Hannah Arendt, assim como Walter Benjamin, faz parte do gênero raro de pensadores inclassificáveis. Quando tentam fazer um retrato aproximado do que tais pensadores foram, o retrato torna-se capenga, sisudo, frágil ou descomedidamente forte, esquemático, falso, bastante distante da realidade. Mesmo um artista tão capacitado como J. M. Coetzee, ao escrever um ensaio sobre Walter Benjamin, apequena e brutaliza tudo o que Benjamin tinha de riqueza interpretativa e capacidade infinita de ver além das coisas. Assim é com Arendt, quando tentam dramatizar sua vida em um filme: a urbanidade cotidiana é alçada a um primeiro plano e o universo que se abria no gabinete da autora, em seus papéis de altíssima qualidade estética e investigativa da alma, se torna mero adorno, mero acidente colateral das paixões de cama e curiosidades de jornal que são os propósitos únicos dos grandes veículos de entretenimento em massa. É um tanto histriônico pensar que, com o eventual sucesso do filme, Hannah Arendt possa fazer parte dos twitter e facebook e redes sociais como um novo ícone de consumo para uma juvenilidade descolada e pretensamente culta, posicionando-a no mesmo nível de qualquer outra figura do show-business; seria de se perguntar se a linguagem cifrada do ciber espaço consegue perceber a ironia autofágica de aclamar como modelo venerável de lucidez uma autora que cunhou o conceito de alienação e dos seguidores marciais de clichês da metade final do século passado, que elevou a expressão da mente humana a um patamar de clareza e percepção de zonas sutis da verdade pouco alcançado nos milênios da escrita, e que por isso, para um entendedor medianamente arguto, é um tanto absurdo que ela seja consumida por essa gente que escreve em caracteres limitados e palavras mutiladas e que ela seria a primeira a classificá-la, como bem o fez quanto a seus antecessores de gênero em seu livro sobre o totalitarismo, como a ralé. Nada é mais avesso a Arendt do que a tentativa da sua reprodução padronizada, à lá Marilyn Monroe de várias cores de Warhol, do que sua assentada no gosto do senso comum da geração mais propícia à aquiescência descerebrada do domínio totalitário surgida depois da segunda guerra, como o é a geração de amigos e mútuos seguidores da realidade virtual de hoje; seria o equivalente ao Vaticano estampar imagens de Tolstói em camisetas oficiais e exportá-las para a igreja ortodoxa russa, ou alguém abrir uma fundação para a proteção dos leões africanos com o nome de Ernest Hemingway, ou a Nike eleger Stephen Hawking como garoto propaganda para seu novo modelo de tênis. Como o poema de Whitman, a juventude nada tem a ver com Arendt, os domínios de sua linguagem estão inalcançavelmente distantes do bairrismo cool dos que irão comprar seu livro sobre Eichmann e lê-lo talvez só até a metade porque alguém tuitou que ele é o máximo, deu a ele uma carinha amarela de aprovado na classificação junto ao novo vídeo de música lançado na rede. Para se avizinhar da compreensão de Walter Benjamin, tem-se que, ao menos, ler como Benjamin consegue escrever sobre alguém da estatura inclassificável de Proust, Kafka e Baudelaire, entrando em seus mundos, não sentenciando ou dando valorizações, mas aceitando o modo de visão desses artistas no que eles tem de combatividade independente na procura da verdade_ por isso o ensaio de Coetzee é um exemplo de escrita sistematicamente superior vazia e vaidosa, pois pega Benjamin por sua obra mais excêntrica, o Passagens, e faz uma esquematização do fracasso pessoal e das tantas insuficiências de alguém que, em vez disso, tem tantas qualidades esotéricas para oferecer.
