domingo, 16 de junho de 2013

Pequeno comentário sobre Ulisses



Esse é um dos livros em que o enredo é o de menos. Importa a incrível vivacidade e energia verbal de Joyce. É o anti-limite de sua superioridade como escritor acima de todos os outros_ de Mann, de Faulkner, Proust, Kafka_ que iria subir à estratosfera e se perder com o livro seguinte, o ilegível Finnegans Wake. Trata-se de uma brincadeira bem urdida, uma ciranda calculada na espontaneidade de um severo trabalho de anos; não uma tentativa, mas uma culminação do resumo do ser humano e de sua história, e um enorme deboche à febril ciência da psicanálise (se tudo que passa pela cabeça de um homem comum é simploriamente banal, é ridículo sistematizar seu comportamento contraditório numa cabala do subconsciente). Ama-se Bloom e sua esposa, ama-se Dedalus e o excessivamente extrovertido Buck Mulligan, com todos os seus pecados, suas desimportâncias, suas carências.

É o romance da falta de sutilezas, da falta de coqueteria, o romance essencialmente não-burguês (não ANTI-burguês, pois revela o enorme descaso do autor para contrapor uma reação à uma sociedade medíocre), não-científico, e, por mais que possa ser surpreendente, não-literário. Dedica-se todo à celebração da literatura, mas é anti-empolação e anti-oitocentismo. Tanto que depois de Ulisses, aboliu-se a possibilidade de escrever como Victor Hugo, Sully Prudhomme, Romain Rolland, e outros. Ulisses aboliu a literatura em diversos países, obrigando os novos escritores à adaptação. É a suprema manifestação do humor, do humanismo, da redenção velada. Uma mistura de Nona Sinfonia com a fuga da Sinfonia Júpiter, com cabrioladas de um jazz que abriu as portas para as correntes de ritmos de Coltrane e dos minimalistas. O maior mérito de Joyce foi ter controlado sua extraterrestridade para dar à obra um caráter perfeitamente legível, pois seria natural que depois de ter rompido todos os limites, seu último passo seria Finnegans Wake, assim como o passo seguinte_ o estilo tardio_ de Beethoven fosse os ùltimos quartetos e a Missa Solemnis.

Aldous Huxley lamentou que Joyce tivesse optado pela abdução. Poderia ter escrito importantes livros da estatura dos de Stendhal. Mas é compreensível. Deportou-se do mundo dos viventes. Não lhe diria nada a estranheza e prazer de incompreensão libidinosa que o mundo adotaria ao analisar as cartas singelas que escrevia para Nora Barnacle, seu amor de toda a vida. Onde revelava a leveza de seu espírito, a ralé via apenas a sujeira sexual de um intelectual reprimido. Por isso é desconcertante que achemos de uma beleza sem igual as passagens de Bloom se masturbando, de Molly cedendo-se mais uma vez com seus repetitivos sim, sim,sim, da última página, de Mulligan se atirando seminu ao mar, ao lado dos pescadores. Uma impossível beleza nesses gestos prosaicos, e uma lucidez que desmascara toda a hipocrisia, toda pompa. Uma declaração de amor à humanidade, antes de mais nada, mas uma humanidade ainda de um distante porvir, livre das tralhas da ciência e das hierarquias, e centrada no cultivo das idiossincrasias soltas e intimistas de si mesma.

Por isso que é tão espantoso a Buck Mulligan quando Stephen Dedalus revela que, no leito de morte de sua mãe, se recusou a se ajoelhar; mas não pelo constrangimento à mãe, mas pelo constrangimento contra si mesmo. A liberdade do homem que tomou suas próprias rédeas e manda as convenções e a opinião alheia às favas…

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