domingo, 4 de agosto de 2013

Jerusalém, a biografia



Esta extensa biografia sobre a cidade de Jerusalém parte de um pressuposto que de antemão se revela um fracasso: o de que, assim como é impossível escrever com fidelidade sobre a vida de uma só pessoa, devido aos infinitos ângulos de visão e as inúmeras discordâncias entre eles, é ainda mais inconcebível falar de uma determinada região do globo por onde a forjada concepção de história sistematizou a passagem de incontáveis indivíduos ao longo de dois mil e quinhentos anos. Diante essa magna pretensão de Simon Sebag Montefiore, o leitor se depara com a maiúscula incapacidade da memória em apreender a sequência de fatos compilados sobre heróis e assassinos_ e heróis-assassinos_, ao longo das 800 páginas de informação, notas, árvores genealógicas e mapas, o que gera a constatação de que Jerusalém é mais um compêndio sobre a abominação e menos uma biografia, que sempre deve estar ao alcance para a consulta digestiva sobre a incapacidade humana tanto para a clemência quanto para a compreensão. 

Este resenhador se recorda do mês em que lhe caiu em mãos a biografia do inconsolável naturalista Charles Darwin, nas linhas essenciais escritas por Adrian Desmond & James Moore, e de como ele dividiu sinergicamente a derrota do teólogo Darwin diante a verdade em sustentar a crença de que haja uma ordenação meritocrática diligentemente instituída que dirija a projeção cósmica do símio mais violento da escala animal pela pirâmide da existência. Ver a solidão impermeável a qualquer eufemização da filosofia em que o homem sempre esteve, pelos olhos de Darwin, custou meses a este resenhador para conseguir colocar as auto-apologias e o douramento da pílula em dias. Jerusalém não é recomendado para o padrão a que essa humanidade mostra se conformar nesses tempos de evangelismos laudatórios, políticas cultualistas histriônicas e o combate massivo contra qualquer fímbria de lucidez mantido pela diversão proteinizada da moderna tecnologia. São páginas cuja única sinalização involuntária de esoterismo é a ironia de que a cidade tida como a mais sagrada, no fim das contas, é tão indiferente para os desígnios de um deus quanto o é o mais sanguinário e facínora povoado de um remoto século argentino. Apenas que em Jerusalém a loucura atingiu uma revoada que teria sustentado poucos observadores locais em pé, desde os inúmeros cercos dos incontáveis povos invasores que reduziu a população ao canibalismo (a cena da mãe encontrada pelo exército inimigo, atraído pelo viçoso cheiro de carne assada, assando o próprio filho de três anos, é um entre vários convites pontuais ao conhecimento sem pudores sobre a espécie), passando pela época em que Cristo não foi sequer uma nota de rodapé autêntica desse pragmático lado de cá do espelho da história, até a reafirmação no tempo atual de que a ausência de deus é o que mais determina que políticos de usura voraz e assassinos sem escrúpulos subam em púlpitos sagrados para interpretar os desejos do insondável altíssimo. 

Em um texto de Borges, o grande autor devoto da estética arquitetural das cabalas simula a certeza da existência de deus pela disposição em que voam os pássaros ao se levantarem de uma praia; as páginas dessa terrível biografia mostram que o homem nunca foi sutil ou disposto a leves simetrias matemáticas para que não se deduza fortemente senão o oposto.

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