É por essa suspeita fundamentada de que Arendt só é alcançável através do que ela escreveu que eu não vi o filme sobre ela lançado ano passado e nem pretendo ver. Me afasto desse tipo de interpretação. Supondo que tal filme tenha, ao menos, uma reavaliação histórica premonitória, no mesmo nível de A fita branca, com aquela apresentação paulatina e assustadora do mal acordando entre os moradores de um povoado alemão instigados a se assimilarem às exigências normativas de uma nova realidade nacional, ainda assim me vem à memória a redução à simples imagem de algo que está além da imagem. Me vem à memória a atriz que interpretou a Rosa Luxemburgo manquejando pela prisão: a vítima martirizada que fica na retina do espectador de cinema como uma coisa já definida, já tornado ela no momento em que sua corporificação se extinguiu no tempo: algo em que esvaiu por completo a transcendência. Faço uma digressão antes de entrar no livro da Arendt: há um conto de Don Delillo que se intitula Baader-Meinhof, na coletânea O anjo Esmeralda. Neste conto, uma moça e um rapaz se conhecem por acaso em uma exposição das pinturas sobre os últimos dias dos participantes do grupo terrorista Baader-Meinhof; de modo vago, eles vão interpretando o que as figuras sobrepostas a fotografias do corpo enforcado da mulher lhes provocam, sobre o aparente sorriso de um dos sentenciados, sobre uma árvore ao fundo que, no entendimento da moça, é o símbolo de que mesmo para o que fizeram há o perdão da sombra da cruz; daí, por uma inércia a que nenhum dos dois impõe resistência, eles vão até o apartamento da moça e, sentados à mesa diante um copo de água com gás com fatias de limão, prosseguem a discussão sobre os quadros, de forma desapaixonada, desconcentrada, com se atendendo a uma exigência protocolar que esperam que eles cumpram. E é reivindicando essa exigência que o rapaz tenta estuprar a moça, alegando que se eles estavam ali sozinhos, eles tinham que, necessariamente, perfazerem os mesmos passos da intuição do ato social firmada quando um homem e uma mulher estão em um apartamento silencioso, gastando conversa fiada como precondição do coito. A moça se refugia no banheiro; o rapaz, aparentemente, se masturba no quarto e, cumprido deste modo os movimentos da relojoaria, ele se desculpa através da porta e vai embora. No outro dia, retornando à exposição, a moça encontra o rapaz sozinho, sentado diante uma outra obra do ciclo, "de longe a maior e talvez a mais impressionante, a dos caixões e da cruz, chamada Funeral". Aqui nós temos, através do impressionante olhar visionário de Delillo, todo o diagnóstico da rarefação mental da conduta institucionalizada diante o assombro da história, toda a propensão inexorável que o indivíduo agregado à coletividade tem de filtrar a percepção de uma realidade de camadas e subníveis infinitos para um modo seletivo de entendimento; aqui, Delillo reconstrói a observação de impacto retardatário sobre a banalidade do mal feita por Arendt, retardatário porque intuitivamente sempre sabemos que o mal não é uma entidade, não é um demônio inteligente que conspira contra nossa espécie, lançando crias de cruel determinação e precisão letal, mas circunstâncias acumuladas por um corriqueiro estômago social que vai apascentando todo o contraditório incômodo até que o conforto de uma unanimidade desespiritualizada tome conta e coordene tudo_ mas que, ainda assim, quando nos deparamos com a vocalização de nosso estado de domínio, a reação que temos é de assombro, de vermos-nos como de uma posição alheia alienígena; como se o espírito, retirado do sono por um momento, mostrasse um fibrilar de indignação que comprova a sua existência. Nosso assombro parece confirmar o gene vestigial de que, no final das contas, lá no fundo, ainda temos uma boa visão elogiável sobre nós debaixo dessa escumalha toda de mediocridades e medianismos. Esse assombro é a pauta sobre a qual escreve Delillo em seu conto e Arendt em todos os seus grandes e fundamentais livros. No conto de Delillo, os personagens se veem no desamparo que oferece a exuberância de interpretação dos quadros, diante a qual eles tem que, combativamente, rejeitar para uma aquisição saudável, sanitizada, inofensiva em sua emoção regulada, de forma que não se percam da trilha usual que tem que seguir no ordenamento do mundo. Ambos estão desempregados, ambos são adventistas de um pragmatismo civilizado maturado em parte pelos arroubos de violência de refugos do alinhamento legal como os terroristas do Baader-Meinhof, e ambos se veem diante as possibilidades que essa norma poderia chegar para cobrar deles o sacrifício de sua humanidades em nome da regulação e da manutenção da ordem. A conversa