segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O horror! O horror!



Dois mil anos com as comunidades proto-comunistas, a redenção dos miseráveis e oprimidos, a bem-aventurança dos pobres de espírito; dois mil anos com os mosteiros medievais, Agostinho, Michelangelo, Bach, Beethoven, Tolstói, Dostoiévski, a dialética superior mantida com os elegantes oposicionistas de Nietzsche a Papini; dois mil anos de ideias e fantasias e conjecturas geniais reduzidas a isso. Estranho foi me espantar, ou que seja espantável, o Grande Inquisidor. Será que a capacidade profética de Dostoiévski é tão elogiável assim? Será que mesmo naquela época não era óbvio que, se Cristo retornasse, seria aprisionado pelos mandatários do cristianismo e enforcado, ou eletrocutado? Não teriam nem a paciência de gastarem mais empreendedorismo romântico crucificando-o: bastava uma bala e o assunto estaria encerrado. O que esse desgraçado tem a ver com nossos negócios? O que esse filho da puta vem fazer aqui em um mundo que nada tem a ver com as tolices que propagou? Algum cristão, no limite possível do termo, com um pouquinho só de vergonha na cara e crítica, aguenta assistir ao pastor que enxuga o rosto com uma toalhinha e a dá para os fieis sem sentir um brutal nó no estômago? Digo cristão pois em um ateu tal cena não provocaria mais que um histrionismo de nojo diante a estupidificação humana; um ateu não tem a necessidade de aprofundar-se no estrago que um tal pastor provoca na complexa visão de um Cristo acima dessas coisas todas. Mas para um cristão esclarecido, que tem em sua longa cadeia pregressa Bach e Tolstói, a mulher adúltera do atire a primeira pedra, o Cristo que escreve na areia talvez como a profecia máxima de que seu reino só comportava aquela impossibilidade efêmera apagada no vento dos anos futuros; para o cristão que nada tem a ver com Malafaias e não sei mais quantos nomes bestiais, esse tipo de "homem de Deus" é um prego a mais no já muito sepultado caixão do cristianismo. Ver esse pastor da toalhinha, que é apenas um entre uma fauna de figuras deformadas pela ganância, a hipocrisia e a absoluta mediocridade, tem-se a certeza de que, se Cristo retornasse, esses elementos do status quo da salvação estariam na linha de frente dos que não relutariam um instante em apagar a mensageiro da frente de seus propósitos exultantes. O Cristo que pregou a pobreza e a aproximação com os doentes e ladrões, o Cristo da prediga inigualável do "sejam inteligentes", e do "simples como a pomba e cautelosos como a serpente", está tão confortavelmente situado numa distância dos desejos dos novos cristãos quanto a terra quadrada cujo avanço para além de um determinado ponto determinava a queda no espaço: nada é mais ultrapassado e batido do que um mártir espiritual que promete os portões abertos de um reino futuro, frente ao empresário metafísico que trabalha prontamente para tornar ricos neste mundo os que se dedicarem à bajulação ostensiva e às contribuições nos envelopes que ajudam a engrandecer o poder financeiro das igrejas. Nietzsche decretou a morte filosófica de deus no século XIX, numa reivindicação de uma instância de comprometimento maior com os poderes espirituais amortecidos por uma burguesia usurária e flácida; os pastores da toalhinha sentenciam a morte real do Cristo, numa concordância recíproca com os seguidores que só tem a capacidade de enxergar até onde vão suas ganâncias primárias e seus egoísmos animalescos. O Cristo desse novo milênio é o Cristo neoliberal que reescreve as linhas bregas que retratam aquele outro sujeito ridículo, um Novo Jesus capaz de uma simplicidade gratificante que arrebanha esse estágio perene de uma humanidade já desprovida por completo de transcendência e feliz com sua obtusidade e instintividade; um Cristo que faz as pazes com o bezerro de ouro e os vendilhões do templo e se atira a uma dança frenética de auto-caricata selvageria diante os títeres manipulados de um diabo carnavalesco. Os novos cristãos são iguais aos lobos: em formação de matilha só para os interesses imediatos da caça, para depois voltarem à condição de individualistas sem medo e sem moral.

