sábado, 28 de setembro de 2013

"Muçulmano"



Levo um livro de Primo Levi para o apartamento onde está internada minha esposa, na crença ilusória de que poderei lê-lo confortavelmente durante a noite, enquanto ela dorme. O apartamento é acolhedor, tem um ar-condicionado eficiente, uma pequena sacada de onde se pode ver os prédios de luxo, silenciosos, que circundam o hospital, e dois quadros nas paredes, um uma reprodução de Renoir e o outro de um pintor inglês que não consigo identificar. Há quadros por todas as paredes do labiríntico hospital; no extenso corredor circular pelo qual se passa, subindo os andares, para se chegar ao quarto, há cópias dos afrescos da Capela Sistina, e vários outros quadros renascentistas; a impressão é de que uma genérica intenção de piedade veiculada ao resguardo de uma força deística sobressai por sobre a coerência de um gosto artístico, como se o diretor da instituição tivesse dado liberdade aos funcionários em decorar as paredes e estes houvessem entrado em acordo sobre um senso comum estético, mas que teve a ponderação de não cair em um evangelismo pejorativo. Os quadros são ostensivos na medida certa, não fazendo ao passante se esquecer que se está em um lugar onde existe muita dor, sofrimento, lágrimas, mas também a adstringência da esperança e um sossego genuíno, contra o qual ninguém ousaria investir; chego a cogitar que a presença deles ali satisfaz plenamente a função da arte: de algum modo, eles me acalentam ao me fazerem pensar neles enquanto as enfermeiras entram para dar os comprimidos à Dani. Estranhamente, há dois quadros de artistas modernos logo no final do corredor, quando se está para sair pela porta da recepção; parece que um sarcasmo isolado quis colocá-los ali, onde a curva privilegia a sombra, ao contrário das obras mais acima que são tocadas pela luz natural que vem da incidência do sol em um arranjo tricúspide do teto feito de vidro colorido. Em um dos quadros vejo um porco negro, garatujado da maneira propositalmente tosca da escola moderna indeterminada da qual o artista faz parte_ um porco negro sobre um fundo ocre vazio, perpassado por algumas linhas. O outro quadro, que não me dediquei a espiá-lo com atenção, parece ainda mais abstrato. Deve ter algum profundo significado místico, alguma intrínseca mensagem estoica, penso, analisando que a plasticidade dos quadros não parece identificar que são os originais, que não se fez um favor a um sobrinho desenhista de um médico; deve ser de um artista de renome. Comento sobre essa profusão de quadros com a Dani e ela diz que o hospital é religioso, que veio-lhe um pastor conversar com ela, no momento em que estavam ela e a mãe, mas que em momento algum se ouve a citação específica de vertentes religiosas. Pergunto um "como assim? Não dá para saber se são católicos ou evangélicos?", e ela me responde que mal dá para saber com certeza se são cristãos. Isso me atiça a necessidade de perguntar mais sobre o que falara o pastor, mas ela está cansada, não pode falar muito, deve guardar o repouso, e eu me resigno.