entre os dois comporta a enunciação de seus possíveis planos para o futuro_ possíveis pois eles sempre estão nessa narcolepsia juvenil de viverem apenas no presente, nessa inconsequência de se julgarem inquestionavelmente imortais_, e o rapaz diz que pretende ter um emprego e uma "criaturinha pequena e macia" para criar. Por detrás dessas linhas aparentemente inofensivas, aterrorizantemente comezinhas, vemos a distorção à espera, a dissonância, o ruído surdo por cima dos escombros, as possibilidades nefastas: o quanto a história, assim como o deus bíblico fez com Jó, estaria disposta a testar a eficiência do pedantismo dessas pessoas até um nível extremo, ou não tão extremo visto que elas talvez se vergariam o mais rápido possível. Aqui nos remetemos a Eichmann em Jerusalém: "No entender de Eichmann, ninguém protestou, ninguém se recusou a cooperar. (Dia após dia, as pessoas aqui partem para seu próprio funeral), como disse um observador judeu em Berlin, em 1943".
São notórias as circunstâncias históricas que engendraram e direcionaram a escrita de Eichmann em Jerusalém; tudo o mais fora delas é a mais autêntica liberdade de pensamento e atrevimento por parte de Hannah Arendt. Os fatos são facilmente colhidos em uma pesquisa no Google: uma comitiva de agentes secretos israelense sequestraram Adolf Eichmann de seu esconderijo na Argentina, em 1960; Eichmann era apontado como carrasco nazista responsável pela morte de milhares de judeus durante a Solução Final promovida pelo Terceiro Reich; Eichmann foi julgado por um tribunal montado e mantido em Jerusalém, praticamente à revelia de todas as leis e tratados internacionais; Eichmann é condenado à morte e enforcado por seus crimes contra o povo judeu; a assim chamada filósofa e teórica política Hannah Arendt, já mundialmente conhecida por sua obra sobre as origens do totalitarismo e sua análise sobre a Condição Humana, é enviada pela New Yorker para cobrir passo a passo do processo do julgamento, afim de escrever uma espécie de coleção de peças de jornalismo literário com inédita fundamentação filosófica a serem publicadas paulatinamente pelo periódico. O que Arendt faz, o que não deveria ser em absoluto causa de surpresa por parte de seus contratantes, é o mais fantástico, profundo e pouco laudatório retrato da alienação humana e propensão do indivíduo permeabilizado nas massas em seguir cegamente líderes e doutrinas. Arendt compõe uma obra que não deixa nenhum ídolo em pé, a começar por sua polêmica condenação das atitudes de Israel em passar por cima das leis internacionais com a promoção do crime de sequestro em nome da penalização de um crime de genocídio que os líderes judaicos identificavam não como um crime contra a humanidade, mas como um ataque específico que dava a legitimidade aos judeus para a vingança, não considerando, em um racismo exclusivista que Arendt apontava ser tão descomedido quanto o dos nazistas, os outros povos que sofreram dizimação pelos exércitos de Hitler, como os ciganos, os romenos e outras etnias médio-européias. Para um judeu com certa intimidade com os escritos de Arendt, que uma vez respondeu a um jornalista não ter nenhum apreço pelo povo judeu, mas por amigos judeus, essa visão de seu novo trabalho não deveria ter causado impacto algum: já em Origens do Totalitarismo ela destina várias páginas em reportar a intransponível distância que os judeus ricos impunham entre eles e os judeus pobres, ou nascidos em famílias sem distinção social, assinalando o anti-semitismo que sempre existiu entre os judeus. Para qualquer outro leitor que conhecesse o trabalho da autora, também seria sem razão o choque pela sua honestidade intelectual diante as evidências anteriores de falta total de comprometimento da escritora com órgãos de ofício ou linhas de pensamento estigmatizado: Arendt, judia, era especialista em santo Agostinho e Kierkegaard, tendo escrito um ensaio sobre o pensamento do filósofo católico direcionado ao público protestante, e tendo escrito um belíssimo texto sobre o papa Angelo Giuseppe Roncalli, que bem poderia ter colocado a igreja católica de cabelo em pé ao colocar como título a ironia fina de "Um cristão no trono de São Pedro". A alta cúpula israelita, ao ver que a autora não admitia a cartilha da vitimização e da fácil alcunha de Eichmann como monstro, põe-se imediatamente a retalhá-la na imprensa mundial, cobrando da New Yorker a rejeição e recusa do restante dos textos sobre o julgamento. Como não deixaria de ser, Arendt passa a ser associada ao anti-semitismo e à traição ao povo judeu, o que seria alimentado mais ainda pelas relações mútuas de afeto e admiração entre ela e o filósofo Heidegger, tido como anti-semita aguerrido.
