sábado, 28 de setembro de 2013

"Muçulmano"



Levo um livro de Primo Levi para o apartamento onde está internada minha esposa, na crença ilusória de que poderei lê-lo confortavelmente durante a noite, enquanto ela dorme. O apartamento é acolhedor, tem um ar-condicionado eficiente, uma pequena sacada de onde se pode ver os prédios de luxo, silenciosos, que circundam o hospital, e dois quadros nas paredes, um uma reprodução de Renoir e o outro de um pintor inglês que não consigo identificar. Há quadros por todas as paredes do labiríntico hospital; no extenso corredor circular pelo qual se passa, subindo os andares, para se chegar ao quarto, há cópias dos afrescos da Capela Sistina, e vários outros quadros renascentistas; a impressão é de que uma genérica intenção de piedade veiculada ao resguardo de uma força deística sobressai por sobre a coerência de um gosto artístico, como se o diretor da instituição tivesse dado liberdade aos funcionários em decorar as paredes e estes houvessem entrado em acordo sobre um senso comum estético, mas que teve a ponderação de não cair em um evangelismo pejorativo. Os quadros são ostensivos na medida certa, não fazendo ao passante se esquecer que se está em um lugar onde existe muita dor, sofrimento, lágrimas, mas também a adstringência da esperança e um sossego genuíno, contra o qual ninguém ousaria investir; chego a cogitar que a presença deles ali satisfaz plenamente a função da arte: de algum modo, eles me acalentam ao me fazerem pensar neles enquanto as enfermeiras entram para dar os comprimidos à Dani. Estranhamente, há dois quadros de artistas modernos logo no final do corredor, quando se está para sair pela porta da recepção; parece que um sarcasmo isolado quis colocá-los ali, onde a curva privilegia a sombra, ao contrário das obras mais acima que são tocadas pela luz natural que vem da incidência do sol em um arranjo tricúspide do teto feito de vidro colorido. Em um dos quadros vejo um porco negro, garatujado da maneira propositalmente tosca da escola moderna indeterminada da qual o artista faz parte_ um porco negro sobre um fundo ocre vazio, perpassado por algumas linhas. O outro quadro, que não me dediquei a espiá-lo com atenção, parece ainda mais abstrato. Deve ter algum profundo significado místico, alguma intrínseca mensagem estoica, penso, analisando que a plasticidade dos quadros não parece identificar que são os originais, que não se fez um favor a um sobrinho desenhista de um médico; deve ser de um artista de renome. Comento sobre essa profusão de quadros com a Dani e ela diz que o hospital é religioso, que veio-lhe um pastor conversar com ela, no momento em que estavam ela e a mãe, mas que em momento algum se ouve a citação específica de vertentes religiosas. Pergunto um "como assim? Não dá para saber se são católicos ou evangélicos?", e ela me responde que mal dá para saber com certeza se são cristãos. Isso me atiça a necessidade de perguntar mais sobre o que falara o pastor, mas ela está cansada, não pode falar muito, deve guardar o repouso, e eu me resigno.

No dia da cirurgia, havia um pianista na sala de recepção executando peças que meus ouvidos moucos prejulgaram serem de Schubert. Ele estava em uma ala interna de onde os pacientes ficam esperando suas senhas aparecerem no painel eletrônico, e eu fui procurando-o na raiz do som como quem quer provar para si mesmo que não está sofrendo de um ataque repentino de alucinação auditiva. Lá estava ele, diante um piano que parecia monumental na total inesperabilidade de se encontrar algo assim em um hospital, em um espaço retilíneo secundário pequeno, com cadeiras de espera de contra as duas paredes, no qual só havia uma velha senhora sentada mas que mal parecia se dar conta do homem de terno concentrado nas teclas à sua frente; um lustre elisabetano gigantesco de um dourado fosco, antigo e falso, estava pendurado bem acima do pianista. Sentei-me afastado da velha e do pianista e fiquei escutando a música, enquanto uma equipe médica abria a caixa torácica da Dani e lhe implantava uma válvula mitral de tecido orgânico no coração. Reparei que logo atrás do piano tinha uma lanchonete; só faltava vir uma moça de sainha colante me oferecer uma dose de uísque. Era assim a forma da administração de retirar o estigma relacionado a um hospital? Quadros, Schubert, um desvio sutil de percepção do classicismo retumbante do dia da Criação para a trivialidade deslocada de um porco negro que vigia toda pompa exagerada das sombras do labirinto circular. Um humor que se degrada em todas as escalas de peso, que não se presta ao riso por ainda estar-se preso conceitualmente à história dos palácios de amputação e confinamento da idade média, às quarentenas, as sangrias e os choques elétricos do que veio a se tornar quatro séculos mais tarde, mas que oferecia uma mudança radical de visão quanto à doença e o doente. Era uma outra comunicação que se fazia ali dentro, deportado do mundo lá fora_ o mundo em que, duas quadras ao lado do hospital, vimos, ao passarmos de carro, duas viaturas da polícia chegando para conter um tumulto diante um clube de futebol em que os torcedores, notoriamente difundidos pela imprensa como violentos, começaram a quebrar as janelas do clube e partirem ruas acima subindo nos jardins dos edifícios, tudo porque ocorrera alguma divergência quanto às trocas de quilos de alimento não perecível por ingressos da partida programada para o domingo. Eu recebia todo esse cuidado de forma impessoal, e só mais tarde viria a pensar nessas coisas; naquele momento eu só via, acriticamente, passivamente, um homem ao piano, executando uma música que parecia alta demais mas que nem disso eu me dava conta como algo proibitivo; nessas horas eu já me entendia como alguém que opta por um anestesiamento que, se acionava as enzimas eufemizantes certas para me narcotizar do andamento da realidade e propulsionar o tempo rapidamente para frente, não me impedia de tentar ler no semblante das enfermeiras que entravam na sala algum indício de tragédia, algum comunicado delicado que deveriam dar de forma lamentável mas imediata ao homem que estava sentado a um metro da velha e no outro extremo da hipotenusa onde estava o pianista. Meu cérebro não parava de trabalhar, por sob a narcose em que se transformara a pressão: em que nível aquelas pessoas estariam acostumadas com a morte para se poder ver algum traço de choque em seus rostos? A enfermeira que acabara de entrar, rindo e falando algo para uma das moças da recepção, saberia algo determinante para a minha vida?

A Dani passou três dias na UTI. Ela já é carimbada em suportar o terrível, sufocante e absolutamente cáustico ambiente da UTI. Quando saiu para o apartamento, sua mãe a acompanhou na primeira noite. Nas duas noites seguintes, foi a minha vez. Eu com o meu livro de Primo Levi nas mãos, que não pude ler nem a capa. O sofá do quarto, em que tem que passar o acompanhante, parece ser diabolicamente feito para impedir que se durma. É pequeno, e quando se consegue se ajeitar para descansar o corpo, a trave de madeira matematicamente situada abaixo do couro pega em alguma região letal das costas, independente da estatura que se tenha, que impossibilita o sujeito de andar normalmente pelo resto da semana. E mesmo que fosse uma cama king size, a Dani acordou várias vezes durante a noite, querendo mudar de posição na cama ou se sentar na poltrona para aliviar as dores e a falta de ar, e era de todo inviável que um de nós dois dormíssemos. A Dani mostrou uma alta resistência; ela tem 32 anos, mas passou apenas 3 dias na UTI, sendo que uma garota de 19 anos, que passou pela mesma cirurgia, teve que ficar por um período maior. Ela me disse isso sem o mérito mesquinho da competição entre convalescidos, apenas para se reconfortar de que as dores que sentia eram a parte mais desagradável, mas também a mais inofensiva do processo. Ao amanhecer, enquanto ela se esforçava para tomar um pouco do café insosso do hospital, ouvimos o silêncio ser violentado por uma voz feminina que vinha do corredor. Julguei que fosse alguma enfermeira desavisada e inconveniente que relatava algum evento festivo de seu final de semana, pois a voz era eufórica, começava baixa e trêmula e explodia em uma espécie de síncope que tinha algo de maníaco. Era como se houvesse um bêbada lá fora, mas que estivesse no período final da embriaguez para ser apenas constrangedor. Abri a porta e vi que se tratava dos gritos de dor de uma moça que dava seus primeiros passos fisioterápicos após a cirurgia, amparada por uma enfermeira. A dor era tão grande que não havia expressão vocálica que a comportasse, daí ser um grito cubista, que trazia um acento equivocado de alegria. A moça era uma loira muito bonita, usava saia jeans, deveria ter uns 25 anos. Todas as portas estavam abertas e haviam inúmeras pessoas saídas delas para vê-la, as portas que até então ficavam indevassavelmente fechadas e não deixavam adivinhar que havia pessoas atrás delas. A Dani identificou a moça como uma que estava na cama de frente à dela na UTI, que a enfermeira lhe havia dito que sentiria dores escruciantes pois abriram-lhe do lado, separando as costelas, para chegarem até o coração. Quando a paciente é aberta afastando-se as costelas, as dores são terríveis, havia gente que pedia para morrer atrás de alívio. A Dani foi aberta pelo esterno, o que acarretava menor sensibilidade pós-operatória. Acompanhei a Dani em seus pequenos passos pelo corredor, para trazê-la de volta logo pois suas vistas se escureciam de fraqueza. Durante a noite, mais uma vez, ela se levantava, se sentava, tornava a se deitar, ia continuamente ao banheiro sob o efeito do diurético.

