Mario Vargas Llosa é tão diferente de seus pares da literatura latino-americana que o fato de ser praticamente o único neoliberal num cenário tomado por escritores de esquerda é o que deveria ser visto como a mais pueril de suas idiossincrasias. Mas como tudo por essa parte das Américas descamba para o pejorativismo político, ainda assim sua acusação em nada bombástica sobre a corrupção de uma esquerda anacrônica e desfuncional em franco processo de definhamento é bem menor que a força de contestação contra o sofrimento humano gerado pela alienação e pela imposição política assassina de romances como esse A festa do bode, de 2000. Em um ensaio sobre os últimos anos de vida do romancista chileno José Donoso, Llosa diz que se inclinou no leito de enfermo e disse ao pé do ouvido de Donoso: "Henry James é uma merda", ao que Donoso, um fervoroso anglicista, respondeu: "Flaubert é uma merda". Llosa é o único escritor francês entre uma classe de autores cuja influência é toda de autores norte-americanos e ingleses; e Llosa é o único autor cem por cento realista em um grupo de criadores universalmente distinguidos pelo realismo fantástico, além de ser também o único cuja obra tardia é tão representativa em termos de qualidade e prolificidade quanto a sua primeira fase. Tendo em mente esses atributos, e a solidão de Llosa como último defensor latino-americano da importância da cultura e da escrita em uma série de obras de não-ficção de notória grandeza, pode-se perceber o alcance das mensagens que circundam o lançamento de um romance como A festa do bode, no tocante às interpretações subliminares do por que foi escrito quase 40 anos depois dos eventos terríveis que são tema da obra, e do por que no ambiente aparentemente seguro da nova democracia de liberdades individuais da América Latina do século XXI. Por que Llosa decidiu incomodar publicando um livro tão inverso à realidade atual, descrevendo coisas tão confinadas no passado quanto as torturas, os estupros e os assassinatos da ditadura dominicana de Rafael Trujillo? Apenas para re-solidificar a desusada tradição das letras regionais de produzir um romance sobre os tantos ditadores sanguinários que proliferaram por aqui (desde O outono do patriarca e O Eu supremo nenhum escritor hispano-americano se aventurou por esse gênero, lá se iam 25 anos)?
Qualquer outro escritor que tivesse a coragem de cometer essa sandice teria dado com os burros na água. Basta ver Updike e Bellow, que tentaram a incursão pelas regiões da barbárie terceiro-mundista da dominação patriarcal absoluta, e em decorrência escreveram o que há de pior em suas bibliografias. Para a função, ninguém mais preparado que o francês, liberal, aparentemente já relegado (à época) em definitivo pelo Nobel, Llosa, com seu estilo de frieza fotográfica que misturava Goya com a coloquialidade provinciana dos tabloides de uma imprensa dissidente de vida curta encontrada nos empoeirados arquivos das bibliotecas locais, como fizera com seu romance histórico sobre Canudos. O impacto de A festa do bode, sua secura, sua fremente adrenalina, faz com que a dinastia Trujillo, que a maior parte das pessoas bem instruídas sequer sabia ter existido, retorne à ordem do dia para o leitor. Enquanto eu percorria essa páginas aterrorizantes, fui me inteirando pela net sobre o assassino Johnny Abbes Garcia, chefe do serviço de inteligência de Trujillo; sobre Ramfis Trujillo, o filho estuprador compulsivo e torturador; sobre a tragédia das irmãs Mirabal; sobre o destino das únicas sete pessoas entre milhões de uma ilha cercada há 31 anos pelo medo, que tiveram coragem de insurgir contra a tirania e passaram por um sofrimento sobre-humano por causa disso.