Saul Bellow escreveu que mantinha com Arendt longas conversas informais por restaurantes e bares destinados a escritores, em Nova York, em que Arendt lhe esclarecia tudo sobre a obra de William Faulkner. Sendo admiradora de Faulkner, não é para menos notar que as páginas iniciais de Eichmann em Jerusalém se assemelham no tom recolhido diante o opressor gigantismo ortodoxo dos tribunais às primeiras páginas do romance A Mansão, de Faulkne. Nesta última parte da trilogia dos Snopes, começa com o assassino de Flem Snopes sendo admitido pela corte de julgamento que o sentenciará; a madeira da bancada do juiz, as cadeiras de escoro alto empoeiradas de distinção, as batas dos oficiais da lei e a atmosfera hermética de respeito sagrado se encaixam com a descrição detalhada da sala de julgamento de Eichmann, em que os vários juízes se posicionam uma bancada acima do público, e onde à esquerda deles fica o reservado protegido com vidro reforçado em que o réu, de cara insofismavelmente cordial e disciplinada, espera sentado. Nessas duas obras vemos as motivações mais profundas que levaram ao crime, e aqui se trata da escrita sublime de dois gigantes das letras: Faulkner descrevendo que o mal é consuetudinário, ligado aos deveres do sangue, da família e da honra, que nasce junto ao desbravamento das terras e na construção da sociedade por sobre a selva incorruptível, que é fruto de desrespeitos sucessivos nunca digeridos mas alimentados no silêncio, e que muitas vezes aplaca o alvo que o originou quando este, pela velhice ou por uma calejada e involuntária sabedoria, já por si mesmo se penitenciou da maldade. Arendt conduz essa linha faulkneriana para uma interpretação universal da história, embasando todos os sinais apontados por Faulkner com a raiz unívoca da imensa capacidade humana pela veneração e pelo escamoteamento da verdade. Arendt diz, em seu revelador e desnudo ensaio sobre Heidegger, em Homens em tempos sombrios, que "a tendência ao tirânico pode se constatar nas teorias de quase todos os grandes pensadores (Kant é a grande exceção)". E por isso abjura que a única forma de se manter íntegro e lúcido no confrontamento com o mal é através da solidão inviolável do pensamento, a não-coaptação a nenhuma forma ou modelo ou moda ou tendência, a não aceitação de heróis, a não se ajoelhar diante os ditos grandes e poderosos, mesmos esses tendo o poder intelectual de um Heidegger ou a mansidão de um papa morto prematuramente, ou diante as idiossincrasias auto-protetoras de um povo ressabiado que sempre foi perseguido. Não se envergar diante santidades ou sistemas. O retrato que Arendt faz de Eichmann é sinistramente natural e límpido, esse pai de família exemplar, esse homem que em toda a vida leu apenas dois livros e por isso se via mais capacitado que os demais das facções hitleristas que não haviam lido nenhum, esse homem que, no início, se prontificou a ir contra o extermínio e fez esforços que resultou na salvação de várias vidas de judeus, mas que depois, pelo estado, pelo eufemismo da ordem social, pela visão acabestrada de um destino histórico nacional que só os muito enredados não viam se direcionar para a ruína, se transformou no mais exemplar funcionário do sistema. Eichmann, esse gênio do clichê, esse homem impoluto que nada tinha de monstruoso, esse reflexo preciso de qualquer um de nós quando pressionado pelos nós das forças da manutenção.
