quarta-feira, 26 de junho de 2013

O sorriso



"Há uma fotografia, tirada por volta de 1945 em Islington, de Orwell com seu filho adotado, Richard Horatio Blair. O garotinho, que devia ter uns dois anos na época, está radiante, repleto de felicidade. Orwell segura-o gentilmente, com as duas mãos, também sorridente, satisfeito, mas não eufórico_  é mais complexo que isso, como se tivesse descoberto algo ainda mais valioso que a raiva_, com a cabeça um pouco inclinada, um olhar prudente que pode trazer aos cinéfilos a lembrança de um personagem de Robert Duvall, em cuja história pregressa havia visto muito mais do que alguém poderia desejar. Winston Smith "acreditava ter nascido em 1944 ou 1945...". Richard Blair nasceu em 14 de maio de 1944. Não é difícil adivinhar que, em 1984, Orwell estava imaginando um futuro para a geração de seu filho_ não um mundo que desejava para ele, mas um contra o qual queria alertá-lo. Ele não tinha paciência para previsões do inevitável e permanecia confiante na habilidade das pessoas comuns de mudar as coisas, se quisessem. Em todo caso, é para o sorriso do garoto que retornamos, um sorriso direto e radiante, saído da fé inabalável de que o mundo é bom, no fim das contas, e de que podemos sempre confiar na decência humana, assim como no amor paterno_ uma fé tão honrada que quase podemos imaginar Orwell, e talvez nós mesmos, por um instante que seja, jurando fazer tudo o que deve ser feito para mantê-la livre de traição." (Thomas Pynchon)

terça-feira, 25 de junho de 2013

George Orwell


25 de junho de 2013, cento e dez anos do nascimento de George Orwell.

            A política de Orwell não apenas era de esquerda, mas à esquerda da esquerda. Ele fora à Espanha em 1937 para lutar contra Franco e seus fascistas simpáticos ao nazismo, e lá aprendeu rapidamente a diferença  entre o antifascismo real e o falso. "A guerra espanhola e outros eventos de 1936-37", escreveu dez anos mais tarde, "fizeram a balança pender, e depois disso eu sabia onde estava. Cada linha de trabalho sério que redigi desde 1936 foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, tal como o conheço."
             Orwell via a si mesmo como um membro da "esquerda dissidente", distinta da "esquerda oficial", que significava basicamente o Partido Trabalhista Britânico, do qual boa parte ele passara a enxergar, bem antes da Segunda Guerra Mundial, como potencialmente, senão já fascista. Mais ou menos de forma consciente, fez uma analogia entre o Partido Trabalhista e o Partido Comunista sob o domínio de Stalin, os quais, sentia, eram movimentos que professavam a luta das classes trabalhistas contra o capitalismo, mas que na verdade estavam preocupados apenas em estabelecer e perpetuar seu próprio poder. As massas só existem para ser manobradas: por seu idealismo, seus ressentimentos de classe, sua disposição para trabalhar em troca de pouco_ e para ser vendidas repetidas vezes. (Do ensaio de Thomas Pynchon, na edição de 1984 da Companhia das Letras)

domingo, 16 de junho de 2013

Pequeno comentário sobre Ulisses



Esse é um dos livros em que o enredo é o de menos. Importa a incrível vivacidade e energia verbal de Joyce. É o anti-limite de sua superioridade como escritor acima de todos os outros_ de Mann, de Faulkner, Proust, Kafka_ que iria subir à estratosfera e se perder com o livro seguinte, o ilegível Finnegans Wake. Trata-se de uma brincadeira bem urdida, uma ciranda calculada na espontaneidade de um severo trabalho de anos; não uma tentativa, mas uma culminação do resumo do ser humano e de sua história, e um enorme deboche à febril ciência da psicanálise (se tudo que passa pela cabeça de um homem comum é simploriamente banal, é ridículo sistematizar seu comportamento contraditório numa cabala do subconsciente). Ama-se Bloom e sua esposa, ama-se Dedalus e o excessivamente extrovertido Buck Mulligan, com todos os seus pecados, suas desimportâncias, suas carências.

É o romance da falta de sutilezas, da falta de coqueteria, o romance essencialmente não-burguês (não ANTI-burguês, pois revela o enorme descaso do autor para contrapor uma reação à uma sociedade medíocre), não-científico, e, por mais que possa ser surpreendente, não-literário. Dedica-se todo à celebração da literatura, mas é anti-empolação e anti-oitocentismo. Tanto que depois de Ulisses, aboliu-se a possibilidade de escrever como Victor Hugo, Sully Prudhomme, Romain Rolland, e outros. Ulisses aboliu a literatura em diversos países, obrigando os novos escritores à adaptação. É a suprema manifestação do humor, do humanismo, da redenção velada. Uma mistura de Nona Sinfonia com a fuga da Sinfonia Júpiter, com cabrioladas de um jazz que abriu as portas para as correntes de ritmos de Coltrane e dos minimalistas. O maior mérito de Joyce foi ter controlado sua extraterrestridade para dar à obra um caráter perfeitamente legível, pois seria natural que depois de ter rompido todos os limites, seu último passo seria Finnegans Wake, assim como o passo seguinte_ o estilo tardio_ de Beethoven fosse os ùltimos quartetos e a Missa Solemnis.

