sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Duas semanas

Quase duas semanas de aflição em muitos sentidos para mim, essas duas últimas semanas. Fiquei confinado na capital, e eu odeio, fico depressivo, ansioso e estressado ao extremo quando fico na capital. Mas tive que suportar. Apartamento, trânsito, a vida enlatada, burra, bestializada, elevadores, carrancas, os velhos moços de ternos. As 24 horas corriqueiras passaram a demorar dobrado. Um verdadeiro tormento. Fiquei preocupado com meu cão Miles Davis, sua solidão; me doía imaginá-lo com os olhos parados no tempo se questionando o que diabos havia acontecido. Uma noite, lá para quinta-feira passada, me tranquei no banheiro do apartamento da minha mãe e, debaixo do chuveiro, chorei. Se a Dani me flagrasse, iria questionar se eu chorava por causa de sua cirurgia, ou por causa de algum peso real que o universo havia enviado, alguma coisa com quilate e legitimidade. E eu teria que responder que chorava em torrente porque não suportava, enfim, ver minha irmã mais uma vez, ad eternum, fixada em seu i-phone. Me deu uma angústia colossal ver minha irmã se deitar de frente à tv ligada e pegar, com calma, o celular, para iniciar outro ciclo de digitações infinitas. A minha irmã, que direto confundo chamando seu nome quando quero chamar o nome da minha filha, a mesma garota que se deitou em meu ombro um dia antes da minha filha nascer e, do alto de seus 24 anos, me disse se, com o nascimento da Júlia, ela deixaria de ser a caçulinha da família. Tá bom! Sentimentalismo demais, e com um ponto de exclamação, sendo que o pecado máximo para um pretendente a escritor é o uso do ponto de exclamação. Mas que se foda. Fiquei essas duas semanas flanando pela cidade, pelos shoppings (aonde mais ir?). O grande triunfo é que passei a conhecer esse escritor maravilhoso do Le Clézio. Achei o A Quarentena pela metade do preço na fnac. Sentava-me em um barzinho, pedia uma cerveja preta, ou me sentava em um dos parques ainda não de todo dominado pelos usuários de crack, e me punha a mergulhar nesse livro majestoso. Que felicidade, nessas circunstâncias, encontrar sempre surpresas na literatura. O livro casou como uma luva com o momento de ansiedade por qual eu estava passando. Costuma ser assim, os tais sinais do universo. Não há como não acreditar neles, por qualquer lado que se veja; o acaso também tem muita eloquência. Eu ali esperando o dia da cirurgia cardíaca da Dani, me sentindo em absoluto fragilizado, e minha antena interna se dando ao luxo de sistematizar um código cosmológico. Fiquei distante da net, mas ainda assim pelo computador pude ver um documentário espantoso sobre a resiliência. Trata-se da história do líder da banda Pentagram, que eu nunca tinha ouvido falar, e o filme se chama Last days here. As primeiras cenas são muito pesadas, mostrando-o velho, raquítico, confinado na casa dos pais, o olhar paranoico, os braços enfaixados dos ombros aos pulsos, mas que em dado momento ele puxa as ataduras e se vê a carne viva por debaixo, lancetada por tantos picos de heroína de uma vida toda de viciado. Um Syd Barrett do hard rock. Um dia antes da cirurgia fomos à casa do meus tios, ver o meu primo Gustavo, sobre quem já falei neste post. Praticamente os médicos reconstruíram ele. Demos um abraço, ele se sentou no sofá deixando as muletas encostadas à parede, e tudo foi sorriso e descontração. Ele contou tudo o que lhe acontecera desde que caíra de uma altura de 8 metros em um viaduto da cidade, após a mureta de proteção ter cedido quando ele se encostou nela para falar ao telefone. Em sua cabeça, os cirurgiões colocaram a inacreditável quantidade de 48 parafusos, e do lado direito há um vago sem osso em que encostei a mão e senti como se pegasse na moleira de um recém nascido. Perguntei por quantas cirurgias ele havia passado nesses seis meses do ocorrido, ele riu alto, pediu auxílio do meu tio sentado ao lado, mas nenhum dos dois soube ao certo. Umas vinte, ou trinta, disseram, rindo