"Adolf Eichmann foi para o cadafalso com grande dignidade. Pediu uma garrafa de vinho tinto e bebeu metade dela. Recusou a ajuda do ministro protestante, reverendo William Hull, que se ofereceu para ler a Bíblia com ele: tinha apenas mais duas horas e para viver, e portanto nenhum 'tempo a perder'. Ele transpôs os quarenta metros que separavam sua cela da câmara de execução andando calmo e ereto, com as mãos amarradas nas costas. Quando os guardas amarraram seus tornozelos e joelhos, pediu que afrouxassem as cordas para que pudesse ficar de pé. 'Não preciso disso', declarou quando lhe ofereceram o capuz preto. Estava perfeitamente controlado. Não, mais do que isso: estava completamente ele mesmo. Nada poderia demonstrá-lo mais convincentemente do que a grotesca tolice de suas últimas palavras. Começou dizendo enfaticamente que era um Gottgläubiger, expressando assim da maneira comum dos nazistas que não era cristão e não acreditava na vida após a morte. E continuou: 'Dentro de pouco tempo, senhores, iremos encontrar-nos de novo. Esse é o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria. Não as esquecerei'. Diante da morte, encontrou o clichê usado na oratória fúnebre. No cadafalso, sua memória lhe aplicou um último golpe: ele estava 'animado', esqueceu-se que aquele era seu próprio funeral.
Foi como se naqueles últimos minutos estivesse resumindo a lição que este longo curso de maldade humana nos ensinou_ a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos." (Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, p. 274, tradução José Rubens Siqueira, Companhia das Letras)
Mais sobre Arendt, aqui.
São notórias as circunstâncias históricas que engendraram e direcionaram a escrita de Eichmann em Jerusalém; tudo o mais fora delas é a mais autêntica liberdade de pensamento e atrevimento por parte de Hannah Arendt. Os fatos são facilmente colhidos em uma pesquisa no Google: uma comitiva de agentes secretos israelense sequestraram Adolf Eichmann de seu esconderijo na Argentina, em 1960; Eichmann era apontado como carrasco nazista responsável pela morte de milhares de judeus durante a Solução Final promovida pelo Terceiro Reich; Eichmann foi julgado por um tribunal montado e mantido em Jerusalém, praticamente à revelia de todas as leis e tratados internacionais; Eichmann é condenado à morte e enforcado por seus crimes contra o povo judeu; a assim chamada filósofa e teórica política Hannah Arendt, já mundialmente conhecida por sua obra sobre as origens do totalitarismo e sua análise sobre a Condição Humana, é enviada pela New Yorker para cobrir passo a passo do processo do julgamento, afim de escrever uma espécie de coleção de peças de jornalismo literário com inédita fundamentação filosófica a serem publicadas paulatinamente pelo periódico. O que Arendt faz, o que não deveria ser em absoluto causa de surpresa por parte de seus contratantes, é o mais fantástico, profundo e pouco laudatório retrato da alienação humana e propensão do indivíduo permeabilizado nas massas em seguir cegamente líderes e doutrinas. Arendt compõe uma obra que não deixa nenhum ídolo em pé, a começar por sua polêmica condenação das atitudes de Israel em passar por cima das leis internacionais com a promoção do crime de sequestro em nome da penalização de um crime de genocídio que os líderes judaicos identificavam não como um crime contra a humanidade, mas como um ataque específico que dava a legitimidade aos judeus para a vingança, não considerando, em um racismo exclusivista que Arendt apontava ser tão descomedido quanto o dos nazistas, os outros povos que sofreram dizimação pelos exércitos de Hitler, como os ciganos, os romenos e outras etnias médio-européias. Para um judeu com certa intimidade com os escritos de Arendt, que uma vez respondeu a um jornalista não ter nenhum apreço pelo povo judeu, mas por amigos judeus, essa visão de seu novo trabalho não deveria ter causado impacto algum: já em Origens do Totalitarismo ela destina várias páginas em reportar a intransponível distância que os judeus ricos impunham entre eles e os judeus pobres, ou nascidos em famílias sem distinção social, assinalando o anti-semitismo que sempre existiu entre os judeus. Para qualquer outro leitor que conhecesse o trabalho da autora, também seria sem razão o choque pela sua honestidade intelectual diante as evidências anteriores de falta total de