No dia da cirurgia, havia um pianista na sala de recepção executando peças que meus ouvidos moucos prejulgaram serem de Schubert. Ele estava em uma ala interna de onde os pacientes ficam esperando suas senhas aparecerem no painel eletrônico, e eu fui procurando-o na raiz do som como quem quer provar para si mesmo que não está sofrendo de um ataque repentino de alucinação auditiva. Lá estava ele, diante um piano que parecia monumental na total inesperabilidade de se encontrar algo assim em um hospital, em um espaço retilíneo secundário pequeno, com cadeiras de espera de contra as duas paredes, no qual só havia uma velha senhora sentada mas que mal parecia se dar conta do homem de terno concentrado nas teclas à sua frente; um lustre elisabetano gigantesco de um dourado fosco, antigo e falso, estava pendurado bem acima do pianista. Sentei-me afastado da velha e do pianista e fiquei escutando a música, enquanto uma equipe médica abria a caixa torácica da Dani e lhe implantava uma válvula mitral de tecido orgânico no coração. Reparei que logo atrás do piano tinha uma lanchonete; só faltava vir uma moça de sainha colante me oferecer uma dose de uísque. Era assim a forma da administração de retirar o estigma relacionado a um hospital? Quadros, Schubert, um desvio sutil de percepção do classicismo retumbante do dia da Criação para a trivialidade deslocada de um porco negro que vigia toda pompa exagerada das sombras do labirinto circular. Um humor que se degrada em todas as escalas de peso, que não se presta ao riso por ainda estar-se preso conceitualmente à história dos palácios de amputação e confinamento da idade média, às quarentenas, as sangrias e os choques elétricos do que veio a se tornar quatro séculos mais tarde, mas que oferecia uma mudança radical de visão quanto à doença e o doente. Era uma outra comunicação que se fazia ali dentro, deportado do mundo lá fora_ o mundo em que, duas quadras ao lado do hospital, vimos, ao passarmos de carro, duas viaturas da polícia chegando para conter um tumulto diante um clube de futebol em que os torcedores, notoriamente difundidos pela imprensa como violentos, começaram a quebrar as janelas do clube e partirem ruas acima subindo nos jardins dos edifícios, tudo porque ocorrera alguma divergência quanto às trocas de quilos de alimento não perecível por ingressos da partida programada para o domingo. Eu recebia todo esse cuidado de forma impessoal, e só mais tarde viria a pensar nessas coisas; naquele momento eu só via, acriticamente, passivamente, um homem ao piano, executando uma música que parecia alta demais mas que nem disso eu me dava conta como algo proibitivo; nessas horas eu já me entendia como alguém que opta por um anestesiamento que, se acionava as enzimas eufemizantes certas para me narcotizar do andamento da realidade e propulsionar o tempo rapidamente para frente, não me impedia de tentar ler no semblante das enfermeiras que entravam na sala algum indício de tragédia, algum comunicado delicado que deveriam dar de forma lamentável mas imediata ao homem que estava sentado a um metro da velha e no outro extremo da hipotenusa onde estava o pianista. Meu cérebro não parava de trabalhar, por sob a narcose em que se transformara a pressão: em que nível aquelas pessoas estariam acostumadas com a morte para se poder ver algum traço de choque em seus rostos? A enfermeira que acabara de entrar, rindo e falando algo para uma das moças da recepção, saberia algo determinante para a minha vida?