Aldous Huxley lamentou que Joyce tivesse optado pela abdução. Poderia ter escrito importantes livros da estatura dos de Stendhal. Mas é compreensível. Deportou-se do mundo dos viventes. Não lhe diria nada a estranheza e prazer de incompreensão libidinosa que o mundo adotaria ao analisar as cartas singelas que escrevia para Nora Barnacle, seu amor de toda a vida. Onde revelava a leveza de seu espírito, a ralé via apenas a sujeira sexual de um intelectual reprimido. Por isso é desconcertante que achemos de uma beleza sem igual as passagens de Bloom se masturbando, de Molly cedendo-se mais uma vez com seus repetitivos sim, sim,sim, da última página, de Mulligan se atirando seminu ao mar, ao lado dos pescadores. Uma impossível beleza nesses gestos prosaicos, e uma lucidez que desmascara toda a hipocrisia, toda pompa. Uma declaração de amor à humanidade, antes de mais nada, mas uma humanidade ainda de um distante porvir, livre das tralhas da ciência e das hierarquias, e centrada no cultivo das idiossincrasias soltas e intimistas de si mesma.

Por isso que é tão espantoso a Buck Mulligan quando Stephen Dedalus revela que, no leito de morte de sua mãe, se recusou a se ajoelhar; mas não pelo constrangimento à mãe, mas pelo constrangimento contra si mesmo. A liberdade do homem que tomou suas próprias rédeas e manda as convenções e a opinião alheia às favas…

16 de junho de 2013





























sexta-feira, 14 de junho de 2013

Nesta noite de sexta desterrada do infinito


Apologia



Ontem tive uma crise de riso ao assistir a uma matéria de um noticiário da tv. Ainda agora, quando me lembro da coisa, uma alacridade fora do comum enche meus olhos de lágrimas. O âncora, seriíssimo, sai de uma informação qualquer sobre chuvas ou buracos nas estradas, e começa e ler o tele-pronto: "uma nova modalidade de roubo preocupa os moradores da cidade x, em São Paulo". Enquanto a voz carregada de uma tensão barítona prossegue no relato, a tela corta para as cenas de uma câmera de segurança do que parece ser o pátio de uma oficina mecânica, à noite. Mal se vê alguma coisa, mas em segundos, acompanhando a narração, o telespectador consegue perceber o vulto de um homem magro que aparece no foco da imagem, tendo ele pulado o muro da oficina. O homem moreno porta uma espécie de vara longa nas mãos, e no mesmo momento, naquele imediatismo turbulento e selvagem que tem o flagrante de um acidente natural, um tsunami ou um desabamento de terra, um cão negro imenso pula em direção ao sujeito. Daí começa uma espécie de dança frenética desajeitada, um pega-pra-capar, em que o sujeito e o cão se atracam, ambos parecendo possuídos por um fogo de santelmo, o que dá a impressão de que aceleraram o movimento do filme. Logo em seguida aparece as imagens de uma outra câmera de segurança, em que mostra o sujeito andando pela rua arrastando uma caixa de papelão com o rottweiler preso dentro. "Como é que vamos nos defender de uma situação destas", diz o proprietário do cão, aturdido, "se o ladrão tem coragem de roubar rottweiler e pit-bull?". Eu olho para a minha esposa e caio num ataque de gargalhadas que só vai se atenuar mais tarde quando reportam os protestos em São Paulo contra os aumentos da passagem dos transportes públicos. As barricadas improvisadas pelos manifestantes e a insegurança de guerra das ruas tomadas por trabalhadores, estudantes e policiais, me faz esquecer um pouco a simpatia involuntária que eu sinto por aquele inacreditável indivíduo. O repórter diz que o prefeito chegou de Paris e disse que está inamovível da decisão de aumentar as tarifas. Me vem um pensamento que eu não ouso revelar para a Dani, ouvindo o repórter ridicularizar um homem que tirou a camisa e se ajoelhou de braços abertos diante uma linha de policiais a cavalo: "quando é que nós, brasileiros, vamos despertar para a verdade de que estamos absolutamente sozinhos?".