comprometimento da escritora com órgãos de ofício ou linhas de pensamento estigmatizado: Arendt, judia, era especialista em santo Agostinho e Kierkegaard, tendo escrito um ensaio sobre o pensamento do filósofo católico direcionado ao público protestante, e tendo escrito um belíssimo texto sobre o papa Angelo Giuseppe Roncalli, que bem poderia ter colocado a igreja católica de cabelo em pé ao colocar como título a ironia fina de "Um cristão no trono de São Pedro". A alta cúpula israelita, ao ver que a autora não admitia a cartilha da vitimização e da fácil alcunha de Eichmann como monstro, põe-se imediatamente a retalhá-la na imprensa mundial, cobrando da New Yorker a rejeição e recusa do restante dos textos sobre o julgamento. Como não deixaria de ser, Arendt passa a ser associada ao anti-semitismo e à traição ao povo judeu, o que seria alimentado mais ainda pelas relações mútuas de afeto e admiração entre ela e o filósofo Heidegger, tido como anti-semita aguerrido.
Saul Bellow escreveu que mantinha com Arendt longas conversas informais por restaurantes e bares destinados a escritores, em Nova York, em que Arendt lhe esclarecia tudo sobre a obra de William Faulkner. Sendo admiradora de Faulkner, não é para menos notar que as páginas iniciais de Eichmann em Jerusalém se assemelham no tom recolhido diante o opressor gigantismo ortodoxo dos tribunais às primeiras páginas do romance A Mansão, de Faulkne. Nesta última parte da trilogia dos Snopes, começa com o assassino de Flem Snopes sendo admitido pela corte de julgamento que o sentenciará; a madeira da bancada do juiz, as cadeiras de escoro alto empoeiradas de distinção, as batas dos oficiais da lei e a atmosfera hermética de respeito sagrado se encaixam com a descrição detalhada da sala de julgamento de Eichmann, em que os vários juízes se posicionam uma bancada acima do público, e onde à esquerda deles fica o reservado protegido com vidro reforçado em que o réu, de cara insofismavelmente cordial e disciplinada, espera sentado. Nessas duas obras vemos as motivações mais profundas que levaram ao crime, e aqui se trata da escrita sublime de dois gigantes das letras: Faulkner descrevendo que o mal é consuetudinário, ligado aos deveres do sangue, da família e da honra, que nasce junto ao desbravamento das terras e na construção da sociedade por sobre a selva incorruptível, que é fruto de desrespeitos sucessivos nunca digeridos mas alimentados no silêncio, e que muitas vezes aplaca o alvo que o originou quando este, pela velhice ou por uma calejada e involuntária sabedoria, já por si mesmo se penitenciou da maldade. Arendt conduz essa linha faulkneriana para uma interpretação universal da história, embasando todos os sinais apontados por Faulkner com a raiz unívoca da imensa capacidade humana pela veneração e pelo escamoteamento da verdade. Arendt diz, em seu revelador e desnudo ensaio sobre Heidegger, em Homens em tempos sombrios, que "a tendência ao tirânico pode se constatar nas teorias de quase todos os grandes pensadores (Kant é a grande exceção)". E por isso abjura que a única forma de se manter íntegro e lúcido no confrontamento com o mal é através da solidão inviolável do pensamento, a não-coaptação a nenhuma forma ou modelo ou moda ou tendência, a não aceitação de heróis, a não se ajoelhar diante os ditos grandes e poderosos, mesmos esses tendo o poder intelectual de um Heidegger ou a mansidão de um papa morto prematuramente, ou diante as idiossincrasias auto-protetoras de um povo ressabiado que sempre foi perseguido. Não se envergar diante santidades ou sistemas. O retrato que Arendt faz de Eichmann é sinistramente natural e límpido, esse pai de família exemplar, esse homem que em toda a vida leu apenas dois livros e por isso se via mais capacitado que os demais das facções hitleristas que não haviam lido nenhum, esse homem que, no início, se prontificou a ir contra o extermínio e fez esforços que resultou na salvação de várias vidas de judeus, mas que depois, pelo estado, pelo eufemismo da ordem social, pela visão acabestrada de um destino histórico nacional que só os muito enredados não viam se direcionar para a ruína, se transformou no mais exemplar funcionário do sistema. Eichmann, esse gênio do clichê, esse homem impoluto que nada tinha de monstruoso, esse reflexo preciso de qualquer um de nós quando pressionado pelos nós das forças da manutenção.
