Adorno foi severo em excesso com Walter Benjamin. Não consigo desapegar-me da imagem que as fotos de Benjamin oferecem de um cordeiro andando pelas ruas de Berlin, atravessando a Europa em fuga, subindo por descampados em madrugadas atrás da fronteira espanhola, sempre levando a tiracolo uma maleta com os últimos apaixonados originais de um ensaio e os tantos recortes para a grande compilação do pensamento humano, antes que a ceifa inevitável viesse calmamente sangrar-lhe o pescoço. As fotos de Benjamin mostram um homem limítrofe entre a intensa vida cerebral e a nostalgia de ternos recantos infantis desaparecidos. Sua obsessão por brinquedos antigos e pela pedagogia revela a intersecção entre o pensador e a criança, e em toda a sua escrita a observação dos silenciosos e inapreensíveis interstícios da realidade cotidiana denota as tardes e o quarto solitário em que o menino descobria o mundo dos dois lados do olhar. Essa vulnerabilidade vestigial quanto ao mundo dos adultos se revela na forma melancólica em que Benjamin depositara fé em uma carreira universitária ao apresentar a sua tese sobre as origens do drama barroco alemão para Adorno, e a sombra teatral que sempre lhe cobrou a máscara da comédia e da tragédia na própria pele determinou que a dessarroada negativa de Adorno lhe fizesse um pária peripatético que em vida nunca fora aceito pela academia.
Essa recusa de Adorno a apadrinhar uma carreira universitária para Benjamin me parece ser uma das maiores injustiças feitas entre dois intelectuais de peso. Não sei o que passava pela cabeça de Adorno, se ele via em seu pretenso pupilo um pensador grande demais que precisava ser podado das arestas através de uma benemérita crítica sistematicamente imposta, o que tornaria Adorno, em tal hipótese, um ser levianamente crente na longevidade de alguém como Benjamin num século como o século XX. Benjamin precisava ser protegido e Adorno se negou a tal, eis a questão. A vida e a obra de Benjamin se impregnaram, em consequência, de uma séria de suposições e realidades alternativas. Em torno do autor das Teses sobre a História se arvoraram os tão lúdicos e abortadamente impossíveis "e se...". E se Benjamin tivesse sido acolhido pela Escola de Frankfurt, o quanto a sobrevivência e a seguridade lhe teria feito produzir ainda mais sobre o quanto ele já escreveu aventurosamente no exílio. Como seria um texto de Benjamin sobre a obra de seu espécie de gêmeo do conto, Bruno Schulz, se Benjamin vivesse o suficiente para conhecer-lhe a obra.
A verdade é que a obra grandiosa de Benjamin e alguns estudos fundamentais sobre ele é que prevaleceram sobre o paralelismo. Não há como negar que uma das qualidades das coisas que Benjamin produziu deriva inevitavelmente da ciência por parte de quem lê da incompletude e precocidade do autor. A inerência erraticamente romântica e incorrigível de vê-lo como uma espécie de São João na ilha de Patmos diante o anjo da História confere a Benjamin um caráter de profeta às vezes tornado ingênuo pela própria fulgurante lucidez. Assim como Christopher McCandless, no filme Na Natureza Selvagem, que se refugia da sociedade de consumo num ônibus abandonado no Canadá, morre de inanição e frio a alguns metros de uma estrada federal que poderia tê-lo reconectado com o mundo e o salvo, Benjamin, na versão aceita de seu suicídio diante o desespero de não conseguir sua entrada pela fronteira franco-espanhola, um dia depois, se tivesse esperado, estaria com o passaporte em mãos assim como os demais fugitivos que lhe acompanhavam, e protegido de vez das garras da Gestapo. Hannah Arendt, em seu ensaio sobre Benjamin, não consegue poupar-se da ironia diante a essa proximidade centímetra entre a desgraça e o conforto que rondava o personagem de seu estudo.
