segunda-feira, 6 de maio de 2013

Método José Echegaray de escrita


Às vezes não dá para manter uma certa intuição musical quando escrevo e eu recaio conscientemente naquilo que eu chamo de método José Echegaray de escrita. Geralmente, a única imposição que o escritor que por ventura jaz em mim estabelece para ser externado é a de que eu decida em qual das modalidades sonoras ele vai agir. Eu tenho muitas modalidades sonoras da escrita, aprendidas ao longo de mais de três décadas de leitura. Eu recorro com total naturalidade a elas para cada coisa que escrevo: se vou fazer um textinho de fantasia para meu filho desenhar na parte de baixo de cada página, aciono a tecla dos escritores infantis brasileiros que me deslumbraram na infância, e a coisa flui; na faculdade de história, se tinha que compor uma monografia distinta, eu acionava a tecla dos meus ensaístas preferidos (se fosse um texto mais voltado para a informação sofisticada, era Hobsbawn; se fosse uma monografia mais intimista e reacionária, com direito a uma quase lírica manifestação crítica, era Edward Said_ com as grandes pitadas de Conrad, o mentor de Said), e a coisa acontecia. Claro que não me pretendo médium de nenhum escritor, assim como repudio o plágio estético: quando escrevo ouvindo os assobios discursivos desses autores, dentro de minha independência duramente conquistada eu sigo os contornos de seus movimentos, os intervalos de suas respirações, a maneira deles fecharem a porta do quarto quando percebem que aquele trecho exigirá um recolhimento mais profundo, uma ternura mais perigosa. Mas, por um motivo ou outro, gerados pelo cansaço ou pela pressa, eu não estabeleço nenhum panorama de conforto para meu escritor interno, e ele ou não se manifesta, ofendido em seus brios profissionais, ou o faz sendo vítima da completa insegurança irresponsavelmente conseguida pela minha falta de diretrizes. É o método José Echegaray de escrita, e meu escritor interno, tão bem quanto eu, sabe que o que sair desse processo de escrita será imediatamente incinerado depois de passado o surto, pois qualquer indício remanescente desses ataques anarquistas traria um enorme constrangimento a nós dois.

Esse termo nasceu há uns vinte anos, quando eu adquiri por um preço irrisório parte da coleção dos ganhadores do prêmio nobel de literatura. Tirando alguns volumes que se destinavam a autores ainda na rabeira do ostracismo_ como Kipling, Tagore, Romain Rolland e Hamsun_, a maioria dos outros 15 livros eram de laureados já descansados da relevância no mais profundo e intocável oceano do esquecimento. Eram todos de antes da segunda guerra mundial, alguns mesmo antes da primeira guerra, o que se podia ver nos textos introdutórios dos presidentes do prêmio que diziam coisas que soariam hoje comovedoramente obsoletas como ser o galardoado "inspirado por nobres ideias", a "sua simpatia e amor à verdade", "sua apreciação pelo idealismo sublime". Esses livros me traziam um conforto estranho, um prazer preguiçoso, a graça de uma nostalgia de um tempo imaginado com um romantismo utópico, como se tivesse, esse tempo, sido muito mais simples que o tempo em que eu vivia. Recordo que li um desses livros, intitulado Minna, que me deixou enternecido, apesar das heroínas puras e rosáceas e da tragédia singela sem mais consequências espirituais: pequenos reinos idílicos de uma Europa que parecia eterna em seus dramas provincianos. Mas daí passei e folhear o volume dedicado ao poeta espanhol José Echegaray, que ganhou o prêmio de 1904, e a atmosfera de placidez edulcorada mudou radicalmente. O texto introdutório sobre o poeta fora escrito por alguém da minha época, alguém cheio de ódio tardio e indisfarçável pelo escritor. Um professor acadêmico de literatura espanhola chamado pela repartição de Estocolmo instalada em Madri para escrever sobre aquele distante homem das letras já perfeitamente sepultado. Fiquei toda uma tarde lendo, admirado, aquela defesa apaixonada da mediocridade do que, me parecia, ser o pior escritor da história. Imaginei o professor antes de ter se sentado na escrivaninha de sua sala e enfrentado a tarefa, imaginei-o nas semanas antecedentes em que ele caminhava meio cabisbaixo pelas travessas de trás da grande biblioteca na qual consumiu horas de estudo vazio, sua maneira de torcer as mãos uma na outra e falar sozinho. O preparativo tenso a que teve que se submeter para cumprir o trabalho inglório de fazer um longo ensaio sobre nada, sobre um poeta que era tão antiquado que parecia não ter escrito em espanhol, mas numa desinência arcaica de outra língua estranha a Cervantes e José Cela. 