Voltei para casa, a Dani teve alta e se encontra na casa da minha mãe. Vai ficar lá até o final do mês. Volto para lá na segunda-feira. Quando cheguei aqui, li em dois dias o livro do Primo Levi que o cotidiano do hospital me impossibilitara: É isto um homem? É um livro único, espantoso, poderosíssimo. Vou escrever sobre ele na semana que vem. Ele reforça a teoria de Tarkóvski de que a verdadeira força está na fraqueza, na fragilidade, na vergabilidade. Sua progressiva luta para se manter com uma filigrana do patrimônio espiritual do que constitui por milênios o homem é devastadoramente revelador. Por mais que pareça impróprio relacionar o tema de Levi ao que eu vi no hospital, ainda assim as evidências de uma mesma experiência de se chegar à verdade, símile entre um campo de concentração e uma UTI, me parecem válidas. Ontem comecei a ler um livrinho da Susan Sontag que tomei emprestado de um amigo, sobre o a doença e sua metáforas. Há um preconceito forte contra os doentes. Há o temor instintivo que meus filhos sentem quando fomos ver meu primo convalescido em sua casa, e que eles passaram a identificar relacionado ao cheiro de remédios que vinha do quarto. E há o preconceito estúpido, egocêntrico, bestial, do adulto que se anuncia em vantajosa oposição na escala da sobrevivência diante uma pessoa fragilizada pela doença. Desde que foi anunciado a necessidade da cirurgia da Dani, vimos diferentes matizes dessa segregação do doente acontecer com nós. Sontag trata, de maneira brilhante, sobre os estigmas que sofreram os tuberculosos no século 19 e começo do 20, e que sofrem os pacientes com câncer hoje e sempre. Mas esse estigma ocorre com todas as doenças, em maior ou menor grau, e ainda mais quando se trata de uma cirurgia cardíaca. Um conhecido meu, quando soube que a Dani passaria pela cirurgia, veio falar comigo e era todo cheio de uma hipócrita piedade, que mal escondia uma espécie de alívio, uma quase felicidade por detrás, um ponto de referência para valorizar o quanto sua vida era agraciada e profícua, o quanto o fato de ver o que para ele era a nossa desgraça salientava que ele e sua família eram seres abençoados.

E nisso se estabelece o que para mim é o maior atraso da questão: esse raciocínio exultante de sobrevivência remete sempre a um enjoativo e repelente deísmo meritocrático. Na página do Facebook desse conhecido, logo após essa nossa conversa, aparece a frase "nem tenho como agradecer a Deus por nos conceder tantas e tantas bênçãos", e a foto dele com sua esposa grávida já de três meses. A estultície de sua alegria é tão primária que o cega diante o fato de que nós temos dois filhos e a deficiência da válvula mitral da Dani se manifestou durante a gravidez, e que 90% das pacientes do cirurgião cardíaco que operou a Dani são mulheres que tem o mesmo perfil da minha esposa: tiveram reumatismo na infância e que, por alguma associação patológica, são perfeitas do ponto de vista coronário e poderiam continuar o sendo durante toda a vida, desde que não engravidem, mas que, se engravidarem, a doença se manifesta pela insuficiência da válvula mitral. Várias vezes eu tive que sair para passear com o Miles Davis, enquanto grupos de oração de várias denominações religiosas, que nem sabiam que nós existíamos, vinham fazer uma visita e orar para a Dani, depois que haviam sido informados que Deus precisaria ser reconduzido com maior apuro para um lar que, na falta desatenta Dele, resultou nisso, na moléstia, na danação, no expurgo físico e doloroso. Levi era apontado pelos outros prisioneiros de Auschwitz, na estranha hierarquia do campo, como "muçulmano", alcunha dada àqueles recém chegados que tinham tanta desprovidão de talentos e ausência total de indícios corporais de força e astúcia, que eram tidos como os primeiros a serem conduzidos para as câmeras de gás. Eram magros, com caras estúpidas, retraídos, fora do comum ou comum demais. Não pertenciam aos mais adaptados, preparados, aos mais astutos, ferinos e selvagens. 

Em uma cena inesquecível, Levi relata a volta de todo o seu grupo de 200 pessoas para o pavilhão, após terem passado pela seleção de quem iria para o crematório no dia seguinte e quem havia sido temporariamente poupado. Alguns dos que haviam sido poupados se refestelavam no chão agradecendo a Deus pela benção, sem a menor consideração de que de frente a eles estavam os que seriam mortos logo pela manhã e mal tinham a metade de um dia sequer de vida. "Se eu fosse Deus", escreve Levi, "cuspiria fora a reza deles". Assim me pareceu o relato preciso da Dani sobre a UTI, sobre a notificação da morte que ela ouviu sendo feita pelo telefone por uma enfermeira aos parentes da paciente, a sensação de pequeneza e vulnerabilidade, sobre o grande absurdo de se manter a crença de que alguém é melhor ou imune a isso, estando entubada e sedada. Assim me pareceu a frágil beleza da loira gritando de dor pelo hospital_ e como, em decorrência, ela me pareceu mais bela ainda, assim como a Dani, ao vê-la com os cabelos presos e lavados, me pareceu radiante de beleza.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Duas semanas

Quase duas semanas de aflição em muitos sentidos para mim, essas duas últimas semanas. Fiquei confinado na capital, e eu odeio, fico depressivo, ansioso e estressado ao extremo quando fico na capital. Mas tive que suportar. Apartamento, trânsito, a vida enlatada, burra, bestializada, elevadores, carrancas, os velhos moços de ternos. As 24 horas corriqueiras passaram a demorar dobrado. Um verdadeiro tormento. Fiquei preocupado com meu cão Miles Davis, sua solidão; me doía imaginá-lo com os olhos parados no tempo se questionando o que diabos havia acontecido. Uma noite, lá para quinta-feira passada, me tranquei no banheiro do apartamento da minha mãe e, debaixo do chuveiro, chorei. Se a Dani me flagrasse, iria questionar se eu chorava por causa de sua cirurgia, ou por causa de algum peso real que o universo havia enviado, alguma coisa com quilate e legitimidade. E eu teria que responder que chorava em torrente porque não suportava, enfim, ver minha irmã mais uma vez, ad eternum, fixada em seu i-phone. Me deu uma angústia colossal ver minha irmã se deitar de frente à tv ligada e pegar, com calma, o celular, para iniciar outro ciclo de digitações infinitas. A minha irmã, que direto confundo chamando seu nome quando quero chamar o nome da minha filha, a mesma garota que se deitou em meu ombro um dia antes da minha filha nascer e, do alto de seus 24 anos, me disse se, com o nascimento da Júlia, ela deixaria de ser a caçulinha da família. Tá bom! Sentimentalismo demais, e com um ponto de exclamação, sendo que o pecado máximo para um pretendente a escritor é o uso do ponto de exclamação. Mas que se foda. Fiquei essas duas semanas flanando pela cidade, pelos shoppings (aonde mais ir?). O grande triunfo é que passei a conhecer esse escritor maravilhoso do Le Clézio. Achei o A Quarentena pela metade do preço na fnac. Sentava-me em um barzinho, pedia uma cerveja preta, ou me sentava em um dos parques ainda não de todo dominado pelos usuários de crack, e me punha a mergulhar nesse livro majestoso. Que felicidade, nessas circunstâncias, encontrar sempre surpresas na literatura. O livro casou como uma luva com o momento de ansiedade por qual eu estava passando. Costuma ser assim, os tais sinais do universo. Não há como não acreditar neles, por qualquer lado que se veja; o acaso também tem muita eloquência. Eu ali esperando o dia da cirurgia cardíaca da Dani, me sentindo em absoluto fragilizado, e minha antena interna se dando ao luxo de sistematizar um código cosmológico. Fiquei distante da net, mas ainda assim pelo computador pude ver um documentário espantoso sobre a resiliência. Trata-se da história do líder da banda Pentagram, que eu nunca tinha ouvido falar, e o filme se chama Last days here. As primeiras cenas são muito pesadas, mostrando-o velho, raquítico, confinado na casa dos pais, o olhar paranoico, os braços enfaixados dos ombros aos pulsos, mas que em dado momento ele puxa as ataduras e se vê a carne viva por debaixo, lancetada por tantos picos de heroína de uma vida toda de viciado. Um Syd Barrett do hard rock. Um dia antes da cirurgia fomos à casa do meus tios, ver o meu primo Gustavo, sobre quem já falei neste post. Praticamente os médicos reconstruíram ele. Demos um abraço, ele se sentou no sofá deixando as muletas encostadas à parede, e tudo foi sorriso e descontração. Ele contou tudo o que lhe acontecera desde que caíra de uma altura de 8 metros em um viaduto da cidade, após a mureta de proteção ter cedido quando ele se encostou nela para falar ao telefone. Em sua cabeça, os cirurgiões colocaram a inacreditável quantidade de 48 parafusos, e do lado direito há um vago sem osso em que encostei a mão e senti como se pegasse na moleira de um recém nascido. Perguntei por quantas cirurgias ele havia passado nesses seis meses do ocorrido, ele riu alto, pediu auxílio do meu tio sentado ao lado, mas nenhum dos dois soube ao certo. Umas vinte, ou trinta, disseram, rindo com radiância. Mostrou os raio-x de sua perna direita: colocaram uma tala metálica por todo o canal do fêmur, mais uns pregos na rótula. Ele colocou minha mão em seu joelho para que eu sentisse a ponta de um dos pregos. Vai passar por mais umas cinco cirurgias, para acabar de consertar o crânio, repor o olho esquerdo que está exoftálmico, e retirar o prego da rótula. É incrível como ele passava uma imagem de liberdade e imunidade: afinal, tudo já havia acontecido com ele, não tinha como esperar pelo pior, porque o pior já havia chegado. Na fnac, eu li uma página de um livro do Orwell em que ele fala de seus tempos de pobreza extrema em Paris e Londres, dizendo sobre a adstringência da pobreza absoluta, o quanto ela traz uma sensação de leveza e destemor, pois não há mais o que temer quando já se está no fundo do poço. E o que pode existir de melhor do que uma vida sem medos? Assim estava o Gustavo, um rapaz lindo de quase dois metros de altura, que sempre foi a cordialidade em pessoa, de um coração gigantesco, sentado ali na minha frente com vinte quilos a menos e um sorriso de arrasar quarteirão. Vê-lo foi como retirar um mar de sombras da minha alma e ser arejado por uma brisa marinha e pelo sol mauriciano do romance de Le Clézio. Eu queria passar horas e horas naquela sala de um apartamento onde havia um convalescente e seu pai aposentado, ambos assistindo televisão com a plenitude despreocupada do casal do bem do filme Fargo. Mas estávamos ali eu, minha irmã, a Dani e minha avó Mirtes (ah, também tem a minha avó Mirtes, mais outro sinal), e é claro que tinha que levá-las para casa e que toda a visita tem prazo de duração. O Gustavo contou que, ao cair do viaduto, um casal de jovens parara o carro e lhe prestara socorro: a mulher massageava-lhe o peito para reativar o coração, e o homem lhe fazia respiração boca a boca, retirando o sangue que lhe entrara nos pulmões e o cuspindo fora. Se não fossem eles, o Gustavo estaria morto. Às cinco horas da manhã. No hospital, os médicos deram 1% de chance de sobrevivência para ele, mas a insistência de uma neurocirurgiã (uma baiana loira, que vive toda semana na ponte aérea entre Salvador e Goiânia, o que pincela com cores mais vivas esse enredo de coisas improváveis), que impôs à equipe que se fizessem as primeiras cirurgias no Gustavo, que lhe deu mais possibilidades de permanecer vivo. Gustavo ficou dois meses de coma, acordou retirando sondas e cateteres e tendo que ser sedado de imediato para que não pulasse fora da cama e desfragmentasse os arranjos para colar os tantos fragmentos do seu fêmur direito. Aos 32 anos, o Gustavo era alcoólatra, ainda que não estivesse bêbado na noite do acidente, e fumava duas carteiras de cigarros por dia. Ontem foi o dia da cirurgia da Dani, cinco horas de duração, e deu tudo certo. Ela se encontra na UTI; vai ficar lá por três dias, depois mais três dias internada no apartamento. Passei na fnac antes de vir embora para a minha cidade, e comprei mais dois livros do Le Clézio e um do Philip Roth, dois custando 20 reais e um 11 reais; na fila para o pagamento só havia eu, mas ao me aproximar do balcão um rapaz entrou na minha frente dizendo "não vou aceitar isso não, eu cheguei primeiro, estou com pressa"; eu não havia visto outra pessoa na fila, mas não parei para elucidar o que acontecera. Fiz um gesto para que ele passasse na frente, e pedi desculpa por não tê-lo visto, mas a moça disse que já estava passando minha compra e ele teria que esperar. O rapaz continuou falando não sei o que, eu lhe respondi que eu não iria caçar confusão por causa de uma fila, e uma fila em que havia só duas pessoas. Uma outra atendente o chamou e ele foi para o caixa ao lado. Cheguei em casa de noite, quase não consegui passar pelo portão pois o Miles Davis demonstrava tanta saudade que não me deixava entrar. Ficamos meia hora rolando no chão, nos abraçando e fazendo afagos, e saí para comprar duas kaftas de frango, uma para mim, outra para o Miles.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Do meu excedente de irracionalidade



