C. acordou bem cedo na manhã de domingo em que faltavam 22 dias para seu aniversário sentindo-se um burro velho carregado de uma carga muito pesada e obsoleta. Não é uma crise de meia idade, C. pensou, olhando com olhos contidos de rotineiro desespero os objetos do quarto de casal. Está perto de completar 40 anos, mas C. sabe que seu enfado crônico não tem correlação com esse acontecimento, ou ao menos não diretamente. C. não suporta mais suas ideias, seus livros, não suporta mais escrever uma palavra sequer. Mesmo assim, na manhã de sábado, ele entrou em uma papelaria e, junto com o conjunto de tinta guache que comprou para os filhos, adquiriu seu costumeiro caderno de capa dura colorida de 3 reais e uma caneta preta de bico macio. Já em casa, atirou o caderno em uma das traves da estante e guardou a caneta para quando sua esposa precisasse para preencher as palavras cruzadas. Pensar em se recolher em seu quarto particular nos fundos da casa para escrever lhe causa o equivalente a uma náusea estomacal, sua mão lhe envia a informação neurológica de um profundo enfado. Também por dentro ele está atrofiado. Não é questão de não ter ideias: ele as tem, mas perdeu a fé. Analisa esse diagnóstico terrível e não tem como evitar de pensar que era apenas isso que faltava para admitir a si mesmo, de forma inexorável, que ele mudara internamente. Uma mudança de entregar os pontos, de aceitar. Uma maturação sem graça, sem nem sequer ter peso suficiente para ser triste. Uma mudança inercial, o que está longe de ser um oximoro.
Enquanto todos dormem_ C. acorda sempre muito cedo, por volta das cinco da manhã, mesmo neste mês estando de férias_ , C. pega 2001, uma odisseia no espaço, o filme de Kubrick. Há dois meses comprou para a família uma dessas televisões de tamanho cinematográfico, o objeto de um negro ébano impositivo, uma perfeição lisa que lhe causa um misto de aversão e uma involuntária veneração primitiva. Não lhe escapa que tenha escolhido rever 2001, em vez de Nostalgia ou Amarcord, por inconscientemente a coisa lhe lembrar o monólito do filme. A televisão é um dos indicativos de sua mudança inercial, vinha percebendo isso como alguém que monta paulatinamente o quebra-cabeça que no fim vai mostrar a foto de um assassino. Sempre odiou televisão, passou muito tempo de sua vida sem televisão, e não deseja que seus filhos se apeguem à rotina de distração compulsória diante o aparelho promovida pela falta de interação dos pais; mas mesmo assim, sem planejar, entrara na loja de eletrodomésticos e com uma decisão irretocável comprara a televisão mais cara e sofisticada, e no mesmo dia comprara um aparelho de blue-ray e assinara um pacote de mais de cem canais a cabo. Isso soou engraçado, mas C. não riu, um pouco com receio de que seus lábios emitissem um tremor nervoso. Mas sua esposa ficou espantada, de tal forma que disse uma das melhores coisas nesses 8 anos ou mais em que se conhecem, disse, com uma total espontaneidade, que ele jamais poderia duvidar do amor dela por ele, pois quando se conheceram, ele não tinha carro, e entre os poucos móveis da casa, um era uma televisão de 14 polegadas queimada de um dos lados.
C. coloca o filme de Kubrick, que não vê há anos, e que lembra bem as partes mais conhecidas, a viagem além do universo, a rebelião do computador de bordo, as valsas de Strauss. Mas não se lembrava da incômoda cena de afonia completamente negra do início do filme, se é que pode chamar de cena. São 4 minutos de escuridão absoluta, em que um fundo premonitório composto de um ruído quase brutal em sua incapacidade de apreensão parece querer explodir os ouvidos. Às 5 da manhã, essa introdução estranha e inesperada causa uma sensação indelével mas premente de terror em C., como se aquilo tivesse sido posto no filme particularmente para ele, como uma mensagem inamistosa. Era opressivo. Estava para apertar a tecla de retorno do menu, achando que alguma coisa estava errada, quando o som se interrompe e aparece na tela um símbolo da MGM sobre um fundo azul piscina. Era tanto mais estranho quanto a cena anterior, no que tinha de um desvanecente humor burocrático, uma auto-ironia de sintonia muito fina que incutia uma acusação misteriosamente indeterminada contra a indústria do cinema. Como se, C. pensou, sendo levado mais uma vez a uma de suas labirínticas análises obsoletas, o filme murmurasse que dali para a frente nada seria como estava condicionado a ver, nada do entretenimento típico e nada da moral enlatada. Não seria felicitado pelas próximas 3 horas. O que o aguardava era uma exigência descomunal de atenção irrestrita. C. forçou o registro da memória para arquivar aquelas cogitações para serem revisitadas com afinco assim que terminado o filme. Com enorme astúcia, Kubrick consegue o que quer: os 4 minutos de espanto e os segundos de metalinguagem propositadamente deslocada absorvem por completo a atenção de C..
