Para mim a escrita de Saramago foi uma chapa de ferro medieval, um antigo prédio lisboeta restringido a ser o refúgio da literatura, e a antítese de um velho escritor fracassado que perdeu seu enorme talento. Como a memória emocional dos cheiros, Saramago para mim ficou vinculado de forma inconfundível com esses três aspectos do modo como comecei a me aproximar dele, no começo dos meus vinte anos. Eu ainda não o tinha lido, quando li em algum suplemento literário que ele tomara para si todo um prédio em algum ponto de Lisboa e nele construíra seu local de trabalho: havia uma foto, ou mais certamente eu devo ter imaginado-a, em que tal prédio aparecia, meio em ruínas, incontinente em meio a uma rua onde as demais construções recompunham a linha natural das habituais atividades comerciais humanas, os escritórios de sóbrios e ocupados advogados portugueses, as casas de penhora com algum indivíduo de origem judaica, de monóculo de grau para examinar a fundo a legitimidade dos anéis de ouro de matriarcas decadentes, as tabacarias, as lojas de vestidos usados; absurdo anacronismo em que todo um pequeno prédio de três andares (acho, ou imaginei assim) seja dedicado apenas à atividade da escrita de um só senhor. A foto deveria estar em sépia, para aumentar em mim o impacto de que Saramago definitivamente fazia de sua vida o que queria, inclusive voltar a um estágio no tempo em que podia-se institucionalizar com lucro sua solitária arte intelectual; ou, pensando agora, a foto era de um azul escuro, tempestuoso, que ressaltava os tijolos e o ambiente de recolhimento em histórias onde todas as artimanhas sagradas do classicismo estavam bem urdidas nas mãos de um mestre; um mestre que fazia de Lisboa a sua Londres coberta por um fog, sua Lisboa do início de O ano da morte de Ricardo Reis, que se transformara no cenário da chuva universal, a chuva que eu sempre procuro, intuitivamente, em todos os livros, para me isolar debaixo de um cobertor de frente a uma lareira e me deixar levar pela voz do livro. Essa foi a primeira das apreensões correlativas que tive de Saramago, antes de ler uma linha que ele tivesse escrito.
A segunda impressão me veio quando eu estava em uma praça, em meus 22 anos, junto a uma moça que eu havia namorado por três longos anos e que agora pouco sei dela, a não ser que ainda vive e tem dois filhos crescidos. A tal moça e eu líamos um jornal local, que tinha um pretensioso caderno de cultura que se invalidava com seu tom de independência reverenciosa pela notória coaptação dos editores e da pauta com a propaganda dos governos da ocasião. Era um jornal comprado, diga-se de uma vez, de tal forma que o patrocínio público permitia que fosse entregue de graça em algumas casas e nos ambientes do funcionarismo estadual, embora essa gratuidade falsa seja dessas que no Brasil se prolifera e acaba por sair muito mais caro que se fosse adquirida pelas compras convencionais. Eu o lia esparsamente, com o indispensável ar de zombaria que me dava a idade, enquanto essa minha namorada, tendo descoberto uma entrevista exclusiva de um velho escritor regional, o fazia com diligente seriedade e em voz alta. Nesses três anos de namoro, ela já sabia o suficiente da minha paixão pelos livros, daí aquele rompante de locução em dar som às palavras decantadas do velho escritor que pretendia ser uma forma de carinho. O namoro estava pendurado por um fio desgastado por irrecuperável exaustão _ ela também levava a culpa da mesma idade leviana_, e não seria daquela maneira que ambos conseguiríamos algum retorno de substância: ela me afligindo os ouvidos e eu encenando uma educação de todo incompreensível por faltar em circunstâncias muito mais importantes de que a escutava com zelo. E essa agrura acabou reforçando indiretamente a força do que o escritor falava, ou, mais precisamente, a força do enorme fardo de sua derrota. O escritor se chamava Bernardo Élis, para quem eu nutriria um eterno respeito por três ou quatro contos monumentais se ele tivesse tido uma trombose aos trinta anos, após escrevê-los, ou sofrido um ferimento fatal em alguma briga de bar em uma eventual vida desregrada, que eu nunca soube se ele a tivera, o que não invalidaria a benesse de reconhecimento póstumo da ação da faca do inimigo determinando seu imortal silêncio ao perfurar-lhe a barriga, ou se tivesse partido para um exílio em algum local secreto e nunca desvendado e jamais tornado a escrever ou dado as caras em público novamente; mas como, em vez dessas venturosas possibilidades, ele deu ouvidos ao destino em morrer em uma idade acentuada, oitenta ou noventa anos, não me recordo, e, o pior, aproveitado esses anos todos sobressalentes para, de quebra, escrever uma literatura tão descartável e insossa que chegava a desmentir o mérito desses contos majestosos, eu não lhe reservava senão o leve aceno de indiferença cordial reservado aos símbolos da bandeira e da pátria. Mas o pobre Élis estava com o rabo da porca torcida e carregado de má intenção nesse dia, pois se pôs a uma lamúria e um choreiro do clichê escritor-genial-nunca-reconhecido-e-que-iria-morrer-na-miséria, o que leva ao distante Saramago acima que antes era o motivo desse texto: Élis disse não ter dinheiro nem para completar a coleção de obras de José Saramago.