Quem visse o pobre do Blaise Pascal saindo daquela casinha modesta de uma das vielas de Paris, na noite em que foi forçado por sua irmã a participar de uma demonstração de cura milagrosa, nos idos de lá de 1659, não perceberia que se tratava do mesmo matemático e físico que estivera por trás das inovações científicas da Geometria Projetiva e da Teoria das Probabilidades, entre outros achados de sua mente poderosíssima. A diferença é que estava transfigurado, provavelmente (até onde chega a minha imaginação de como fora aquela noite), com um olhar no qual cada milímetro a mais de arregalamento demonstrava que o que acabara de presenciar  lhe custaria mais horas de raciocínio para compreender que as gastas na abstração do universo das fórmulas e calculos binomiais. O que acabara de ver, no quartinho apertado, foi o que havia condenado como superstição tola e ilusão farsesca a vida toda, mas que, contudo, realizara-se em completa plenitude diante seus olhos. A mulher que estava na cama, seca e envelhecida pela doença, à espera apenas que a misericórdia do acaso lhe viesse arrebatar de uma vez do sofrimento, à custa das orações dos fiéis impotentes que lhe rodeavam, restabeleceu-se a olhos vistos, a saúde lhe voltara como se dependesse apenas de um afluxo de ar soprado para o interior de seu corpo.

Muitos anos depois, um dos mais eminentes gênios multimídia da História, um senhor cujo talento infinito em revolucionar todas as ciências conhecidas e do porvir lhe havia concedido o cargo de consultor  oficial de  monarcas de diversos Estados europeus, passeava pelas ruas londrinas. Era o ano de 1744 e o sueco Emanuel Swedenborg já obtivera todas as glórias em seus 56 anos de vida: desenvolvera projetos de hidrostática, inventara sofisticadas máquinas de mineração, desenhara esquetes militares que possibilitaria o impactante uso do sol como arma, além de outros feitos importantes em anatomia, astronomia e geologia. Nessa noite, foi seguido por um homem desconhecido até sua casa provisória em Londres. Recebeu-o cordialmente, não de todo assustado senão até quando o estranho retira o chapéu e demonstra sem meios termos ser Jesus Cristo em pessoa. Jesus viera-lhe pedir que instaurasse uma nova igreja afim de propagar a real palavra da salvação, tão profanada e vilipendiada pelo abuso centenário de eclesiásticos egoístas de todas as vertentes religiosas. Pelos próximos anos de sua longa vida, Swedenborg abandona a ciência e se dedica a escrever uma série de livros inacreditavelmente ricos em detalhes precisos sobre os outros reinos que existem do lado de lá da comezinha realidade terrestre. Tem o salvo conduto de trafegar livremente pelo Céu e pelo Inferno, e como um jornalista acostumado com a fria cobertura das guerras de distantes lugares do globo, registra tudo que vê. Sua grande descoberta é revelar que para a salvação não bastam a piedade e as boas obras: é imprescindível a inteligência. Só através da inteligência e do esclarecimento que o homem poderá usufluir da presença de Deus e da percepção do propósito da criação. Em um de seus livros, relata que um homem abandonara a cidade, seus pertences e o contato com a humanidade, e fora se refugiar no deserto. Por décadas esse homem se dedicara piamente às orações a ao martírio. Quando morreu, dentro de sua caverna cavada na areia, os seres superiores que organizam os planos celestes não souberam o que fazer com a sua alma. Em sua ignorância do isolamento, não poderia participar dos diálogos elevados e dos debates sobre as análises da criação com  os quais os anjos preenchem seus  infinitos cotidianos. Resolvem então criar um ambiente semelhante ao deserto no qual o eremita viveu na Terra, para que ele possa passar todo o resto da eternidade.

Por que resolvi escrever essas coisas? Lembrar desses velhos loucos, esses cérebros que um dia sucumbem à contração de seus superatrofiamentos e deixam de ser coerentes e produtivos para serem apenas divertidamente esclerosados? É porque, eu vivo no limite da exaustão. Meus dias são dedicados a ouvir, ler, participar coniventemente, levar adiante, a flagorosa bandeira da razão e da opinião concreta, sempre preparado e esperando ansiosamente o momento em que eu possa tirar do bolso e dar uma carteirada com minha insígnia de conhecedor profícuo da percepção legalizada. Me cansam os livros na estante, apesar de não saber viver sem eles. Me cansa o enorme vácuo que me cerca ameaçadoramente sempre que eu pego um desses livros para confirmar uma velha verdade estabelecida. Me dá a Tristeza Maiúscula Não Negociável ao reler, como ontem, "O Ano da Morte de Ricardo Reis" com todo aquele idioma impecável e fluido, toda aquela festa de frases assertivas e pensamento inesperado, e pensar: "para que isso tudo, se o homem desapareceu. Uns óculos postos sobre a mesa onde seus pulsos descansavam da labuta com os teclados, no futuro museu da lembrança de sua presença; e valeu alguma coisa? Um desconcertante fingimento de perenidade que nós fazemos por aqui, sua esposa e nós leitores, monumentos, bibliotecas, leituras coletivas, festas de homenagem em Paris e Parati, mas tudo uma merda de uma piedosa farsa para alimentar aquilo que os fatos desmentem de forma impiedosa, que tudo vai desaparecer sem controle, sem justificativa, sem álibe, e não serão novas edições luxuosamente encadernadas que mudará isso."

O fastio da voz imposta vinda da televisão onde está em seu horário muito bem pago o Doutor Phd com suas  respostas oráculares prontas. Ou a simples exaustão de me olhar no espelho e não ver nada, não intuir nada, além do que pode dar a superfície refletora. Aprender a continuar interpretando as coisas pelo filtro patenteado com as marcas registradas tradicionais, o cartel da Ciência e co., o monopólio da Igreja Ltda. Como disse o Cortázar (meu Deus, e vai-se embora a impressão de meu Cortázar, esse que sumiu sem deixar nada que desfragmentados vestígios orgânicos no solo argentino), a vida toda não passa de um sistema de acondicionamento em que tem-se que aprender a aceitar a eterna ponta da bota acertando todos os dias os nossos pobres cus, a ponta entrando cada vez mais para dentro dos nossos cus desprotegidos e arredios. E a ânsia que não desaparece _ se pelo menos tivessem nos dado uma desesperança verdadeira e definitiva _ de que um dia encontraremos o Reino, seja por qual caminho desarroado e impróprio, mas é a percepção do Reino que nos move a construir parábolas de justiça (Kafka), a nos compadecermos de Odete tão-sem-sorte-porque-lhe-abandonou-o-marido-e-as-filhas-morreram-de-varíola, a enviarmos uma carta anônima onde se destila com uma sinceridade terrível o desabafo de que por detrás do ódio fiel e irremovível a que dedicamos a nosso inimigo esconde-se um amor de impossível reconciliação, Ou conquistarmos o Reino à marra, através do assassinato, do alcoolismo (todo bêbado é um místico), do homossexualismo, das drogas, da ascepcia radical, do suicídio sincronizado pela liberade de um país, pelo futebol ou pela dança cutuchama dos índios Anhãnhãnhãs.