"Adolf Eichmann foi para o cadafalso com grande dignidade. Pediu uma garrafa de vinho tinto e bebeu metade dela. Recusou a ajuda do ministro protestante, reverendo William Hull, que se ofereceu para ler a Bíblia com ele: tinha apenas mais duas horas e para viver, e portanto nenhum 'tempo a perder'. Ele transpôs os quarenta metros que separavam sua cela da câmara de execução andando calmo e ereto, com as mãos amarradas nas costas. Quando os guardas amarraram seus tornozelos e joelhos, pediu que afrouxassem as cordas para que pudesse ficar de pé. 'Não preciso disso', declarou quando lhe ofereceram o capuz preto. Estava perfeitamente controlado. Não, mais do que isso: estava completamente ele mesmo. Nada poderia demonstrá-lo mais convincentemente do que a grotesca tolice de suas últimas palavras. Começou dizendo enfaticamente que era um Gottgläubiger, expressando assim da maneira comum dos nazistas que não era cristão e não acreditava na vida após a morte. E continuou: 'Dentro de pouco tempo, senhores, iremos encontrar-nos de novo. Esse é o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria. Não as esquecerei'. Diante da morte, encontrou o clichê usado na oratória fúnebre. No cadafalso, sua memória lhe aplicou um último golpe: ele estava 'animado', esqueceu-se que aquele era seu próprio funeral.
Foi como se naqueles últimos minutos estivesse resumindo a lição que este longo curso de maldade humana nos ensinou_ a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos." (Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, p. 274, tradução José Rubens Siqueira, Companhia das Letras)
Mais sobre Arendt, aqui.
O filme é como todo filme biográfico: fraco, cheio de lacunas.
ResponderExcluirNão li "Eichmann em Jerusalém", de forma que posso perguntar: Arendt não percebeu em momento algum que o julgado utilizou como estratégia de defesa por a culpa no Estado, enquanto, na verdade, tinha verdadeiro orgulho do papel que cumpriu não apenas como administrador mas um dos artífices da Solução Final contra opositores em geral e judeus em particular?
Arendt não viu com exemplificação de banalidade do mal o machartismo e a paranoia anticomunista que varreu os EUA nos anos 50 e se perpetuou até hoje, transformando todos os cidadãos do país em seguidores acríticos de uma doutrina oficial posta como palavra de um deus eterno?
O que ela diria hoje do homem médio norte-americano que, em seu barbacue de domingo, pede pena de morte a Assange, Snowden e Manning por "crimes contra a pátria"?
Ao escrever sobre o totalitarismo, não viu Arendt nas "democracias ocidentais" de perfil liberal as máscaras que são de regimes no mínimo autoritários que, de quebra, criam regimes títeres pelo mundo afoera, de perfil totalitário e assim necessários à manutenção de seus interesses fora de suas fronteiras "democráticas"?
Não seria boa parte da fama de Arendt decorrente de sua associação e defesa do modelo político e econômico norte-americano?
Que qualquer um, por mais inteligente que seja, como aparentemente era o mentor dela, Heidegger (aliás, representado no filme quase como um filósofo pateta e anacrônico em seu romantismo nacionalista pueril), não pode usar a razão qual um sofista, para referendar sofisticadamente o patrão que bem lhe paga?