com radiância. Mostrou os raio-x de sua perna direita: colocaram uma tala metálica por todo o canal do fêmur, mais uns pregos na rótula. Ele colocou minha mão em seu joelho para que eu sentisse a ponta de um dos pregos. Vai passar por mais umas cinco cirurgias, para acabar de consertar o crânio, repor o olho esquerdo que está exoftálmico, e retirar o prego da rótula. É incrível como ele passava uma imagem de liberdade e imunidade: afinal, tudo já havia acontecido com ele, não tinha como esperar pelo pior, porque o pior já havia chegado. Na fnac, eu li uma página de um livro do Orwell em que ele fala de seus tempos de pobreza extrema em Paris e Londres, dizendo sobre a adstringência da pobreza absoluta, o quanto ela traz uma sensação de leveza e destemor, pois não há mais o que temer quando já se está no fundo do poço. E o que pode existir de melhor do que uma vida sem medos? Assim estava o Gustavo, um rapaz lindo de quase dois metros de altura, que sempre foi a cordialidade em pessoa, de um coração gigantesco, sentado ali na minha frente com vinte quilos a menos e um sorriso de arrasar quarteirão. Vê-lo foi como retirar um mar de sombras da minha alma e ser arejado por uma brisa marinha e pelo sol mauriciano do romance de Le Clézio. Eu queria passar horas e horas naquela sala de um apartamento onde havia um convalescente e seu pai aposentado, ambos assistindo televisão com a plenitude despreocupada do casal do bem do filme Fargo. Mas estávamos ali eu, minha irmã, a Dani e minha avó Mirtes (ah, também tem a minha avó Mirtes, mais outro sinal), e é claro que tinha que levá-las para casa e que toda a visita tem prazo de duração. O Gustavo contou que, ao cair do viaduto, um casal de jovens parara o carro e lhe prestara socorro: a mulher massageava-lhe o peito para reativar o coração, e o homem lhe fazia respiração boca a boca, retirando o sangue que lhe entrara nos pulmões e o cuspindo fora. Se não fossem eles, o Gustavo estaria morto. Às cinco horas da manhã. No hospital, os médicos deram 1% de chance de sobrevivência para ele, mas a insistência de uma neurocirurgiã (uma baiana loira, que vive toda semana na ponte aérea entre Salvador e Goiânia, o que pincela com cores mais vivas esse enredo de coisas improváveis), que impôs à equipe que se fizessem as primeiras cirurgias no Gustavo, que lhe deu mais possibilidades de permanecer vivo. Gustavo ficou dois meses de coma, acordou retirando sondas e cateteres e tendo que ser sedado de imediato para que não pulasse fora da cama e desfragmentasse os arranjos para colar os tantos fragmentos do seu fêmur direito. Aos 32 anos, o Gustavo era alcoólatra, ainda que não estivesse bêbado na noite do acidente, e fumava duas carteiras de cigarros por dia. Ontem foi o dia da cirurgia da Dani, cinco horas de duração, e deu tudo certo. Ela se encontra na UTI; vai ficar lá por três dias, depois mais três dias internada no apartamento. Passei na fnac antes de vir embora para a minha cidade, e comprei mais dois livros do Le Clézio e um do Philip Roth, dois custando 20 reais e um 11 reais; na fila para o pagamento só havia eu, mas ao me aproximar do balcão um rapaz entrou na minha frente dizendo "não vou aceitar isso não, eu cheguei primeiro, estou com pressa"; eu não havia visto outra pessoa na fila, mas não parei para elucidar o que acontecera. Fiz um gesto para que ele passasse na frente, e pedi desculpa por não tê-lo visto, mas a moça disse que já estava passando minha compra e ele teria que esperar. O rapaz continuou falando não sei o que, eu lhe respondi que eu não iria caçar confusão por causa de uma fila, e uma fila em que havia só duas pessoas. Uma outra atendente o chamou e ele foi para o caixa ao lado. Cheguei em casa de noite, quase não consegui passar pelo portão pois o Miles Davis demonstrava tanta saudade que não me deixava entrar. Ficamos meia hora rolando no chão, nos abraçando e fazendo afagos, e saí para comprar duas kaftas de frango, uma para mim, outra para o Miles.

