sábado, 11 de maio de 2013

Biblioteca Pessoal, de Jorge Luis Borges


De Borges, tenho uns três volumes de sua obra apócrifa (entrevistas, e um livro curioso por sua desigualdade resgatado das anotações feitas por alunos de umas palestras de Borges sobre literatura inglesa medieval), e os quatro volumes das assim chamadas "Obras Completas", de sobrecapas amarelas publicados pela editora Globo. Esses livros tem um forte apelo sentimental para mim. Foram, praticamente, os primeiros da minha biblioteca. Como meu começo de século foi determinado pelo peripatetismo, eu não tinha como colecionar livros: comprava-os, lia-os e, imediatamente, trocava-os em sebos, dando dois por um. Não importava o quanto bons eram, eu não tinha lugar para eles naquele momento da minha vida; tal disposição de princípios me fez ler toda a obra de Graham Greene sem ter nenhum exemplar, comprar e recomprar exaustivamente Garcia Márquez, e deixar por aí uns três romances de Paul Auster que me acalentaram em noites frias. Quando me instalei neste que parece ser meu pouso permanente, ganhei dois livros da coleção de Borges, um no natal, e outro no dia dos namorados. Pareceu uma astúcia bem matematizada de quem me os dera, pois os livros e a namorada ficaram para sempre. Por mais que eu goste do volume 1, que tem o que fez de Borges Borges, o que eu mais leio e mais amo com certo acento de culpa é o volume 4, aquele em que o fac-símile da foto interna mostra um senhor octogenário já descansado de suas glórias passadas e remoedor das pontas bem amarradas de seu antigo talento: um Borges que dista na mesma proporção de fôlego de seus contos do Aleph ao jovem de pele lisa e soberba vontade do fac-símile da foto do primeiro volume. 

Tirando os cinco ensaios maravilhosos de Borges, oral, e alguns prólogos longos de Prólogos com um prólogo de prólogos, toda a produção tardia inserida neste volume 4 é de textos breves, alguns cobrindo uma página ou metade de uma página. Dizer isso de qualquer outro autor seria um desabono, mas de Borges, é fácil se viciar nestes textos como um constitutivo de uma grandeza secundária do grande argentino. Em Borges, oral, há um ensaio único e simplesmente magnífico sobre ninguém menos que o místico Emanuel Swedenburg, o que assinala uma das qualidades muitas vezes ignoradas de Borges, a sua fixação e apologia a escritores marcados pelos símbolos do exótico e do esquecimento pelo cânone acadêmico. Em um texto equivocado, o escritor nacional Joca Terron insinuou que a criação ortodoxo de Borges seria responsável por uma certa empáfia preconceituosa que teria determinado o leitor Borges como um restringido aos clássicos; provavelmente Terron foi vítima de seu próprio diagnóstico, tendo lido apenas o Borges clássico de Ficções e O Aleph, mutilando-se enormemente do Borges paralelo mas não menos representativo que trouxe de volta para as livrarias gente olvidada do prelo como Chesterton, Ellery Queen, Stevenson, Kipling, entre vários outros. Se houve um autor menos discriminativo nos gêneros da literatura, esse foi Borges, o que prazerosamente se pode ver no volume 4 das suas obras completas. Ele fala com a mesma profundidade de Kafka quanto do autor de ficção científica Olaf Stapledon, de Faulkner quanto do escritor de romances policiais pulp-fiction S. S. Van Dine.

Desse volume, a obra a que mais retorno é Biblioteca Pessoal, de 1988. São vários prólogos escritos com aquele desconcertante paradoxo borgeano de serem espartanamente concisos e helenisticamente belos e profundos. Sempre achei, sem o mínimo exagero, que Borges apenas assinalou a funcionalidade de seu talento na imagem do aleph, o ponto circunscrito que visualizava tudo no universo. Ler esses prólogos de Borges tem um nível de envolvimento que repete o envolvimento dos livros apresentados. Borges é generoso aqui quanto a frases antológicas, como a que me marcou em definitivo que diz ser a leitura de Dostoiévski tão memorável como a descoberta do amor e a descoberta do mar (no prólogo a Os Demônios), entre tantas e tantas outras. Esse livro me lembra um antigo álbum de figurinhas da minha infância sobre capas de álbuns de rock e jazz. Vendo as capas de Dark side of the moon, de Led Zeppelin IV, de Kind of blue, coisas que me eram absolutamente estranhas, fiquei por anos imaginando o mistério aveludado que teria a música por detrás dessas capas, de modo que quando a ouvi, já fazia parte de mim e era só um mero derivativo cronológico. Esses textos de Borges fazem sonhar com a obra não lida, são quase místicos, quase fundadores da religião da leitura: pode-se perfeitamente dispensar o quase.

P.S.: o amigo João Antonio Guerra mandou por e-mail essa preciosidade rara, que ora divido com os demais visitantes do blog. Mais uma vez: obrigado, João!

Um comentário:

  1. João Antonio Guerra15 de maio de 2013 às 16:27

    De nada, Charlles.

    De Borges, aqui em casa, uma ex-namorada me arrumou a obra completa editada na Argentina pela Sudamericana; tenho também o Ficções, daqueles volumes capa vermelha da Abril, e o Livro da Areia pela Companhia. Com as grossas edições da Sudamericana à frente, saber que se lembram mais do velho por aquela quantidade deleteriamente específica de contos - grandes contos, os melhores contos!, mas só dois livrinhos, três se estivermos de bom humor - é um pensamento bem penoso.

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