Que a independência de pensamento de Arendt não era justamente um espelho da susposta independência de pensamento supostamente permitida na, er, 'América'?
No livro, Eichmann descarta a defesa, no tocante a negar seus crimes e procurar se safar. Ele os admite todos, e o que torna muito interessante é a forma em que isso vai acontecendo aos poucos.
ExcluirArendt escreveu muita coisa. Há textos sobre marxismo em "Compreender", também editado pela Cia, em que ela confessa seu grande interessa pelas ideias de Marx. Um desses textos se chama "Compreendendo o comunismo", sobre um livro de Waldemar Gurian. É de 1953 e a autora salienta que nada se sabia sobre o stalinismo real naquela época.
Sobre o americanismo, não sei o que o filme diz, mas não há nada que se possa atribuir isso nos textos de Arendt. Se ela optou por Nova York, é porque era esperta, e porque, desde que eu sei, não havia nenhum interesse da União Soviética em trazer para suas academias alguém tão questionador. Imagine o quanto ela iria durar, já que, em vez de optar ser estrelinha reverenciada pelo judaísmo, foi odiada por seu próprio povo?
Tenho base para afirmar que hoje Arendt é mais lida e tida como mais importante e influente que Heideggger, daí eu não ver essa relação de patronato entre ela e o filósofo.
Se Arendt viu tanto de totalitarismo nas sociedades ocidentais, o quanto não veria nas orientais?
Gostei de Tolstoi no lugar de Dostoievski nas fotos das camisetas do Vaticano para o Patriarca Russo, e achei muito boa a idéia do Hawking garoto propaganda da Nike (sério).
ExcluirO pior é que apesar de ter descrito e desnudado os grandes males do século XX em suas obras, eles permanecem vivos e infelizmente, penso, encontrarão mais e mais seguidores neste século ainda mais propício para tais idéias nefastas.
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Me metendo sem ser convidado: paranóia anticomunista? Ora, mais do que certo em repudiar por completo o comunismo e os comunistas, defensores do que se pensou de mais grotesco entre os homens. E McCarthy não estava errado em ver comunista everywhere, eles realmente tinham muitos espiões (e a Rússia tem até hoje, claro). Mas os americanos são acríticos a uma “doutrina oficial”? Como assim, Marcos? Doutrina anti commie? E o esquerdão Obama?
Não somente o americano comum, mas o cidadão comum de qualquer país, o homem massa comum que encontramos na fila da padaria, olhando impaciente o relógio, pede pena de morte por qualquer Zé que fura a Sacra Santa fila única. Por que o americano seria diferente? Hannah “passava a mão na cabeça” dos americanos, fechava os olhos pra América, seria isso?
Todo estado utiliza de autoritarismo, de mecanismo de defesa ante os outros estados (inimigos em potencial). Somente sem estados isso não ocorreria. Como é impossível um mundo sem um mínimo de estado, resta-nos ponderar sobre quais utilizam seu poder para impor suas vontades ao resto da população, e nisso a Alemanha Nacional Socialista e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas inegavelmente ganhavam por muito (e a primeira era uma democracia ocidental, não?). Ela escrevia quando os EUA já não eram mais liberais (no sentido que usamos, não no sentido atual por lá, que refere-se á esquerda democrata), mas era o menos pior dos sistemas políticos restantes.
Estavam todos querendo fugir da URSS, Shostakovich, Brodski, Soljenisquin, e o diabo, não seria a Arendt que iria querer ser uma intelectual do partido. Não dá para defender o comunismo nessa dicotomia. Quem não queria estar nos EUA nas décadas de 40, 50 e 60? Isso não é defender o capitalismo ou alguma noção de regime imperial: era uma mera questão de óbvio bom senso.
ExcluirEsquedão Obama? Então tá, para por aqui.
ExcluirCharlles, nenhum defesa cabe à União Soviética. Mas nenhuma defesa cabe também aos EUA. Nenhuma.
Eu sei. Meu pensamento é este também, sem maniqueísmos.
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