Llosa narra os últimos dias de Trujillo, os momentos de espera de seus sete assassinos para que o carro da majestade passe pela estrada da emboscada, e o retorno da exilada Urania a uma República Dominicana 35 após a morte do ditador, com uma concisão flaubertiana, entremeando esses três momentos cênicos em capítulos intercalados que abrem o foco nos capítulos finais à maneira estrutural de um soneto, embora esse romance dispense qualquer comodidade poética e qualquer construção metafórica para se restringir à brutalidade fria da realidade documental. Llosa caminha pela direção oposta dos experimentalismos linguísticos e do barroquismo de Garcia Marquez e Miguel Ángel Astúrias, limitando-se à narrativa pura, aos diálogos limpos, a um nível de ação que prescinde da necessidade interpretativa, filosófica ou de crítica política, fazendo que a própria sucessão dos eventos históricos se expresse por si mesma. Llosa acaba contestando com a prova pragmática a necessidade de maquiagem estética, mesmo nas alturas que foi feita, de romances como O outono do patriarca, cuja aspereza do tema tem uma transparência iridescente para descartar os demais subterfúgios artísticos. Ao contrário de O senhor presidente, o romance fundamental de Miguel Ángel Astúrias sobre o gênero do ditador patriarcal, A festa do bode é quase oitocentista em seu arejamento pré-joyceano, o que é uma mostra do domínio total de sua concepção por um autor que tem o calejamento do exercício disciplinado da escrita para erguer uma obra legítima por sobre o cansaço das estruturas já muito exploradas e dos muitos virtuosismos de estilistas que apresentam a dicotomia entre o artista e o homem. Assim, A festa do bode chega a constranger a sensaboria umbiguista de O outono do patriarca, romance que Garcia Marquez alegou ter preenchido quase uma década em sua composição e que no mais resultou de uma série de redundâncias e clichês que não chegam nunca a lugar algum, apenas para provar a suficiência de quem o escreveu e não para verter qualquer característica contestatória da obra. A festa do bode mostra um Llosa conhecedor por demais do ofício para retornar a esses anacronismos modísticos do auge da literatura latino-americana, essas elipses de vernissagens, esses gestos magníficos vazios, tão típicos do Neruda de roupas brancas e do Garcia Marquez da foto em que aparece com seu livro aberto por sobre a cabeça_ essa iconografia que tomou conta de parte do mundo intelectual do continente que se deixou levar pelos tantos elogios em que incutia a hipótese da genialidade com a mostra debochada da língua na famosa figura do Einstein_, e que o passar dos anos mostrou que a qualidade literária ficava longe dessa euforia, assim como a autobiografia revela a inconsistência sintomática de um Garcia Marquez amigo de ditadores algum dia ter escrito uma alegoria inofensiva contra eles.
Por isso é um mérito que esse livro tenha demorado quase 40 anos (à época de seu lançamento) para chegar a Llosa, a um Llosa já bastante amadurecido e tendo uma ficha de tantos livros para ser imune tanto pela idade quanto pelas exigências modernas da expressão intelectual a esses dadaísmos, e A festa do bode ter saído tão visceral, tão afiado e indispensável, tão ecoante em revelações sobre a realidade presente (como tem que ser as grandes obras), tão carregado de lucidez, adotando ainda as qualidades, muitas vezes relegadas em nome de um conceito de escrita superior, do suspense, do ritmo da literatura popular, da reportagem sofisticada. É uma grande história que Llosa conta aqui. De uma brutalidade fria, não por ter saído da mente de um esteta, mas dos fatos da ditadura mais sanguinária, absurda e, de muitas formas, incompreensível desse canto de cá das Américas, apesar de ser quase impossível dizer qual das nossas incontáveis ditaduras foi a mais sanguinária. Llosa deixa a história quase se contar por si mesma, sem interrupções, sem reflexos que mostrem seu próprio rosto, em sua demostração mais alta da finalidade do intelectual em alertar o leitor sobre os perigos que o cercam, em transfundir através de um entretenimento de primeira a inteligência suficiente para se medir o presente com bases na história. Uma das coisas que mais chamam a atenção no livro é o grau traumático de incomunicabilidade entre os personagens: por 31 anos, Trujillo foi criando e mantendo uma atmosfera de repressão tão profundamente espiritual em sua corrente de assassinatos e abominações que a alma dos dominicanos ficou mutilada em sua dependência orgânica total ao ditador. E essa mutilação é sentida em cada página do livro, na tristeza em marca d´água em cada um dos personagens, pois em cada um deles, desde o mais servil e fiel a Trujillo, até seus assassinos e a única relativa vitoriosa da história, a exilada Urania, são absorvidos pela obrigação sináptica de devotarem suas existências à manutenção da satisfação plena do grande general. Eles não tem propriamente uma vida particular, ou uma riqueza espiritual, mas apenas uma força reativa que sempre procura se harmonizar com o monólogo da vontade de Trujillo. Por isso que o único rico personagem, o único intimo apresentado ao leitor, o mais ocupado em explanações em suas ególatras percepções filosóficas, é o próprio Trujillo, nos capítulos em que Llosa o mostra em sua mais desnuda intimidade. Tudo e todos giram em torno do grande pai, e nesse aspecto reside o mais terrível do livro: quando seus assassinos conseguem o que seria a liberdade da República Dominicana, matando o general, eles não conseguem a resposta pretendida de alívio e revolução, tanto do povo quanto da elite militar que supostamente faria a transição para a democracia. Sua solidão nas horas que se seguem ao tiranicídio é de um peripatetismo quase absoluto, em que uma a uma de suas esperanças vão se perdendo pelas ruas da cidade onde parece que nada havia realmente acontecido. A alienação e covardia do povo se mostra como a fábrica perpétua dos grandes tiranos, a fonte de todos os massacres e assassinatos. Os capítulos em que é descrita a tortura dos sete tiranicidas pelas mãos dos filhos de Trujillo e do assassino Abbes Garcia são de uma angústia difícil de definir; só é ultrapassada pelo segredo revelado de Urania no último capítulo dessa obra única, em que é sumariamente impossível ao leitor fechar o livro sendo o mesmo de quando o abriu.
