quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Saruê



Neste feriado ele recebeu em casa a mãe, a irmã e uma tia. Vieram na quinta, de ônibus, e foram embora na tarde de domingo (elas tem muito medo de dirigir em rodovias). O clima da casa ficou totalmente feminino, com sacolas de presentes, risos parenteseando fofocas, receitas de tortas holandesas sendo postas na prática na cozinha, coxas de frango assando dentro de pacotes plásticos de tempero pré-fabricado, conversas prolongadas noite adentro, com todas deitadas na cama de casal (todas mais o Eric, seu filho, que diplomaticamente tinha que deixar o pai sozinho na biblioteca dos fundos e interagir com a algaravia da parte da família que vem de dois em dois meses). Ele fica muito deslocado nestas visitas, e a grande bênção é que todas não dão a mínima para ele, o que lhe permite uma adstringente invisibilidade. A Júlia se esquece tanto do pai nestes momentos que por vezes tropeça nos seus pés e se levanta rapidamente, tomando o rumo da balbúrdia com algum pano de mesa ou camisa suja que retirou de algum lugar e revestiu com eles a cabeça. Nesses paradoxos do caos, nesse feriado ele teve muito tempo livre para ficar consigo mesmo e botar as leituras em dia. Teve tempo de sobra para compensar certo distanciamento que vinha tendo com o Miles, e que o deixava preocupado por notar nele um recuo meio depressivo devido à sua omissão involuntária. Fez bastante carinho no Miles, saíram para passear de carro e à pé, e retornaram às brincadeiras de rasgar sacolinhas e atirar objetos para o cão ir buscar. Levou uma bronca tremenda da Dani por ter deixado o Miles rasgar uma revista velha que ela ainda não tinha lido, e por lançar uma bandeja de plástico que achou ter sido escorada na pia para ser jogada fora, e que o Miles destruiu em prodigiosos vinte segundos de alegria furiosa.

Na sexta-feira ele comprou um Gato Negro e foi bebê-lo à noite numa pracinha desolada em frente a um templo desativado da Universal. Sentou-se no banco com a garrafa aberta e com um copo plástico, e bebericava o vinho enquanto via, enlevado, o vento frio revoar as árvores e as pequenas peças de lixo da calçada. Estava absolutamente sozinho e afastado dos sons de festa de quatro quadras mais para baixo, na praça central. Estava decidido a abrir aos poucos a sua sensibilidade alterante à bebida, coisa que imaginava ter voltado à estaca zero devido aos tantos meses de abstinência_ as últimas garrafas esvaziadas o pegavam no final mais sóbrio do que antes, atestando que ou ele avançava para novos estágios de subjeção alcoólica ou continuava a beber apenas pelo sabor das uvas fermentadas_, pois queria apreender sem pressa o que aquela noite e aquele deserto tinham para lhe dizer. Os altos vidros do templo permaneciam soberbamente imóveis ao vento, conservando um sobrancelhamento indiferente ao musgo que crescia a olhos vistos nas bases das paredes e das teias cinzas proliferadas abaixo da cornija da frente.

O fato desses vidros estarem intactos numa praça conhecida como Praça da Maconha deveria ter motivado o pastor desistente a reavaliar com mais fé a persistência em angariar um rebanho financeiramente viável. O próprio banco no qual estava sentado atestava que a turba invisível que agia de madrugada não costumava ter tanto respeito por objetos não vigiados: faltava-lhe duas traves de madeira abaixo de onde estava sentado, de modo que seus glúteos estavam suavemente afundados para baixo. No meio desse devaneamento vê um vulto caminhando de frente ao templo. Arregaça os olhos e percebe ser um homem que poderia ter qualquer idade acima dos 60 anos. Andava furtivamente e com a clara consciência de que havia alguém ali que logo iria vê-lo, e quando entrou sem direito a dúvidas dentro do ângulo da sua visão, adotou uma atitude misto de criança e um bicho silvestre qualquer interessado em aproximação. Usava uma camisa de mangas compridas que ia até os pulsos, e uma calça de flanela desgastada, mais umas botinas bege que lhe davam ainda mais uma áurea de animal híbrido, fruto de algum cruzamento improvável que determinava que aquela hora era a única ideal para que desse as caras no mundo. Quando completou seus passos estudados em linha reta, fez uma curva rápida para a rua e veio cordatamente se sentar no banco ao lado dele. Tudo sem o olhar; revirava a cabeça observando como se pela primeira vez as árvores da praça e ele notava o brilho prontificado na periferia da pupila onde ele estava instalado. Tinha um rosto desmaiadamente servil, que atiçou nele fundamente a curiosidade. Ele não estava querendo companhia, mas algo no rosto dele, que não conseguiu firmar quando dava seus passos inseguros e bambeantes, o instigava. Parecia para dentro, em um primeiro momento, com alguma deformidade inapreensível. Na faculdade havia visto cães com os rostos mutilados a tal ponto que os zigomáticos e as cavidades nasais ficavam expostas, e o velho gnomo passava essa suspeita. Mas ao mesmo tempo sabia que sua inofensividade era tanta que não comportava nenhum grau de tragédia mais acima de uma solidão destinada aos bobos. Lembrou de um marsupial típico do cerrado, um ratinho descabelado e maltrapilho que poderia viver cem anos devido a sua total fealdade estragar-lhe para sempre como presa, e lhe veio a certeza de que um saruê havia se metamorfoseado em humano naquela noite onde o frio de desolação escondia enfim uma melifluidade que lhe escapava. Vai ver o pastor fez mesmo bem em sumir dali, pensou, pois no momento nenhuma inspiração erraticamente eclesiástica o despertara para o fato de que talvez se cumpria alguma maldição divina por estar quebrando a promessa feita com seu rosto nas mãos piedosas de sua esposa de que não voltaria a beber.