Kubrick esvazia as apreensões e pré-conceitualizações do expectador para que este sinta a cósmica solidão do homem em seu estágio simiesco, naquela imensidão de planalto e monumentos naturais de pedra cortada pelo vento. O peso do nada, do propósito ainda não planejado, a corda-bamba em que o homem estava sem que algo tivesse sido definido. Tudo parecia apto a acabar rapidamente; sensível demais e um tanto absurdo. Ninguém apostaria naquilo, de forma que, para espanto geral, se a coisa progrediu, foi devido a uma expansão possibilitada pela indiferença. Um dia viriam para passar um pano e limpar tudo. C. anota mentalmente: Kubrick assepsia o espectador com essa abertura brutal para que ele entre no filme despido de seus escudos urbanos, de seu conforto de se sentir no ápice de uma escala da técnica. C. sente o desamparo a que Kubrick o lança, tendo-se que se encolher de frio junto aos hominídeos sem casa, sem linguagem, sem símbolos. Puramente uma presa. E então, um dos símios pega um fêmur de uma carcaça de algum animal abatido, e desfere golpes contra um outro símio inimigo. Inventa-se a primeira ferramenta. E vem a cena famosa do osso girando no céu e se transformando na linha cognitiva da evolução tecnológica em uma pacífica e valseante nave espacial.
Kubrick esvazia as apreensões e pré-conceitualizações do expectador para que este sinta a cósmica solidão do homem em seu estágio simiesco, naquela imensidão de planalto e monumentos naturais de pedra cortada pelo vento. O peso do nada, do propósito ainda não planejado, a corda-bamba em que o homem estava sem que algo tivesse sido definido. Tudo parecia apto a acabar rapidamente; sensível demais e um tanto absurdo. Ninguém apostaria naquilo, de forma que, para espanto geral, se a coisa progrediu, foi devido a uma expansão possibilitada pela indiferença. Um dia viriam para passar um pano e limpar tudo. C. anota mentalmente: Kubrick assepsia o espectador com essa abertura brutal para que ele entre no filme despido de seus escudos urbanos, de seu conforto de se sentir no ápice de uma escala da técnica. C. sente o desamparo a que Kubrick o lança, tendo-se que se encolher de frio junto aos hominídeos sem casa, sem linguagem, sem símbolos. Puramente uma presa. E então, um dos símios pega um fêmur de uma carcaça de algum animal abatido, e desfere golpes contra um outro símio inimigo. Inventa-se a primeira ferramenta. E vem a cena famosa do osso girando no céu e se transformando na linha cognitiva da evolução tecnológica em uma pacífica e valseante nave espacial.
Esse filme sempre fascina C. Na cena final, após tanta coisa que acontece, tantos exemplos de mais ironia e uma catarse que vai além da capacidade mesmo do cinema, lá está C. junto ao astronauta no extremo oposto da evolução. O astronauta atravessou os limites do universo, o que pode ser um buraco negro, ou a fábula real sobre o que o homem será daqui a um bilhão de anos. O astronauta revira em agonia o rosto, arreganha até o limite das pálpebras os olhos, escancara a boca de espanto, enquanto os feixes de luz o vão bombardeando sem clemência. É demais para seu cérebro aguentar aquilo. Mesmo assim, em cada esgar e cada tentativa de evasão, os olhos do astronauta não se descolam do que lhe é revelado. São cenas aterrorizantes. C. cogita que esse filme bem poderia estar na sessão de filmes de terror. Um terror lovecraftiano que não fala de deuses tribais de milhões de anos de sono a ser interrompido, deuses sedentos de vingança, mas de uma bolha real em que o homem está contido sem que possa escapar, e cuja lógica regente é uma ausência de qualquer lógica possível. O astronauta se depara com seu módulo espacial dentro de uma casa iluminada com algo de vitorianismo burguês desprovido de intersecções memorialísticas, desprovido de culpa, ideias, conflitos, história. A casa é absolutamente intranscendente. É incrivelmente desprovida de qualquer necessidade de coisas que não estejam ali. Ela se basta em si mesma. Ela é o cume da resolução milenar de todos os desejos. Intransigentemente pura. C. pensa: sabe aquela história de que o que vale é a alegria dramática da busca, não o estacamento do objeto encontrado?, pois o astronauta está no estágio final da existência em que tudo já foi há muito tempo encontrado. Vem à mente de C. um sermão de Buda: "o puro visível é uma chama que queima". Aquilo é o puro visível. Uma reverberação cegante para os sentidos, que necessitam de penumbras, meios-tons, mediocridades.