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Ontem assisti aos líderes de audiência da tv aberta para ver a quantas andam o mundo de fora do bunker. No canal evangélico, notório segundo lugar de audiência, passava uma matéria centrada em uma espécie de pretendido novo ícone da juventude, um rapaz reptílico com tatuagens por todo o corpo, de uma feiura feroz e uma magreza doentia. Um desses artistas da música que convenciona-se chamar de MC. As cenas todas mostravam apenas o que o MC tem comprado com o dinheiro alto que ganha em seus shows: um carro de 160 mil reais, uma moto de uns 50 mil, um colar de ouro com pedras preciosas cravejadas de 40 mil, e assim vai. Tudo com a nota de compra atestada por um anêmico ser retorcido que mal consegue pronunciar uma frase coerente. Em dada hora, o repórter pega na mão a placa de ouro puro que o réptil usa no colar do pescoço e pergunta: "esse diamante tem passado por muitas costas de novinhas?", e o réptil responde, com uma malícia lúbrica que parece vencer o esconderijo dos grandes óculos escuros e o boné que é de um número o dobro da circunferência de sua cabeça (além de uma estratosfera mental de uso disciplinado de narcóticos anestesiantes de sua consciência já um tanto combalida): "Oh, se tem, mano!". Lendo através do véus, parece que o programa se esforça para tornar tal figura reverenciável, icônica, representativa de um pesquisado nicho de pessoas que responderam em questionários pagos pela empresa o quanto esperam que se faça para serem nababescamente distraídos. No canal campeão de audiência, que há décadas promove o que se tem que amar e odiar no país, o programa das famílias para as noites de domingo se inicia com o encontro entre uma importante cantora dançarina nacional com um porteiro de condomínio. O que esses dois tem em comum? O porteiro gravou um vídeo com uma música de sua autoria e enviou para a cantora, e, por uma providência mágica, a mesma que anda pelos fundos temáticos de todos contos de fada, a cantora se deslumbrou com a música e resolveu lançá-la em seu novo e bombástico disco. A mesma tv que canonizou Chico Buarque e Roberto Carlos, santificou Tancredo Neves e elegeu Fernando Collor como o Eliot Ness brasileiro. E depois não querem que a massa com rompantes de ódio que toma as ruas não depredem e não botem fogo. Como poder respirar um pouquinho só acima desse lixo se não for brigando pela superfície com paus e ponta-pés?

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Semana passada a editora dos Civita anunciou o fechamento de várias revistas do grupo, entre elas a revista Bravo!. Nunca fui adepto da leitura de revistas sobre cultura ou ideias ou história e filosofias, ao contrário de um amigo que é louco por elas. Quanto à Bravo!, em seus 16 anos de existência, tenho por mim ter comprado umas três edições, todas em rodoviárias e em substituição ao fruto de alguma estupidez de não ter me abastecido com um livro para matar o tempo da viagem. Assim como a revista Cult, que compro esporadicamente, sempre me arrependi do investimento de tempo e grana assim que lia as primeiras páginas dessas obras. Nada a criticar, já que é o padrão desses tipos de publicações no Brasil serem inofensivas e avessas a qualquer tipo de aprofundamento. Mas o fato de fingir não saber disso quando as retirava da banca era que me irritava_ acho que me curei em não comprar mais a Cult, depois de um texto chinfrim que nada acrescenta sobre Walter Benjamin e uma crítica sobre o livro de Dylan do Vila-Matas que o sujeito fica sem saber se, afinal, o resenhista achou o livro bom ou não. E quanto à Bravo!, agradeço o falecimento que tornará impossível daqui pela frente qualquer pecadilho incompreensivo de querer saber o que acontece nas noites da "alta-cultura" do eixo Rio-São Paulo. Mas o que me chamou a atenção desse fato foi a carta de despedida aos leitores escrita pelo editor da Bravo!, publicada no facebook do cara e no site da Carta Capital. Uma das causas das contas sempre no vermelho da revista, segundo seu editor, apesar de vender quase 30 mil exemplares mensais, era que não havia muitas empresas para preencher o espaço publicitário oferecido nas páginas da publicação. "Os grandes anunciantes costumam demostrar pequeno interesse por títulos dedicados à 'alta cultura'", escreve o editor, e continua: "'O leitor de revistas do gênero, sendo mais crítico, tende a frear os impulsos consumistas', explicam os publicitários, nem sempre com essas palavras". Baseado nessa premissa, se diagnostica muito da capacidade crítica das reconhecidas elites que leem a revista mais coberta de anúncios de carros, bancos e braceletes de ouro para presentear a amante, neste país.

