segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Meus 20 livros preferidos de não-ficção (II)

11- Obra ensaística de Jorge Luis Borges:


Creio que juntados todos os títulos ensaísticos de Borges daria para preencher um livro de 900 páginas. Tenho a maior parte desses ensaios pela coleção das Obras Completas lançado pela editora Globo (que todos sabem não serem as obras completas realmente), e não sei se alguma editora no mundo já teve a ideia de compilar separadamente essas peças. Os escritos sobre literatura, os deliciosos prólogos, as palestras sobre a cegueira, o livro, a imortalidade, o conto policial e Emanuel Swedenborg, são presenças constantes na minha vida, de maneiras que eu releio-os com muito mais frequência do que releio os contos de Borges. Cada uma dessas páginas é um desfrute e uma abundância e um recolhimento, e uma muitas vezes insuspeita, para o leitor que só conhece os contos, intimidade com Borges. Vejo muitos autores ou articulistas cometendo o erro de escreverem sobre um Borges sisudo e com gosto hermeticamente aristocrático, e percebo que estes ou leram demasiadamente mal o argentino, ou se deixaram levar, em suas poucas aproximações ao autor de O Aleph, pelo senso comum que assimila grandes escritores a esfinges indevassáveis. É o caso de Joca Terron, em um texto postado no site da Companhia das Letras, que coloca Borges como uma criança confinada na biblioteca inglesa de seu pai, uma criancinha pontificada por leituras de Schopenhauer e os cabalistas judaicos. Nada mais na contra-mão ao que Borges era. O Borges ensaísta é um apaixonado por literatura pulp-fiction, um místico platônico, e um inovador genial que criou um humor único para falar numa ultra-concisão de um por um dos inumeráveis livros em sua biblioteca. Tenho maravilhosos tons borgeanos desses textos em minha viva lembrança, como associar as noites de frio àquela noite em que passei lendo Borges falar de Auguste Dupin, o detetive de Poe, andando por uma Paris transformada em uma Londres enevoada e soturna. São tão bons esses textos quanto as fantasias milenares das Mil e uma noites. (Agora vendo, o volume 4 das Obras Completas é só de ensaios.)

12- Danúbio, de Claudio Magris:



Outra obra da qual já comentei muito por aqui. Não há como definir esse livro. É uma imersão intensa e uma experiência sem igual em uma alta literatura, um livro carregado de ternura, estoicismo, sabedoria, poesia, humanismo, com variadas levas de insights sublimes sobre vida de escritores médio-europeus_ o capítulo sobre o sanatório em que Kafka passou seus últimos dias de vida é de arrepiar. Magris escreve com a sonoridade de Borges, aprendido a dizer muitas coisas em pouco espaço, e com a percuciência dos escritores clássicos da primeira metade do século XX _ às vezes soa como Andre Malraux e como Thomas Mann. Muitas vezes o texto toca tão fundo, que me vi limpando uma lágrima do rosto. Tive muitas horas de felicidade com esse livro: ele conseguiu me abstrair do mundo e me fazer crer que poderia refugiar em definitivo dentro dele.

13- Longe, e há muito tempo, de W. H. Hudson:



A Cia das Letras, que se aventura com certa ousadia em vários projetos inusitados de publicações (para nossa alegria), poderia lançar uma coleção de grandes livros esquecidos, de bolso, com capa escura de cartolina que se pudesse ver de longe nos fundos da livraria: uma coleção Olvido, ou Olvidados, ou Vozes Mortas, algo assim que o publicitário competente poderia melhorar. Um dos títulos dessa hipotética coleção poderia, com certeza, ser este. Trata-se das memórias da infância e da juventude de William Henry Hudson, escritor nascido argentino mas erradicado na Inglaterra. Conheci este livro através da lista dos melhores livros do leitor Ernest Hemingway (uma lista que vale a pena ler cada item), e tive a sorte milagrosa de encontrá-lo há vinte anos em um sebo, em uma inacreditável edição brasileira. Li-o embevecido, assustado diante algo tão bom. O livro fala da época feliz em que o menino Hudson viveu nas estâncias argentinas, em companhia de gaúchos bravos mas ternos. Tem descrições de pessoas e paisagens que são de matar: como a da vez em que o garoto Hudson encontra um escravo torturado amarrado dentro do celeiro de seu avô; a do mendigo em trapos que ano em ano passa pela estância, altivamente pedindo comida. É um livro que traz um solo de violoncelo belíssimo, e deve ser lido à meia luz confortável, sabendo que a vida é uma aventura. Um livro crivado de uma saudade tão persistente quanto a traça que perfurou da primeira à última página de meu exemplar de capa dura.

14- Rumo à Estação Finlândia, de Edmund Wilson:



Este livro fala de uma Távola Redonda: a irmandade utópica de revolucionários combatentes de uma época ingênua em que eles lutavam por um mundo melhor, por melhores qualidades de vida, pelo fim da opressão, e pela ascensão espiritual e material da humanidade. É um belíssimo livro, escrito pelo grande escritor que é Wilson, e traz tudo que se deve saber sobre as grandes ideias libertárias da esquerda, antes que a esquerda fosse prostituída pelos políticos, partidos e teóricos acadêmicos.

15- Bilhões e bilhões, de Carl Sagan:



Este livro mostra o quanto estamos na infância do pensamento. Eu fico observando minha filha "ler", folheando os livros e recontando na linguagem de 3 anos dela o que eu e sua mãe lhe contamos das historinhas, e me vem o pensamento de também eu ser observado em minhas leituras por algum ser posicionado bem avante na escala da compreensão, assim como eu estou à frente da compreensão de uma criança de 3 anos. Escrito com o respeito de Sagan pelo mistério, desse ateu convicto mais religioso entre os cientistas divulgadores da ciência.

16- Olhos de madeira, de Carlo Ginzburg:



Um de meus teóricos da História preferidos, em seu melhor livro. Aqui, um estudo sobre a forma como a distância, a geografia e o estranhamento cultural e étnico definem os preconceitos, as incompreensões e os ódios humanos. Imprescindível.

17- Pós-guerra, de Tony Judt:



Há uma resenha dele por aí no blog.


18- Sobre História, de Eric Hobsbawn:




Ensaios sobre humanismo, marxismo, a visão ideal da História como disciplina secular de entendimento do mundo e elemento minorizador de exclusões. Meu exemplar está ilegível com tantos sublinhamentos e escritos às margens.

19- Homens em tempos sombrios, de Hannah Arendt:



Retratos impagáveis feitos pela Arendt de Kafka, Brecht, e muita gente boa ou não tão boa assim. Como sempre em se tratando da Arendt, o resultado transcende o propósito. Um livro magnífico.

20- A consciência das palavras, de Elias Canetti:



Só um dos ensaios, de mais de cem páginas, inserido neste volume com o título "Cartas de Kafka a Felice Bauer" já torna esta obra monumental. Trata-se de um dos textos mais brilhantes de Canetti, e um dos dois maiores estudos sobre Kafka _ o outro é de Benjamin, e está na lista anterior. Mas esta preciosidade de livro tem muitos outros tesouros sobre literatura e sobre a seriedade como o autor usava a palavra.





domingo, 25 de agosto de 2013

Meus 20 livros preferidos de não-ficção (I)

Nesta lista entram biografias, livros de divulgação científica, história e ensaios de todos os tipos.

1- Origem, de Thomas Bernhard: 


Na verdade, a edição brasileira é uma compilação de 5 escritos auto-biográficos de Bernhard. É difícil escolher o número 1 desta lista, mas creio que não é de todo injusto que o espaço seja preenchido por este volume. Aqui Bernhard está no ápice de sua arte. Minha sequência de conhecimento do autor passou pela seguinte leitura: li O Náufrago sabendo que Extinção era ainda melhor; depois que li Extinção, eu estava convicto que não acharia nada melhor escrito por ele, até me deparar com Origem. Esta autobiografia é ácida, desencantada, acusadora, dessacralizante, e carregada de um elemento novo que não tem com muita frequência nos outros títulos bernhardianos, que é um lirismo que abre margem para um enternecimento para falar sobre esse grande personagem que é o avô de Bernhard. O livro é delicioso, um dos mais magníficos e fundamentais que li.

2- Trilogia autobiográfica de Elias Canetti:


Ao digitar a frase acima me veio um assomo de culpa: esses livros deveriam estar em primeiro lugar. Como tem outro Canetti mais abaixo, contudo, Bernhard ainda é válido na posição que está, ainda mais se considerar que eu, o autor desta lista, tenho a índole mais propensa ao iconoclastismo segregado de Bernhard, seu lado outsider, que não se compactua com nada e ninguém, sua metralhadora giratória apontada para todos os lados, do que com o elitismo soberbo da escrita de Canetti que conheceu parte dos principais intelectuais do século passado. Essa trilogia tem provocado uma sensação de mágica em muita gente que a leu, e que comprovo pelas resenhas que fizeram ou pelas opiniões de um ou dois amigos pessoais (uma das resenhas encontra-se em um dos posts do site da Cia das Letras da semana passada). Tenho a mesma sensação: li essa trilogia em sequência, sentindo a mesma nostalgia maravilhada de quando me iniciei na leitura e cada livro era um universo do qual eu não desejava sair. Um livro conseguir provocar esse mesmo envolvimento em um homem adulto de mais de 30 anos, é algo raro. Vamos ao que interessa: Canetti é um aristocrata, um escritor que firmou desde criança seu sistema de valorizações e foi fiel a ele até a morte: por exemplo, era avesso ao comércio e todo assunto sobre dinheiro, e vivia exclusivamente para a arte e o intelecto; precisa-se de muita determinação e coragem para isso. Assim, purgou a pobreza por muito tempo, sem nunca reclamar. Vivia invejavelmente em uma estratosfera muito acima da do homem comum. Escreveu um grande romance que só foi editado décadas depois, e passou o período mais conturbado da história do século XX isolado, escrevendo um insuspeito tratado sobre a dominação, o fanatismo e a condução descerebrada das massas. Escreveu como ninguém e era um gênio. Foi, a meu ver, o Beethoven das letras do século XX. Depois de sua imagem consolidada, escreveu esses três livros incríveis que sequestram o leitor para dentro de sua vida e o faz viver toda a intensa liberdade desses anos. A língua absolvida, Uma luz em meu ouvido e O jogo dos olhos não é só literatura, é uma dessas experiências impagáveis que a vida recolhida nos reserva. Um aprendizado e um deleite.

3- Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer:


Eu gostaria de saber alemão para ler esse livro em sua língua original. A linguagem deste livro é um portento, um fenômeno, uma revolução. Essa dupla, e, notavelmente Adorno, são os melhores escritores da filosofia. Eles vão mais longe, estilisticamente, que Nietzsche e qualquer outro. Eles são, primeiramente, mais responsáveis em seu método que Nietzsche e qualquer filósofo do século XX. Eles empregam uma concentradíssima combustão de significados por linha corrida, cada palavra remete a amplos sinais e reflexos da verdade. Eles conduzem a ambiguidade a uma categoria de percepção dialética inédita. Há uma parte aqui em que eles estudam sobre matadouros de animais e concluem que a existência de indústrias do massacre de outras espécies para a provisão de nosso nicho na cadeia alimentar já é uma evidência da capacidade humana para o genocídio nazista. Depois de confrontado o leitor com esse fato ineludível, eles perguntam: mas então devemos comer só verduras e leguminosas?, e respondem, ambiguamente, que a ciência desse mal já é um passo para a evolução que exija uma nova procura, um novo instrumental para a existência. E todo o livro é isso: a proposição de um limite impossível para uma nova forma de vida humana, colocando o homem contra a parede e forçando-o a não aceitar os milênios de adaptação errática e sedimentada. O livro sentencia que o esclarecimento determina a liberdade dos aguilhões que nos aprisionam aos costumes cotidianos, aos rituais suicidas da vida moderna, às nossas tendências contra as quais aprendemos a nunca resistirmos para o assassinato e múltiplas crueldades felizes, e que o estágio último do esclarecimento, quando alcançado, é um cósmico e opressivo niilismo diante o qual se exige um novo combate acirrado. Para margear essa sobreposição massacrante de bonecas russas da verdade existencial que Adorno e Horkheimer inventaram essa nova linguagem, essa nova gramática metafísica de alta poesia. O título dessa obra diz tudo. Adorno disse que sua convicção em escrever de maneira difícil era parte do dogma pessoal de não-coaptação a todo o vício que se estabelece para estancar as engenharias espirituais humanas, era um filtro e uma imunização para tentar passar para o outro lado, para ir a lugares da mente e das possibilidades nunca visitados antes, uma arma ainda mais necessária nessa época em que a sua tão decantada Indústria Cultural estabelecia um amolecimento conformador que transformava o pensamento em um produto vazio e codificado.

4- Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt:


Resenha uns posts abaixo.

5- Magia e técnica, arte e política, de Walter Benjamin:


Já escrevi muito sobre Benjamin e pode ser que eu soe repetitivo. Esse livro é uma compilação de alguns dos mais geniais e importantes textos de Benjamin, lançado pela Editora Brasiliense. Tem textos fundamentais sobre Kafka, Proust, Robert Walser. Tem a primeira versão do ensaio clássico "A obra de arte na era de sua reprodutividade técnica", e os minitextos quase aforísticos do sensacional "Sobre o conceito da História". É impossível não amar Walter Benjamin. Lê-lo é um consolo, um êxtase, uma oração, uma expansão da mente. É um escritor único e inclassificável na história da literatura.

6- Reflexões sobre o exílio, de Edward Said:


Este livro é muito menos aclamado que os clássicos imediatos de Said, Orientalismo e Cultura e imperialismo, mas eu gosto mais dele pela variação de temas apresentados em seus ensaios. Aqui se mostra toda a beleza e versatilidade da escrita de Said, toda a sua erudição. Aqui ele escreve tanto um imprescindível ensaio em que compara Nietzsche e Conrad, textos críticos sobre Naipaul e Hobsbawn, até um surpreendente retrato de uma dançarina do ventre. Mas as cerejas do bolo são dois magníficos ensaios sobre música, no estilo que os leitores de Said já sabem_ que, em se tratando de Said, um ensaio comporta uma profunda averiguação sobre múltiplos temas dentro de um tema previsto_, são eles "Em busca de coisas tocadas: presença e memória na arte do pianista (sobre Glenn Gould)", e o monumental "Do silêncio à música e de volta ao silêncio: música, literatura e história". Este último é realmente uma das coisas mais magníficas que li em toda a minha vida: fala de política, colonialismo, e as paisagens de ruínas da música polifônica. Mas este volume traz muito mais, é de uma riqueza generosa. Lembro-me que eu fui visitar a casa dos pais da minha esposa, quando nós éramos namorados e ela morava com eles, e eu comprei este livro no shopping antes de pegar o ônibus que me levaria até a distante cidade; era a época em que eu estava descobrindo esses dois universos delicados, a obra de Said e a Dani, e a leitura do primeiro no balanço aprazível do ônibus, e o final de semana em companhia do segundo, solidificaram ambos em uma mesma percepção emotiva.

7- Tudo faz sentido, de Saul Bellow:


O livro de ensaios de Saul Bellow. Tem um ensaio clássico chamado "O público distraído". Tem uma seção só com retratos na escrita brilhante de Bellow, de John Cheever, Allan Bloom e outros. Há um ensaio sobre Mozart que me ensinou muito e deliciosas confissões de escritório, além de embates descrevendo convenções de grandes escritores na época que isso ainda acontecia. Para quem gosta de Bellow, se aprende muito sobre o autor e sobre como escrever bem neste livro indispensável.

8- Darwin, de Adrian Desmond & James Moore:


Essa é a melhor biografia que já li. É uma viagem. Pouco depois de tê-la lido, meu pai faleceu. A leitura das angústias do teólogo Darwin diante sua descoberta terrível me deixou deprimido. A depressão elevada, sem prostração, de dividir através de um texto sublime as reviravoltas existenciais de um homem confrontado com sua pequenez cosmológica. Me vi incapacitado de ver qualquer eufemização no desaparecimento de meu pai. O livro narra dores imensas, como a perda da filha de Darwin, que aniquilou de vez sua fé em um deus. Na mesma época li o ditirambo fanfarrão de Deus, um delírio, do qual saí com um acentuado ar de riso diante a rasura dessa comédia de Dawkins. Em contrapartida às paupérrimas modas ateístas, essa biografia é uma dessas leituras fundamentais que provoca, que nos deixa em abandono, que destrói convicções e atitudes movidas pela inércia da falta de pensamento. Casa com o que eu escrevi acima, sobre a obrigação de um novo combate de entendimento quando o esclarecimento é alcançado em seu estágio último, na concepção de Adorno, a procura de novos significados. Ainda sou cristão e a reavaliação que faço em meus estudos sobre as ideias de Darwin me deixou mais ligado a uma apreensão transcendente do universo, mais saudavelmente humilde e disposto a aceitar a beleza disso tudo em que estamos envolvidos. Pela primeira vez, um livro me levou a ter a visão plena de que somos parte do universo, somos um produto que o compõe, de forma inescapável, e que nossos pequenos sistemas de crença, feitos na maioria pelo medo e pela ignorância,  não influem em nada: e isso é libertador de uma maneira que nunca saberia explicar. Me fez recordar de meus estudos universitários em que é dito que as mitocôndrias são organismos de vida própria que, em um determinado estágio da evolução, atacaram as células e as parasitaram. Não há bem e mal na existência, e tudo tem sua importância e sua indispensabilidade. Darwin descobriu isso e naquela época ele não era capaz de se desatrelar do fardo das pre-concepções sociais para ver a enorme alegria libertária de sua teoria. Nossa vida é um mutualismo constante. Entender Darwin é um dever, para acabar com essas falácias estúpidas da apologia a um darwinismo social: a sobrevivência está na harmonia, e não na sobreposição do mais forte sobre o mais fraco. Tudo bem, tudo bem, chega de pregação_ me excedi. O livro, além disso, traz a atmosfera da época, os escritórios, os salões universitários, Galápagos, a visita ao Brasil, e um monte de coisas boas. Masquemos audaciosamente nossos chicletes, cruzemos as pernas por sobre a mesa, e vamos um urra: a vida continua!

9- A gaia ciência, de Fiedrich Nietzsche:



Há de se ter um Nietzsche entre os melhores livros. É uma obrigação e um respeito a esse escritor que, procurando hoje em minhas instâncias espirituais já não parece me dizer nada, não pela ausência, mas porque o eco de suas palavras e seu espectro estão em todos os quartos e em todas as salas, que já penso sobre a base fundadora de minhas leituras dele de maneira inevitável.

10- Massa e poder, de Elias Canetti:


Julgo ter escrito muito sobre este livro ao longo deste blog. É uma vacina. Quem o lê fica imunizado a toda forma de dominação social, política, econômica, partidária, biológica. É um dos livros superiores que na concepção do filósofo do item 9, acima, são escritos com sangue. Impossível falar sobre este livro sem um tom de reverência, embora uma de suas lições seja justamente o fim de toda propensão à idolatria e à reverência.

sábado, 24 de agosto de 2013

Nesta noite de sábado desterrada do infinito



Conheci esse grande álbum no blog do Grijó. Desde então, a audição é compulsiva. Abrindo uma garrafa de vinho. (A segunda música, Blue Minor, me lembra uma música popular brasileira conhecidíssima que me agonia não saber qual é, mas suponho que de Adoniran Barbosa.)

Lendo Getúlio, de Lira Neto



Estava planejando fazer um post com os meus 20 melhores livros de não-ficção para esse final de semana, mas desde ontem me vejo preso no compromisso de ler o primeiro volume de Getúlio, do Lira Neto. Não consigo fazer mais nada, e estou para alcançar a página 300. O livro é perigosamente absorvente. Creio que há uma especialidade literária em que os brasileiros são excelência: a biografia, documentada, escrita com rigor investigativo e com alguma retórica sofisticada que agrada a leitores mais engajados, mas profissionalmente arejada o suficiente para acatar um público mais amplo. Na margem oposta, por exemplo, coloco a biografia de Hitler, do Joachim Fest, que é um pesado calhamaço duplo em que brincam ali sisudas argumentações filosóficas e lentas perorações acadêmicas. Gostei muito do Fest, mas os biógrafos brasileiros a que Neto faz parte tem um triunfo que se enquadra nessa nossa mestria nacional do gênero: enquanto um Fest se leva muito tempo para ler, os livros produzidos na mesma seara por um Fernando Morais e um Lira Neto são extensões do entretenimento extasiante dos filmes de Hollywood e das reportagens policiais da mais estereotipadamente adrenérgica imprensa marrom, o que os fazem altamente digeríveis. Mas são, também, documentos sérios e peças literárias de alto valor. Morais e Neto tem o talento de um Sidney Sheldon e de um Dan Brown para escreverem sobre temas que são primazias de velhos generais que abrem seus segredos militares e historiadores especialistas.