Entrar em cada igreja dos territórios conquistados e fazer uma oração para cada deus desconhecido, como fazia Alexandre. Passear pelas charnecas inglesas, encostar a bicicleta nos muros de pedras, e se enternecer com a sacralidade do silêncio dos velhos templos milenares, como fazia Bernard Shawn. Oferecer um galo a Asclépio em benefício de sua alma, como solicitou que lhe fizessem o Sócrates com a cicuta passeando em suas veias. Abraçar o cavalo alquebrado e trêmulo do cocheiro desalmado, e se identificar com a alma legitimadora do animal, como o fez Nietzsche. Olhar para seu corpo ferido atirado no chão, do alto dos obuzes e do campo em chamas, como o fez a flamante consciência de Hemingway. Levantar a cabeça do travesseiro para ver, numa noite tristíssima de solidão inconformada de 1999, a aparição do filho abortado que poderia ter sido mas não foi, o espaço sem face de um adeus que perdoava.

Swedenborg e Pascal talvez tenham contribuído para trazer a intuição de que, se somos destinados ao nada ou ao Reino, o caminho que seguimos até agora tem sido um atroz acúmulo de erros que não faz justiça nem à maravilha da própria fugacidade. Como disse Salvatore Quasimodo:

         Todo homem está só no coração da Terra, trespassado por um raio de luz; e de improviso, é noite.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Homo ridens



Por natureza e por pressão das circunstâncias sempre fui um cara muito bem humorado. Minha esposa diz que eu excedo, muitas vezes. Gosta de contar às amigas fatos isolados que dá um nó na cabeça das coitadas para imaginar alguma graça por detrás da minha aparência temível. Seu preferido foi um dia que fomos comemorar nossa data de casamento em um restaurante italiano, em que comprei um vinho do porto e entrei na frente dela, que levava a garrafa, e fui direto ao garçom perguntar: essa moça pode entrar com essa garrafa? Na juventude passava horas inventando piadas de gago para antecipar-me aos colegas. O humor como sobrevivência. Quando trabalhava num cartório me impus um dia do começo ao fim de estóico humor para aguentar o tédio, e na primeira hora, quando caminhava para o trabalho todo fornido sob a pressão de me manter leve, um bezerro que estava na gaiola de uma caminhoneta estacionada (que desde a esquina distante vinha me encarando em desafio) me taca uma bostada na cara assim que passo por ele. Havia um sem número de pessoas sentadas em frente à casa, e todos caíram na gargalhada. Eu, com o firme propósito na cabeça, fiz que nem foi comigo, a bosta verde lustrosa e de uma beleza surrealista escorrendo pelo meu pescoço até a camisa. Entrei no cartório, cumprimentei os colegas, me juntei ao grupinho do café dividindo as impressões do fim de semana, todos boquiabertos e se entreolhando espantados sem dizer nada, e eu rindo e sendo o mais cordial possível, com aquela excrescência secando na cara. O humor sempre me pareceu assim, uma região solitária, onde você assume a coragem de se revelar por inteiro sem medo: você não quer competir porque observa tudo de uma altura que dá a devida medida ridícula das coisas.
                  

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Bestas honoráveis



Se naqueles quatro meses que durou a fase mais terrível de seu sofrimento, o tio Márcio de 35 anos tivesse se apegado à decisão de que não havia mais motivos para continuar vivo após o pedido de separação litigiosa de sua esposa, teria evitado que o tio Márcio de 13 anos depois se tornasse um dos advogados mais ricos do país. Olhando do alto de sua condição estabelecida de sobrevivente muito bem sucedido, hoje deve lhe parecer uma das coisas enigmáticas daqueles anos já  por natureza  estranhos ter confiado a um trio composto por duas de suas irmãs e um pirralho de quinze anos a chance de lhe dissuadir de que  não haveria outras hipóteses que a de um conformado e alentador suicídio. E o pirralho dessa história era eu. Não sei qual dos atributos da minha distração caiu na má interpretação de minha mãe e de minha tia Tânia para que me escolhessem como espécie de guarda-costas do tio Márcio, vigia sentenciador e "cagueta" dos seus menores movimentos. Se o tio Márcio, no restaurante aonde íamos os dois jantar (eu comendo pela primeira vez língua de boi ao molho madeira, ele com o prato intocado), mostrava-se uma fração a mais além da introspecção dos que imaginam outras funções para as facas por sobre a mesa, era motivo para reportar minuciosamente o fato às duas irmãs: como estava seu olhar, se voltado totalmente para dentro ou se houvera alguma margem de interesse para os objetos e circunstâncias do ambiente, se ele falara alguma coisa, quantas vezes suspirara. Como ele executava os passos na caminhada ao largo da represa perto do apartamento, onde os corredores do cooper cortavam em sentido contrário ao nosso como lampejos coloridos que reafirmavam sobre nossa dupla taciturnidade a prevalência da saúde urbana; ele com o paletó amulambado, eu com o uniforme de colégio suado _ me tornaram tão comprometido  que me passava inadvertidamente a desatenção à higiene dos que pouco faziam caso com a existência. Minha mãe e minha tia de certa forma lamentavam que o agente mediador entre o tio Márcio e a morte padecesse da limitada experiência dos 15 anos, não tivesse bagagem suficiente para enxergar por debaixo do mosaico de homem traído os sinais significativos, as emissões de dor que partiam de sua alma arruinada. Elas tinham que acrescentar por conta própria o que vazava pelo filtro da minha infância e ficava faltando na compositura do retrato completo.


Uma das minhas suspeitas do por que o tio Márcio só tolerava (ou fingia tolerar, para manter o pouco de atenção às exigências familiares que ainda tinha que ter) a minha presença nesse dias, era a de que as vidas pessoais de suas irmãs evidenciavam que elas estariam defendendo o lado errado da contenda. Por minha mãe ser uma divorciada com dois filhos, e a outra irmã uma mártir do casamento suportando o marido alcoólatra, pela fidelidade compulsória ao Sagrado Sofrimento Feminino, as duas no fundo dividiam a alegria libertária por sua esposa ter-lhe pregado um par de chifres. Mesmo em meus 15 anos, a insurgência da verdade de gênero do Eterno Macho Dominador que falava em meu sangue me permitia interpretar as vezes em que meu tio firmava o olhar nas duas e um tremor de medo passava por seu rosto. Elas tinham com ele apenas o compromisso formal de impedir que o sofrimento fosse insuportável a ponto de lhe levar ao suicídio, mas o que havia abaixo desse limite mensurável em flagelo didático deveria ser bebido por ele até a última gota. Elas se referiam à sua esposa com toda a sinonímia à disposição do consolo _ o que não se importavam que eu ouvisse _ : aquela vadia, aquela puta devassa, a biscate desavergonhada, a mulher que havia colocado a buceta à frente da família. Era um teatro que, à maneira de Sherazade em ludibriar com as artes de contar uma história por noite o sultão de tirar-lhe a vida, elas encenavam para meu tio o que só era suficiente para mantê-lo vivo. (Isso é tanto verdade que hoje, as duas são fervorosas amigas da minha tia Valéria, a ex-esposa do tio Márcio.) Por isso então eu, com minha cara de alienação, meus modos reservados e meu coração cheio de amores platônicos, era o único elemento daquele ensaio de psicopatologia cotidiana que meu tio via como o que carregava menos conotações de justiça feminina e culpa.

Nesse fim de ano que eu recordo como um dos mais chuvosos e cinzentos, minha mãe, minha irmã e eu estávamos instalados no apartamento de minha avó que morava nos EUA, devido ao incidente com o Césio que fizera com que interditassem nossa residência original, e meu tio Márcio se mudara para lá depois que a tia Valéria lhe anunciara querer o divórcio por estar apaixonada por um médico carioca cinquentão que conhecera num congresso. O apartamento de minha avó _ ironicamente, também ela havia deixado o país  trinta anos antes por ter descoberto que o marido estava tendo um caso com uma das empregadas do casarão colonial onde viviam em Minas Gerais_ estava se tornando o refúgio oficial de parte da família; de tempos em tempos alguém batia na porta da minha mãe solicitando as chaves por duas semanas, uma tia que tinha que fazer hemodiálise, um outro que precisava vender uma casa, outro cujo caráter ubiquamente conhecido requeria a sensatez de não se perguntar o por que precisava se esconder por algumas semanas. Entre esses exilados, alguns dos quais compartilhei  a presença naqueles meses em que o prosaísmo sinistro de um acidente nuclear havia acontecido sob nossos narizes, o tio Márcio era o mais triste, o mais deslocado, o que transparecia o que nos outros era a verdade disfarçada com desmascarável laconismo: estava ali pela lucidez insuportável de se ver como um pai ausente e um marido sem a capacidade de carinho, um homo laborians comprometido animalescamente com a sobrevivência social, mas cujas portas adentro de sua casa revelavam sem eufemismos o que não escapava nem a suas irmãs, o direito outorgado a um estranho a vir substituí-lo no que fracassara de maneira tão inexorável.