Charlles,
ResponderExcluirtexto muito bem escrito. Cada frase é objetiva, limpa e sem firulas subjetivas. Fiquei com vontade de ler o livro.
Obrigado, Ramiro.
ExcluirDo Llosa só li sua não ficção, os capítulos 1 e 4 de Sabres e Utopias que ganhei de aniversário, por terem chamado a minha atenção e vontade imediatas de reaça liberal entreguista, e gostei muito do que li. Mas agora, preciso (preciso!) deste livro, de um cenário que nem costumo lembrar a existência e de um personagem que, talvez, tenha ouvido o nome nas aulinhas de história no colégio, com minha professora petista militante do MST falando sobre imperialismo e os males da ALCA. E preciso por culpa tua, Charlles: tenho total confiança quando resenhas (ou apenas divagas...) sobre alguma obra, justamente por aqui ser "só um blog", por não ter nada de maior envolvido na rotina de sentar, ler, entender e escrever sobre o que leste para um número pequeno de "assinantes" mas principalmente para ti mesmo; e, neste caso, é perceptível teu apreço por Llosa e pela Festa do Bode. Não titubeias em apontar uma obra menor, ou mesmo ruim, de um autor que amas (como GGM ou Bellow), ou de dizer "não é tudo isso" a respeito de alguma obra badalada, e não seria agora que mudarias a conduta. Esta me pegou como daquela vez com Roth (cheguei em Operação Shylock, quase no Sabbath!, amém) e Faulkner (nas férias de julho, Luz em Agosto). Acho que também não me arrependerei.
ResponderExcluirObrigado.
(Juntando o nome + a capa, lembrei de perguntar: já ouviste o novo cd do Black Sabbath? Ou será que nem se importa mais com as tias véias cabeludas? Bem, gostei do novo cd das tias véias cabeludas.)
Rapaz, mas tu estás espantoso hoje em suas percepções (opa!, acabo de desmentir sobre o vinho. Mas é só por ser sexta-feira), mas agora estou ouvindo o 13. Aos poucos me acostumo com o monte de auto-referências dessa álbum do Sabbath: o início evidente da abertura do primeiro disco, as tantas e tantas semelhanças propositais com riffs do passado... Mas é uma celebração, honesta, despretensiosa. Não tem como não gostar. Estou mesmo ouvindo o 13, no som do meu note, enquanto as crianças começam a se ajeitar para dormir.
ExcluirEu te asseguro que A festa do bode vai ser uma experiência única em sua vida de leitor, Matheus. ASSEGURO!
(Sou um fã do Sabbath desde que tinha 16 anos, escrevi um post sobre Bernhard e Sabbath [!!!], e antes de ontem havia baixado esse álbum, assim como o novo do Sigur Rós.)
ExcluirBem, eu gosto do Sabbath por causa de algumas músicas -- aquelas que todo mundo conhece pelos riffs. Não sei o nome de nenhum deles, tirando a estrela Ozzy, obviamente. Aliás, gosto mesmo é do Ozzy, né? Sabbath sem ele é muito sem graça para um não iniciado. Gosto muito desse ocultismo picareta dele; Mr. Crowley sempre será um HINO pra mim, um hino da sem vergonhice de usar o nome do Therion só por causar e chocar, sem verdadeiramente passar sua mensagem, muito mais profunda e para pouquíssimos (mas não seria essa, talvez, uma das vontades da Besta?).
ExcluirJá comprei. Ao menos o frete não custou nada. Ai, meu Visa...
Os escravos servirão! 93, 93/93 (fake Ozzy style)
Baixei também o novo do Beady Eye (o Oasis sem o grande Noel Gallagher), BE. Melhor que o primeiro álbum. Mas falta alguma coisa...falta o toque do Gallagher que sabe compor.
ExcluirBaixei ainda o que pude encontrar de Leopoldo Rassier. Esta é a maior música feita nos pampas: Veterano.
http://letras.mus.br/leopoldo-rassier/286028/
Um revolver (?) na cintura. E ainda lembra meu pai quando novo. Tchê... não suporto o gauchismo, mas para ele abro uma exceção.
Vou procurar o Leopoldo Rassier. Não conheço. Baixei o Beady Eye, e é muito bom, mas o Oasis é o Oasis. É claro que é uma estratégia publicitária dos Gallagher e logo estarão de volta com a banda.
ExcluirAh... o interessante é que Llosa, neste livro, fala de uma ditadura de direita, patrocinada pelos Estados Unidos. O que mostra o quanto entendem alguma coisa os partidários nacionais que condenam o autor.
ResponderExcluirTu sabes de quem é essa imagem da capa? Perdão a ignorância, não a reconheço, mas gostei muito. Boa parte do desejo pelo livro é graças à ela.
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