Algumas rápidas observações sobre Getúlio:

- os títulos dos capítulos parecem manchetes televisivas de programas policiais, como os do Marcelo Rezende. Tem um histrionismo que, se não fosse o poder da obra, desmotivaria leitores mais profissionais. Saber, por esses títulos chamativos e grandiloquentes, que Getúlio se apaixonara por um Donzela de Vermelho, ou que Getúlio, aos 15 anos, teria assassinado um estudante de direito, ou que o clã dos Vargas teve que apagar um desafeto político com um tiro na cabeça, dá a impressão que o autor se volta demasiadamente para o lado far west do biografado, mas o texto traz uma abordagem que vai, felizmente, bem além disso.

-ler Getúlio confirma o que a pessoa que tem o mínimo conhecimento de história e a mínima independência de visão quanto às artimanhas que compõe a escrita da história sabe: os heróis da pátria são quase sempre os grandes canalhas, vindos dos mesmos aparatos seculares do benefício familiar pela usurpação e o assassinato. Lira Neto é excelente no papel de historiador crítico em demonstrar isso. Neto salienta que a fortuna do pai de Vargas, Manuel Vargas, vem em grande parte do fruto dos roubos cometidos por ele durante os sucessivos massacres da Guerra do Paraguai. Vemos que os Vargas compunham o coronelato de São Borja e outras adjacências sulistas, favorecidos pelos mandatários do estado, Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros. Vemos que o irmão mais velho de Getúlio Vargas, Viriato Vargas, era uma espécie de filho de ditador moderno, filho de Saddam Hussein ou da família Trujillo, repetindo os mesmos casos de abuso sexual, de corrupção desmedida de tudo para manter-se no poder, de ganância ativa pela riqueza às custas do sofrimento da maioria, de assassinato e truculência de quem se sabe acima da lei. Pelo que Neto escreve, Viriato Vargas foi um dos personagens mais medonhos e cruéis de nossa história, uma história por si mesma saturada desse tipo de mandatários de famílias tradicionais para que continuem absurdamente passando batido.

_ há uma citação das palavras do presidente Lula na contracapa do volume 2 de Getúlio. Reproduzo-a:

"Poucas vezes vi alguém descrever tão bem a história de Getúlio Vargas e do povo gaúcho como o Lira Neto na primeira parte da sua trilogia. Foi impactante para mim que me vi andando com Getúlio, fumando um charuto, pela Rua da Praia, em Porto Alegre."

Palavras de contundente riqueza de interpretação para quem lê sobre tanto diagnóstico da vilania das classes dominantes e tem para dizer que se sentiu impactado por uma cena que, provavelmente, foi o exemplo colhido num folheamento ligeiro lá pela página 83. A literatura do esclarecimento revolucionário já está aí há anos, basta termos o ensejo necessário para entendermos de vez o que ela realmente quer dizer. Os truques popularescos do muito inteligente Lira Neto repetem a manobra de massa que vem sendo adotada desde Shakespeare: o uso da violência chamativa da capa e espada para mostrar, em límpido e bom tom, a violência espiritual que um país vem passando perenemente para conservar a mesma linha de subjugação perpétua. A frase que define melhor o Brasil é a que vem no magnífico filme Il Gattopardo, de Luchino Visconti: "Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude". Isso é o que o Getúlio, o livro de Lira Neto, parece dizer, ou vem dizendo pelo menos para mim.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O anjo Esmeralda, de Don Delillo



O conto que dá título a esse livro é uma obra-prima; um dos vinte ou dez maiores contos que já li; só ele vale o investimento nesse passeio pela genialidade de Don Delillo (não há outra palavra), por sua apreensão absolutamente original das mínimas nuances do tema. Não saberia por onde começar para mostrar o quanto este conto é antológico: em como ele parte de um coloquialismo recheado de diálogos soberbos e faz o leitor se afundar na cena, como se estivesse lá; em como Delillo trabalha uma ternura subjazente, quase cruel, quase inexistente, e que deixa uma marca no espírito do leitor que, para mim, é eterna; em como o estranhismo dessa narrativa simula dispensar o valor humano individual de tantas personagens em prol de uma frieza que unifica tudo numa impressão de niilismo comunitário passageiro. Há duas freiras que peregrinam pelas zonas mais degradadas da cidade grande, onde moram os miseráveis, os marginais e os famélicos; há um grupo de jovens grafiteiros que dominam rudimentarmente o idioma inglês, e que desenha um anjo nos prédios derruídos e abandonados em homenagem a cada criança assassinada do bairro; e há a menina Esmeralda, de 12 anos, sem pais e sem casa, que se esconde nas ruínas (me lembrou a menina louca da foto de Robert Capa confiscada pelos soldados russos, no A Russian Journal, de John Steinbeck), estuprada e morta e atirada de cima da ponte, e que uma disposição inusitada dos faróis dos caminhões à certa hora do entardecer dá a uma multidão de curiosos que atrapalha o trânsito a certeza de que passa a aparecer por milagre em um outdoor. Tudo é descrito com um realismo hiper-atrofiado, com uma lucidez além da literatura que parece prescindir da presença do escritor_ como se o escritor fosse um canal, um instrumento. Sabemos que Delillo está ali porque hora e outra a velocidade diminui para receber uma sentença lapidada como um diamante de brilho intenso, frases aforísticas típicas de Delillo, frases com esta, "se você sabe que não vale nada, a única maneira de gratificar a sua vaidade é brincar com a morte", tirando isso, tudo é encorporação e mediunidade. É um conto que, à maneira retilínea dos outros oito contos do volume, desconforta, incomoda, angustia, obriga a pensar, obriga a um posicionamento ativo, a uma auto-averiguação. Quem já leu Submundo, o grande romance de Delillo, vai se lembrar desse conto inserido como mais um dos mosaicos do infinito tecido humano lá no capítulo 8.

Delillo é uma presença inclassificável nas letras norte-americanas atuais. Alguns o aproximam a Pynchon, outros tentam assimilá-lo às críticas ácidas de Philip Roth; mas Delillo não se enquadra nem em um modelo nem em outro. Não exito em dizer que Delillo tem a mesma urdidura dos artistas profetas, afetados por uma maneira de ver que enxerga através de portas que só raramente são abertas, artistas como William Blake e Swedenborg. Seus contos assombram por serem escritos de maneira pouco convencional, fugindo da clássica fórmula de terem uma surpresa ou uma justificativa no final. Como disse certo crítico em referência a eles, cada frase conta e é indispensável. Não se enganem os que acharem que mesmo a mais trivial dessas nove peças não contêm um vislumbre quase insustentável da verdade.

A solidão inviolável da mente_ "Eichmann em Jerusalém", de Hannah Arendt



Hannah Arendt, assim como Walter Benjamin, faz parte do gênero raro de pensadores inclassificáveis. Quando tentam fazer um retrato aproximado do que tais pensadores foram, o retrato torna-se capenga, sisudo, frágil ou descomedidamente forte, esquemático, falso, bastante distante da realidade. Mesmo um artista tão capacitado como J. M. Coetzee, ao escrever um ensaio sobre Walter Benjamin, apequena e brutaliza tudo o que Benjamin tinha de riqueza interpretativa e capacidade infinita de ver além das coisas. Assim é com Arendt, quando tentam dramatizar sua vida em um filme: a urbanidade cotidiana é alçada a um primeiro plano e o universo que se abria no gabinete da autora, em seus papéis de altíssima qualidade estética e investigativa da alma, se torna mero adorno, mero acidente colateral das paixões de cama e curiosidades de jornal que são os propósitos únicos dos grandes veículos de entretenimento em massa. É um tanto histriônico pensar que, com o eventual sucesso do filme, Hannah Arendt possa fazer parte dos twitter e facebook e redes sociais como um novo ícone de consumo para uma juvenilidade descolada e pretensamente culta, posicionando-a no mesmo nível de qualquer outra figura do show-business; seria de se perguntar se a linguagem cifrada do ciber espaço consegue perceber a ironia autofágica de aclamar como modelo venerável de lucidez uma autora que cunhou o conceito de alienação e dos seguidores marciais de clichês da metade final do século passado, que elevou a expressão da mente humana a um patamar de clareza e percepção de zonas sutis da verdade pouco alcançado nos milênios da escrita, e que por isso, para um entendedor medianamente arguto, é um tanto absurdo que ela seja consumida por essa gente que escreve em caracteres limitados e palavras mutiladas e que ela seria a primeira a classificá-la, como bem o fez quanto a seus antecessores de gênero em seu livro sobre o totalitarismo, como a ralé. Nada é mais avesso a Arendt do que a tentativa da sua reprodução padronizada, à lá Marilyn Monroe de várias cores de Warhol, do que sua assentada no gosto do senso comum da geração mais propícia à aquiescência descerebrada do domínio totalitário surgida depois da segunda guerra, como o é a geração de amigos e mútuos seguidores da realidade virtual de hoje; seria o equivalente ao Vaticano estampar imagens de Tolstói em camisetas oficiais e exportá-las para a igreja ortodoxa russa, ou alguém abrir uma fundação para a proteção dos leões africanos com o nome de Ernest Hemingway, ou a Nike eleger Stephen Hawking como garoto propaganda para seu novo modelo de tênis. Como o poema de Whitman, a juventude nada tem a ver com Arendt, os domínios de sua linguagem estão inalcançavelmente distantes do bairrismo cool dos que irão comprar seu livro sobre Eichmann e lê-lo talvez só até a metade porque alguém tuitou que ele é o máximo, deu a ele uma carinha amarela de aprovado na classificação junto ao novo vídeo de música lançado na rede. Para se avizinhar da compreensão de Walter Benjamin, tem-se que, ao menos, ler como Benjamin consegue escrever sobre alguém da estatura inclassificável de Proust, Kafka e Baudelaire, entrando em seus mundos, não sentenciando ou dando valorizações, mas aceitando o modo de visão desses artistas no que eles tem de combatividade independente na procura da verdade_ por isso o ensaio de Coetzee é um exemplo de escrita sistematicamente superior vazia e vaidosa, pois pega Benjamin por sua obra mais excêntrica, o Passagens, e faz uma esquematização do fracasso pessoal e das tantas insuficiências de alguém que, em vez disso, tem tantas qualidades esotéricas para oferecer.