20 comentários:

  1. que boas notícias sobre o Gustavo. que história tem esse guri. não estava sabendo q a Dani precisaria dessa cirurgia, que bom que foi tudo bem. Ficarei aqui a torcer por plena e pronta recuperação. Saludos!

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    1. Acompanhando o arbo... Força a todos... E que a sua mulher e seu primo, Charlles, deixem rapidamente esses árduos caminhos que a vida - de um jeito ou de outro - sempre nos apresenta...

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    2. Obrigado, Ramiro e Arbo. Eu não disse nada aqui sobre esse assunto até agora porque estava sem cabeça pra coisa.

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  2. Ufa! Temia que algo tinha saído em desacordo com o que foi previsto pelo médico, mas que bom que a Dani está bem. Esse Gustavo deve (estar a) entender direitinho a frase "nasceu de novo".

    "os velhos moços de ternos" oi

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    1. Obrigado, Matheus. Desculpe não ter respondido a seu e-mail carinhoso. O mesmo motivo do comentário acima.

      O Gustavo está se tornando um Pascal. Na noite anterior à cirurgia da Dani, a mãe dele disse que o encontrou no quarto rezando para que tudo saísse bem. Depois de uma dessa, é perfeitamente explicável.

      Recebi e-mails de outros amigos do blog e não os respondi. Espero que me desculpem. :-)

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  3. Bom saber que a "matéria" que faz você ser você está intacta no meio do seu drama pessoal: O Waldenianismo, a fuga para (na) Natureza (ou talvez essa sua síntese entre Cultura e Natureza onde a Cultura sitiada se refugia na Natureza), a resiliência do humor em meio à dor (quem não se rende a duas Kaftas no espeto, mesmo diante da tragédia pessoal?), etc.
    E enquanto eu lia seu relato, ao mesmo tempo perpassado por toda a subjetividade própria do seu drama, não pude deixar de concordar com você que tudo isso o que você passa não é mais sério que o presságio do fim de nossa civilização representado na acefalia do i-phone. Você ganhou ainda mais a minha consideração com a história de que chorava copiosamente no chuveiro porque a sua irmã é mais uma vítima da simbiose entre gente e telefones inteligentes.

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  4. Pra Dani e pro Gustavo, boa sorte e boa sorte.

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    Considero Jonathan Franzen um idiota, apesar d'As Correções, de Liberdade (mais do primeiro), mas seus esforços de jogar nas costas da farsa da conexão incessante são algo que aplaudo; aplaudo de pé sem concordar tintim por tintim, só sabendo que frases assim são necessárias: "It's doubtful that anyone with an internet connection at his workplace is writing good fiction"

    Toda noite, chegando do estágio: meu irmão deitado num sofá, minha mãe sentada no outro, cada um com seu notebook, o dele fervendo sobre a barriga, o dela apoiado no braço do sofá; a tv ligada pros dois e pra niguém; os pratos da janta esvaziados e abandonados na mesinha de centro...

    Pulo os fios dos carregadores e janto sozinho na cozinha.

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    1. É triste ver esse quadro de zumbização. Aqui em casa meus filhos ficam dias sem ligar a tv ou o computador, e no domingo estavam de frente à tv da avó enquanto passava um desses estúpidos e animalescos programas de auditório. A sorte é que estavam embrenhados em suas imaginações e nem sequer olhavam para o tubo.

      Obrigado, João.

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  5. http://www.youtube.com/watch?v=5HbYScltf1c

    Louis CK falou sobre isso anteontem.

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  6. Que bom que a cirurgia de sua esposa correu bem, e seu primo vai melhorando. Tudo de bom para ambos, e seguimos alternando bonanças e tempestades. Vejam: http://www.washingtonpost.com/world/europe/discussion-of-kants-philosophy-in-russia-ends-in-gunfire/2013/09/16/cf609472-1ebb-11e3-9ad0-96244100e647_story.html. Eu nunca tinha ouvido falar em kafta, e é óbvio que na primeira passada de olhos, eu li Kafkas de frango.

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    1. Estão se matando por Kant!

      Me complico com essa palavra também, e sempre a misturo com o nome do grande checo. Passei algum tempo achando que era cáfila, mas depois de uma consulta no Google vi o termo correto e que nada tinha a ver com camelos.

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    2. Essa história do Kant é o melhor quadro do Monty Python jamais escrito pelo Monty Python!

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  7. Bom saber que tudo vai bem Charlles.
    Peço a Deus, EM NOME DE JESUS CRISTO, que conceda paz e saúde a vc e família.
    Saber que a capital não lhe faz bem, e ao mesmo tempo ver, que da experiência nela fez surgir verdades essenciais ainda não ditas é um alento.
    Depois de "tudo" na capital veio a festa do Miles para apagar o que restou da grandiosa "prosperidade" humana.

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  8. Que a patroa e o primo cumpram com os bons prognósticos que têm.

    Adoro rango árabe, mas nunca vi kafta de frango. Não sei se meu fundamentalismo o admitiria. Provavelmente sim. Acho que só existe esfirra de frango no Brasil, mas eu gosto mesmo da que é feita de carne.

    Eu já me meti a fazer homus, a melhor pastinha das arábias - e do mundo. Ficou bom, já que é impossível ficar ruim. Mas deve haver um truque para além do que eu googlei, porque não voei de tapete mágico como de costume. O Miles iria traçar, tenho certeza.

    Saúde e sorte para os seus.

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    1. Também adoro comida árabe, mas o lado "herege". Nada é melhor que pão sírio com salada de ariche.

      Saúde e sorte para todos nós, Fabio. Obrigado.

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