Mas teve a oportunidade de olhar o rosto do velho e constatar que o estranhismo era que seus ângulos magros faziam associar a algo da prontificada lealdade de um cão. Percebeu que ele era bem mais velho, 70 anos, talvez 90 anos bem vividos de total humildade saruênica. Foi tomado de um mau-humor irrequieto, pensando que ele deveria fazer o favor de não perturbar senhores incautos que se aventuram em praças da maconha, nas quais nem a interseção de duvidosas forças de deus havia surtido efeito, para ficar só, inteiramente só. Ele sentia o vinho enlanguescer os caminhos arteriais até o cérebro, e se ateve a seu direito de incomunicabilidade. Cinco mulheres e um guri barulhento não haviam conseguido tirar-lhe de seu silêncio em sua própria casa, não seria um protótipo caboclo de Smigol que faria isso. Em outros momentos adoraria falar com ele, mas não aquela hora. O velho, que também o fizera crer que se falasse notaria sua voz um tanto anasalada (um fanho e um gago numa noite solitária), contrariando as suas expectativas, não lhe dirigiu uma palavra sequer. Ficou em absoluto silêncio, de braços cruzados olhando à frente a rede oceânica de sombras e ventos.

Voltou dali uma hora para casa. Quando se levantou e entrou no carro, olhou pelo rabo de olho que ele o ignorava combativamente, mas conservava uma calda de sorriso no canto da boca para quaisquer recaída diplomática de sua parte. Na manhã de sábado sua esposa o acorda no colchão de solteiro na biblioteca e diz que o pai dela estava na esquina mais longe aqui de casa, esperando que ele levasse as crianças para ele as ver. Mas que diabo, resmungou, por que o Seu Gercino não vem aqui e entra para ver as crianças? A Dani responde que é que seu pai estava com o Seu Juvenil, e esse se negava a entrar na casa desde que viu o movimento e constatou que haviam visitas. Seu sogro, o seu Gercino, foi diagnosticado há mais de dois anos (seis meses antes do nascimento da Júlia), com um câncer terminal, que se criara em um dos rins e se proliferara para fígado, estômago e intestinos. Os médicos lhe haviam sido francos e dito que a quimioterapia só iria apressar o processo, que ele voltasse para casa, comesse e fizesse de tudo, para aproveitar os poucos meses que lhe restavam. Ele ficara em profunda depressão nas primeiras semanas, chorando pelos cantos. Aceitou participar das sessões de acompanhamento psicológico do hospital, no qual conheceu o Seu Juvenil, um mulato de mesma idade que ele, que havia tido seis tumores no maxilar, devido ao tabagismo de toda a vida, e cuja excisão cirúrgica lhe levara o queixo. Tornaram-se amigos inseparáveis, ocupados em longas viagens para pescarias. Seu Juvenil era um homem curiosamente assimétrico, que afrontava a perspectiva mesmo para os mais preparados de ante-mão para a confrontação com o seu problema. A falta do queixo tornara difícil entender suas vocalizações, que eram muito abafadas e despendiam o odor de nicotina de décadas que transvertia os ares do ambiente. Meses depois da remoção dos tumores, uma nova massa compacta brotou na pequena parte que lhe restava do queixo, onde antes ficavam os dentes sisos, e crescera tanto que dera uma aparência tão mais distorcida a seu rosto que era como se tivesse saído de uma tela cubista. Isso lhe servia ao propósito de não mais parar de fumar, já que a coisa não tinha mais jeito.

Seu Juvenil e seu sogro haviam alcançado um altaneiro e despreocupado grau de adaptação à doença. Seu sogro sorria, estoico, ao relatar em sua última visita como se pode conviver bem com a doença. Ele não tomava mais água ou líquido algum há quase três anos, para não sobrecarregar seus rins deteriorados. O seu Juvenil só se alimentava de leite e bolachas dissolvidas no leite, como ensinou a Dani a fazer em sua última visita_ sendo traduzido por uma das irmãs da Dani que tem o dom quase esotérico de entendê-lo cristalinamente. Ele ligou para seu Gercino e disse que era um descabimento eles se recusarem a entrar na casa só porque haviam outras visitas. Seu sogro transmitia a decisão peremptória do amigo de que não iria entrar. Ele levou as crianças para que o avô as visse, e lá pelos tantos minutos de conversa os convenceu, finalmente, a entrarem na casa. Seu Juvenil cumprimentou da varanda às pessoas de dentro, e só se levantou de seu canto em que olhava pacífica e sobriamente o tempo_ sem a mínima importância para o que transcorria em torno_ para se aproximar dele e balbuciar uma pergunta que o lançou no mais profundo constrangimento. Ele não conseguia entender o que o homem estava dizendo, além de uma única e improvável frase. Ele a repetia e ele só balançava a cabeça, até que seu Gercino surgiu à porta para o salvar. "Ele pergunta se aqui tem algum banheiro externo que ele possa usar". Seu Gercino respondeu que não e o acompanhou até um dos banheiros de dentro da casa. Ele estava extenuado de esforço em entender o que o Seu Juvenil dizia. Para ele a frase enevoada de cigarro mausolêico e de ausência tecidual teimava em ser: "O senhor tem veneno?"

(Publicação original, com comentários, aqui.)

3 comentários:

  1. Respostas
    1. Jamais esqueceremos. Que momento esse do Charlles, e tentando disfarçar sua baixeza aos leitores recentes via 3ª pessoa... =)
      Gostei ainda mais deste versão.

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