A Dani passou três dias na UTI. Ela já é carimbada em suportar o terrível, sufocante e absolutamente cáustico ambiente da UTI. Quando saiu para o apartamento, sua mãe a acompanhou na primeira noite. Nas duas noites seguintes, foi a minha vez. Eu com o meu livro de Primo Levi nas mãos, que não pude ler nem a capa. O sofá do quarto, em que tem que passar o acompanhante, parece ser diabolicamente feito para impedir que se durma. É pequeno, e quando se consegue se ajeitar para descansar o corpo, a trave de madeira matematicamente situada abaixo do couro pega em alguma região letal das costas, independente da estatura que se tenha, que impossibilita o sujeito de andar normalmente pelo resto da semana. E mesmo que fosse uma cama king size, a Dani acordou várias vezes durante a noite, querendo mudar de posição na cama ou se sentar na poltrona para aliviar as dores e a falta de ar, e era de todo inviável que um de nós dois dormíssemos. A Dani mostrou uma alta resistência; ela tem 32 anos, mas passou apenas 3 dias na UTI, sendo que uma garota de 19 anos, que passou pela mesma cirurgia, teve que ficar por um período maior. Ela me disse isso sem o mérito mesquinho da competição entre convalescidos, apenas para se reconfortar de que as dores que sentia eram a parte mais desagradável, mas também a mais inofensiva do processo. Ao amanhecer, enquanto ela se esforçava para tomar um pouco do café insosso do hospital, ouvimos o silêncio ser violentado por uma voz feminina que vinha do corredor. Julguei que fosse alguma enfermeira desavisada e inconveniente que relatava algum evento festivo de seu final de semana, pois a voz era eufórica, começava baixa e trêmula e explodia em uma espécie de síncope que tinha algo de maníaco. Era como se houvesse um bêbada lá fora, mas que estivesse no período final da embriaguez para ser apenas constrangedor. Abri a porta e vi que se tratava dos gritos de dor de uma moça que dava seus primeiros passos fisioterápicos após a cirurgia, amparada por uma enfermeira. A dor era tão grande que não havia expressão vocálica que a comportasse, daí ser um grito cubista, que trazia um acento equivocado de alegria. A moça era uma loira muito bonita, usava saia jeans, deveria ter uns 25 anos. Todas as portas estavam abertas e haviam inúmeras pessoas saídas delas para vê-la, as portas que até então ficavam indevassavelmente fechadas e não deixavam adivinhar que havia pessoas atrás delas. A Dani identificou a moça como uma que estava na cama de frente à dela na UTI, que a enfermeira lhe havia dito que sentiria dores escruciantes pois abriram-lhe do lado, separando as costelas, para chegarem até o coração. Quando a paciente é aberta afastando-se as costelas, as dores são terríveis, havia gente que pedia para morrer atrás de alívio. A Dani foi aberta pelo esterno, o que acarretava menor sensibilidade pós-operatória. Acompanhei a Dani em seus pequenos passos pelo corredor, para trazê-la de volta logo pois suas vistas se escureciam de fraqueza. Durante a noite, mais uma vez, ela se levantava, se sentava, tornava a se deitar, ia continuamente ao banheiro sob o efeito do diurético.

Voltei para casa, a Dani teve alta e se encontra na casa da minha mãe. Vai ficar lá até o final do mês. Volto para lá na segunda-feira. Quando cheguei aqui, li em dois dias o livro do Primo Levi que o cotidiano do hospital me impossibilitara: É isto um homem? É um livro único, espantoso, poderosíssimo. Vou escrever sobre ele na semana que vem. Ele reforça a teoria de Tarkóvski de que a verdadeira força está na fraqueza, na fragilidade, na vergabilidade. Sua progressiva luta para se manter com uma filigrana do patrimônio espiritual do que constitui por milênios o homem é devastadoramente revelador. Por mais que pareça impróprio relacionar o tema de Levi ao que eu vi no hospital, ainda assim as evidências de uma mesma experiência de se chegar à verdade, símile entre um campo de concentração e uma UTI, me parecem válidas. Ontem comecei a ler um livrinho da Susan Sontag que tomei emprestado de um amigo, sobre o a doença e sua metáforas. Há um preconceito forte contra os doentes. Há o temor instintivo que meus filhos sentem quando fomos ver meu primo convalescido em sua casa, e que eles passaram a identificar relacionado ao cheiro de remédios que vinha do quarto. E há o preconceito estúpido, egocêntrico, bestial, do adulto que se anuncia em vantajosa oposição na escala da sobrevivência diante uma pessoa fragilizada pela doença. Desde que foi anunciado a necessidade da cirurgia da Dani, vimos diferentes matizes dessa segregação do doente acontecer com nós. Sontag trata, de maneira brilhante, sobre os estigmas que sofreram os tuberculosos no século 19 e começo do 20, e que sofrem os pacientes com câncer hoje e sempre. Mas esse estigma ocorre com todas as doenças, em maior ou menor grau, e ainda mais quando se trata de uma cirurgia cardíaca. Um conhecido meu, quando soube que a Dani passaria pela cirurgia, veio falar comigo e era todo cheio de uma hipócrita piedade, que mal escondia uma espécie de alívio, uma quase felicidade por detrás, um ponto de referência para valorizar o quanto sua vida era agraciada e profícua, o quanto o fato de ver o que para ele era a nossa desgraça salientava que ele e sua família eram seres abençoados.