Benjamin escreveu várias páginas do que há de melhor no pensamento do século passado. Seu estudo sobre Kafka consegue ser tão sublime quanto a obra de Kafka. Sua sensibilidade de leitor era algo tão acima da mais apurada genuinidade que criou um grupo recorrente de saudosistas do como Benjamin teria lido tal autor; ele transformou, enriquecendo, a forma de ler Proust, Baudelaire, Kafka, Brecht, os surrealistas. Uma experiência comparativa válida que revela o coração insurgente de Benjamin no que escreve é a leitura do ensaio de Coetzee sobre ele. Coetzee se demonstra um ensaísta acima da média, mas sua secura e sua senilidade acadêmica o nivelam pela medida da mera elegância conceitual de vaidoso laureado. Coetzee analisa milimetricamente a vida e a obra, sobretudo a inacabada Passagens, de Benjamin, de uma maneira clinicamente asséptica. O que Coetzee oferece ao leitor é um Benjamin morto e enrijecido de frio cadavérico por sobre uma mesa institucional, alguém que esteve em volta com a procura obsessiva de excertos do pensamento para compor seu enorme compêndio mas que nunca evoluiu além da patologia previsível aos observadores que sabem posteriormente de que seu fim foi inexorável. Coetzee tem uma técnica de depuração que tresanda inteligência fina que só pode ser neologizada como uma técnica morgueriana, de quem exuma matéria orgânica cujo fato de um dia ter sido ocupada pelo sinergismo da vida é apenas um apêndice antropológico. Bastante diferente das leituras de Benjamin. Pegue o texto de Benjamin sobre Proust, por exemplo, exuberante de alegria criativa, sua profunda leitura de Kafka, que transforma para sempre a maneira de ler Kafka. Há uma foto conhecida de Benjamin debruçado sobre livros em uma mesa de biblioteca, tirada de maneira insuspeitável enquanto ele estava envolvido na leitura: assim ele escreve, sendo um comparsa do autor, usando sua genialidade para fazer uma generosa companhia com a genialidade do retratado. Eu poderia copiar aqui uma série de sentenças sublinhadas de Benjamin, para mostrar sua poesia, sua sensibilidade demolidora, seu esclarecimento luminoso. Adorno, que também me é essencial pelo seu Dialética do Esclarecimento e Minima Moralia, talvez estivesse enrijecido demais pela calcificação acadêmica para salvaguardar um nível de independência subversiva tão incivilizável como o de Benjamin. Talvez ele tivesse cogitado sobre as vantagens da marginalidade para Benjamin, sem sopesar sua profunda vulnerabilidade.
Benjamin escreveu várias páginas do que há de melhor no pensamento do século passado. Seu estudo sobre Kafka consegue ser tão sublime quanto a obra de Kafka. Sua sensibilidade de leitor era algo tão acima da mais apurada genuinidade que criou um grupo recorrente de saudosistas do como Benjamin teria lido tal autor; ele transformou, enriquecendo, a forma de ler Proust, Baudelaire, Kafka, Brecht, os surrealistas. Uma experiência comparativa válida que revela o coração insurgente de Benjamin no que escreve é a leitura do ensaio de Coetzee sobre ele. Coetzee se demonstra um ensaísta acima da média, mas sua secura e sua senilidade acadêmica o nivelam pela medida da mera elegância conceitual de vaidoso laureado. Coetzee analisa milimetricamente a vida e a obra, sobretudo a inacabada Passagens, de Benjamin, de uma maneira clinicamente asséptica. O que Coetzee oferece ao leitor é um Benjamin morto e enrijecido de frio cadavérico por sobre uma mesa institucional, alguém que esteve em volta com a procura obsessiva de excertos do pensamento para compor seu enorme compêndio mas que nunca evoluiu além da patologia previsível aos observadores que sabem posteriormente de que seu fim foi inexorável. Coetzee tem uma técnica de depuração que tresanda inteligência fina que só pode ser neologizada como uma técnica morgueriana, de quem exuma matéria orgânica cujo fato de um dia ter sido ocupada pelo sinergismo da vida é apenas um apêndice antropológico. Bastante diferente das leituras de Benjamin. Pegue o texto de Benjamin sobre Proust, por exemplo, exuberante de alegria criativa, sua profunda leitura de Kafka, que transforma para sempre a maneira de ler Kafka. Há uma foto conhecida de Benjamin debruçado sobre livros em uma mesa de biblioteca, tirada de maneira insuspeitável enquanto ele estava envolvido na leitura: assim ele escreve, sendo um comparsa do autor, usando sua genialidade para fazer uma generosa companhia com a genialidade do retratado. Eu poderia copiar aqui uma série de sentenças sublinhadas de Benjamin, para mostrar sua poesia, sua sensibilidade demolidora, seu esclarecimento luminoso. Adorno, que também me é essencial pelo seu Dialética do Esclarecimento e Minima Moralia, talvez estivesse enrijecido demais pela calcificação acadêmica para salvaguardar um nível de independência subversiva tão incivilizável como o de Benjamin. Talvez ele tivesse cogitado sobre as vantagens da marginalidade para Benjamin, sem sopesar sua profunda vulnerabilidade.