                                                                      * * *

Treze anos depois ele se tornara obscenamente rico. Ganhara um ação histórica contra a Petrobrás, e os donos de postos e refinarias de petróleo que o contrataram abarrotaram sua conta com quarenta milhões de reais de honorários. Escrevera uma matéria de duas páginas inteiras para a Folha de São Paulo explicando em linguagem despermeabilizada de juridisquêz todo percurso burocrático da aventura. Até seus detratores e os ascetas ao dinheiro estudavam suas palavras na busca dos sinais da predestinação. Quando me chamara para conversar, dividi na minúscula saleta de espera de seu escritório, num edifício destoante que ganhara a mítica justificativa de ser uma camuflagem, o espaço joelho a joelho com senhores de terno e pastas de couro, alguns com o desespero indisfarçável do empresário falido atrás de um empréstimo, outros com as insígnias vocabulares dos desembargadores. Fiquei uma semana em sua companhia, dormia no condomínio fechado onde ficavam em perfeita plenipotência fotográfica a sua nova esposa e seus outros dois filhos, aguardava nas salas ao lado da sua até que o expediente findasse, me entupindo de café na máquina de expresso. De tardezinha íamos a um clube fechado onde na mesa ampla senhores de bermuda esporte e os rostos vermelhos saturavam-se de whiskey. Cada um tinha uma moça de seus dezessete anos do lado, que definitivamente não eram suas filhas. Uma das moças estava acompanhada pela mãe, uma senhora que havia vestido sua melhor roupa e não se continha de felicidade por sua filha ser a escolhida, nenhuma delas se importando que o homem às vezes falasse com a esposa pelo celular. Meu tio era uma espécime diferente de besta honorável, não era imune ao universo de macho alfa para o qual sensibilidades eram atrasos na obtenção de todo hedonismo que o dinheiro tinha para oferecer nas horas de folga do cotidiano acirrado em que tinha-se que obtê-lo, mas ainda via em seu infinito traquejo e sua genialidade em angariar simpatia o menino provinciano, o cara simples que em caminhos paralelos teria conseguido ser feliz com bem menos que isso. Ao mesmo tempo que interrompia a conversa séria com um desembargador, num corredor do Centro Administrativo, para apresentar-me como seu sobrinho veterinário, eu o ouvi instruindo taxativamente sua filha, que lhe insistia por telefone que precisava levar o bicicleteiro que havia atropelado para um hospital particular de ortopedia, a deixar que o SAMU cuidasse do caso, "quando ele descobrir de quem você é filha, vai pedir uma senhora de uma indenização". Em sua cadeira rotativa ele me deu um conselho que deve estar talhado em madeira na porta de entrada de seu santuário íntimo: "a gente passa a vida toda que nos resta tentando consertar as besteiras que fizemos na juventude". Anda hoje penso o que teria me salvado da proposta que me fez, em meus trinta anos, de estudar o curso de direito totalmente bancado por ele, e ser um de seus estagiários. Se não tivesse sido a aprovação no serviço público, qual  outro fator inviolável teria feito com que eu virasse as costas para a porta de seu escritório e seguisse a minha própria vida ?

(Publicação original, com comentários aqui.)

Saruê



Neste feriado ele recebeu em casa a mãe, a irmã e uma tia. Vieram na quinta, de ônibus, e foram embora na tarde de domingo (elas tem muito medo de dirigir em rodovias). O clima da casa ficou totalmente feminino, com sacolas de presentes, risos parenteseando fofocas, receitas de tortas holandesas sendo postas na prática na cozinha, coxas de frango assando dentro de pacotes plásticos de tempero pré-fabricado, conversas prolongadas noite adentro, com todas deitadas na cama de casal (todas mais o Eric, seu filho, que diplomaticamente tinha que deixar o pai sozinho na biblioteca dos fundos e interagir com a algaravia da parte da família que vem de dois em dois meses). Ele fica muito deslocado nestas visitas, e a grande bênção é que todas não dão a mínima para ele, o que lhe permite uma adstringente invisibilidade. A Júlia se esquece tanto do pai nestes momentos que por vezes tropeça nos seus pés e se levanta rapidamente, tomando o rumo da balbúrdia com algum pano de mesa ou camisa suja que retirou de algum lugar e revestiu com eles a cabeça. Nesses paradoxos do caos, nesse feriado ele teve muito tempo livre para ficar consigo mesmo e botar as leituras em dia. Teve tempo de sobra para compensar certo distanciamento que vinha tendo com o Miles, e que o deixava preocupado por notar nele um recuo meio depressivo devido à sua omissão involuntária. Fez bastante carinho no Miles, saíram para passear de carro e à pé, e retornaram às brincadeiras de rasgar sacolinhas e atirar objetos para o cão ir buscar. Levou uma bronca tremenda da Dani por ter deixado o Miles rasgar uma revista velha que ela ainda não tinha lido, e por lançar uma bandeja de plástico que achou ter sido escorada na pia para ser jogada fora, e que o Miles destruiu em prodigiosos vinte segundos de alegria furiosa.

Na sexta-feira ele comprou um Gato Negro e foi bebê-lo à noite numa pracinha desolada em frente a um templo desativado da Universal. Sentou-se no banco com a garrafa aberta e com um copo plástico, e bebericava o vinho enquanto via, enlevado, o vento frio revoar as árvores e as pequenas peças de lixo da calçada. Estava absolutamente sozinho e afastado dos sons de festa de quatro quadras mais para baixo, na praça central. Estava decidido a abrir aos poucos a sua sensibilidade alterante à bebida, coisa que imaginava ter voltado à estaca zero devido aos tantos meses de abstinência_ as últimas garrafas esvaziadas o pegavam no final mais sóbrio do que antes, atestando que ou ele avançava para novos estágios de subjeção alcoólica ou continuava a beber apenas pelo sabor das uvas fermentadas_, pois queria apreender sem pressa o que aquela noite e aquele deserto tinham para lhe dizer. Os altos vidros do templo permaneciam soberbamente imóveis ao vento, conservando um sobrancelhamento indiferente ao musgo que crescia a olhos vistos nas bases das paredes e das teias cinzas proliferadas abaixo da cornija da frente.

O fato desses vidros estarem intactos numa praça conhecida como Praça da Maconha deveria ter motivado o pastor desistente a reavaliar com mais fé a persistência em angariar um rebanho financeiramente viável. O próprio banco no qual estava sentado atestava que a turba invisível que agia de madrugada não costumava ter tanto respeito por objetos não vigiados: faltava-lhe duas traves de madeira abaixo de onde estava sentado, de modo que seus glúteos estavam suavemente afundados para baixo. No meio desse devaneamento vê um vulto caminhando de frente ao templo. Arregaça os olhos e percebe ser um homem que poderia ter qualquer idade acima dos 60 anos. Andava furtivamente e com a clara consciência de que havia alguém ali que logo iria vê-lo, e quando entrou sem direito a dúvidas dentro do ângulo da sua visão, adotou uma atitude misto de criança e um bicho silvestre qualquer interessado em aproximação. Usava uma camisa de mangas compridas que ia até os pulsos, e uma calça de flanela desgastada, mais umas botinas bege que lhe davam ainda mais uma áurea de animal híbrido, fruto de algum cruzamento improvável que determinava que aquela hora era a única ideal para que desse as caras no mundo. Quando completou seus passos estudados em linha reta, fez uma curva rápida para a rua e veio cordatamente se sentar no banco ao lado dele. Tudo sem o olhar; revirava a cabeça observando como se pela primeira vez as árvores da praça e ele notava o brilho prontificado na periferia da pupila onde ele estava instalado. Tinha um rosto desmaiadamente servil, que atiçou nele fundamente a curiosidade. Ele não estava querendo companhia, mas algo no rosto dele, que não conseguiu firmar quando dava seus passos inseguros e bambeantes, o instigava. Parecia para dentro, em um primeiro momento, com alguma deformidade inapreensível. Na faculdade havia visto cães com os rostos mutilados a tal ponto que os zigomáticos e as cavidades nasais ficavam expostas, e o velho gnomo passava essa suspeita. Mas ao mesmo tempo sabia que sua inofensividade era tanta que não comportava nenhum grau de tragédia mais acima de uma solidão destinada aos bobos. Lembrou de um marsupial típico do cerrado, um ratinho descabelado e maltrapilho que poderia viver cem anos devido a sua total fealdade estragar-lhe para sempre como presa, e lhe veio a certeza de que um saruê havia se metamorfoseado em humano naquela noite onde o frio de desolação escondia enfim uma melifluidade que lhe escapava. Vai ver o pastor fez mesmo bem em sumir dali, pensou, pois no momento nenhuma inspiração erraticamente eclesiástica o despertara para o fato de que talvez se cumpria alguma maldição divina por estar quebrando a promessa feita com seu rosto nas mãos piedosas de sua esposa de que não voltaria a beber.

Mas teve a oportunidade de olhar o rosto do velho e constatar que o estranhismo era que seus ângulos magros faziam associar a algo da prontificada lealdade de um cão. Percebeu que ele era bem mais velho, 70 anos, talvez 90 anos bem vividos de total humildade saruênica. Foi tomado de um mau-humor irrequieto, pensando que ele deveria fazer o favor de não perturbar senhores incautos que se aventuram em praças da maconha, nas quais nem a interseção de duvidosas forças de deus havia surtido efeito, para ficar só, inteiramente só. Ele sentia o vinho enlanguescer os caminhos arteriais até o cérebro, e se ateve a seu direito de incomunicabilidade. Cinco mulheres e um guri barulhento não haviam conseguido tirar-lhe de seu silêncio em sua própria casa, não seria um protótipo caboclo de Smigol que faria isso. Em outros momentos adoraria falar com ele, mas não aquela hora. O velho, que também o fizera crer que se falasse notaria sua voz um tanto anasalada (um fanho e um gago numa noite solitária), contrariando as suas expectativas, não lhe dirigiu uma palavra sequer. Ficou em absoluto silêncio, de braços cruzados olhando à frente a rede oceânica de sombras e ventos.