Essa afirmação caiu como um bloco de cimento em meu coração em suspenso; devo ter pedido para que a ex-namorada, epíteto do qual não sabíamos ainda mas que toda a intuição rumorejava a querer nos revelar esse fato incontornável para um breve futuro (futuro que me traria três meses de intenso sofrimento de dor de cotovelo), pedido a ela, como dizia, para que relesse as tristes palavras de Élis, para confirmar a realidade inglória de que o altivo autor de três dos maiores contos universais havia, enfim, recaído nos escombros do recalque. Ele não tinha dinheiro para completar sua coleção de obras de José Saramago. Havia nisso uma quantidade inumerável de símbolos e interpretações que me impediu de fazer qualquer coisa naquela tarde a não ser me dedicar a desvendá-los. Não era uma simples reclamação. Élis deveria estar, nessa entrevista para um jornal desacreditado, voltando a seus terrenos metafóricos, a suas searas de sentidos subliminares. Na época eu me dedicava a economias hercúleas para comprar os caros livros de Thomas Mann, e a roubar, quando a antena de detecção de perigo me assegurava total incognoscibilidade, um ou outro volume de bibliotecas_ mas daí a achar que uma vida toda de trabalho e dedicação em qualquer ramo das labutas sociais não me acondicionaria ao menos a comprar todos os livros de meu escritor predileto, vigorava uma grande distância. Élis não tinha mesmo condições de entrar em uma livraria, pegar o Evangelho segundo Jesus Cristo ou Todos os nomes, e se dirigir com ele para a moça da caixa registradora, como poderia fazê-lo qualquer cordato funcionário de cartório ou assistente de oftalmologia, ou gerente de vendas ou um simples estudante que nas horas vagas cumpre os serviços de pro-labore em um colégio municipal, e pagar pelo livro?, ou Élis representava propositalmente nessas cruas palavras a imagem do artista mendigo de um conto de Tchécov, em que uma mãe deposita uma moeda na caneca do homem maltrapilho de capote contra mais um inverno rigoroso e, se distanciando, diz ao filho que tal homem era um poeta. Um ser sagrado cuja eterna funcionalidade póstuma confere a obrigatoriedade de ser relegado em vida por todas as instâncias do poder.
Eu nunca consegui desalojar Saramago de Élis, desde então. Em resposta ao pragmatismo impossível e descortês de Élis, passei a comprar tudo de Saramago que me caía em mãos, para provar ao autor de A enxada que mesmo um sub-empregado como eu era na época, ou um semi-desempregado, poderia, com empenho, ter todos os livros do romancista português. O propósito velado, escondido debaixo da ponta do iceberg de meu temor diante uma realidade profissional que me aguardava após os tempos de idílio da faculdade, era que, na hipótese de que eu me lançasse a ser escritor, se meu abandono a mim mesmo seria tão irresponsável a ponto de nunca me assegurar um outro serviço que me desse o que comer. Foi quando iniciei minha jornada pela escrita de Saramago, nos livros de capas de aço fosco publicados pela Companhia das Letras, algumas delas parecendo placas de ferro medieval, quadros misteriosos de lápis lazuli, que acentuavam ainda mais as idiossincrasias tão próprias de Saramago, a sua independência, o seu barroquismo, a sua completa literariedade. Como me enchiam de admiração aqueles primeiros livros de Saramago da Companhia, antes que o Nobel se aproximasse e com tal aproximação e as vendas exponenciais as capas passassem a ser mais aeradas, mais adequadas ao público jovem. Aquelas capas de ferro medieval, góticas, reservadas, meio que sisudas, inapreensíveis, como estampas de catedrais portuguesas do século XIV, casavam milimetricamente com o prédio de Saramago e com a escrita deliciosamente íntima e insolvível de Saramago. Ler o Evangelho em aço tinha um impacto maior, naquele meu quarto de estudante cujos rescaldos da separação de um namoro começavam a se tornar bem pequenos frente às possibilidades da escrita, nas cenas de José crucificado, de Jesus nomeando os nomes futuros de alguns dos tantos queimados pela Inquisição católica, no barco, com alguns de seus discípulos, no meio de uma terrível