É por essa suspeita fundamentada de que Arendt só é alcançável através do que ela escreveu que eu não vi o filme sobre ela lançado ano passado e nem pretendo ver. Me afasto desse tipo de interpretação. Supondo que tal filme tenha, ao menos, uma reavaliação histórica premonitória, no mesmo nível de A fita branca, com aquela apresentação paulatina e assustadora do mal acordando entre os moradores de um povoado alemão instigados a se assimilarem às exigências normativas de uma nova realidade nacional, ainda assim me vem à memória a redução à simples imagem de algo que está além da imagem. Me vem à memória a atriz que interpretou a Rosa Luxemburgo manquejando pela prisão: a vítima martirizada que fica na retina do espectador de cinema como uma coisa já definida, já tornado ela no momento em que sua corporificação se extinguiu no tempo: algo em que esvaiu por completo a transcendência. Faço uma digressão antes de entrar no livro da Arendt: há um conto de Don Delillo que se intitula Baader-Meinhof, na coletânea O anjo Esmeralda. Neste conto, uma moça e um rapaz se conhecem por acaso em uma exposição das pinturas sobre os últimos dias dos participantes do grupo terrorista Baader-Meinhof; de modo vago, eles vão interpretando o que as figuras sobrepostas a fotografias do corpo enforcado da mulher lhes provocam, sobre o aparente sorriso de um dos sentenciados, sobre uma árvore ao fundo que, no entendimento da moça, é o símbolo de que mesmo para o que fizeram há o perdão da sombra da cruz; daí, por uma inércia a que nenhum dos dois impõe resistência, eles vão até o apartamento da moça e, sentados à mesa diante um copo de água com gás com fatias de limão, prosseguem a discussão sobre os quadros, de forma desapaixonada, desconcentrada, com se atendendo a uma exigência protocolar que esperam que eles cumpram. E é reivindicando essa exigência que o rapaz tenta estuprar a moça, alegando que se eles estavam ali sozinhos, eles tinham que, necessariamente, perfazerem os mesmos passos da intuição do ato social firmada quando um homem e uma mulher estão em um apartamento silencioso, gastando conversa fiada como precondição do coito. A moça se refugia no banheiro; o rapaz, aparentemente, se masturba no quarto e, cumprido deste modo os movimentos da relojoaria, ele se desculpa através da porta e vai embora. No outro dia, retornando à exposição, a moça encontra o rapaz sozinho, sentado diante uma outra obra do ciclo, "de longe a maior e talvez a mais impressionante, a dos caixões e da cruz, chamada Funeral". Aqui nós temos, através do impressionante olhar visionário de Delillo, todo o diagnóstico da rarefação mental da conduta institucionalizada diante o assombro da história, toda a propensão inexorável que o indivíduo agregado à coletividade tem de filtrar a percepção de uma realidade de camadas e subníveis infinitos para um modo seletivo de entendimento; aqui, Delillo reconstrói a observação de impacto retardatário sobre a banalidade do mal feita por Arendt, retardatário porque intuitivamente sempre sabemos que o mal não é uma entidade, não é um demônio inteligente que conspira contra nossa espécie, lançando crias de cruel determinação e precisão letal, mas circunstâncias acumuladas por um corriqueiro estômago social que vai apascentando todo o contraditório incômodo até que o conforto de uma unanimidade desespiritualizada tome conta e coordene tudo_ mas que, ainda assim, quando nos deparamos com a vocalização de nosso estado de domínio, a reação que temos é de assombro, de vermos-nos como de uma posição alheia alienígena; como se o espírito, retirado do sono por um momento, mostrasse um fibrilar de indignação que comprova a sua existência. Nosso assombro parece confirmar o gene vestigial de que, no final das contas, lá no fundo, ainda temos uma boa visão elogiável sobre nós debaixo dessa escumalha toda de mediocridades e medianismos. Esse assombro é a pauta sobre a qual escreve Delillo em seu conto e Arendt em todos os seus grandes e fundamentais livros. No conto de Delillo, os personagens se veem no desamparo que oferece a exuberância de interpretação dos quadros, diante a qual eles tem que, combativamente, rejeitar para uma aquisição saudável, sanitizada, inofensiva em sua emoção regulada, de forma que não se percam da trilha usual que tem que seguir no ordenamento do mundo. Ambos estão desempregados, ambos são adventistas de um pragmatismo civilizado maturado em parte pelos arroubos de violência de refugos do alinhamento legal como os terroristas do Baader-Meinhof, e ambos se veem diante as possibilidades que essa norma poderia chegar para cobrar deles o sacrifício de sua humanidades em nome da regulação e da manutenção da ordem. A conversa entre os dois comporta a enunciação de seus possíveis planos para o futuro_ possíveis pois eles sempre estão nessa narcolepsia juvenil de viverem apenas no presente, nessa inconsequência de se julgarem inquestionavelmente imortais_, e o rapaz diz que pretende ter um emprego e uma "criaturinha pequena e macia" para criar. Por detrás dessas linhas aparentemente inofensivas, aterrorizantemente comezinhas, vemos a distorção à espera, a dissonância, o ruído surdo por cima dos escombros, as possibilidades nefastas: o quanto a história, assim como o deus bíblico fez com Jó, estaria disposta a testar a eficiência do pedantismo dessas pessoas até um nível extremo, ou não tão extremo visto que elas talvez se vergariam o mais rápido possível. Aqui nos remetemos a Eichmann em Jerusalém: "No entender de Eichmann, ninguém protestou, ninguém se recusou a cooperar. (Dia após dia, as pessoas aqui partem para seu próprio funeral), como disse um observador judeu em Berlin, em 1943".

São notórias as circunstâncias históricas que engendraram e direcionaram a escrita de Eichmann em Jerusalém; tudo o mais fora delas é a mais autêntica liberdade de pensamento e atrevimento por parte de Hannah Arendt. Os fatos são facilmente colhidos em uma pesquisa no Google: uma comitiva de agentes secretos israelense sequestraram Adolf Eichmann de seu esconderijo na Argentina, em 1960; Eichmann era apontado como carrasco nazista responsável pela morte de milhares de judeus durante a Solução Final promovida pelo Terceiro Reich; Eichmann foi julgado por um tribunal montado e mantido em Jerusalém, praticamente à revelia de todas as leis e tratados internacionais; Eichmann é condenado à morte e enforcado por seus crimes contra o povo judeu; a assim chamada filósofa e teórica política Hannah Arendt, já mundialmente conhecida por sua obra sobre as origens do totalitarismo e sua análise sobre a Condição Humana, é enviada pela New Yorker para cobrir passo a passo do processo do julgamento, afim de escrever uma espécie de coleção de peças de jornalismo literário com inédita fundamentação filosófica a serem publicadas paulatinamente pelo periódico. O que Arendt faz, o que não deveria ser em absoluto causa de surpresa por parte de seus contratantes, é o mais fantástico, profundo e pouco laudatório retrato da alienação humana e propensão do indivíduo permeabilizado nas massas em seguir cegamente líderes e doutrinas. Arendt compõe uma obra que não deixa nenhum ídolo em pé, a começar por sua polêmica condenação das atitudes de Israel em passar por cima das leis internacionais com a promoção do crime de sequestro em nome da penalização de um crime de genocídio que os líderes judaicos identificavam não como um crime contra a humanidade, mas como um ataque específico que dava a legitimidade aos judeus para a vingança, não considerando, em um racismo exclusivista que Arendt apontava ser tão descomedido quanto o dos nazistas, os outros povos que sofreram dizimação pelos exércitos de Hitler, como os ciganos, os romenos e outras etnias médio-européias. Para um judeu com certa intimidade com os escritos de Arendt, que uma vez respondeu a um jornalista não ter nenhum apreço pelo povo judeu, mas por amigos judeus, essa visão de seu novo trabalho não deveria ter causado impacto algum: já em Origens do Totalitarismo ela destina várias páginas em reportar a intransponível distância que os judeus ricos impunham entre eles e os judeus pobres, ou nascidos em famílias sem distinção social, assinalando o anti-semitismo que sempre existiu entre os judeus. Para qualquer outro leitor que conhecesse o trabalho da autora, também seria sem razão o choque pela sua honestidade intelectual diante as evidências anteriores de falta total de comprometimento da escritora com órgãos de ofício ou linhas de pensamento estigmatizado: Arendt, judia, era especialista em santo Agostinho e Kierkegaard, tendo escrito um ensaio sobre o pensamento do filósofo católico direcionado ao público protestante, e tendo escrito um belíssimo texto sobre o papa Angelo Giuseppe Roncalli, que bem poderia ter colocado a igreja católica de cabelo em pé ao colocar como título a ironia fina de "Um cristão no trono de São Pedro". A alta cúpula israelita, ao ver que a autora não admitia a cartilha da vitimização e da fácil alcunha de Eichmann como monstro, põe-se imediatamente a retalhá-la na imprensa mundial, cobrando da New Yorker a rejeição e recusa do restante dos textos sobre o julgamento. Como não deixaria de ser, Arendt passa a ser associada ao anti-semitismo e à traição ao povo judeu, o que seria alimentado mais ainda pelas relações mútuas de afeto e admiração entre ela e o filósofo Heidegger, tido como anti-semita aguerrido.

