terça-feira, 14 de maio de 2013

Sempre o fim do romance; a mediocrização da cultura; Cervantes em tablets e Damien Hirst_ Mario Vargas Llosa no Roda Viva de ontem



É difícil não pensar que a produção intelectual de uma vida de escritor e leitor profissional não esteja por detrás da lucidez de Mario Vargas Llosa, que aos 77 anos tem saúde de um homem de média idade para provocar polêmicas e manter um requinte crítico sobre as intersecções da política e da cultura. Ontem, assistindo sua entrevista ao Roda Viva, na TV Cultura, fiquei tão instigado a ouvir mais suas ideias sobre os eventos da contemporaneidade que parecia que não me bastava os tantos ensaios que li do Vargas tardio, do Vargas atacado pelos partidários do comunismo reacionário por suas defesas do liberalismo aos moldes dos pais do liberalismo americano, do Vargas repaginador dos intelectuais da escola de Frankfurt ao atacar a mídia corporativa que epidemiza o entretenimento barato e sem conteúdo, e o Llosa que é um baluarte da defesa da literatura e de sua importância capital para cercear os limites morais da política e o avanço do homem no ócio da imaginação. Llosa ontem me pareceu muito mais jovem que sua idade cronológica se faz mostrar em seu corpo de senhor grisalho e respeitosamente confortável em seu terno de intelectual premiado, apto há muito a estar aposentado, mas ainda na ativa, lançando um romance histórico conradiano, ensaios sobre a sociedade do espetáculo, uma análise sobre Juan Carlos Onetti, e estando com outro romance engatilhado a sair nesse ano. Llosa produz mais que a média dos novos escritores latino-americanos atuais e com uma relevância muito maior, fato apontado involuntariamente pelos seus detratores que perfazem a via sacra piedosamente previsível de tentarem desqualificá-lo por ele professar o oposto de seus cultos infantis a heróis e à doutrina de sovietismos sepultados.

Na entrevista, outro fator importante evidencia a distância de Llosa aos escritores latino-americanos de hoje: a política. A casta de repórteres foi astuciosa o bastante para perguntar-lhe sobre escritores atuais que ele recomendaria, e, quando trataram dos autores brasileiros, tiveram a finesa com os escritores nacionais recentes de se limitarem às impressões de Llosa sobre Guimarães Rosa (que Llosa, claro, disse ser um dos maiores do século, acusando, porém, que não era devidamente reconhecido no mundo hispânico pela péssima tradução espanhola, mas que na França, devido à tradução engajada, Rosa era largamente cultuado). O que Llosa diria de escritores brasileiros que se ocupam em escrever sobre assassinatos em estâncias paradisíacas (com bergamotas) e a extraordinária tristeza do leopardo-das-neves, ou sobre skates e desolações de insipientes e incipentes corações de eternas adolescentes das letras, que empesteiam o mercado editorial de produção brasílica? Llosa repetiu ontem o que diz em alguns ensaios recentes de Sabres e Utopias, que o escritor que é avesso à política presta um serviço ao definhamento de um dos papéis fundamentais da literatura, que é a de ser a fiscalizadora ativamente crítica da política. Llosa se mostrou preocupado com a ausência geral de política na literatura feita em todos os cantos do mundo hoje em dia, mas em especial com a ausência da política na escrita da America Latina, que tem por obrigação e tradição manter um diálogo acirrado com os desmandos dos poderosos de sempre e o atraso multitudinário advindo deles. Ele disse que países sem grandes conflitos políticos e mais próximos da plenitude social, como a Suécia, a Suíça e a Dinamarca são excepcionais em outras coisas, mas não em literatura; e os indícios apontam para uma renovação do romance em países que agora se mostram maduros o suficiente para terem voz própria, como os do nosso continente, que após anos de prisão alienante a ditaduras materiais e mentais de regimes de esquerda e de direita, se encontram num avatar da liberdade de expressão de poderem dizer o que realmente pensam, e reavaliarem com coragem o passado. Mas a percepção da verdade necessita de um espírito político do escritor, que, não o tendo, se anula com trivialidades, com emulações da arte pela arte, com vaidades virtuosísticas e ególatras vazias. Llosa repetiu diante as câmeras do Roda Viva, como grande expoente das letras que é, o que outros escritores apologizaram sobre o papel do escritor: o escritor não pode perder a fé na escrita, o escritor deve manter sua crença no frescor da imaginação como propulsor da evolução humana, seu apego fanático à palavra; seu anacronismo saudável de se apegar a valores que, apesar de sempre parecerem na contra-mão do andamento do dia e obsoletos, sempre estão no fundamento da indústria humana, salientando que essa teoria de que o romance está acabando nasceu junto com o romance, desde que Cervantes publicou seu primeiro volume do Quixote, ou Lope de Vega, já apareceu alguém dizendo que o gênero estava fadado a acabar imediatamente: e o romance sempre continuou.