tempestade. Saramago não me fugiu ao raciocínio sistematizado por todos esses anos do papel do escritor em ser o oposto de Élis, em sua coragem de abandonar seu emprego de jornalista para partir do zero na literatura, no tudo ou nada, ou ganharia o mundo pela escrita ou sabe-se o quê estava lhe reservado, mas nunca reclamar, como se fosse seu o lema de Camilo José Cela, outro José e outro escritor renitente, que escreveu que sua frase de frontispício caseiro era nunca reclamar, mesmo que todas as reservas pareçam cediças diante a fúria do determinismo que investe do lado de lá das comportas do mundo. Saramago escreveu em sua linguagem, que não é perfeita, que espanta, que afasta os incautos, mas que é belíssima em sua sépia e em seu aço medieval. Mais tarde a ilha de Lanzarote seria mais um acréscimo em sua forma ousada de dominar o mundo, que eu vi hoje, deslumbrado ao assistir o documentário José e Pilar, eu que fujo da tela mas que hoje, felizmente, essas imagens frentearam-me inevitavelmente, as pedras e o ar de tormenta da ilha, os céus carregados, a Pilar com os pés descalços descansados sobre as pernas de Saramago, ambos assistindo à meteorologia da tv anunciando furacões para a noite, e ela estendendo o pescoço para olhar pela janela acima deles, do lado de lá balançando-se uma plantinha ornamental, olhando a solidão enriquecedora do deserto confortável onde moram os dois amantes, para estudar as tempestades, como quem olha se o ruído é do carteiro chegando. E esse é um entre tantos retratos fieis de Saramago, o escritor que vivia em uma ilha de tempestades e pedras, o autor da inesquecível história de Blimunda e do padre das máquinas voadoras, do homem duplicado, dos últimos dias de Ricardo Reis em uma dimensão de intensa poesia e verdade que só se conecta com a nossa por levar uma cidade com o mesmo nome de Lisboa; o autor da frase límpida e devastadora: "o homem mais sábio que conheci não sabia ler nem escrever".
Foi em 1999 que li Manual de pintura e caligrafia. Subi quatro longos lances de escadas, com um dos pés engessado, para realizar em um momento tardio o vestibular para o curso de história. Tinha o rosto cortado pelos estilhaços do para-brisas do carro acidentado, e um silêncio que me distanciava um pouco de tudo que me apontava ser o prenúncio de um novo começo, o começo de algo. Era um silêncio desejável e que me deixava bastante satisfeito. Eu não apostava que iria passar na prova, pois há muito não revia as matérias que candidatos bem mais jovens estavam bem mais preparados. Na redação, me veio a ideia reflexa do Manual. Nessa obra, o narrador é um retratista que coloca na tela o que os pais de família e empresários tomados por uma romântica necessidade de se modelarem desejam como realce de suas vaidosas características. Em segredo, o pintor faz um quadro de como ele realmente vê tais pessoas, que contudo, obviamente, ele nunca expõe. Escrevi um texto feérico com o mesmo tema, em que um pai refugiado em Berna, imprime para seu filho pequeno um mapa do país onde eles nasceram, que por acaso era o mesmo onde eu nasci, com fotos de frutos regionais e sorrisos e peles bronzeadas, conforme pedido pela professora da escola; mas, reservadamente, imprime para si um outro mapa que jamais mostrará para seu filho, coberto de fotos de crianças miseráveis, de fanáticos religiosos, de assassinatos, de futebol, carnaval e as loucuras de um país insofismável. Por esse momento, senti toda a plenitude do que é o envolvimento na escrita, que decretara a missão de vida para Saramago. Como me repudia a lamúria do fracasso, não seria demais terminar dizendo que a nota máxima nessa redação me fez adquirir a vaga do curso, ainda que não fiz rascunhos do texto e nunca mais tenha notícias dele. Foi meu momento de comunhão com José Saramago.
P.S.: ainda nesse mês, a Companhia das Letras completa em seu catálogo toda a publicação das obras de José Saramago, com os lançamentos de "Levantado do chão" e "Memorial do convento", títulos pelos quais espero para completar minha coleção (tenho o primeiro pela editora portuguesa Caminho, e o segundo pela Bertrand Brasil).