Saul Bellow escreveu que mantinha com Arendt longas conversas informais por restaurantes e bares destinados a escritores, em Nova York, em que Arendt lhe esclarecia tudo sobre a obra de William Faulkner. Sendo admiradora de Faulkner, não é para menos notar que as páginas iniciais de Eichmann em Jerusalém se assemelham no tom recolhido diante o opressor gigantismo ortodoxo dos tribunais às primeiras páginas do romance A Mansão, de Faulkne. Nesta última parte da trilogia dos Snopes, começa com o assassino de Flem Snopes sendo admitido pela corte de julgamento que o sentenciará; a madeira da bancada do juiz, as cadeiras de escoro alto empoeiradas de distinção, as batas dos oficiais da lei e a atmosfera hermética de respeito sagrado se encaixam com a descrição detalhada da sala de julgamento de Eichmann, em que os vários juízes se posicionam uma bancada acima do público, e onde à esquerda deles fica o reservado protegido com vidro reforçado em que o réu, de cara insofismavelmente cordial e disciplinada, espera sentado. Nessas duas obras vemos as motivações mais profundas que levaram ao crime, e aqui se trata da escrita sublime de dois gigantes das letras: Faulkner descrevendo que o mal é consuetudinário, ligado aos deveres do sangue, da família e da honra, que nasce junto ao desbravamento das terras e na construção da sociedade por sobre a selva incorruptível, que é fruto de desrespeitos sucessivos nunca digeridos mas alimentados no silêncio, e que muitas vezes aplaca o alvo que o originou quando este, pela velhice ou por uma calejada e involuntária sabedoria, já por si mesmo se penitenciou da maldade. Arendt conduz essa linha faulkneriana para uma interpretação universal da história, embasando todos os sinais apontados por Faulkner com a raiz unívoca da imensa capacidade humana pela veneração e pelo escamoteamento da verdade. Arendt diz, em seu revelador e desnudo ensaio sobre Heidegger, em Homens em tempos sombrios, que "a tendência ao tirânico pode se constatar nas teorias de quase todos os grandes pensadores (Kant é a grande exceção)". E por isso abjura que a única forma de se manter íntegro e lúcido no confrontamento com o mal é através da solidão inviolável do pensamento, a não-coaptação a nenhuma forma ou modelo ou moda ou tendência, a não aceitação de heróis, a não se ajoelhar diante os ditos grandes e poderosos, mesmos esses tendo o poder intelectual de um Heidegger ou a mansidão de um papa morto prematuramente, ou diante as idiossincrasias auto-protetoras de um povo ressabiado que sempre foi perseguido. Não se envergar diante santidades ou sistemas. O retrato que Arendt faz de Eichmann é sinistramente natural e límpido, esse pai de família exemplar, esse homem que em toda a vida leu apenas dois livros e por isso se via mais capacitado que os demais das facções hitleristas que não haviam lido nenhum, esse homem que, no início, se prontificou a ir contra o extermínio e fez esforços que resultou na salvação de várias vidas de judeus, mas que depois, pelo estado, pelo eufemismo da ordem social, pela visão acabestrada de um destino histórico nacional que só os muito enredados não viam se direcionar para a ruína, se transformou no mais exemplar funcionário do sistema. Eichmann, esse gênio do clichê, esse homem impoluto que nada tinha de monstruoso, esse reflexo preciso de qualquer um de nós quando pressionado pelos nós das forças da manutenção.

"Adolf Eichmann foi para o cadafalso com grande dignidade. Pediu uma garrafa de vinho tinto e bebeu metade dela. Recusou a ajuda do ministro protestante, reverendo William Hull, que se ofereceu para ler a Bíblia com ele: tinha apenas mais duas horas e para viver, e portanto nenhum 'tempo a perder'. Ele transpôs os quarenta metros que separavam sua cela da câmara de execução andando calmo e ereto, com as mãos amarradas nas costas. Quando os guardas amarraram seus tornozelos e joelhos, pediu que afrouxassem as cordas para que pudesse ficar de pé. 'Não preciso disso', declarou quando lhe ofereceram o capuz preto. Estava perfeitamente controlado. Não, mais do que isso: estava completamente ele mesmo. Nada poderia demonstrá-lo mais convincentemente do que a grotesca tolice de suas últimas palavras. Começou dizendo enfaticamente que era um Gottgläubiger, expressando assim da maneira comum dos nazistas que não era cristão e não acreditava na vida após a morte. E continuou: 'Dentro de pouco tempo, senhores, iremos encontrar-nos de novo. Esse é o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria. Não as esquecerei'. Diante da morte, encontrou o clichê usado na oratória fúnebre. No cadafalso, sua memória lhe aplicou um último golpe: ele estava 'animado', esqueceu-se que aquele era seu próprio funeral.

Foi como se naqueles últimos minutos estivesse resumindo a lição que este longo curso de maldade humana nos ensinou_ a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos." (Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, p. 274, tradução José Rubens Siqueira, Companhia das Letras)

Mais sobre Arendt, aqui.

sábado, 10 de agosto de 2013

Mozart, Violin concerto K271a, Mvt 1

Eu sou um cristão que por viver em contínuo conflito com a ideia de deus já não tenho mais o direito de alegar angústia. Minha concepção de deus é muito particular, e não se baseia em méritos. Sinto-me mais confortável com os "santos sem deus" de Camus do que com os que arvoram certezas em qualquer investimento em uma recompensa em um outro mundo. Toda a criação artística humana, desde a música, a literatura, à arquitetura, tem a noção de deus como base, e seria o fim do homem pragmatizar na vida social o fingir não se preocupar mais com as questões da transcendência. Deus é necessário_ leiam o A civilização do espetáculo, leiam Don Delillo, leiam Adorno. Cristo foi o maior reformador espiritual da história, e é por isso que rezo a ele, ou à ideia dele, todos os dias. Antes de ligar o carro eu faço uma reza particular, que a criei há tantos anos que soa como poesia. Vivo rezando, acho que rezo umas vinte vezes ao dia. Dentre tudo que li sobre a percepção de deus, a mais reveladora para mim está no romance Submundo, de Delillo, na página 263. Vou reproduzir aqui parte do texto: 

"'Pára por um minuto, ó ser fraco e miserável, e olha para ti mesmo.' Quer dizer, era eu que estava sendo destacado, num estado de pausa, pensando em mim mesmo, vinte anos de idade e mais burro que os meus colegas e desesperado pra encontrar um lugar onde eu me encaixasse. Pois eu li esse livro e comecei a achar que deus era um segredo, um túnel comprido e escuro, que vai e vai e não acaba mais. Foi essa a minha miserável tentativa de compreender a nossa nulidade em face da enormidade de Deus. Era isso que eu respeitava em Deus. Ele mantém o segredo dele. E tentei me aproximar de Deus através do segredo dele, de seu poder de se manter desconhecido. Talvez a gente possa conhecer Deus através do amor ou da oração ou de visões ou do LSD, mas não através do intelecto. E aí aprendi a respeitar o poder dos segredos. A gente se aproxima de Deus através do que ele tem de incriado. Porque nós fomos feitos, criados. Deus é incriado. Como é que a gente pode tentar conhecer um ser assim? Não pode. Não pode conhecer nem afirmar. O máximo que se pode fazer é adorar a sua negação." (Don Delillo, em Submundo)

Jamais vi minha forma de aproximação a deus retratada com tanta perícia. Quebra. A questão do milagre? A questão de que Jesus fazia apologia da inteligência combativa, e estava longe de ser passivo? (Muitos não entendem que o dar a outra face é a maior arma, o confrontar o inimigo com a lucidez constrangedora de sua estúpida brutalidade.) Meus filhos e minha esposa estão na casa de uma das avós, na capital. Estou sozinho em casa desde quinta-feira. Ontem minha esposa me liga dizendo que sua irmã grávida fez o ultrassom e o médico lhe disse que seu bebê não tem pernas nem braços. Fico num silêncio estuporado pelo telefone, ouço todo o vagalhão interno que isso começa a causar em minhas sempre instáveis âncoras existenciais. A Dani fala que sua irmã entrou em desespero, ligou para a mãe em um estado de choque, mas teve forças de ir até outro laboratório, fazer urgentemente outro exame e levar a outro médico. Esse outro médico disse, categórico, que seu bebê estava perfeito. Fui tomado por uma ira súbita pelo telefone, passei uma exageradamente severa bronca na Dani, pois ela deveria ter dito primeiro que tudo estava bem e que havia acontecido um erro de diagnóstico logo retratado, e não ter feito aquele suspense inapropriado comigo. Fui deselegante com ela, assim que desligado o telefone me arrependi. Sentei no sofá da sala e fiquei longo tempo pensando, mais em um estado catatônico que propriamente um espairecimento controlado. Tive um medo sônico de que se eu me movesse aquela frágil dobra do destino poderia se quebrar, e a escolha da providência poderia ser refeita. Acho que deve ser a mesma coisa que sentem aqueles monges irlandeses do conto do Joyce que passam a vida pedindo clemência para que deus reconsiderasse por mais um momento, desse à humanidade mais uma outra chance. Não pensar; sequer nem agradecer, nessa leveza magistral que nunca vai ser me dado entender, para meu benefício, pois assim descarto que entre os infinitos sentimentos do ser incriado, divida espaço o meu pequeno e inútil rancor.

E como não vislumbrar deus aqui?:

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Sharpening stones



You´re beautiful more beautiful than me
You´re honorable more honorable than me

You´re sharpening stones, walking on coals
To improve your business acumen
Sharpening stones, walking on coals
To improve your business acumen

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Minha comunhão com José Saramago



Para mim a escrita de Saramago foi uma chapa de ferro medieval, um antigo prédio lisboeta restringido a ser o refúgio da literatura, e a antítese de um velho escritor fracassado que perdeu seu enorme talento. Como a memória emocional dos cheiros, Saramago para mim ficou vinculado de forma inconfundível com esses três aspectos do modo como comecei a me aproximar dele, no começo dos meus vinte anos. Eu ainda não o tinha lido, quando li em algum suplemento literário que ele tomara para si todo um prédio em algum ponto de Lisboa e nele construíra seu local de trabalho: havia uma foto, ou mais certamente eu devo ter imaginado-a, em que tal prédio aparecia, meio em ruínas, incontinente em meio a uma rua onde as demais construções recompunham a linha natural das habituais atividades comerciais humanas, os escritórios de sóbrios e ocupados advogados portugueses, as casas de penhora com algum indivíduo de origem judaica, de monóculo de grau para examinar a fundo a legitimidade dos anéis de ouro de matriarcas decadentes, as tabacarias, as lojas de vestidos usados; absurdo anacronismo em que todo um pequeno prédio de três andares (acho, ou imaginei assim) seja dedicado apenas à atividade da escrita de um só senhor. A foto deveria estar em sépia, para aumentar em mim o impacto de que Saramago definitivamente fazia de sua vida o que queria, inclusive voltar a um estágio no tempo em que podia-se institucionalizar com lucro sua solitária arte intelectual; ou, pensando agora, a foto era de um azul escuro, tempestuoso, que ressaltava os tijolos e o ambiente de recolhimento em histórias onde todas as artimanhas sagradas do classicismo estavam bem urdidas nas mãos de um mestre; um mestre que fazia de Lisboa a sua Londres coberta por um fog, sua Lisboa do início de O ano da morte de Ricardo Reis, que se transformara no cenário da chuva universal, a chuva que eu sempre procuro, intuitivamente, em todos os livros, para me isolar debaixo de um cobertor de frente a uma lareira e me deixar levar pela voz do livro. Essa foi a primeira das apreensões correlativas que tive de Saramago, antes de ler uma linha que ele tivesse escrito.