Aquilo em que o astronauta e C. estão, é o estágio último do destino do homem no universo, sem medo, sem perguntas, sem paixões, sem ilusões, sem frenesi, sem dor. De um lado o símio tremente na desproteção do céu aberto, de outro essa casa de luzes frias, que não as luzes do paraíso. O lugar definitivo no nada pelo qual toda a espécie batalhara infatigavelmente. O astronauta, com o rosto envelhecido, e C., próximo de seus 40 anos de idade, veem o Homem Culminado, o homo finalis, o estágio supremo da evolução, um velho espadaúdo vestido de branco, rescendendo de brancura, sentado diante sua mesa de jantar. Ele é um tanto tristíssimo em sua falta de necessidade antropológica de tristeza, em sua limpidez darwiniana; arremete educadamente uma colherada de comida na boca e, de súbito, a taça que está por sobre a mesa cai e se parte no chão. O homo finalis curva a cabeça e observa os fragmentos do cristal espatifados. Não há curiosidade em seu olhar; por mais que ele demore neste ato avaliativo, não se trata de nada que esteja fora de seus sistemas prontamente catalogados de percepção; apenas que ele tem que procurar um pouco mais na memória algo que se assemelhe àquela violência circunstancial da aleatoriedade. Não sobrou nada do anima que em um bilhão de anos começou com um fêmur improvisado como instrumento de guerra. Uma taça quebrada é tudo que ecoa como vestígio de antigas e esquecidas dialéticas traumáticas. O homem já não é mais verbo, mas o eterno som atonal. Então ele retorna ao monólito que esteve em todas as etapas das grandes revoluções tecnológicas humanas: um bebê que, ao contrário de seus predecessores, tem os gigantes olhos abertos. Haverá então uma outra evolução, Kubrick diz. Mas agora, em que campo?
(Publicação original, com comentários, aqui.)
Aquilo em que o astronauta e C. estão, é o estágio último do destino do homem no universo, sem medo, sem perguntas, sem paixões, sem ilusões, sem frenesi, sem dor. De um lado o símio tremente na desproteção do céu aberto, de outro essa casa de luzes frias, que não as luzes do paraíso. O lugar definitivo no nada pelo qual toda a espécie batalhara infatigavelmente. O astronauta, com o rosto envelhecido, e C., próximo de seus 40 anos de idade, veem o Homem Culminado, o homo finalis, o estágio supremo da evolução, um velho espadaúdo vestido de branco, rescendendo de brancura, sentado diante sua mesa de jantar. Ele é um tanto tristíssimo em sua falta de necessidade antropológica de tristeza, em sua limpidez darwiniana; arremete educadamente uma colherada de comida na boca e, de súbito, a taça que está por sobre a mesa cai e se parte no chão. O homo finalis curva a cabeça e observa os fragmentos do cristal espatifados. Não há curiosidade em seu olhar; por mais que ele demore neste ato avaliativo, não se trata de nada que esteja fora de seus sistemas prontamente catalogados de percepção; apenas que ele tem que procurar um pouco mais na memória algo que se assemelhe àquela violência circunstancial da aleatoriedade. Não sobrou nada do anima que em um bilhão de anos começou com um fêmur improvisado como instrumento de guerra. Uma taça quebrada é tudo que ecoa como vestígio de antigas e esquecidas dialéticas traumáticas. O homem já não é mais verbo, mas o eterno som atonal. Então ele retorna ao monólito que esteve em todas as etapas das grandes revoluções tecnológicas humanas: um bebê que, ao contrário de seus predecessores, tem os gigantes olhos abertos. Haverá então uma outra evolução, Kubrick diz. Mas agora, em que campo?
(Publicação original, com comentários, aqui.)
Muito bom, Charlles! Esse texto eu não tinha lido ainda. Engraçado é que revi neste último fim-de-semana o "2001" -- na verdade, não é lá grande coincidência, pois revejo muito frequentemente o filme. Também é um dos meus favoritos! No fim do livro do Arthur C. Clarke (que foi escrito enquanto parelalamente Kubrick escrevia o roteiro do filme, e sendo ambas as coisas baseadas em textos anteriores diversos do Clarke, com a idéia do monolito vinda de um chamado "A sentinela"), quando o Dave está para adentrar naquele... chamemos de limite, ele diz uma última frase, que é captada e registrada pela base na Terra que acompanha a jornada, e a frase é, se eu não me engano, "a coisa é oca e... meu deus, está cheia de estrelas!". Sempre adorei essa frase final, pena que ela não aparece no filme. Mas aparece no péssimo filme feito para o livro dois, o 2010. E a estória encerra-se com os livros 2061 e 3001, que aliás eu ainda preciso ler e acho que agora fiquei com vontade de começar a fazê-lo amanhã!
ResponderExcluirEste filme de Kubrick é uma dessas obras raras que vai além do limite da arte. Sempre o vejo com espanto, como se diante uma revelação. Kubrick aqui foi tão longe quanto Tarkóvski. Acho que são filmes que tem um poderoso parentesco: Solaris, 2001 e Stalker. É quase sufocante o poder de percepção desses filmes. Não os considero ficção-científica_ um reducionismo extremamente equivocado. São obras espirituais e altamente filosóficas.
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