Voltou dali uma hora para casa. Quando se levantou e entrou no carro, olhou pelo rabo de olho que ele o ignorava combativamente, mas conservava uma calda de sorriso no canto da boca para quaisquer recaída diplomática de sua parte. Na manhã de sábado sua esposa o acorda no colchão de solteiro na biblioteca e diz que o pai dela estava na esquina mais longe aqui de casa, esperando que ele levasse as crianças para ele as ver. Mas que diabo, resmungou, por que o Seu Gercino não vem aqui e entra para ver as crianças? A Dani responde que é que seu pai estava com o Seu Juvenil, e esse se negava a entrar na casa desde que viu o movimento e constatou que haviam visitas. Seu sogro, o seu Gercino, foi diagnosticado há mais de dois anos (seis meses antes do nascimento da Júlia), com um câncer terminal, que se criara em um dos rins e se proliferara para fígado, estômago e intestinos. Os médicos lhe haviam sido francos e dito que a quimioterapia só iria apressar o processo, que ele voltasse para casa, comesse e fizesse de tudo, para aproveitar os poucos meses que lhe restavam. Ele ficara em profunda depressão nas primeiras semanas, chorando pelos cantos. Aceitou participar das sessões de acompanhamento psicológico do hospital, no qual conheceu o Seu Juvenil, um mulato de mesma idade que ele, que havia tido seis tumores no maxilar, devido ao tabagismo de toda a vida, e cuja excisão cirúrgica lhe levara o queixo. Tornaram-se amigos inseparáveis, ocupados em longas viagens para pescarias. Seu Juvenil era um homem curiosamente assimétrico, que afrontava a perspectiva mesmo para os mais preparados de ante-mão para a confrontação com o seu problema. A falta do queixo tornara difícil entender suas vocalizações, que eram muito abafadas e despendiam o odor de nicotina de décadas que transvertia os ares do ambiente. Meses depois da remoção dos tumores, uma nova massa compacta brotou na pequena parte que lhe restava do queixo, onde antes ficavam os dentes sisos, e crescera tanto que dera uma aparência tão mais distorcida a seu rosto que era como se tivesse saído de uma tela cubista. Isso lhe servia ao propósito de não mais parar de fumar, já que a coisa não tinha mais jeito.

Seu Juvenil e seu sogro haviam alcançado um altaneiro e despreocupado grau de adaptação à doença. Seu sogro sorria, estoico, ao relatar em sua última visita como se pode conviver bem com a doença. Ele não tomava mais água ou líquido algum há quase três anos, para não sobrecarregar seus rins deteriorados. O seu Juvenil só se alimentava de leite e bolachas dissolvidas no leite, como ensinou a Dani a fazer em sua última visita_ sendo traduzido por uma das irmãs da Dani que tem o dom quase esotérico de entendê-lo cristalinamente. Ele ligou para seu Gercino e disse que era um descabimento eles se recusarem a entrar na casa só porque haviam outras visitas. Seu sogro transmitia a decisão peremptória do amigo de que não iria entrar. Ele levou as crianças para que o avô as visse, e lá pelos tantos minutos de conversa os convenceu, finalmente, a entrarem na casa. Seu Juvenil cumprimentou da varanda às pessoas de dentro, e só se levantou de seu canto em que olhava pacífica e sobriamente o tempo_ sem a mínima importância para o que transcorria em torno_ para se aproximar dele e balbuciar uma pergunta que o lançou no mais profundo constrangimento. Ele não conseguia entender o que o homem estava dizendo, além de uma única e improvável frase. Ele a repetia e ele só balançava a cabeça, até que seu Gercino surgiu à porta para o salvar. "Ele pergunta se aqui tem algum banheiro externo que ele possa usar". Seu Gercino respondeu que não e o acompanhou até um dos banheiros de dentro da casa. Ele estava extenuado de esforço em entender o que o Seu Juvenil dizia. Para ele a frase enevoada de cigarro mausolêico e de ausência tecidual teimava em ser: "O senhor tem veneno?"

(Publicação original, com comentários, aqui.)

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O puro visível



C. acordou bem cedo na manhã de domingo em que faltavam 22 dias para seu aniversário sentindo-se um  burro velho carregado de uma carga muito pesada e obsoleta. Não é uma crise de meia idade, C. pensou, olhando com olhos contidos de rotineiro desespero os objetos do quarto de casal. Está perto de completar 40 anos, mas C. sabe que seu enfado crônico não tem correlação com esse acontecimento, ou ao menos não diretamente. C. não suporta mais suas ideias, seus livros, não suporta mais escrever uma palavra sequer. Mesmo assim, na manhã de sábado, ele entrou em uma papelaria e, junto com o conjunto de tinta guache que comprou para os filhos, adquiriu seu costumeiro caderno de capa dura colorida de 3 reais e uma caneta preta de bico macio. Já em casa, atirou o caderno em uma das traves da estante e guardou a caneta para quando sua esposa precisasse para preencher as palavras cruzadas. Pensar em se recolher em seu quarto particular nos fundos da casa para escrever lhe causa o equivalente a uma náusea estomacal, sua mão lhe envia a informação neurológica de um profundo enfado. Também por dentro ele está atrofiado. Não é questão de não ter ideias: ele as tem, mas perdeu a fé. Analisa esse diagnóstico terrível e não tem como evitar de pensar que era apenas isso que faltava para admitir a si mesmo, de forma inexorável, que ele mudara internamente. Uma mudança de entregar os pontos, de aceitar. Uma maturação sem graça, sem nem sequer ter peso suficiente para ser triste. Uma mudança inercial, o que está longe de ser um oximoro.

Enquanto todos dormem_ C. acorda sempre muito cedo, por volta das cinco da manhã, mesmo neste mês estando de férias_ , C. pega 2001, uma odisseia no espaço, o filme de Kubrick. Há dois meses comprou para a família uma dessas televisões de tamanho cinematográfico, o objeto de um negro ébano impositivo, uma perfeição lisa que lhe causa um misto de aversão e uma involuntária veneração primitiva. Não lhe escapa que tenha escolhido rever 2001, em vez de Nostalgia ou Amarcord, por inconscientemente a coisa lhe lembrar o monólito do filme. A televisão é um dos indicativos de sua mudança inercial, vinha percebendo isso como alguém que monta paulatinamente o quebra-cabeça que no fim vai mostrar a foto de um assassino. Sempre odiou televisão, passou muito tempo de sua vida sem televisão, e não deseja que seus filhos se apeguem à rotina de distração compulsória diante o aparelho promovida pela falta de interação dos pais; mas mesmo assim, sem planejar, entrara na loja de eletrodomésticos e com uma decisão irretocável comprara a televisão mais cara e sofisticada, e no mesmo dia comprara um aparelho de blue-ray e assinara um pacote de mais de cem canais a cabo. Isso soou engraçado, mas C. não riu, um pouco com receio de que seus lábios emitissem um tremor nervoso. Mas sua esposa ficou espantada, de tal forma que disse uma das melhores coisas nesses 8 anos ou mais em que se conhecem, disse, com uma total espontaneidade, que ele jamais poderia duvidar do amor dela por ele, pois quando se conheceram, ele não tinha carro, e entre os poucos móveis da casa, um era uma televisão de 14 polegadas queimada de um dos lados.

C. coloca o filme de Kubrick, que não vê há anos, e que lembra bem as partes mais conhecidas, a viagem além do universo, a rebelião do computador de bordo, as valsas de Strauss. Mas não se lembrava da incômoda cena de afonia completamente negra do início do filme, se é que pode chamar de cena. São 4 minutos de escuridão absoluta, em que um fundo premonitório composto de  um ruído quase brutal em sua incapacidade de apreensão parece querer explodir os ouvidos. Às 5 da manhã, essa introdução estranha e inesperada causa uma sensação indelével mas premente de terror em C., como se aquilo tivesse sido posto no filme particularmente para ele, como uma mensagem inamistosa. Era opressivo. Estava para apertar a tecla de retorno do menu, achando que alguma coisa estava errada, quando o som se interrompe e aparece na tela um símbolo da MGM sobre um fundo azul piscina. Era tanto mais estranho quanto a cena anterior, no que tinha de um desvanecente humor burocrático, uma auto-ironia de sintonia muito fina que incutia uma acusação misteriosamente indeterminada contra a indústria do cinema. Como se, C. pensou, sendo levado mais uma vez a uma de suas labirínticas análises obsoletas, o filme murmurasse que dali para a frente nada seria como estava condicionado a ver, nada do entretenimento típico e nada da moral enlatada. Não seria felicitado pelas próximas 3 horas. O que o aguardava era uma exigência descomunal de atenção irrestrita. C. forçou o registro da memória para arquivar aquelas cogitações para serem revisitadas com afinco assim que terminado o filme. Com enorme astúcia, Kubrick consegue o que quer: os 4 minutos de espanto e os segundos de metalinguagem propositadamente deslocada absorvem por completo a atenção de C..

Kubrick esvazia as apreensões e pré-conceitualizações do expectador para que este sinta a cósmica solidão do homem em seu estágio simiesco, naquela imensidão de planalto e monumentos naturais de pedra cortada pelo vento. O peso do nada, do propósito ainda não planejado, a corda-bamba em que o homem estava sem que algo tivesse sido definido. Tudo parecia apto a acabar rapidamente; sensível demais e um tanto absurdo. Ninguém apostaria naquilo, de forma que, para espanto geral, se a coisa progrediu, foi devido a uma expansão possibilitada pela indiferença. Um dia viriam para passar um pano e limpar tudo. C. anota mentalmente: Kubrick assepsia o espectador com essa abertura brutal para que ele entre no filme despido de seus escudos urbanos, de seu conforto de se sentir no ápice de uma escala da técnica. C. sente o desamparo a que Kubrick o lança, tendo-se que se encolher de frio junto aos hominídeos sem casa, sem linguagem, sem símbolos. Puramente uma presa. E então, um dos símios pega um fêmur de uma carcaça de algum animal abatido, e desfere golpes contra um outro símio inimigo. Inventa-se a primeira ferramenta. E vem a cena famosa do osso girando no céu e se transformando na linha cognitiva da evolução tecnológica em uma pacífica e valseante nave espacial.