A segunda impressão me veio quando eu estava em uma praça, em meus 22 anos, junto a uma moça que eu havia namorado por três longos anos e que agora pouco sei dela, a não ser que ainda vive e tem dois filhos crescidos. A tal moça e eu líamos um jornal local, que tinha um pretensioso caderno de cultura que se invalidava com seu tom de independência reverenciosa pela notória coaptação dos editores e da pauta com a propaganda dos governos da ocasião. Era um jornal comprado, diga-se de uma vez, de tal forma que o patrocínio público permitia que fosse entregue de graça em algumas casas e nos ambientes do funcionarismo estadual, embora essa gratuidade falsa seja dessas que no Brasil se prolifera e acaba por sair muito mais caro que se fosse adquirida pelas compras convencionais. Eu o lia esparsamente, com o indispensável ar de zombaria que me dava a idade, enquanto essa minha namorada, tendo descoberto uma entrevista exclusiva de um velho escritor regional, o fazia com diligente seriedade e em voz alta. Nesses três anos de namoro, ela já sabia o suficiente da minha paixão pelos livros, daí aquele rompante de locução em dar som às palavras decantadas do velho escritor que pretendia ser uma forma de carinho. O namoro estava pendurado por um fio desgastado por irrecuperável exaustão _ ela também levava a culpa da mesma idade leviana_, e não seria daquela maneira que ambos conseguiríamos algum retorno de substância: ela me afligindo os ouvidos e eu encenando uma educação de todo incompreensível por faltar em circunstâncias muito mais importantes de que a escutava com zelo. E essa agrura acabou reforçando indiretamente a força do que o escritor falava, ou, mais precisamente, a força do enorme fardo de sua derrota. O escritor se chamava Bernardo Élis, para quem eu nutriria um eterno respeito por três ou quatro contos monumentais se ele tivesse tido uma trombose aos trinta anos, após escrevê-los, ou sofrido um ferimento fatal em alguma briga de bar em uma eventual vida desregrada, que eu nunca soube se ele a tivera, o que não invalidaria a benesse de reconhecimento póstumo da ação da faca do inimigo determinando seu imortal silêncio ao perfurar-lhe a barriga, ou se tivesse partido para um exílio em algum local secreto e nunca desvendado e jamais tornado a escrever ou dado as caras em público novamente; mas como, em vez dessas venturosas possibilidades, ele deu ouvidos ao destino em morrer em uma idade acentuada, oitenta ou noventa anos, não me recordo, e, o pior, aproveitado esses anos todos sobressalentes para, de quebra, escrever uma literatura tão descartável e insossa que chegava a desmentir o mérito desses contos majestosos, eu não lhe reservava senão o leve aceno de indiferença cordial reservado aos símbolos da bandeira e da pátria. Mas o pobre Élis estava com o rabo da porca torcida e carregado de má intenção nesse dia, pois se pôs a uma lamúria e um choreiro do clichê escritor-genial-nunca-reconhecido-e-que-iria-morrer-na-miséria, o que leva ao distante Saramago acima que antes era o motivo desse texto: Élis disse não ter dinheiro nem para completar a coleção de obras de José Saramago.

Essa afirmação caiu como um bloco de cimento em meu coração em suspenso; devo ter pedido para que a ex-namorada, epíteto do qual não sabíamos ainda mas que toda a intuição rumorejava a querer nos revelar esse fato incontornável para um breve futuro (futuro que me traria três meses de intenso sofrimento de dor de cotovelo), pedido a ela, como dizia, para que relesse as tristes palavras de Élis, para confirmar a realidade inglória de que o altivo autor de três dos maiores contos universais havia, enfim, recaído nos escombros do recalque. Ele não tinha dinheiro para completar sua coleção de obras de José Saramago. Havia nisso uma quantidade inumerável de símbolos e interpretações que me impediu de fazer qualquer coisa naquela tarde a não ser me dedicar a desvendá-los. Não era uma simples reclamação. Élis deveria estar, nessa entrevista para um jornal desacreditado, voltando a seus terrenos metafóricos, a suas searas de sentidos subliminares. Na época eu me dedicava a economias hercúleas para comprar os caros livros de Thomas Mann, e a roubar, quando a antena de detecção de perigo me assegurava total incognoscibilidade, um ou outro volume de bibliotecas_ mas daí a achar que uma vida toda de trabalho e dedicação em qualquer ramo das labutas sociais não me acondicionaria ao menos a comprar todos os livros de meu escritor predileto, vigorava uma grande distância. Élis não tinha mesmo condições de entrar em uma livraria, pegar o Evangelho segundo Jesus Cristo ou Todos os nomes, e se dirigir com ele para a moça da caixa registradora, como poderia fazê-lo qualquer cordato funcionário de cartório ou assistente de oftalmologia, ou gerente de vendas ou um simples estudante que nas horas vagas cumpre os serviços de pro-labore em um colégio municipal, e pagar pelo livro?, ou Élis representava propositalmente nessas cruas palavras a imagem do artista mendigo de um conto de Tchécov, em que uma mãe deposita uma moeda na caneca do homem maltrapilho de capote contra mais um inverno rigoroso e, se distanciando, diz ao filho que tal homem era um poeta. Um ser sagrado cuja eterna funcionalidade póstuma confere a obrigatoriedade de ser relegado em vida por todas as instâncias do poder.

Eu nunca consegui desalojar Saramago de Élis, desde então. Em resposta ao pragmatismo impossível e descortês de Élis, passei a comprar tudo de Saramago que me caía em mãos, para provar ao autor de A enxada que mesmo um sub-empregado como eu era na época, ou um semi-desempregado, poderia, com empenho, ter todos os livros do romancista português. O propósito velado, escondido debaixo da ponta do iceberg de meu temor diante uma realidade profissional que me aguardava após os tempos de idílio da faculdade, era que, na hipótese de que eu me lançasse a ser escritor, se meu abandono a mim mesmo seria tão irresponsável a ponto de nunca me assegurar um outro serviço que me desse o que comer. Foi quando iniciei minha jornada pela escrita de Saramago, nos livros de capas de aço fosco publicados pela Companhia das Letras, algumas delas parecendo placas de ferro medieval, quadros misteriosos de lápis lazuli, que acentuavam ainda mais as idiossincrasias tão próprias de Saramago, a sua independência, o seu barroquismo, a sua completa literariedade. Como me enchiam de admiração aqueles primeiros livros de Saramago da Companhia, antes que o Nobel se aproximasse e com tal aproximação e as vendas exponenciais as capas passassem a ser mais aeradas, mais adequadas ao público jovem. Aquelas capas de ferro medieval, góticas, reservadas, meio que sisudas, inapreensíveis, como estampas de catedrais portuguesas do século XIV, casavam milimetricamente com o prédio de Saramago e com a escrita deliciosamente íntima e insolvível de Saramago. Ler o Evangelho em aço tinha um impacto maior, naquele meu quarto de estudante cujos rescaldos da separação de um namoro começavam a se tornar bem pequenos frente às possibilidades da escrita, nas cenas de José crucificado, de Jesus nomeando os nomes futuros de alguns dos tantos queimados pela Inquisição católica, no barco, com alguns de seus discípulos, no meio de uma terrível tempestade. Saramago não me fugiu ao raciocínio sistematizado por todos esses anos do papel do escritor em ser o oposto de Élis, em sua coragem de abandonar seu emprego de jornalista para partir do zero na literatura, no tudo ou nada, ou ganharia o mundo pela escrita ou sabe-se o quê estava lhe reservado, mas nunca reclamar, como se fosse seu o lema de Camilo José Cela, outro José e outro escritor renitente, que escreveu que sua frase de frontispício caseiro era nunca reclamar, mesmo que todas as reservas pareçam cediças diante a fúria do determinismo que investe do lado de lá das comportas do mundo. Saramago escreveu em sua linguagem, que não é perfeita, que espanta, que afasta os incautos, mas que é belíssima em sua sépia e em seu aço medieval. Mais tarde a ilha de Lanzarote seria mais um acréscimo em sua forma ousada de dominar o mundo, que eu vi hoje, deslumbrado ao assistir o documentário José e Pilar, eu que fujo da tela mas que hoje, felizmente, essas imagens frentearam-me inevitavelmente, as pedras e o ar de tormenta da ilha, os céus carregados, a Pilar com os pés descalços descansados sobre as pernas de Saramago, ambos assistindo à meteorologia da tv anunciando furacões para a noite, e ela estendendo o pescoço para olhar pela janela acima deles, do lado de lá balançando-se uma plantinha ornamental, olhando a solidão enriquecedora do deserto confortável onde moram os dois amantes, para estudar as tempestades, como quem olha se o ruído é do carteiro chegando. E esse é um entre tantos retratos fieis de Saramago, o escritor que vivia em uma ilha de tempestades e pedras, o autor da inesquecível história de Blimunda e do padre das máquinas voadoras, do homem duplicado, dos últimos dias de Ricardo Reis em uma dimensão de intensa poesia e verdade que só se conecta com a nossa por levar uma cidade com o mesmo nome de Lisboa; o autor da frase límpida e devastadora: "o homem mais sábio que conheci não sabia ler nem escrever".

Foi em 1999 que li Manual de pintura e caligrafia. Subi quatro longos lances de escadas, com um dos pés engessado, para realizar em um momento tardio o vestibular para o curso de história. Tinha o rosto cortado pelos estilhaços do para-brisas do carro acidentado, e um silêncio que me distanciava um pouco de tudo que me apontava ser o prenúncio de um novo começo, o começo de algo. Era um silêncio desejável e que me deixava bastante satisfeito. Eu não apostava que iria passar na prova, pois há muito não revia as matérias que candidatos bem mais jovens estavam bem mais preparados. Na redação, me veio a ideia reflexa do Manual. Nessa obra, o narrador é um retratista que coloca na tela o que os pais de família e empresários tomados por uma romântica necessidade de se modelarem desejam como realce de suas vaidosas características. Em segredo, o pintor faz um quadro de como ele realmente vê tais pessoas, que contudo, obviamente, ele nunca expõe. Escrevi um texto feérico com o mesmo tema, em que um pai refugiado em Berna, imprime para seu filho pequeno um mapa do país onde eles nasceram, que por acaso era o mesmo onde eu nasci, com fotos de frutos regionais e sorrisos e peles bronzeadas, conforme pedido pela professora da escola; mas, reservadamente, imprime para si um outro mapa que jamais mostrará para seu filho, coberto de fotos de crianças miseráveis, de fanáticos religiosos, de assassinatos, de futebol, carnaval e as loucuras de um país insofismável. Por esse momento, senti toda a plenitude do que é o envolvimento na escrita, que decretara a missão de vida para Saramago. Como me repudia a lamúria do fracasso, não seria demais terminar dizendo que a nota máxima nessa redação me fez adquirir a vaga do curso, ainda que não fiz rascunhos do texto e nunca mais tenha notícias dele. Foi meu momento de comunhão com José Saramago.