E nisso se estabelece o que para mim é o maior atraso da questão: esse raciocínio exultante de sobrevivência remete sempre a um enjoativo e repelente deísmo meritocrático. Na página do Facebook desse conhecido, logo após essa nossa conversa, aparece a frase "nem tenho como agradecer a Deus por nos conceder tantas e tantas bênçãos", e a foto dele com sua esposa grávida já de três meses. A estultície de sua alegria é tão primária que o cega diante o fato de que nós temos dois filhos e a deficiência da válvula mitral da Dani se manifestou durante a gravidez, e que 90% das pacientes do cirurgião cardíaco que operou a Dani são mulheres que tem o mesmo perfil da minha esposa: tiveram reumatismo na infância e que, por alguma associação patológica, são perfeitas do ponto de vista coronário e poderiam continuar o sendo durante toda a vida, desde que não engravidem, mas que, se engravidarem, a doença se manifesta pela insuficiência da válvula mitral. Várias vezes eu tive que sair para passear com o Miles Davis, enquanto grupos de oração de várias denominações religiosas, que nem sabiam que nós existíamos, vinham fazer uma visita e orar para a Dani, depois que haviam sido informados que Deus precisaria ser reconduzido com maior apuro para um lar que, na falta desatenta Dele, resultou nisso, na moléstia, na danação, no expurgo físico e doloroso. Levi era apontado pelos outros prisioneiros de Auschwitz, na estranha hierarquia do campo, como "muçulmano", alcunha dada àqueles recém chegados que tinham tanta desprovidão de talentos e ausência total de indícios corporais de força e astúcia, que eram tidos como os primeiros a serem conduzidos para as câmeras de gás. Eram magros, com caras estúpidas, retraídos, fora do comum ou comum demais. Não pertenciam aos mais adaptados, preparados, aos mais astutos, ferinos e selvagens. 

Em uma cena inesquecível, Levi relata a volta de todo o seu grupo de 200 pessoas para o pavilhão, após terem passado pela seleção de quem iria para o crematório no dia seguinte e quem havia sido temporariamente poupado. Alguns dos que haviam sido poupados se refestelavam no chão agradecendo a Deus pela benção, sem a menor consideração de que de frente a eles estavam os que seriam mortos logo pela manhã e mal tinham a metade de um dia sequer de vida. "Se eu fosse Deus", escreve Levi, "cuspiria fora a reza deles". Assim me pareceu o relato preciso da Dani sobre a UTI, sobre a notificação da morte que ela ouviu sendo feita pelo telefone por uma enfermeira aos parentes da paciente, a sensação de pequeneza e vulnerabilidade, sobre o grande absurdo de se manter a crença de que alguém é melhor ou imune a isso, estando entubada e sedada. Assim me pareceu a frágil beleza da loira gritando de dor pelo hospital_ e como, em decorrência, ela me pareceu mais bela ainda, assim como a Dani, ao vê-la com os cabelos presos e lavados, me pareceu radiante de beleza.

18 comentários:

  1. Tinha escrito um comentário maior, mas caguei tudo aqui na caixa de comentários, então vai só isso mesmo: meu pai também colocou essa válvula mitral de tecido orgânico, acho que dez anos atrás.

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    1. É uma cirurgia com 98% de sucesso. Confortador saber disso.

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  2. Na sexta passada, um conhecido pediu por uma informação banal. Eu a tinha e a resposta era muito mais simples do que ele imaginava. Bastaria que ele andasse uns 200 metros. Conversa daqui e dali, ele não escondeu - ou exibiu à sua maneira - estar bastante deprimido. Espera pelo resultado de uma biópsia. Ele é médico. Pressente a confirmação de um câncer de pâncreas. Sabe que terá uma cirurgia bem difícil e tratamento quimioterápico num bom prognóstico, pensei. Há pouco, retirou a vesícula.