Esse filme sempre fascina C. Na cena final, após tanta coisa que acontece, tantos exemplos de mais ironia e uma catarse que vai além da capacidade mesmo do cinema, lá está C. junto ao astronauta no extremo oposto da evolução. O astronauta atravessou os limites do universo, o que pode ser um buraco negro, ou a fábula real sobre o que o homem será daqui a um bilhão de anos. O astronauta revira em agonia o rosto, arreganha até o limite das pálpebras os olhos, escancara a boca de espanto, enquanto os feixes de luz o vão bombardeando sem clemência. É demais para seu cérebro aguentar aquilo. Mesmo assim, em cada esgar e cada tentativa de evasão, os olhos do astronauta não se descolam do que lhe é revelado. São cenas aterrorizantes. C. cogita que esse filme bem poderia estar na sessão de filmes de terror. Um terror lovecraftiano que não fala de deuses tribais de milhões de anos de sono a ser interrompido, deuses sedentos de vingança, mas de uma bolha real em que o homem está contido sem que possa escapar, e cuja lógica regente é uma ausência de qualquer lógica possível. O astronauta se depara com seu módulo espacial dentro de uma casa iluminada com algo de vitorianismo burguês desprovido de intersecções memorialísticas, desprovido de culpa, ideias, conflitos, história. A casa é absolutamente intranscendente. É incrivelmente desprovida de qualquer necessidade de coisas que não estejam ali. Ela se basta em si mesma. Ela é o cume da resolução milenar de todos os desejos. Intransigentemente pura. C. pensa: sabe aquela história de que o que vale é a alegria dramática da busca, não o estacamento do objeto encontrado?, pois o astronauta está no estágio final da existência em que tudo já foi há muito tempo encontrado. Vem à mente de C. um sermão de Buda: "o puro visível é uma chama que queima". Aquilo é o puro visível. Uma reverberação cegante para os sentidos, que necessitam de penumbras, meios-tons, mediocridades.

Aquilo em que o astronauta e C. estão, é o estágio último do destino do homem no universo, sem medo, sem perguntas, sem paixões, sem ilusões, sem frenesi, sem dor. De um lado o símio tremente na desproteção do céu aberto, de outro essa casa de luzes frias, que não as luzes do paraíso. O lugar definitivo no nada pelo qual toda a espécie batalhara infatigavelmente. O astronauta, com o rosto envelhecido, e C., próximo de seus 40 anos de idade, veem o Homem Culminado, o homo finalis, o estágio supremo da evolução, um velho espadaúdo vestido de branco, rescendendo de brancura, sentado diante sua mesa de jantar. Ele é um tanto tristíssimo em sua falta de necessidade antropológica de tristeza, em sua limpidez darwiniana; arremete educadamente uma colherada de comida na boca e, de súbito, a taça que está por sobre a mesa cai e se parte no chão. O homo finalis curva a cabeça e observa os fragmentos do cristal espatifados. Não há curiosidade em seu olhar; por mais que ele demore neste ato avaliativo, não se trata de nada que esteja fora de seus sistemas prontamente catalogados de percepção; apenas que ele tem que procurar um pouco mais na memória algo que se assemelhe àquela violência circunstancial da aleatoriedade. Não sobrou nada do anima que em um bilhão de anos começou com um fêmur improvisado como instrumento de guerra. Uma taça quebrada é tudo que ecoa como vestígio de antigas e esquecidas dialéticas traumáticas. O homem já não é mais verbo, mas o eterno som atonal. Então ele retorna ao monólito que esteve em todas as etapas das grandes revoluções tecnológicas humanas: um bebê que, ao contrário de seus predecessores, tem os gigantes olhos abertos. Haverá então uma outra evolução, Kubrick diz. Mas agora, em que campo?

(Publicação original, com comentários, aqui.)

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Meus ouvidos devocionais



Estado de afasia cibernético é quando se procura canto para ir no universo digital e não se encontra, se sente então um tanto deslocado, incomodado, entediado. Uns vinte anos atrás eu tinha um vídeo de uma apresentação do Yes. Não era bem o Yes, mas uma reunião de seus integrantes da formação clássica e soberba de seus melhores álbuns; era o Wakeman, o Howe, o Brufford, o Squire e o Anderson. Um milagre que eu flagrei na tv aberta (acho que era um dos shows de rock que aconteciam sempre com um espanto de gratidão na Bandeirantes, de madrugada, que se alguém vier me dizer que eram frutos de um delírio pessoal eu não estranharia), e, de pronto, com as mãos trêmulas de reverência, enfiei um VHS no vídeo-cassete e gravei. Assisti a esse vídeo infinitas vezes. Começa com solos de cada um dos integrantes: Wakeman faz um improviso belíssimo que me relegou a anos de procura por toda a sua discografia e, mesmo no regalo da época do download, nunca fui capaz de achar; depois entra esse ser humano fantástico pelo qual eu tenho amor absoluto, chamado Steve Howe, improvisando e tocando a medieval Mood for a day; depois vem Anderson cantando à capela e o culto se prolonga por estágios progressivos de arrebatamento. Daí que passei bom tempo atrás dos álbuns solos de Steve Howe. Havia uma loja de cds importados, cujos preços eram os olhos da cara, na capital onde eu morava, na qual encomendei boa parte de minha coleção do Tull, mais uns Vangelis e Van der Graaf e Coltrane. Tal loja se chamava Woodstock e hoje é uma lenda saudosista, em que direto encontro com ex-clientes em pubs ou eventos culturais que se lembram plenamente do dono, um cara antipático de cara amarrada que era uma versão menos bexiguenta do Fausto Fawcett, e seu serviçal gordinho, meio calvo e de óculos de nerd que não vingou, que vivia às turras silenciosas com o chefe e adorava The Carpenters. Pois lá, nos catálogos impressos buscados de uma incipiente internet, não havia nenhum Howe solo para a venda. Passei anos sonhando como seriam maravilhosos os discos solos do Howe, ouvir um trabalho independente em que ele poderia tocar sua guitarra medieval sem qualquer limite. Daí veio o download e essa coisa toda, eu baixei tudo que havia para baixar, em todos os sentidos e contra-sentidos, e só neste fim de semana, como num estalo, me recordei do desejo pelo Howe. Já uso a net apenas por um costume inercial, pois nela não há nada que me motive mais. Acendo a tela e só vejo um tédio descomunal com o qual tenho que me haver para queimar as horas de sobra de tudo aquilo que eu realmente gosto e me ocupa. Foi um duplo entusiasmo ir atrás do Howe. O tempo parece ter fechado para meus amigos cibernéticos, ou conhecidos, ou colegas distantes de solidão, ou seja o que for. Vejo reações de tristeza e distanciamento, deixando a alegria em suspenso, uma alegria que parece ser de outra época. Parece que também para as amizades virtuais o tempo escoa e tudo vira uma saudade metafísica, da qual não prestamos muita atenção para ela não nos devastar. Assim como na infância, na juventude, a internet tem seus fantasmas, e o que era frescor e leveza se tornam sombras da velhice, definhamento. Me lembro que há três anos haviam discussões febris no site do Milton Ribeiro; lembro que passei um dia inteiro esperando a resposta do Marcos Nunes a uma das minhas provocações que iria tirá-lo do sério, e de noite, na faculdade de história, eu estava bêbado igual a uma mula (é como se costuma dizer, apesar de nunca ter visto uma mula bêbada), tendo bebido 4 doses de vodka, e acessei o computador da faculdade e vi lá o extenso e enraivecido texto de resposta do Nunes, que me fazia rir alto e atrair olhares dos ocupantes dos computadores laterais, e eu o respondi algo longo e despropositado, trôpego e tolo. Não sei o que estou a dizer. Mas, nessas próximas duas semanas, vamos aqui, eu e as pessoas que eu amo, passarmos por momentos delicados, não muito confortáveis. Sei que tem um amigo que está a passar por problema parecido, conforme me comunicou por e-mail_ um amigo do qual me sinto próximo, mas que nunca vi, que modernidade de afabilidade sintética a nossa. O Milton, que me desculpe dizer isso aqui, passa por mais um divórcio, conforme o "solteiro" escrito lá no facebook dele. A Rachel e o Marcos puseram um fim em seu blog. Será que a parte mais insuspeita de humanidade das redes sociais é essa de que, apesar dos murais de sorrisos eternos e de um cotidiano de pretensa perfeição estética, os mesmos sofrimentos continuam a acontecer, imoláveis, marciais, sem pompas ou considerações se você "compartilhou" a foto, o mesmo destino segue seu curso, indiferente às tentativas de eufemização das telinhas coloridas? E nós aqui, no mesmo desamparo, no mesmo primarismo desesperado para achar um atenuante: não agora, não hoje, que dure mais a impressão de juventude, de não-importância, de leviandade.

E como diz determinado escritor, a música tocada por Howe aqui me alivia e me priva, por um momento, dessas considerações.

