quarta-feira, 8 de maio de 2013

O dinossauro



Gosto sim do mini-conto do dinossauro. Não me lembro a primeira vez que o li, se foi graças a uma entrevista de Garcia Márquez, se em alguma matéria sobre contos brevíssimos, mas o impacto que essas sete palavras imprimiram em mim foi equivalente a uma mensagem, a um ensinamento, a um desses aforismas que transformam a vida de um sujeito pela simples razão de o fazer pensar em coisas icognoscíveis. As palavras escrupulosas de Monterroso foi um tapa na minha cara.

                                       Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.

Isso teve a tragédia anunciada das grandes profecias, o engulo seco dos terríveis diagnósticos, a fugacidade insuportável dos momentos capitais perdidos, as reviravoltas não-apreendidas senão tardiamente_em vão_ da história. Quando meu jovem pai fugiu de sua cirurgia de úlcera pela janela do hospital, o câncer incipiente ainda estava lá. Me recordou as pessoas desesperadas que se masturbavam para esquecer a fome, ou a peste, ou a sentença. Quando gozou, a corda da forca ainda estava lá; o nódulo ainda estava lá. Lembrou-me do último sono de Walter Benjamin, a pouco de chegar na fronteira espanhola: quando levantou a cabeça momentaneamente tranquilizada  de sua mochila de fugitivo, o exército nazista ainda estava lá. Me doeu a lucidez fustigante de todo povo derrotado que, ao acordar dos hinos marciais e das cornetas da pátria, o atraso ainda estava lá, a morte crônica e a onipotente corrupção ainda estavam lá. Quando findou o último acorde de McCartney, Marconi ainda estava lá. Como toda sublime mensagem espiritual, o conto de Monterroso traz a possibilidade de redenção na desgraça inescapável que pressagia. É o oximoro além da relatividade, além da teoria das cordas, além da não-existência, além da fé e além da inutilidade de todo martírio. O homem de Monterroso que acorda de seu instante de sonho lenitivo, se esfumaça na neve do primeiro segundo tanto com a camisola do condenado quanto com a armadura do escravo rebelado. É tanto João Batista quanto Espártaco; Gregor Samsa quanto o adolescente solar Augie March; o retardado infinitamente ofendido e sem direito de misericórdia do conto A Enxada de Bernardo Élis, quanto o livre Huckleberry Finn. E o dinossauro... quanta revelação Monterroso nos deu ao vislumbrar essa figura de possível obsolescência, desencontradamente infantil, como fonte de ameaça cósmica. O dinossauro de Monterroso tem essa leveza desamparada em que cabe todos os traumas e todo inferno da poesia: tanto rosebud quanto o grito explosivo que soou em algum beco solitário, ouvido por ninguém, da primeira dor suportada pelo maníaco estuprador quando ele ainda era uma criança.

4 comentários:

  1. Eu acho que a gente incorpora a eternidade, por isso somos tão contraditórios e os gritos primais são tão essenciais ao rock, porque são à expressão humana total, que incorpora também Bach e tudo que há de voragem, rugido e silêncio. Tudo está sempre aqui e agora, se desdobrando para adiante, e por isso é tão difícil superar a condição humana, de forma que mesmo na gélida Noruega surge uma besta fera disposta a querer fazer propaganda e imposição de seu programa à custa de bombas de ratatatás, a melhor forma de rugir modernamente. O jogo dialético não é um caminho, é um contínuo e impreciso renascer de tudo a todo o momento com o acréscimo milimétrico de diferenças que não resultam automaticamente em progresso, mas apenas em argumentos incorporados, e esses podem ser englobados em um processo de progressão não ao socialismo, mas à barbárie, e tudo é civilização, bastando para isso despir esse palavra de sua névoa de Esclarecimento imposta pelo Iluminismo.

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    1. "jogo dialético não é um caminho, é um contínuo e impreciso renascer de tudo a todo o momento com o acréscimo milimétrico de diferenças que não resultam automaticamente em progresso"
      achei muito bom isso aqui.

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  2. Sim, miniconto é literatura. Esse, do Monterroso, é literatura. Teu curto texto, sinalizando ter muito pensado sobre O dinossauro, de ter sido tocado por suas infinitas implicações, é também literatura, poxa. Sem ar blasé-know-it-all desprovido de uma sensível base e razão para tal, caga-regra, como vemos por aí.

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  3. Esse "ainda estava lá " é o que me mantém ultimamente paralisado quando tento me insurgir de alguma forma contra a injustiça estabelecida. Favores e mentiras, o homem vendido, o individualismo exacerbado movendo a roda da vida sem que as ações isoladas possam surtir algum efeito contra o que é hoje questão de sobrevivência.
    Abandonar as tentativas de empreender ações inócuas e buscar uma compreensão mística da figura desse dinossauro, e na vida simples, despretensiosa e destituída de ambições deste mundo, vencer o dinossauro pelo descobrimento da sua insignificância.

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