    Seguramente acima dos 50 anos, talvez quase 60, ele sempre pareceu bem mais jovem com seus bíceps delineados em academia e abdômen que não se percebe por sob a camisa. Sou bem mais novo e tenho muito mais cabelos brancos que ele. Quem não me vê com frequência costumam se surpreender com o avanço grisalho. "Não é natural, estou descolorindo", digo para aliviar a perplexidade alheia.

    Eu conheço esse médico há uns dez anos, quando incrédulo entrei no seu carro über. Assim eu apelidei seu carro. Era um esportivo que até hoje não sei o nome, hediondamente amarelo e perigosamente conversível. Enquanto eu estava ali, desprotegido por teto e janelas, eu só pensava em não passar por ninguém conhecido na rua. Eu fiquei extremamente desconfortável e ele parecia ter a certeza de que eu experimentaria, sei lá, uma poderosa sensação de virilidade.

    Quando ele me falou do câncer de pâncreas, eu tive essa sensação absurda e abjeta de poder sobre o outro, mas sem poder sobre aquilo que me rodeia. Talvez o meu tom de voz tenha transmitido essa "compaixão hostil". Fiquei com vergonha de me orgulhar do meu abdômen já meio treme-treme e do meu sedentarismo de resultados benignos até agora. Às vezes, é bem difícil ser humano.

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    1. Quando eu fazia estágio em veterinária, o sócio de uma granja onde eu trabalhava era um médico que acabara de ser diagnosticado com aids. Era o tempo em que isso era uma sentença de morte, e os últimos dias desse sujeito foram de estático desespero. Esse seu relato me fez recordar. Um dos funcionários da granja contou da vez em que pegou carona no carro de luxo do médico, e foi a mesma sensação desse seu comentário.

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  3. Planos, projetos, possibilidades, prazeres, sabores, aventuras, vento no rosto, sombra de arvore, água fresca, descanso na rede e a fragilidade de uma vida que experimenta o que é passageiro e inconstante. Resolvi pelo abandono, talvez por temer uma decepção que é certa, quando se espera pelo mérito dos ritos e formulas a resposta em bênçãos. O abandono e a espera na graça com uma confiança inabalável de que a experiência da vida é um presente recebido nao por merecimento, mas por doação.

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  4. Tô na correria, e quando der tempo passo aqui pra dar uns pitacos sobre esse livro do Levi (na verdade mais sobre outro) e sobre os do Le Clézio.

    Por enquanto, para fazer a devida manutenção da felicidade humana, esta fotografia: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/09/1349636-garcia-marquez-vai-a-inauguracao-de-boliche-no-mexico-e-mostra-dedo-para-fotografo.shtml

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    1. Talvez seja o "A tregua". Comprei-o na edição de bolso ontem, e já estou lendo.

      Que foto histórica do Gabo, Obrigado, João!

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    2. João Antonio Guerra3 de outubro de 2013 às 20:54

      Não, A trégua não, mas um livrinho dum Michel Laub, um Diário da Queda. Tenho troços lendo nossos nacionais contemporâneos, mas me sinto na obrigação e até possuo uma fé neles. Me decepcionar é quase certo, mas do meio das decepções surgiram Bernardo Carvalho e Alberto Mussa, daí dá pra dizer que saí lucrando.

      Laub não foi nenhum lucro. O Diário da Queda é pessimamente escrito, uma bagunça cheia de apostos e homens com daddy issues. Terminei durante só um tarde de leitura, sentindo que a única força do romance é a que ele pega emprestado da invocação insistente de nomes e temas maiores: Auschwitz, o livro do Levi, o Suicídio; tem também outro tema colossal, que ele confina a um termo estéril e o repete irritantemente (não lembrava qual era, fui verificar na biblioteca da faculdade), a "impraticabilidade da experiência humana". Essas coisas todas aparecem no texto com a frequência e a naturalidade de um universitário que, para ser levado a sério, recorre ao name dropping. E, no caso do Laub, deu certo.