A felicidade em "Guerra e paz"



Não deixa de ser curioso que em 2500 páginas já de todo memoráveis, os capítulos em que o leitor tem a imediata consciência de estar presenciando um dos maiores momentos da literatura correspondam a cenas felizes de caçada na neve que se encerram num idílico jantar numa cabana camponesa. Tais capítulos do incriticável Guerra e Paz (quem seria louco o bastante, ou capacitado o bastante?) confirmam a sentença de Richard Tull, o autor falido de A Informação, de Martin Amis, que diz ser Tolstoi o único escritor que conseguiu registrar a felicidade por escrito. A leitura sensorial sobre Nicolai Rostóv e sua irmã, Natascha Rostóv, no último momento de interação amorosa tida por eles antes que o primeiro parta para a segunda etapa da guerra russa contra Napoleão, e antes que a segunda se case, corresponde ao processo eminentemente telepático da leitura, que Walter Benjamin descobre em seu ensaio sobre o surrealismo. Essas cenas são tão monumentais que a simplicidade com que são tratadas despertam a sensação tardia de que Tolstoi utilizou de um joguete mefistofélico correspondente à transposição no papel da crueldade investida em toda a efemeridade dos momentos felizes, o que o faz um dos escritores mais perigosos, indevidamente colocado como um sujeito mais espiritualmente são que o para sempre indissociável a ele Dostoiévski. Enquanto o autor de Os Demônios dá sua estocada sobre o destino incontornável do homem para a falência e o crime através de uma miríade de palavreado desconexo e selvagem, Tolstoi caminha pela linha direta de sua genialidade de narrador puro, sem barreiras, sem frenetismos, sem as intercambiações pela clinica psiquiátrica, o que, de um outro ponto de vista, soa mais pérfido que a perfidez atribuída há um século ao seu perturbado colega de letras. Sua telepatia dada na fluidez ligeira do texto proporciona a lucidez incômoda de uma ciência da vida nessa terra como condicionada unicamente a uma entidade histórica indiferente, para a qual a decisão humana não representa nada, que, se os estudiosos acadêmicos se propuserem a reavaliar o modernismo de Tolstoi, talvez percebessem ser essa visão mais factível da verdade do que a neuropatologia dostoiévskiana que inspirou toda a literatura do século XX. Os heróis de Dostoiévski mostram, em negativo, que a doença reina como comandante suprema das hordas da história, e por isso, numa sequência lógica distante, a cura progressiva dessa doença faria com que esses exércitos de sevícias, concupiscências, ambições de poder, egoísmos e egolatrias, barbáries e bestialidades, dispusessem das armas naturalmente num estágio de conserto evolutivo planejado; já Tolstoi, como alguém detentor de uma posição privilegiada de observador bem acima do ruído onipresente, sabe que a doença humana é incurável e, pior, não tem a minima participação fagulhar nos mecanismos históricos. Dois exemplo disso são o capítulo inicial do volume 2, e as elucubrações da segunda parte desse mesmo volume de Guerra e Paz. No primeiro, numa cena engraçadíssima, um grupo de soldados ulanos, na ânsia de cumprir uma mísera ordem de Napoleão para atravessar um rio de águas caudalosas, se afoga vaidosamente em honra do atarefado e indiferente imperador francês.

"Quando o ajudante de ordens voltou e, escolhendo um momento apropriado, dignou-se a chamar a atenção do imperador para a dedicação dos poloneses à sua pessoa, o homem pequeno de casaco cinza levantou-se, chamou Berthier e pôs-se a caminhar com ele de um lado para outro, pela margem do rio, dando-lhe ordens e, de vez em quando, lançando olhares descontentes para os ulanos que se afogavam e distraíam a sua atenção."

No outro momento, Tolstoi faz uma análise do que levou russos e franceses à guerra de 1812, por todos tida como absurda e assassina, mas que, à revelia da razão e das decisões internas de paz de ambos os lados, motivou dois exércitos ao suicídio pelo único motivo da determinação histórica estar acima do controle humano. E Tolstoi entremeia um ensaio decantado sobre a vanidade das ações humanas como um observador posicionado 55 anos à frente dos eventos, numa dessas liberdades idiossincráticas típicas de Tolstoi de não estar nem aí para as técnicas do romance europeu, arrebanhando a estultície de historiadores franceses e russos apontando o quanto cada um puxar a sardinha da interpretação da vitória para sua pátria não desanuvia em nada a compreensão dos fatos.

A falta de uma perspectiva real da grandiosidade de Guerra e Paz para a literatura do século XX, seus elementos simbólicos no estudo da História, da sociologia das massas, do poder, sua força premonitória de mostrar a insurgência do massacre desafogador bolchevique, seu caráter chocantemente à frente das correntes modernistas e sua lucidez despercebida, revelam a suspeita de que trata-se de um romance não devidamente lido e inconsequentemene negligenciado.Tolstói não é nem um pouco panfletário, ao contrário dos impulsos didáticos de Dostoiévski que o levaram ao estudo pormenorizado da queda adâmica; o cristianismo de Tolstói é amplamente iconoclasta e investido da concepção de que Cristo é a derradeira figura diabólica (Zizek, A Visão em Paralaxe), enquanto o cristianismo de Dostoiévski bebe do mais profundo ufanismo de povo escolhido da velha Rússia piedosa e primitiva, com todo o seu ortodoxismo canhestro. Tolstói levou às últimas consequências sua concepção da história como um fardo inescapável, conduzindo-se para um isolamento ativo (na medida em que foi pedagogo e anarquista thoureano social amplamente participativo) em que a definição oca de místico demonstra desconhecimento do quanto suas teorias religiosas eram fincadas com os pés no chão, e o quanto obras como O Reino de Deus Está em Vós atribuem-se a um filósofo de peso com a mesma sanguinidade de um Nietzsche do que de um raso pregador evangélico. Tolstói foi menos esotérico na fé no expurgo do pecado através de sua descrição fatídica na escrita do que Dostoiévski, e vemos isso em dois momentos sublimes desses imensos escritores: nas cenas finais de Os Demônios, após a densa viagem do leitor pela atmosfera policialesca e pelas revelações do inferno que há por detrás das realizações políticas, o gênio diabólico da revolução Piotr Stiepánovitch Vierkhoviénski, após a crueldade extrema do assassinato de um inocente em nome da causa revolucionária, encerra o romance de límpida consciência assim como começou, conversando com novos adeptos ao movimento com a mesma paixão imolada pela culpa e incapaz de arrependimento. Dostoiévski aqui faz mais uma vez seu panfletarismo sobre a queda, mostrando didaticamente a lição da cozinha onde a política realmente é confeccionada, sem eufemismos, sem encantos, sem demagogias; assim como amplia o diagnóstico dos mecanismos do poder de submissão político e religioso no discurso do Grande Inquisidor nos Irmãos Karamazov. 

Já Tolstoi, na cena acima mencionada da caçada em Otrádnoie, impressiona por sua pureza narrativa, a sua absoluta ausência como autor das cenas, de forma que toda a carga subliminar aflora da ação, das expressões faciais, da tensão do encontro, da fúria da descrição dos cães atacando o lobo, da forma carregada de reprimido ódio como o servo exímio caçador se dirige com asco latente ao principe que fracassa no cerco à presa. Nessa cena há toda uma pulsão profética sutilmente aterrorizante da virada dos ciclos de dominação em que o dominado pega as rédeas da história e massacra seu senhor que se pressupunha eterno. Há de se descrever minimamente a cena para que se saiba o que estou querendo dizer: saem para a caçada na neve, nas propriedades do príncipe Rostóv, o velho príncipe, seu filho Nicolai, sua filha Natascha, e sua afilhada Sônia, na companhia dos servos caçadores cuja única obrigação que devem pelo generoso direito de sobrevivência lhes dado nas terras do fidalgo é exercerem suas ciências da caça. Os príncipes são seres que trazem a notória distinção de classe nas roupas elegantes, na postura senhorial, na educação primorosa nas melhores escolas européias, no direito de lutarem pela pátria em cargos de comando distantes do perigo dos campos de batalha; as moças são aristocratas belíssimas, rescendendo à doce curiosidade pela vida. Já os caçadores são homens broncos, quase maltrapilhos, misto de selvagens proficientes nas artes do combate contra a natureza, uma espécie de forças cósmicas controladas pela constituição limítrofe em corpos humanos regidos pela intuição perene do chicote e da deportação para a Sibéria, caso queiram burlar a sólida e tranquilamente inamovível paisagem social. Um dos caçadores, de nome Danilo, que demonstra um ódio profundo para com seus patrões e por tudo que lhe cheire a pompa palaciana, depois que o velho príncipe deixa que o lobo fure o cerco, contorna a falha do seu senhor atirando-se junto com os cães por sobre a presa reconduzida. Quando Danilo se aproxima do velho príncipe_ o conde Rostóv_, o conde, por um brevíssimo instante, pressente o perigo atemporal a que os da sua classe estariam sujeitos no desnodoamento cíclico da história dali a cem anos, na fúria de confronto abortada que vê em Danilo.  Mais tarde, à noite, quando todos se sentam em volta de uma fogueira e o lobo, ainda vivo, é exposto para a apreciação amarrado a uma tala de madeira por sobre uma manta de couro, a amenidade do controle habitual se reconstitui tanto na atitude servil de Danilo, quanto do perdão bonachão do conde. 

"O conde lembrou-se do lobo que ele deixara escapar e do seu atrito com Danilo.
  _ Puxa, irmão, quando você se zanga, se zanga mesmo_ disse o conde. Danilo nada respondeu e apenas sorriu, um sorriso infantil, tímido e simpatico."

Aqui o leitor prevê o massacre da família Romanóv e tudo que viria a ser a União Soviética e as nações prototípicas do socialismo do século XX. E Tolstói antevê, com sua pureza diabólica, o aprisionamento a que estamos fadados à perene repetição dos reconfiguramentos da História, que nenhum esclarecimento didático sobre sua relojoaria interna fará que pare o seu devir infinito. Na mesma época que Marx, Tolstói descobre por si mesmo que os eventos históricos acontecem primeiro como tragédia, e depois como farsa, numa sucessão inevitável e sob um moto perpétuo. Nisso está todo o seu abandono às suas obras, na velhice, e toda a sua desabnegação a tudo que faça parte aos mesquinhos esquemas de dominação humanos, desde a política à religião. Nisso está sua excomunhão e sua negação ao dinheiro e às pobrezas simbólicas de amor à pátria, que desde sempre se lhe revelara ser sinônimo de amor à guerra. E nisso está a força incomensurável da dor da felicidade tolstoiana nas cenas sublimes dos Rostóv descansando-se da caça na aldeia camponesa de Otrádnoie. A dor de que a pairagem de esplêndida alegria infantil naquele contínum de tempo aparentemente desvinculado e refugiado da história está vinculada à consumação da infelicidade futura daquela família já na iminência da falência, em que Natascha sucumbiria à desonra social, Sônia às decepções da solidão da maturidade, o conde ao desaparecimento natural, e Nicolai à volta aos campos da guerra.

(Nesta semana e na próxima, farei uma seleção diária do que eu considero como sendo os meus melhores textos publicados no blog. Depois eu volto. Aos eventuais comentários, eu respondo.)