A brutalidade fria de "A festa do bode"



Mario Vargas Llosa é tão diferente de seus pares da literatura latino-americana que o fato de ser praticamente o único neoliberal num cenário tomado por escritores de esquerda é o que deveria ser visto como a mais pueril de suas idiossincrasias. Mas como tudo por essa parte das Américas descamba para o pejorativismo político, ainda assim sua acusação em nada bombástica sobre a corrupção de uma esquerda anacrônica e desfuncional em franco processo de definhamento é bem menor que a força de contestação contra o sofrimento humano gerado pela alienação e pela imposição política assassina de romances como esse A festa do bode, de 2000. Em um ensaio sobre os últimos anos de vida do romancista chileno José Donoso, Llosa diz que se inclinou no leito de enfermo e disse ao pé do ouvido de Donoso: "Henry James é uma merda", ao que Donoso, um fervoroso anglicista, respondeu: "Flaubert é uma merda". Llosa é o único escritor francês entre uma classe de autores cuja influência é toda de autores norte-americanos e ingleses; e Llosa é o único autor cem por cento realista em um grupo de criadores universalmente distinguidos pelo realismo fantástico, além de ser também o único cuja obra tardia é tão representativa em termos de qualidade e prolificidade quanto a sua primeira fase. Tendo em mente esses atributos, e a solidão de Llosa como último defensor latino-americano da importância da cultura e da escrita em uma série de obras de não-ficção de notória grandeza, pode-se perceber o alcance das mensagens que circundam o lançamento de um romance como A festa do bode, no tocante às interpretações subliminares do por que foi escrito quase 40 anos depois dos eventos terríveis que são tema da obra, e do por que no ambiente aparentemente seguro da nova democracia de liberdades individuais da América Latina do século XXI. Por que Llosa decidiu incomodar publicando um livro tão inverso à realidade atual, descrevendo coisas tão confinadas no passado quanto as torturas, os estupros e os assassinatos da ditadura dominicana de Rafael Trujillo? Apenas para re-solidificar a desusada tradição das letras regionais de produzir um romance sobre os tantos ditadores sanguinários que proliferaram por aqui (desde O outono do patriarca e O Eu supremo nenhum escritor hispano-americano se aventurou por esse gênero, lá se iam 25 anos)?

Qualquer outro escritor que tivesse a coragem de cometer essa sandice teria dado com os burros na água. Basta ver Updike e Bellow, que tentaram a incursão pelas regiões da barbárie terceiro-mundista da dominação patriarcal absoluta, e em decorrência escreveram o que há de pior em suas bibliografias. Para a função, ninguém mais preparado que o francês, liberal, aparentemente já relegado   (à época) em definitivo pelo Nobel, Llosa, com seu estilo de frieza fotográfica que misturava Goya com a coloquialidade provinciana dos tabloides de uma imprensa dissidente de vida curta encontrada nos empoeirados arquivos das bibliotecas locais, como fizera com seu romance histórico sobre Canudos. O impacto de A festa do bode, sua secura, sua fremente adrenalina, faz com que a dinastia Trujillo, que a maior parte das pessoas bem instruídas sequer sabia ter existido, retorne à ordem do dia para o leitor. Enquanto eu percorria essa páginas aterrorizantes, fui me inteirando pela net sobre o assassino Johnny Abbes Garcia, chefe do serviço de inteligência de Trujillo; sobre Ramfis Trujillo, o filho estuprador compulsivo e torturador; sobre a tragédia das irmãs Mirabal; sobre o destino das únicas sete pessoas entre milhões de uma ilha cercada há 31 anos pelo medo, que tiveram coragem de insurgir contra a tirania e passaram por um sofrimento sobre-humano por causa disso. 