      Naquela tarde terminei o livro do Laub e imediatamente baixei o do Levi, o É isto um homem? O resultado dessa leitura encaixada foi saber quais pessoas são poetas e quais são apenas empulhação.

      O Le Clézio é um poeta. Tô torcendo para que, entre as suas compras, esteja O africano ou Refrão da Fome, principalmente esse segundo. Jamais esquecerei aquela primeira paginazinha de Refrão da Fome, uma pequena introdução em que o Le Clézio conta como corria atrás dos caminhões distribuidores de comida na guerra, e como bebia até o óleo das latas. Narra isso para assim sabermos que aquela fome que nos desumaniza não é a fome de sua obra, pelo contrário: a fome naquele romance é uma força escondida na criatura humana.

      Quanto ao gabo, você está certíssimo: essa fotografia é sim histórica. Digo também que é engraçado ler a notícia da folha, em que o jornalista fica sambando estupidamente, dizendo que "não está claro se o fez em tom de brincadeira ou se estava irritado".

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    3. Os Le Clézio que comprei são A Querentena, que é de uma beleza e delicadeza superior, e, movido por este, comprei o Africano e A História do Pé. Trata-se de um escritor diante o qual não há quem se renda diante a sua qualidade. Desses autores que de imediato se reconhece a extrema relevância.

      Li horrores sobre esse livro do Laub.

      Estou na metade de A Tregua, sublinhando a cada parágrafo. Levi foi um escritor de uma maturidade, raiva, indignação e compreensão fora de sério. Comecei a escreveu um texto sobre ele, mas não me satisfez, mas sinto a necessidade de fazê-lo, para melhor entender.

      Há uma parte de arrepiar (há várias) em A Trégua, em que Levi conversa com o astuto e previdente grego que lhe responde, quando Levi o agracia com a notícia de que deveria diminuir a tensão pois a guerra havia terminado, ao qual o grego responde: "A guerra é para sempre".

      Ah... se a barreira de bestialidade pudesse ser devassada uma vez só, e o que Levi prognostica pudesse ganhar essa mídia mundial que corrompe a juventude com sentimentos de permanência e estúpida imunidade. Seria um avanço único.

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    4. João Antonio Guerra4 de outubro de 2013 às 20:20

      Anotei A Trégua. Será o próximo da lista... depois de Bleeding Edge.

      Já piratearam, Charlles, é só procurar no piratebay. Estou apenas duas horas romance adentro e já digo com fé que Bleeding Edge é o melhor livro que caiu nas minhas mãos este ano, vencendo todo o resto com muita folga.

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    5. Tudo do Pynchon é extraordinário, João. Depois de Bellow, ele é o maior escritor americano depois de Faulkner. Eu baixei também, agora, o Bleeding Edge, mas só por curiosidade. Não consigo mesmo me recolher nesta forma de leitura.

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  5. É Isso um Homem? foi de longe o livro que mais me inquietou. De fato um dos maiores atestados de sobrevivência da dignidade em meio à barbárie. Sabe que grande parte do livro é projetado e interposto à visão do inferno da Divina Comédia de Dante? Trata-se de um travelog que imita aquele de Dante. Pra mim isso só, tirante todo o aspecto biográfico, já prova que o experimento de Auschwitz falhou, e que o homem venceu.
    E aquela parte que você sublinhou, sobre a resposta de Deus aos bem-aventurados que esfregam a sua bem-aventurança no fucinho dos outros, foi simplesmente para mim a mais verossímil resposta que já se deu ao problema da teodicéia, o maior golpe que qualquer teologia, cristã ou judaica (pós-holocausto), já deu no Teísmo.
    "Do meu beliche, no terceiro andar, vejo e ouço o velho Kuhn rezando em voz alta, com o boné na mão, meneando o busto violentamente. Kuhn agradece a Deus porque não foi escolhido. Insensato! Não vê, na cama ao lado, Beppo, o grego, que tem vinte anos e depois de amanhã irá para o gás e bem sabe disso, e fica deitado olhando fixamente a lâmpada, sem falar, sem pensar? Não sabe, Kuhn, que da próxima vez será a sua vez? Não compreende que aconteceu, hoje, uma abominação que nenhuma reza propiciatória, nenhum perdão, nenhuma expiação, nada que o homem possa fazer, nunca chegará a reparar? Se eu fosse Deus, cuspiria fora a reza de Kuhn"
    Aguardo até hoje por um Judaico-Cristianismo tão sensível ao sofrimento como o livro do Levi.
    O Muselmmaner, segundo me consta, não foi uma invenção do Levi. Fazia parte do vocabulário do campo de concentração. O From Death Camp to Existencialism do Viktor Frankl também traz à tona esse "personagem." Mas de fato foi o Levi que imortalizou essa espécie de hominídeo.
    Você está em grande estilo aqui.
    Fico feliz que a Dani esteja recuperando bem.