P.S.: ainda nesse mês, a Companhia das Letras completa em seu catálogo toda a publicação das obras de José Saramago, com os lançamentos de "Levantado do chão" e "Memorial do convento", títulos pelos quais espero para completar minha coleção (tenho o primeiro pela editora portuguesa Caminho, e o segundo pela Bertrand Brasil).



segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O horror! O horror!



Dois mil anos com as comunidades proto-comunistas, a redenção dos miseráveis e oprimidos, a bem-aventurança dos pobres de espírito; dois mil anos com os mosteiros medievais, Agostinho, Michelangelo, Bach, Beethoven, Tolstói, Dostoiévski, a dialética superior mantida com os elegantes oposicionistas de Nietzsche a Papini; dois mil anos de ideias e fantasias e conjecturas geniais reduzidas a isso. Estranho foi me espantar, ou que seja espantável, o Grande Inquisidor. Será que a capacidade profética de Dostoiévski é tão elogiável assim? Será que mesmo naquela época não era óbvio que, se Cristo retornasse, seria aprisionado pelos mandatários do cristianismo e enforcado, ou eletrocutado? Não teriam nem a paciência de gastarem mais empreendedorismo romântico crucificando-o: bastava uma bala e o assunto estaria encerrado. O que esse desgraçado tem a ver com nossos negócios? O que esse filho da puta vem fazer aqui em um mundo que nada tem a ver com as tolices que propagou? Algum cristão, no limite possível do termo, com um pouquinho só de vergonha na cara e crítica, aguenta assistir ao pastor que enxuga o rosto com uma toalhinha e a dá para os fieis sem sentir um brutal nó no estômago? Digo cristão pois em um ateu tal cena não provocaria mais que um histrionismo de nojo diante a estupidificação humana; um ateu não tem a necessidade de aprofundar-se no estrago que um tal pastor provoca na complexa visão de um Cristo acima dessas coisas todas. Mas para um cristão esclarecido, que tem em sua longa cadeia pregressa Bach e Tolstói, a mulher adúltera do atire a primeira pedra, o Cristo que escreve na areia talvez como a profecia máxima de que seu reino só comportava aquela impossibilidade efêmera apagada no vento dos anos futuros; para o cristão que nada tem a ver com Malafaias e não sei mais quantos nomes bestiais, esse tipo de "homem de Deus" é um prego a mais no já muito sepultado caixão do cristianismo. Ver esse pastor da toalhinha, que é apenas um entre uma fauna de figuras deformadas pela ganância, a hipocrisia e a absoluta mediocridade, tem-se a certeza de que, se Cristo retornasse, esses elementos do status quo da salvação estariam na linha de frente dos que não relutariam um instante em apagar a mensageiro da frente de seus propósitos exultantes. O Cristo que pregou a pobreza e a aproximação com os doentes e ladrões, o Cristo da prediga inigualável do "sejam inteligentes", e do "simples como a pomba e cautelosos como a serpente", está tão confortavelmente situado numa distância dos desejos dos novos cristãos quanto a terra quadrada cujo avanço para além de um determinado ponto determinava a queda no espaço: nada é mais ultrapassado e batido do que um mártir espiritual que promete os portões abertos de um reino futuro, frente ao empresário metafísico que trabalha prontamente para tornar ricos neste mundo os que se dedicarem à bajulação ostensiva e às contribuições nos envelopes que ajudam a engrandecer o poder financeiro das igrejas. Nietzsche decretou a morte filosófica de deus no século XIX, numa reivindicação de uma instância de comprometimento maior com os poderes espirituais amortecidos por uma burguesia usurária e flácida; os pastores da toalhinha sentenciam a morte real do Cristo, numa concordância recíproca com os seguidores que só tem a capacidade de enxergar até onde vão suas ganâncias primárias e seus egoísmos animalescos. O Cristo desse novo milênio é o Cristo neoliberal que reescreve as linhas bregas que retratam aquele outro sujeito ridículo, um Novo Jesus capaz de uma simplicidade gratificante que arrebanha esse estágio perene de uma humanidade já desprovida por completo de transcendência e feliz com sua obtusidade e instintividade; um Cristo que faz as pazes com o bezerro de ouro e os vendilhões do templo e se atira a uma dança frenética de auto-caricata selvageria diante os títeres manipulados de um diabo carnavalesco. Os novos cristãos são iguais aos lobos: em formação de matilha só para os interesses imediatos da caça, para depois voltarem à condição de individualistas sem medo e sem moral.

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Ontem assisti aos líderes de audiência da tv aberta para ver a quantas andam o mundo de fora do bunker. No canal evangélico, notório segundo lugar de audiência, passava uma matéria centrada em uma espécie de pretendido novo ícone da juventude, um rapaz reptílico com tatuagens por todo o corpo, de uma feiura feroz e uma magreza doentia. Um desses artistas da música que convenciona-se chamar de MC. As cenas todas mostravam apenas o que o MC tem comprado com o dinheiro alto que ganha em seus shows: um carro de 160 mil reais, uma moto de uns 50 mil, um colar de ouro com pedras preciosas cravejadas de 40 mil, e assim vai. Tudo com a nota de compra atestada por um anêmico ser retorcido que mal consegue pronunciar uma frase coerente. Em dada hora, o repórter pega na mão a placa de ouro puro que o réptil usa no colar do pescoço e pergunta: "esse diamante tem passado por muitas costas de novinhas?", e o réptil responde, com uma malícia lúbrica que parece vencer o esconderijo dos grandes óculos escuros e o boné que é de um número o dobro da circunferência de sua cabeça (além de uma estratosfera mental de uso disciplinado de narcóticos anestesiantes de sua consciência já um tanto combalida): "Oh, se tem, mano!". Lendo através do véus, parece que o programa se esforça para tornar tal figura reverenciável, icônica, representativa de um pesquisado nicho de pessoas que responderam em questionários pagos pela empresa o quanto esperam que se faça para serem nababescamente distraídos. No canal campeão de audiência, que há décadas promove o que se tem que amar e odiar no país, o programa das famílias para as noites de domingo se inicia com o encontro entre uma importante cantora dançarina nacional com um porteiro de condomínio. O que esses dois tem em comum? O porteiro gravou um vídeo com uma música de sua autoria e enviou para a cantora, e, por uma providência mágica, a mesma que anda pelos fundos temáticos de todos contos de fada, a cantora se deslumbrou com a música e resolveu lançá-la em seu novo e bombástico disco. A mesma tv que canonizou Chico Buarque e Roberto Carlos, santificou Tancredo Neves e elegeu Fernando Collor como o Eliot Ness brasileiro. E depois não querem que a massa com rompantes de ódio que toma as ruas não depredem e não botem fogo. Como poder respirar um pouquinho só acima desse lixo se não for brigando pela superfície com paus e ponta-pés?

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Semana passada a editora dos Civita anunciou o fechamento de várias revistas do grupo, entre elas a revista Bravo!. Nunca fui adepto da leitura de revistas sobre cultura ou ideias ou história e filosofias, ao contrário de um amigo que é louco por elas. Quanto à Bravo!, em seus 16 anos de existência, tenho por mim ter comprado umas três edições, todas em rodoviárias e em substituição ao fruto de alguma estupidez de não ter me abastecido com um livro para matar o tempo da viagem. Assim como a revista Cult, que compro esporadicamente, sempre me arrependi do investimento de tempo e grana assim que lia as primeiras páginas dessas obras. Nada a criticar, já que é o padrão desses tipos de publicações no Brasil serem inofensivas e avessas a qualquer tipo de aprofundamento. Mas o fato de fingir não saber disso quando as retirava da banca era que me irritava_ acho que me curei em não comprar mais a Cult, depois de um texto chinfrim que nada acrescenta sobre Walter Benjamin e uma crítica sobre o livro de Dylan do Vila-Matas que o sujeito fica sem saber se, afinal, o resenhista achou o livro bom ou não. E quanto à Bravo!, agradeço o falecimento que tornará impossível daqui pela frente qualquer pecadilho incompreensivo de querer saber o que acontece nas noites da "alta-cultura" do eixo Rio-São Paulo. Mas o que me chamou a atenção desse fato foi a carta de despedida aos leitores escrita pelo editor da Bravo!, publicada no facebook do cara e no site da Carta Capital. Uma das causas das contas sempre no vermelho da revista, segundo seu editor, apesar de vender quase 30 mil exemplares mensais, era que não havia muitas empresas para preencher o espaço publicitário oferecido nas páginas da publicação. "Os grandes anunciantes costumam demostrar pequeno interesse por títulos dedicados à 'alta cultura'", escreve o editor, e continua: "'O leitor de revistas do gênero, sendo mais crítico, tende a frear os impulsos consumistas', explicam os publicitários, nem sempre com essas palavras". Baseado nessa premissa, se diagnostica muito da capacidade crítica das reconhecidas elites que leem a revista mais coberta de anúncios de carros, bancos e braceletes de ouro para presentear a amante, neste país.

domingo, 4 de agosto de 2013

Jerusalém, a biografia



Esta extensa biografia sobre a cidade de Jerusalém parte de um pressuposto que de antemão se revela um fracasso: o de que, assim como é impossível escrever com fidelidade sobre a vida de uma só pessoa, devido aos infinitos ângulos de visão e as inúmeras discordâncias entre eles, é ainda mais inconcebível falar de uma determinada região do globo por onde a forjada concepção de história sistematizou a passagem de incontáveis indivíduos ao longo de dois mil e quinhentos anos. Diante essa magna pretensão de Simon Sebag Montefiore, o leitor se depara com a maiúscula incapacidade da memória em apreender a sequência de fatos compilados sobre heróis e assassinos_ e heróis-assassinos_, ao longo das 800 páginas de informação, notas, árvores genealógicas e mapas, o que gera a constatação de que Jerusalém é mais um compêndio sobre a abominação e menos uma biografia, que sempre deve estar ao alcance para a consulta digestiva sobre a incapacidade humana tanto para a clemência quanto para a compreensão. 