P.S.: ainda nesse mês, a Companhia das Letras completa em seu catálogo toda a publicação das obras de José Saramago, com os lançamentos de "Levantado do chão" e "Memorial do convento", títulos pelos quais espero para completar minha coleção (tenho o primeiro pela editora portuguesa Caminho, e o segundo pela Bertrand Brasil).
Belíssimo, Charlles.
ResponderExcluir.
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OLHAR DE SARAMAGO
by Ramiro Conceição
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Se soubéssemos olhar…: veríamos o outro,
porém primeiro nos perguntamos: há ouro?
Por isso que - tão estúpidos - somos cegos.
Grato, Ramiro.
ExcluirBom dia amigos
ResponderExcluirMEMORIAL DO CONVENTO-a mais bela história de amor que li até hoje, absolutamente genial!
LEVANTADO DO CHÃO-um monumento a um povo - o povo alentejano!Um dos mais belos livros de Saramago.
JOSÉ SARAMAGO-o melhor escritor depois de Camões!
Tenho dito.
Ó meus amigos e não conhecem o jovem escritor português GONÇALO M. Tavares...absolutamente genial, desconcertante é o termo que encontro para o caracterizar, leiam por favor: "MATTEO PERDEU O EMPREGO" , "JERUSALEM", que maravilha!!!
ResponderExcluirSaramago é um grande orgulho. Alguns dissidentes apontam Antonio Lobo Antunes como o maior escritor em língua portuguesa, mas Saramago acaba estando em posição de primazia indiscutível.
ExcluirRespeito muito o Tavares, SEVE, mas ele ainda não me convenceu (li o Jerusalem e o Aprender a rezar na era da técnica). Creio que sua grande obra está por vir.
Levantado do chão e o Memorial são incríveis, mas meu livro preferido de Saramago será sempre O ano da morte de Ricardo Reis. Eu amo esse romance.
ExcluirGostei da reflexão. Acabas que usastes talvez não de todo intencionalmente o rocambole da linguagem de Saramago.
ExcluirVou mais longe, gosto mesmo são das capas amorfas que a editorial Caminho fez para os livros que lançou dele em Portugal.
Abraço.
:-)
ExcluirTambém gosto da sobriedade das capas da Caminho, que são sempre iguais, só muda a cor. Mas prefiro aquelas capas da Cia.
Abraço
teu post é estupendo, charlles. li só o ensaio sobre a cegueira e um pedaço de intermitências da morte (a mesma toada me deteve, creio). quero ler o evangelho segundo Jesus Cristo - q achaste deste?
ResponderExcluirObrigado, arbo. O Evangelho talvez seja o mais intenso dos livros dele; como eu sempre gostei de romances sobre Cristo, meu deleite com esse livro foi muito grande.
ExcluirQuais outros romances sobre cristo você conhece, Charlles Campos? Também gosto de romances sobre os períodos bíblicos.
ExcluirEu comento direto sobre eles por aqui, Carlos. Os melhores que já li são:
ExcluirO mestre e margarida;
A última tentação de Cristo;
O evangelho segundo Jesus Cristo;
Barrabás;
ouça, charlles, meu amigo:
ResponderExcluirhttp://grooveshark.com/#!/search?q=either+end+of+august
Grande arbo! Tenho o vinil deste disco, e, como não achei o cd, tenho-o em download. Bruford é um de meus bateristas preferidos, o que o cara fez no Yes e no King Crimson não é brincadeira. E um exemplo de paixão pela música, pois ele deixou o Yes quando o Yes era uma das bandas que mais vendiam no mundo, para se dedicar com exclusividade ao Crimson, que era cult e vivia no vermelho.
Excluirmeu tio, q tem muitos VINIS, tem tbm. não é coincidência, claro, q neste momento eu esteja ouvindo crimson.
Excluirouvindo a wolf at the door na sequência, fico me perguntando, mas a conclusão q quer se levantar é de q a música é mesmo insuperável, os ouvidos é q são os grandes devedores de gratidão do mundo. sei de todo teu amor por literatura, o que reconheço da melhor forma aqui, mas...
ResponderExcluirMas eu adoro a música acima de qualquer coisa. Notou a enorme dívida que o Radiohead tem com o Crimson?
Excluir"O trabalho em uma boa prosa tem três graus: um musical, em que ela é composta, um arquitetônico, em que ela é construída, e, enfim, um têxtil, em que ela é tecida." Walter Benjamin, Rua de mão única.
é verdade.
ResponderExcluire, bá, boa sacada do walter.