Llosa narra os últimos dias de Trujillo, os momentos de espera de seus sete assassinos para que o carro da majestade passe pela estrada da emboscada, e o retorno da exilada Urania a uma República Dominicana 35 após a morte do ditador, com uma concisão flaubertiana, entremeando esses três momentos cênicos em capítulos intercalados que abrem o foco nos capítulos finais à maneira estrutural de um soneto, embora esse romance dispense qualquer comodidade poética e qualquer construção metafórica para se restringir à brutalidade fria da realidade documental. Llosa caminha pela direção oposta dos experimentalismos linguísticos e do barroquismo de Garcia Marquez e Miguel Ángel Astúrias, limitando-se à narrativa pura, aos diálogos limpos, a um nível de ação que prescinde da necessidade interpretativa, filosófica ou de crítica política, fazendo que a própria sucessão dos eventos históricos se expresse por si mesma. Llosa acaba contestando com a prova pragmática a necessidade de maquiagem estética, mesmo nas alturas que foi feita, de romances como O outono do patriarca, cuja aspereza do tema tem uma transparência iridescente para descartar os demais subterfúgios artísticos. Ao contrário de O senhor presidente, o romance fundamental de Miguel Ángel Astúrias sobre o gênero do ditador patriarcal, A festa do bode é quase oitocentista em seu arejamento pré-joyceano, o que é uma mostra do domínio total de sua concepção por um autor que tem o calejamento do exercício disciplinado da escrita para erguer uma obra legítima  por sobre o cansaço das estruturas já muito exploradas e dos muitos virtuosismos de estilistas que apresentam a dicotomia entre o artista e o homem. Assim, A festa do bode chega a constranger a sensaboria umbiguista de O outono do patriarca, romance que Garcia Marquez alegou ter preenchido quase uma década em sua composição e que no mais resultou de uma série de redundâncias e clichês que não chegam nunca a lugar algum, apenas para provar a suficiência de quem o escreveu e não para verter qualquer característica contestatória da obra. A festa do bode mostra um Llosa conhecedor por demais do ofício para retornar a esses anacronismos modísticos do auge da literatura latino-americana, essas elipses de vernissagens, esses gestos magníficos vazios, tão típicos do Neruda de roupas brancas e do Garcia Marquez da foto em que aparece com seu livro aberto por sobre a cabeça_ essa iconografia que tomou conta de parte do mundo intelectual do continente que se deixou levar pelos tantos elogios em que incutia a hipótese da genialidade com a mostra debochada da língua na famosa figura do Einstein_, e que o passar dos anos mostrou que a qualidade literária ficava longe dessa euforia, assim como a autobiografia revela a inconsistência sintomática de um Garcia Marquez amigo de ditadores algum dia ter escrito uma alegoria inofensiva contra eles. 

Por isso é um mérito que esse livro tenha demorado quase 40 anos (à época de seu lançamento) para chegar a Llosa, a um Llosa já bastante amadurecido e tendo uma ficha de tantos livros para ser imune tanto pela idade quanto pelas exigências modernas da expressão intelectual a esses dadaísmos, e A festa do bode ter saído tão visceral, tão afiado e indispensável, tão ecoante em revelações sobre a realidade presente (como tem que ser as grandes obras), tão carregado de lucidez, adotando ainda as qualidades, muitas vezes relegadas em nome de um conceito de escrita superior, do suspense, do ritmo da literatura popular, da reportagem sofisticada. É uma grande história que Llosa conta aqui. De uma brutalidade fria, não por ter saído da mente de um esteta, mas dos fatos da ditadura mais sanguinária, absurda e, de muitas formas, incompreensível desse canto de cá das Américas, apesar de ser quase impossível dizer qual das nossas incontáveis ditaduras foi a mais sanguinária. Llosa deixa a história quase se contar por si mesma, sem interrupções, sem reflexos que mostrem seu próprio rosto, em sua demostração mais alta da finalidade do intelectual em alertar o leitor sobre os perigos que o cercam, em transfundir através de um entretenimento de primeira a inteligência suficiente para se medir o presente com bases na história. Uma das coisas que mais chamam a atenção no livro é o grau traumático de incomunicabilidade entre os personagens: por 31 anos, Trujillo foi criando e mantendo uma atmosfera de repressão tão profundamente espiritual em sua corrente de assassinatos e abominações que a alma dos dominicanos ficou mutilada em sua dependência orgânica total ao ditador. E essa mutilação é sentida em cada página do livro, na tristeza em marca d´água em cada um dos personagens, pois em cada um deles, desde o mais servil e fiel a Trujillo, até seus assassinos e a única relativa vitoriosa da história, a exilada Urania, são absorvidos pela obrigação sináptica de devotarem suas existências à manutenção da satisfação plena do grande general. Eles não tem propriamente uma vida particular, ou uma riqueza espiritual, mas apenas uma força reativa que sempre procura se harmonizar com o monólogo da vontade de Trujillo. Por isso que o único rico personagem, o único intimo apresentado ao leitor, o mais ocupado em explanações em suas ególatras percepções filosóficas, é o próprio Trujillo, nos capítulos em que Llosa o mostra em sua mais desnuda intimidade. Tudo e todos giram em torno do grande pai, e nesse aspecto reside o mais terrível do livro: quando seus assassinos conseguem o que seria a liberdade da República Dominicana, matando o general, eles não conseguem a resposta pretendida de alívio e revolução, tanto do povo quanto da elite militar que supostamente faria a transição para a democracia. Sua solidão nas horas que se seguem ao tiranicídio é de um peripatetismo quase absoluto, em que uma a uma de suas esperanças vão se perdendo pelas ruas da cidade onde parece que nada havia realmente acontecido. A alienação e covardia do povo se mostra como a fábrica perpétua dos grandes tiranos, a fonte de todos os massacres e assassinatos. Os capítulos em que é descrita a tortura dos sete tiranicidas pelas mãos dos filhos de Trujillo e do assassino Abbes Garcia são de uma angústia difícil de definir; só é ultrapassada pelo segredo revelado de Urania no último capítulo dessa obra única, em que é sumariamente impossível ao leitor fechar o livro sendo o mesmo de quando o abriu.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Na espera