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    1. Eu vi esse livro como um libelo para o valor do homem. O salto do Levi de 70 anos pelo vão daquelas escadas torna emblemático o que o Levi de 30 anos escreveu. Vou procurar escrever sobre esse livro nesta semana. Estou lendo o "Necrópole", do Boris Pahor, também um livro espantoso, e engatilhei a leitura de "A trégua". O Necrópole vim a conhecer através de uma resenha magnífica de Claudio Magris_ que reencontrei, agradecido, como prefácio da edição brasileira recém lançada pela Bertrand Brasil.
      Obrigado, Luiz.

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  6. Charlles, seu texto me fez recordar de um aforismo que escrevi e que trata justamente dessa postura miserável que consiste em  agradecer a Deus por uma pseudograça recebida, mas em função duma desgraça vivida por outrem.
    .
    .
    “A gargalhada é o estampido,
    o tiro d’alma a matar o tédio
    da bípede súplica a Deus
    pra privatizar as graças,
    socializando desgraças.”

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  7. Hoje devo passar a noite com meu avô no hospital. Ele está internado fazendo uns exames para rejeitar/confirmar a suspeita de câncer no fígado. Anteontem, das 16h às 4h minha mãe e eles ficaram esperando, em cadeiras, para pegar um leito (hospital particular e convênio que lhe permite quarto privativo). Às 4h conseguiram o quarto, q meu avô divide com mais dois pacientes - um deles tem delírios, algo assim, pois volta e meia dá gritos, sendo assim o sono dos outros interrompido.
    São gritos que temos que compartilhar.
    Estou recebendo minha sogra, e sua amiga, em casa. Elas vieram do Paraguay pra ficarem alguns dias. Ontem passeei com as duas. Visitamos a capela de Schoenstatt aqui em Porto Alegre. Ela costuma ir na de Asunción. É um movimento católico. Quando saímos da capela, a freira nos apontou papéis e canetas disponíveis para fazerem-se pedidos à "Mãe Admirável três vezes etc". Não sou católico, apesar de minha formação. Mas fui lá e pedi pra força, pela saúde de meu avô, pela saúde da filha do meu cunhado e pela filha do meu primo, que estão por nascer. Uma amiga que perdera o seu avô disse pra mentalizar a cor verde e associar ao meu avô. Tampouco sei disso, mas não poderá fazer mal, se nenhum mal faz. E o bem que poderá fazer, não posso medir, como tantas das coisas imensuráveis.
    Estou sendo bem confuso quase propositalmente. Não creio em desgraça, apenas na graça q não temos. E não vai ser pedindo, é claro. Talvez inventando; arrancando de si. Tenho q ir.

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    1. Cada um sabe do verdadeiro diálogo que tem, em silêncio, com o Imponderável. Força aí, meu caro Arbo.

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    2. João Antonio Guerra3 de outubro de 2013 às 20:04

      Toda a força do mundo pra você.

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