Nessa entrevista valiosa, Llosa fala de tantas coisas importantes que lamentei não acompanhar o programa com um caderno de anotações em mãos. Perguntam-lhe sobre o embate entre o livro em papel e o livro eletrônico, e Llosa responde que Cervantes jamais escreveria para um tablet, que o tablet não foi feito para a alta literatura, mas para leituras ligeiras. Ele mesmo, diz, nunca leu em tablets e nunca escreveria para o formato do tablet. Tirando esses pequenos temas, Llosa depois se lança a bater contra a mediocrização da arte, o que me pareceu a parte mais salutar dessa entrevista. A mediocrização do receptor da arte_ o público_ e seu baixo grau de exigência, devido à perniciosa democratização do gosto e à perda do reconhecimento do limite entre o que é boa arte do que é má arte, faz com que fenômenos grotescos como a canonização de Damien Hirst como grande artista plástico sejam aceitos. Damien Hirst, diz Llosa, ele mesmo confessou ser um péssimo artista, mas mesmo assim, Llosa continua, estando em Londres durante uma exposição de Hirst, haviam filas de virar o quarteirão diante o museu. Hirst é o artista mais bem pago da história da arte, o que é revelador sobre o conceito distorcido sobre produção cultural contemporânea, mas o que ele faz é medíocre, serializado (uma equipe faz por ele), de péssimo gosto, como sua instalação de um cadáver de tubarão se decompondo em um gigantesco cubo de vidro (a peça mais cara do mundo!). Hirts seria aceitável em um circo, Llosa diz, mas, quando até a instituição mais rigorosa em questão de arte como o museu de arte contemporânea britânico o expõe, algo preocupante está acontecendo não só na cultura, mas na capacidade de intelectualização de valores do homem.

É uma alegria ver o dissidente Llosa falar com tanta juventude.

13 comentários:

  1. Deve ter sido um evento e tanto. A despeito do Roda Viva capitular à ditadura do gosto e colocar no ar entrevistas sem pé nem cabeça (entrevista com o humorista? Rafinha Bastos?), acho que no cómputo geral o saldo do programa ainda está no positivo. Lembro-me bem da entrevista memorável com Ernesto Sábato, da sua lucidez, também de um joven de oitenta e poucos anos, de seu pessimismo esperançoso anacrônico.
    (Uma das partes mais instigantes da entrevista se dá quando os jornalistas puxam a corda do seu eterno entrevero com o Borges).
    Eu sou um grande entusiasta do anacronismo não tacanho.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não tem como não ficar muito motivado vendo Llosa, Luiz. Eu assisto muito pouco a Roda Viva ou mesmo qualquer outra coisa seja da tv Cultura ou outra emissora, mas já me organizara de antemão a ver a entrevista depois que vi um anúncio do programa. Llosa é instigado a falar de Borges, e ele disse que se tem absoluta certeza de algo é que Borges será lido daqui a 200 anos, que Borges é o único dessas bandas que tem o mesmo porte de Cervantes, Dante e Shakespeare. E eu concordo plenamente.

      Excluir
  2. Na boa, esse apocalipsismo investido de nostalgismo me dá engulhos. Rematada bobagem. A literatura está tão perto de acabar quanto o rádio, superado pela televisão, pelo cinema, pela internet... e o teatro então? Superado pelo rádio, pela televisão, pelo cinema, pela internet... E essa sua boa vontade com alguém que hoje se diz "avesso à política" porque antes receitava remédios neoliberais que, por fim, levaram a própria metrópole à crise... e os livros recentes de Llosa, tímidos esbirros de uma senilidade precoce... Na boa, Charlles, tenta outra.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sobre a morte do romance, Llosa diz o contrário. E Llosa não se diz "avesso à política", justo o oposto. (Creio que você não teve paciência de ler o post, pois errou nas duas conotações.) Dos livros recentes, A Festa do Bode é excepcional; o livro do Celta é médio, mas um médio melhor que a média.

      Excluir
    2. Hoje vivemos uma época de carência de grandes ideias. Não concordo com parte da ideologia de Llosa sobre o capitalismo, mas não concordo com nada da ideologia dos que se opõem à ideologia dele. Somando-se, pendo para Llosa por abstinência de alternativa. O que ele diz é muito mais corajoso do que gente contraditória como o Garcia Marquez de Outono do Patriarca dizia em sua louvação a Fidel.

      Excluir
    3. Tem razão, não tive mesmo. Tô meio cansado desse velho aí; zapendo passei pelo Roda Viva e, quando vi a cara dele, teclei rapidinho. Fiz o mesmo aqui.

      Excluir
  3. "Llosa produz mais que a média dos novos escritores latino-americanos atuais e com uma relevância muito maior". Mesmo com a agenda sempre cheia, ele escreve todos os dias. Dá uma olhada nessa reportagem do Martim Vasques: http://martimvasques.blogspot.com.br/2013/03/elogio-da-disciplina.html

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Rapaz, como que você tem tantos links interessantes assim? Mais uma vez, obrigado por compartilhá-los.

      Excluir
  4. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  5. Para quem não viu, ou quer rever e anotar num caderninho:

    http://www.youtube.com/watch?v=qHCLGsvNsBQ

    Tô baixando já...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ah... Estava procurando a entrevista no site da Cultura, mas esqueci que existe o youtube. Valeu, Matheus!

      Excluir
    2. "mas esqueci que existe o youtube"

      Gosto quando revelas teu distanciamento real da internet, Charlles. Esquecer a existência do youtube não é pra qualquer um :)

      Excluir