Este resenhador se recorda do mês em que lhe caiu em mãos a biografia do inconsolável naturalista Charles Darwin, nas linhas essenciais escritas por Adrian Desmond & James Moore, e de como ele dividiu sinergicamente a derrota do teólogo Darwin diante a verdade em sustentar a crença de que haja uma ordenação meritocrática diligentemente instituída que dirija a projeção cósmica do símio mais violento da escala animal pela pirâmide da existência. Ver a solidão impermeável a qualquer eufemização da filosofia em que o homem sempre esteve, pelos olhos de Darwin, custou meses a este resenhador para conseguir colocar as auto-apologias e o douramento da pílula em dias. Jerusalém não é recomendado para o padrão a que essa humanidade mostra se conformar nesses tempos de evangelismos laudatórios, políticas cultualistas histriônicas e o combate massivo contra qualquer fímbria de lucidez mantido pela diversão proteinizada da moderna tecnologia. São páginas cuja única sinalização involuntária de esoterismo é a ironia de que a cidade tida como a mais sagrada, no fim das contas, é tão indiferente para os desígnios de um deus quanto o é o mais sanguinário e facínora povoado de um remoto século argentino. Apenas que em Jerusalém a loucura atingiu uma revoada que teria sustentado poucos observadores locais em pé, desde os inúmeros cercos dos incontáveis povos invasores que reduziu a população ao canibalismo (a cena da mãe encontrada pelo exército inimigo, atraído pelo viçoso cheiro de carne assada, assando o próprio filho de três anos, é um entre vários convites pontuais ao conhecimento sem pudores sobre a espécie), passando pela época em que Cristo não foi sequer uma nota de rodapé autêntica desse pragmático lado de cá do espelho da história, até a reafirmação no tempo atual de que a ausência de deus é o que mais determina que políticos de usura voraz e assassinos sem escrúpulos subam em púlpitos sagrados para interpretar os desejos do insondável altíssimo. 

Em um texto de Borges, o grande autor devoto da estética arquitetural das cabalas simula a certeza da existência de deus pela disposição em que voam os pássaros ao se levantarem de uma praia; as páginas dessa terrível biografia mostram que o homem nunca foi sutil ou disposto a leves simetrias matemáticas para que não se deduza fortemente senão o oposto.

sábado, 3 de agosto de 2013

Hilda Hilst



“Quero ser lida em profundidade e não como distração, porque não leio os outros para me distrair mas para compreender, para me comunicar. Não quero ser distraída. Penso que é a última coisa que se devia pedir a um escritor: novelinhas para ler no bonde, no carro, no avião. Parece que as pessoas querem livrar-se assim de si mesmas, que têm medo da ideia, da extensão metafísica de um texto, da pergunta, enfim. Estórias [sic], para quê? Os jornais estão cheios delas, para que, então, procurá-las nos livros?”

Lugares



O pequeno prédio situado em uma esquina aprazível de frente a uma praça de grama tomada pela proliferação de ervas oportunistas condiz quase sobrenaturalmente com as leituras que venho tendo nos últimos dois anos. Quando estacionei o carro debaixo de um das tolkienescas árvores da praça (a adjetivação é apropriada, como pretendo mostrar mais adiante) _ entidades vegetais que despertam tanta evidência de nos observar com um enfado centenário de uma feminilidade anciã já quase dessexualizada que acaba sendo melhor não explorarmos muito o fato_, e saímos eu, minha esposa e meus dois filhos, fui tomado pela sensação de que lugares assim existem em todas as regiões do mundo, não são privilégio de povoados da Inglaterra ou de cantões obscuros da Mitteleuropa, e nem era um atributo restringido pelo tempo a épocas mortas, pois mesmo no século XXI e mesmo aqui na minha cidadezinha onde moro pude ter a surpresa meio reverenciosa de encontrar um exemplo deles. Nós passamos quase todos os dias pelo local, olhamos sempre para o pequeno prédio sem nenhum espanto, mas parece que foi apenas nesse dia que aconteceu o estalo de realmente vermos que ali era uma biblioteca, com todos os agravantes de lugubridade e bucolismo que tornava nossa distração ainda mais indesculpável. Não disse à Dani quando nos aproximávamos do lance de quatro degraus que subiam até a porta dupla aberta convidativamente, mas juro que tive a calma certeza de que a bibliotecária seria um tipo condizente com a brecha na realidade em que acabávamos de entrar, uma figura idiossincrática carismática, para o bem ou para o mal, que assim como a praça degradada, a ausência manipulada de pessoas nas ruas, o sol por entre os galhos enervados das tantas árvores conformadamente enlouquecidas de sapiência, não seria em absoluto desse mundo. Não conseguia imaginá-la no curto percurso antes de subirmos as escadas, mas tinha plena segurança que o enredo de uma realidade paralela a desenharia sem exageros no que poderia ela mesma ter de uma indispensável estranheza, de modos que pensaria dela depois: convincentemente natural, mas nunca normal.

Pois entramos na biblioteca: uma casinha antiga, colonial, com paredes com infiltrações e manchas típicas dos filmes de Tarkóvski, pintura indeterminada (era como se lá dentro imperasse um preto-e-branco amorfo, sonífero), janelas amplas de madeira, uma solidão e um silêncio quase aterrorizantemente absoluto. A bibliotecária nos recebeu na entrada_ havia se preparada, pondo as mãos juntas e emitindo um sorriso internalizado, um desses sorrisos de linha d`água em que podemos nos equilibrar em sua cordialidade efetiva pelo lado externo, mas no fundo do qual corriam outros pensamentos indeterminados, outras sensações proibidas e reservadas unicamente a ela_, não quis olhá-la mais que o habitual, por enquanto, deixando que a Dani cuidasse dela enquanto meus filhos e eu exploraríamos os livros. Fomos para a sala das crianças, que a bibliotecária nos abriu a porta, perguntou se queríamos que ela retirasse as duas grandes barras de ferro que selavam uma outra porta dupla para que entrasse mais luz, ao que respondemos que não era necessário, e nos disse que poderíamos mexer em tudo, desde que não recolocássemos os livros das três primeiras estantes de volta pois eles estavam em ordem catalográfica, e que deveríamos os colocar nas mesas, no final. Ela foi embora, se sentou junto à Dani numa mesa de madeira da sala principal, e meus filhos depositaram os livros nas mesas, pegaram os bonecos encardidos por anos de manipulação de um armário aberto só de brinquedos, e ficaram fazendo o itinerário de seus deslumbramentos. Deixei-os lá, depois que vi que não haviam objetos perigosos por perto, e fui ver o que poderia me surpreender com os poucos livros das estantes dos adultos, na outra sala. Tive um choque ao ver que, apesar de poucos, todos os livros ali eram a radiografia de meus interesses e minha biografia de leitor. Parecia uma biblioteca montada por mim. Olhei de relance minha esposa e a bibliotecária, para ver se era agora que eu deveria estudá-la, pensando também se não havia algo de ameaçador contra o qual eu deveria me colocar seriamente em guarda naquele episódio de Twilight Zone feito à minha medida. 

Pois os livros que tinham ali eram raros, esgotados, disponíveis para a compra só em lances fieis de sorte de se consultar os sebos todos os dias. Muitos, a  maioria, eu não tinha. Havia ali o Lote 49 e o Vineland, de Thomas Pynchon (Thomas Pynchon ali!!!), que afiguram como pequenas fortunas em livrarias de usados, e que, apesar de ter lido tudo de Pynchon, eu ainda não tinha o Vineland. Havia ali um livro de Joseph Heller, que não o Ardil 22, que também era uma preciosidade. E o Fala, memória!, do Nabokov; e a auto-biografia de Joseph Conrad; e... pasmo, o único livro de Javier Marías publicado no Brasil que eu ainda não tinha, mas que naquele mesmo dia, horas antes, eu tinha pago na loteria e enviado a confirmação a um dos sebos da Estante Virtual, e que espero recebê-lo na semana que vem: Negro dorso do tempo. (Aqui a informação de que o livreiro do qual comprei esse Marías tem o lindo nome de Mazotopisteles Gurgel Praxedes, que Marías iria adorar.) Folheie esse Marías e vi, sobressaltado, a foto do porteiro Will que aparece em Todas as almas, esse livro inesquecível que faz um passageiro mas enternecedor retrato de Tolkien, o que me deu a referência das árvores da praça. Pedi, quase sem fala, para que a Dani fizesse o cadastro de empréstimo, para que eu já me antecipasse com esse Marías, e tudo acabou com eu o levando, e as crianças levando Asterix entre os bretões e um lindo livro infantil (que acabei o encomendando hoje pela net) Nita e a Princesa das Bruxas. Haviam lá deliciosos livros infantis de 60 anos de idade, maravilhosos, mas que não eram passíveis de ser emprestados, pranchas grandes de papel grosso com desenhos retrógrados e belos de animais que pareciam de algum artista inglês, o que evidencia mais ainda a inutilidade insossa dos e-books.

Na verdade precisamos voltar depois do almoço para fazer o cadastro, já que nenhum de nós estávamos com documentos pessoais nem com comprovantes de endereço. Perguntei à bibliotecária a que hora a biblioteca abria à tarde, ao que ela respondeu com seu sorriso preciso e sua dicção suave: "Aqui nunca fecha". Foi quando a observei mais detidamente: era uma moça, talvez mais que trinta anos, dentes que pareciam ser de leite, meio separados, espinhas distantemente vestigiais pela pele, olhos que eram bonitos pelo que tinham de assimilação à sua condição dada pela biblioteca, de certa doçura, uma velada intensidade, um impreciso mas eficaz conhecimento humano: era como se ela fosse uma das árvores centenárias da praça, que ganhara personificação carnal para atender ao propósito de receber aos incautos intuitivos que caiam na armadilha de retornar à materialização de antigos ambientes de uma memória pessoal remota. A Dani, que é a pessoa mais educada que conheço, não evitou de me dizer, meio sério, de que na volta ela tomaria conta das crianças e eu ficaria conversando com a moça. "Ela é meio capota", disse. Como assim, perguntei. "Não sei dizer ao certo, parece avoada, alheia, tem uma fixação que puxa por algo maníaco, faz perguntas inapropriadas: na saída insistiu com uma veemência sem sombras de dúvidas para que trouxéssemos nosso outro filho". Sorri com involuntário nervosismo, mas me ative à certeza de que aquela prestidigitação de adivinhar coisas de nosso passado não iria me separar daquele Marías.