"As melhores declarações dos negros a respeito de sua alma foram feitas no saxofone tenor." (Ornette Coleman)

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Mustang



Conservava um Mustang 53 que havia adquirido em um de seus relativizáveis lances da sorte_ em uma noite das fogueiras juvenis em que havia mais de altruísmo despertado pela sensação de amizade eterna do que propriamente do jogo das barganhas do mundo das enganações comerciais, em que um finlandês de nome impronunciável com quem jurara promover a última revolução e não se viram mais por esses 15 anos lhe vendera por uma ninharia simpática_ , tratando-o com tanto zelo que aquilo passou a ser o sinal de seu nível de importância com a vida, não escovar os dentes ou manter o couro das botas lustrado como era do conhecimento popular de o quanto os soldados ainda se interessavam em despertar mais um dia nesse mundo, mas encerar o metal vermelho de impositiva quietura transatlântica, fiscalizando a qualidade das soldagens das mangueiras do carburador e o óleo da corrente de giro. Entrava no Mustang e andava pela cidade, o ruído branco do motor de 8 cilindros o consolando de suas tantas derrotas e tantas angústias não muito bem definidas, o adolescente tardio cujas bolsas de tempo escureciam por sob seus olhos e os músculos do rosto começavam a ter aquela maceração flácida não isenta de dignidade sexual, em última instância ainda competitiva mas que as garotas eram intuídas como por um indicador barometral de que ele já era de uma geração anterior; atravessando as ruas do centro e ganhando as empoeiradas vielas históricas periféricas, com o mesmo olhar distraído que usava como defesa contra o excesso de informações sensoriais, fumando um cigarro e equilibrando o ronco taciturno daquela beleza de espírito geminado ao seu com o pé no pedal da embreagem. 

À medida que segue adiante, sem rumo, sabe que deveria voltar. É possuído pela percepção de inutilidade de estar dentro do carro, parceiro dele e seu falso dono, em que o Mustang se compraz a simular que aceita a ordem desse elo. Sabe que o Mustang adiantou-se dele em duas décadas de existência e continuará a persistir em sua investidura indelimitadamente prorrogável por sobre a Terra, passando-o em anos e revertendo aquele jogo. Enquanto pisa no acelerador e escuta o motor ceder com um esbaforir fingido que se transforma em uma tranquilidade de alguém seguro de sua potência, pensa que terá seus componentes orgânicos desaparecidos até um derradeiro átomo formalmente identificável, derivando-se para o avatar de adubo ou rocha, e o Mustang ainda será a fraude piedosa que um dos engenheiros da Ford arranjara para ocupar o cronograma vaidoso do sonho de permanência: lata, pneus, o para-brisa largo entristecido por milhões de micro-fístulas recebendo o amarelo despersonalizado do sol, encalhado em um pátio soçobrado por camadas jurássicas de óleo de motor de alguma oficina mecânica; talvez essa sendo a única herança afinal que ele transmitirá como uma maldição para a máquina, a de ter que conviver em instâncias cíclicas com o abandono. Mas haverá sempre algum adolescente naquelas épocas futuras em que os mesmos velhos regimes de privação financeira e as mesmas velhas crises fleumáticas da história ativarão o desejo por possuí-la, por trabalhar na recomposição de seu ronco de lince subjazido pela câimbra das décadas, remodelar com uma tinta acrílica sua couraça de galeão calcinado, desencavá-la de sua mortalidade e fazê-la expressar com o orgulho das divindades imorredouras sua condição cambiável de amuleto sexual.

Respeito


"Força-te, força-te à vontade e violenta-te, alma minha; mais tarde, porém, já não terás tempo para te assumires e respeitares. Porque de uma vida apenas, uma única, dispõe o homem. E se para ti esta já quase se esgotou, nela não soubeste ter por ti respeito, tendo agido como se a tua felicidade fosse a dos outros... Aqueles, porém, que não atendem com atenção os impulsos da própria alma são necessariamente infelizes." (Marco Aurélio, Pensamentos)

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Yukio Mishima_ a leitura de "O templo do Pavilhão Dourado"



