imprimir interesse nas palavras. Ele próprio se torna um personagem de seu ensaio, tamanho a nitidez dos traços cênicos de suas expressões faciais através do texto.