Já li um ensaio em que seu autor mostra não prezar em nada a arte feita pelo escritor analisado. Trata-se do ensaio de Coetzee sobre Sandor Márai. Coetzee mostra tanto desprezo e ridicularização    pelo romancista húngaro, que cai na cogitação direta por parte do leitor do propósito de ter perdido tempo em escrever sobre alguém que para ele não tem nenhum interesse. Um escritor profissional como Coetzee tem autonomia para escolher sobre quem escrever, o que causa estranhamento sua escolha por Márai. Mas a alternativa da desistência parece não ter sido oferecida ao professor nomeado para escrever sobre José Echegaray. O único recurso que ele teve foi compor seu martírio   de forma a não ter uma aneurisma, o que seria uma ironia morrer pela maior nulidade das letras mundiais, que lhe cabia horas de escrita ortodoxa porque a academia cometeu o erro inimaginável de ter escolhido essa mediocridade das mediocridades em vez de Tolstói. Pois bem: o professor acabou produzindo uma peça cômica que transcende sua própria lucidez sobre a situação. Quando o li, vi-o se levantar da cadeira para acender um cigarro e ficar parado dez minutos de frente à janela sentindo o ódio adstringente percorrer-lhe as veias, e, com um estalo, voltar a se sentar diante a folha e escrever com intenso prazer mais algumas páginas em que desforra-se de toda sua acrimônia contra o poeta Echegaray. Ele cita longos trechos do estilo ilegível de Echegaray, sua incompetência quase fisiológica em escrever uma frase sequer com o mínimo estilo, sua ausência devastadora de imagens e brilho, sua incapacidade de imprimir interesse nas palavras. Ele próprio se torna um personagem de seu ensaio, tamanho a nitidez dos traços cênicos de suas expressões faciais através do texto.

5 comentários:

  1. É bom vê-lo de volta, caro Charlles.
    Ainda que apenas dando laps em torno do campo.

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  2. Ué, pensei que você estivesse em Goiânia. Não é hoje, 6/5, o show do Paul no Serra Dourada?

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  3. "(...)eu sigo os contornos de seus movimentos, os intervalos de suas respirações, a maneira deles fecharem a porta do quarto quando percebem que aquele trecho exigirá um recolhimento mais profundo(...)"

    Charlles VIVE, monitorando seu blog, postando noutros rincões da internet, isolando-se atrás das grades da janela e da porta arranhada por mãozinhas curiosas.

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  4. Charlles e a oi, um relação que me deixou preocupado! Eis que o que realmente importa prevaleceu, e a pedra de tropeço foi afastada.

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  5. Nunca li esse tal poeta espanjhol, mas existe muita leitura inglória nesses ganhadores de prêmios (quaisquer prêmios) da vida. Li Sandor Márai e o considero uma fraude, com seu vitalismo clichê da Hungria cigana e sua disposição reacionário para defesa de aristocracismos anacrônicos, que para se contemporaneizar cita Nietzsche, o que termina por oferecer uma faceta desse perfil cubista de canalha.

    À parte o mau humor, essa coisa de desenvolver estilos paralelos ao seu próprio, baseado em fórmulas alheias, em se tendo um estilo próprio, o que quer que seja isso, é engraçado. Parece coisa de profissional escrevinhador, que fica sentado diante de sua mesinha de escritório recebendo as encomendas: "Olha aí, chegou um pedido para um Henry James!". Dá para ganhar uma grana como ghost-writer.

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