Sempre foi uma das minhas intuições de leitor de que a literatura nipônica não era para mim. Que eu me lembre, nunca li um autor japonês, até então_ afora, agora me dou conta, de Haruki Murakami, que quase não entra na categoria dos romancistas japoneses pelo que ele mesmo se propõe em caminhar na contra-mão da tradição. Acredito que se vai levando pela vida uma série de preconceitos não verificáveis, mantidos em seu patamar de inércia acrítica por não serem jamais visitados, e um desses meus preconceitos é de que não me dou bem com a cultura japonesa. A cultura japonesa vive por milênios sem ter se incomodado com essa minha atitude, assim como vou percorrendo meu tempo por essa terra o mais aprazível possível sem que a ausência da cultura japonesa em meus horizontes particulares represente a mínima queda de qualidade. Deixo os japoneses em paz e eles nunca me incomodaram. Só recentemente fui confrontado com esse fantasma absolutamente bem resolvido de minha indiferença à literatura nipônica pela quase ostensiva propaganda que o Luiz Ribeiro vem fazendo dela aqui no blog e em nossas conversas por e-mail. O Luiz chegou a dar um link de um blog especializado em literatura japonesa e, em um ataque massivo difícil de relegar, me enviou dois romances japoneses. Me vi diante o imperativo inadiável de ser cordial com um amigo me violentando naquilo que tenho como mais sagrado: a escolha das minhas leituras ditada única e exclusivamente, à lá Borges, pelo deleite. Já abandonei livros cultuadíssimos e respeitabilíssimos antes da metade por não me despertar prazer: assim foi com Henry Miller, com Updike, com Middlemarch, com Virgínia Woolf, com Gonçalo Tavares, Sartre, entre vários outros. Todo grande leitor tem que se conformar com a primeira regra da leitura: a geografia do que sempre irá desconhecer é absurdamente maior que o campinho de flores de um alqueire e meio aonde ficarão seu autores preferidos e seus livros de cabeceira. Assim, não me parece mais tão espantoso a confissão do já velho Ezra Pound, ao Hemingway, de que ele nunca lera os russos. Na época em que li isso, parecia-me algo miraculoso que um escritor tivesse feito renome universal sem nunca ter lido Dostoiévski. Ou o próprio Borges anunciando que não lia autores nascidos depois do século XIX (apesar de hora e outra se desmentir, com seus prólogos sobre Chesterton, Kipling, Faulkner, e um quase anacrônico e surreal desmonte de um romance de Hemingway); e Allan Bloom, que ia mais além_ ou aquém_, com seu repúdio a tudo que não fosse do primitivismo clássico grego e a filosofia iluminista. Eu nunca fui um desses leitores que tem a ridícula preocupação de usar a cultura como ascensão social, armando-se de ornamentos imaginários para impressionar em bailes e casamentos. Uma vez sofri a saudabilíssima experiência de quebrar a cara aprendendo que a cultura não serve em nada para atrair uma fêmea da espécie para a cópula, e isso tem me evitado cair no ridículo sempre que vejo uma bela mulher de óculos e com um ar intelectual que alimente esperanças de que tratar com ela sobre as aflições de Ulisses me elevará à condição do grande macho alfa arrastando-a, agradecida por sua lubricidade, pelos cabelos.

Mas vamos ao que interessa: li o Mishima que o Luiz me mandou. De antemão, três coisas me repudiavam em definitivo em relação a Mishima. Certa vez vi, de madrugada, um filme na televisão baseado nos livros desse autor. Seus simbolismos e sua pesada atmosfera freudiana me incutiram que Mishima era um chato ortodoxo do qual eu deveria manter distância e esquecê-lo sossegadamente. (Como Canetti, eu odeio Freud e o acho o maior impostor do pensamento dos últimos 200 anos.) Depois vem seu suicídio absurdo, em nome do imperador, cuja teatralidade e vaidade violentamente ególatra me solidificou a decisão, se algum dia me surgisse a fímbria de curiosidade contrária, de nunca ler nada dele. Terceiro, e talvez o que me parecia mais incontestável, eram as fotos a que ele se submetia para levar ao mundo o que poderia haver de qualidade no fundo de sua estampa. Suas fotos, puramente, não fogem do fascismo motivado pela certeza incontestável. Para quem foi criado lendo os russos e os médio-europeus, vendo aqueles rostos alquebrados cheios de dúvida e dor, cheios de degradação e incompatibilidade com o mundo, a imagem do ostensivamente saudável e fálico Mishima me causava asco, quando muito mexia no núcleo de meu preconceito adormecido fazendo-o emitir um riso de mofa. Em uma das fotos do Mishima, esse menino solitário que precisava provar tanta coisa diante o espelho, a sugestão de uma genitália avantajada por debaixo da faixa do quimono era até enternecedora. Mishima ia de contra toda a minha consolidada crença do que um escritor deveria ser; Mishima era seguro de si, militarizado, crente, de direção determinada e inamovível, severo, imperioso, fundamentalista. Em um e-mail, comparei apressadamente ao Luiz o Mishima ao José de Alencar, sem explicar que para mim o japonês parecia tão pedante e datado, tão ilegível e de um mundo pré-shoá quanto o brasileiro da "virgem de cabelos como as asas da graúna". (O que tem a shoá a ver com isso? É que me parece implausível que um escritor como Mishima tirasse aquelas fotos risíveis e ostentasse uma vaidade de samurai depois do que aconteceu com seu país na segunda-guerra, e com a humanidade depois de Auschwitz; parecia-me uma alienação indesculpável para a obrigação de um artista sério que tivesse vivido esses eventos. O suicídio de Primo Levi é infinitamente mais nobre e diz muito mais que aquela partida mimada e obtusamente patriótica de Mishima.) 