6 comentários:

  1. Realmente não há como agüentar o pastorzinho suado, com uma toalhinha e garrafa de água na mão, gritando e expulsando falsos demônios no PALCO (não por acaso o “Bispo” R.R. Soares chama, precisamente, seu programa na Band de Show da Fé). Também não dá para agüentar essa Igreja Católica renovada, com músicas e danças para combater o avanço evangélico. Porra, anos de canto gregoriano, milhares de missas compostas por grandes músicos, o CREDO em latim (romanos) ou grego (ortodoxos) que sempre me faz cair em lágrimas e lembrar D’ele, simplesmente esquecidos, relegados a pouquíssimos apreciadores, escanteados para não afugentarem as pessoas ainda mais de suas igrejas, pois tais seres subumanos só querem mesmo putaria e coisas brilhantes e barulhentas. Recolhimento, ascetismo, temperança, nada disso vale, nada disso importa ou é desejável. Materialismo impera. E tudo isso é culpa do Sr. Lutero. Pau no cu.
    MAS PARA DE USAR “NEOLIBERAL”. Por favor Charlles. Ainda mais sem contexto (não consigo relacionar o pretenso neolib com o mundo ou Brasil de hoje ou sei lá quando).Gosto muito de ti, mas se continuar com essa palhaçadinha esquerdóide latino-americana terei de te matar ;D Mas a parte final do texto é demais.

    Sobre Dostoievski profeta, tem coisa muito boa aqui: http://oleniski.blogspot.com.br/2009/08/dostoievski-profeta.html
    Tudo o mais sobre Dosto e qualquer outra coisa que tem no blog é sensacional.

    O que anda me incomodando muito é que em meios supostamente intelectuais tem se aceitado de tudo da ~cultural popular~. A relativização do Funk como arte e meio de expressão é um exemplo. Teve aquele caso famoso recente da Usp ou Ufrj, não recordo, e já teve discussões em aula sobre isso que fui muito impertinente e do mal com o pessoal comunista-progressista anti sociedade patriarcal blablabla quero bolsa.

    Mas é exatamente isso que eles querem: acabar com a religião cristã; com a alta cultura tradicional, baseada no cristianismo; com tudo que impeça o estabelecimento de um novo mundo revolucionário socialista/comunista.

    Agora peço licença, tenho de trabalhar pro governo (ca)petista do Estado. Beijos para as moças.

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    1. Como Zizék diz, a própria palavra "capitalismo" ninguém usa mais. Neoliberalismo aqui é em sua concepção estereotipada mas nem por isso menos assustadora. Esquerdóide ainda assim é melhor que esquerdista.

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  2. Dostoievski não era um profeta, mas um grande observador das relações humanas.

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  3. Mas que maravilha de blogue.

    Eu que sou incapaz de sair à rua sem levar um livro às cavalitas estou a adorar este blogue que só agora descobri,graças a Orhan Pamuck.

    Um abraço

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