Posto assim, estava na defensiva com o livro que o Luiz me mandou de Mishima, The Temple of the Golden Pavilion. E qual a surpresa por, já nas três primeiras páginas, o livro ter me desarmado. O romance é um deleite do começo ao fim, e enormemente informativo sobre a profundidade e a complexa personalidade do autor. Como disse depois da leitura para o Luiz, é incontestável para quem lê esse livro que Mishima foi um gênio. A escrita é carregada de luz e audaciosamente leve, ágil, cheia disso que Bellow uma vez disse ser "intrusões inesperadas de beleza". Os grandes escritores tem a capacidade de mostrar insights sobre algo que está além das palavras e que nenhuma academia autorizaria afirmar sem cair-se no ridículo, e nesse romance de Mishima há generosas porções desse chute nos portões do comedimento ortodoxo. Por exemplo: há duas cenas inesquecíveis, como a que o narrador vê o corpo de seu pai na cerimônia de sepultamento, e pensa que a evidência do quanto estamos distantes da matéria é essa intangibilidade da forma como ela existe; outra cena é de uma cristalinidade pictórica, arrebatadora, em que o narrador, escondido em um templo abandonado da montanha, flagra o ritual de despedida entre uma moça e um rapaz que está destinado a morrer nas frentes da guerra: ela despeja o leite de seu seio e ele o bebe, em lembrança do filho natimorto dos dois. Há muitas cenas de beleza impactante como essas, proporcionadas pela visão privilegiada de Mishima pelo trivialesco esotérico. Em uma entrevista, li que o objetivo de Murakami era derrubar o beletrismo da literatura japonesa, o que entendi como um ato de ocidentalizá-la; algo como Cortázar certa vez disse estar escrevendo cada vez pior em oposição à plasticidade imposta pelo cansaço das fórmulas feitas. Mishima me surpreendeu no que ele antecipa da intenção de Murakami. Sua escrita foge do que eu tinha como concepção de uma literatura japonesa excessivamente preocupada com uma tradição estética fechada e avessa às revoluções nas letras do século passado.

A história do livro, resumidamente, é sobre a obrigação do narrador, um rapaz pobre, atormentado por uma gagueira deformadora, a ganhar espaço no mundo através da única ocupação que lhe resta, a de ser aprendiz de monge em um templo budista. Seu pai, desde que ele era pequeno, já lhe cambiou a certeza de que a representação da beleza em todo o universo se centra no templo do Pavilhão Dourado, com seus três andares, seus sutis mistérios apreendidos furtivamente nos refúgios das noites de chuva, e sua fênix dourada colocada no cimo do telhado, representando sua capacidade de resiliência através dos anos. Esses elementos, intransigentemente japoneses e aparentemente desprovidos de transcendência, servem a Mishima para compor uma obra que tem tanto a melifluidade de Dostoiévski quanto a ironia auto-implosiva de Robert Walser, a frescura de um Bildungsroman como o de Salinger e a confissão sediciosa das autobiografias de Thomas Bernhard. Sua faceta de Dostoiévski é algo bastante propalado: há um outro personagem no livro, uma espécie de Quasimodo maquiavélico chamado Kashiwagi, desenhado milimetricamente com os mesmos traços de personagens do russo, como Ivan Karamazov, Piotr Stiepánovitch, Raskólnikov e Rogójin, uma entidade desprovida de moral até o ponto de uma maldade pragmática que leva o sinal das possíveis revoluções políticas e sociais. São impagáveis os diálogos entre Mizoguchi, o narrador, e Kashiwagi, esse aleijado de pernas tortas que cativa as mulheres mais lindas pelo que ele desperta de pena e peso de consciência que sente a perfeição diante a deformidade_ ele as usa e depois as repudia com surras e depreciações violentas. Só o conhecimento tem capacidade de mudar o mundo, diz o aleijado Kashiwagi, enquanto o gago Mizoguchi, mal conseguindo terminar uma frase, rebate que só a ação transforma o mundo, numa antecipação profética de sua fúria nas páginas finais do livro.

Se as marcas de Dostoiévski são inconfundíveis em Mishima, por outro lado, em minhas pesquisas, não achei ninguém que tenha aproximado esse Pavilhão Dourado do romance Jakob von Gunten, do suíço Robert Walser. A história é surpreendentemente a mesma nesses dois grandes romances. O monastério do Pavilhão Dourado serve com a mesma precisão para matar o espírito quanto o Instituto Benjamenta no livro do Walser. Ambos esses refúgios do mundo são máquinas de apequenização e humilhação da vontade. E ambos os narradores, tanto de Mishima quanto de Walser, são percepções em formação, intimamente angustiados por suas juventudes gritantes, querendo quebrar a barreira da falta de conhecimento mas sempre se batendo de contra a parede da enormidade de suas insuficiências.  Ambos tem o gene do assassino instrumental movido por uma distante necessidade darwiniana de evoluir a espécie, mas que nunca é ativado pela cordialidade patológica que as tradições consuetudinárias e as instituições sociais da repressão incrustaram neles; mas é a voz do assassino que fala em boa parte dos livros, com uma sinfonia nietzschiana, com uma eletricidade das grandes tempestades sentidas nas montanhas. Mishima, em contraposição às suas fotos, apresenta tudo o que move os grandes escritores a criarem: a angústia diante as verdades instituídas, os cabrestos religiosos, as morais de fachada (como quando se depara com o chefe espiritual do mosteiro com uma prostituta); a busca, em suma, pelo imponderável e o inominado.

Concluí a leitura desse grande romance sabendo que de agora em diante terei que ir atrás das outras obras de Mishima. A última frase do livro traz similitudes com a biografia de Thomas Bernhard. "Eu quis viver", Mishima faz seu herói dizer. Também o jovem Berhnard, após abandonar a sucessão de confinamentos em sanatórios para manterem-no no pneumotórax, diz que queria viver, apesar de tudo. Isso ainda torna o Mishima do ritual de suicídio um enigma e um desperdício para mim (o quanto ele teria ainda para escrever!). Mas aqui entra as palavras de Montaigne, que atenuam um pouco o mistério:

"Somos todos retalhos de uma textura tão disforme e diversa que cada pedaço, a cada momento, faz o seu jogo. E existem tantas diferenças entre nós e nós próprios como entre nós e os outros."

a edição enviada pelo amigo Luiz Ribeiro

edição nacional publicada pela Cia das Letras
Amanhã, um texto sobre A Festa do Bode, de Mario Vargas Llosa.

sábado, 8 de junho de 2013

"meu cachorro me sorriu latindo"



Andei fora do blog uns tempos, mas volto na segunda-feira. Trabalho, trabalho e trabalho. Sem tempo. Mas também aconteceram algumas coisas. Mudei minha rotina, estou em uma dieta para perder 10 quilos e retornar a meu peso normal, o que inclui a trágica decisão de parar de beber vinho. Mas isso aqui não é o facebook e ninguém quer saber a que horas eu vou ao banheiro e o que vou comer no jantar_ e nem eu me prontifico a falar essas coisas. Já que isso aqui pretende ser um blog literário, a felicidade dessas semanas foi a leitura do magnífico A Festa do Bode, do Llosa. Acabei nesse exato momento sua leitura. É um romance Avenida Brasil, ou o que imagino que provocou essa novela em quem a assistia: há ganchos e ganchos em cada capítulo e a pessoa passa a viver em torno do livro. Eu mal via a hora de chegar em casa à noite e me lançar no romance. Claro que tenho lido romances maravilhosos, mas senti nesse do Llosa aquela excitação adolescente da leitura, aquele prazer de esfrangalhar o livro e manter a respiração presa e mudar de posição na poltrona. O Llosa é bem superior ao Garcia Márquez na seara na narrativa, não perde tempo com beletrismos e é afiadamente direto. Não há poesia em seu texto, como o cansativo exercício de virtuosismo que é O Outono do Patriarca. Llosa montou esse romance com uma precisão genial, dividiu sua composição com mão de mestre, nunca fazendo perder o suspense e o interesse. E o livro é carregado de suspense. Vou escrever mais sobre ele nessa semana, não posso ficar sem fazer isso. E os que criticam a posição política de Llosa parecem desconhecer que o romance fala sobre uma das mais terríveis ditaduras de direita da América Latina. De direita, vou repetir.

Amanhã começo um livro que me caiu nas mãos aleatoriamente. Respeito muito os livros que me caem nas mãos sem que os tenha procurado e sem ao menos saber de suas existências. É o caso desse Trem Noturno para Lisboa, um best-seller de alto nível que não sei por que cargas d´água tudo que eu lia na net passava a falar maravilhosamente bem dele. Estou fervoroso para lê-lo.

Não sou de cumprir promessas, mas acreditem: nessa semana estarei de volta, para o bem ou para o mal.