quarta-feira, 25 de abril de 2012

Experiências de Leitura (III)


Adorno foi severo em excesso com Walter Benjamin. Não consigo desapegar-me da imagem que as fotos de Benjamin oferecem de um cordeiro andando pelas ruas de Berlin, atravessando a Europa em fuga, subindo por descampados em madrugadas atrás da fronteira espanhola, sempre levando a tiracolo uma maleta com os últimos apaixonados originais de um ensaio e os tantos recortes para a grande compilação do pensamento humano, antes que a ceifa inevitável viesse calmamente sangrar-lhe o pescoço. As fotos de Benjamin mostram um homem limítrofe entre a intensa vida cerebral e a nostalgia de ternos recantos infantis desaparecidos. Sua obsessão por brinquedos antigos e pela pedagogia revela a intersecção entre o pensador e a criança, e em toda a sua escrita a observação dos silenciosos e inapreensíveis interstícios da realidade cotidiana denota as tardes e o quarto solitário em que o menino descobria o mundo dos dois lados do olhar. Essa vulnerabilidade vestigial quanto ao mundo dos adultos se revela na forma melancólica em que Benjamin depositara fé em uma carreira universitária ao apresentar a sua tese sobre as origens do drama barroco alemão para Adorno, e a sombra teatral que sempre lhe cobrou a máscara da comédia e da tragédia na própria pele determinou que a dessarroada negativa de Adorno lhe fizesse um pária peripatético que em vida nunca fora aceito pela academia.

Essa recusa de Adorno a apadrinhar uma carreira universitária para Benjamin me parece ser uma das maiores injustiças feitas entre dois intelectuais de peso. Não sei o que passava pela cabeça de Adorno, se ele via em seu pretenso pupilo um pensador grande demais que precisava ser podado das arestas através de uma benemérita crítica sistematicamente imposta, o que tornaria Adorno, em tal hipótese, um ser levianamente crente na longevidade de alguém como Benjamin num século como o século XX. Benjamin precisava ser protegido e Adorno se negou a tal, eis a questão. A vida e a obra de Benjamin se impregnaram, em consequência, de uma séria de suposições e realidades alternativas. Em torno do autor das Teses sobre a História se arvoraram os tão lúdicos e abortadamente impossíveis "e se...". E se Benjamin tivesse sido acolhido pela Escola de Frankfurt, o quanto a sobrevivência e a seguridade lhe teria feito produzir ainda mais sobre o quanto ele já escreveu aventurosamente no exílio. Como seria um texto de Benjamin sobre a obra de seu espécie de gêmeo do conto, Bruno Schulz, se Benjamin vivesse o suficiente para conhecer-lhe a obra.

A verdade é que a obra grandiosa de Benjamin e alguns estudos fundamentais sobre ele é que prevaleceram sobre o paralelismo. Não há como negar que uma das qualidades das coisas que Benjamin produziu deriva inevitavelmente da ciência por parte de quem lê da incompletude e precocidade do autor. A inerência erraticamente romântica e incorrigível de vê-lo como uma espécie de São João na ilha de Patmos diante o anjo da História confere a Benjamin um caráter de profeta às vezes tornado ingênuo pela própria fulgurante lucidez. Assim como Christopher McCandless, no filme Na Natureza Selvagem, que se refugia da sociedade de consumo num ônibus abandonado no Canadá, morre de inanição e frio a alguns metros de uma estrada federal que poderia tê-lo reconectado com o mundo e o salvo, Benjamin, na versão aceita de seu suicídio diante o desespero de não conseguir sua entrada pela fronteira franco-espanhola, um dia depois, se tivesse esperado, estaria com o passaporte em mãos assim como os demais fugitivos que lhe acompanhavam, e protegido de vez das garras da Gestapo. Hannah Arendt, em seu ensaio sobre Benjamin, não consegue poupar-se da ironia diante a essa proximidade centímetra entre a desgraça e o conforto que rondava o personagem de seu estudo.

Benjamin escreveu várias páginas do que há de melhor no pensamento do século passado. Seu estudo sobre Kafka consegue ser tão sublime quanto a obra de Kafka. Sua sensibilidade de leitor era algo tão acima da mais apurada genuinidade que criou um grupo recorrente de saudosistas do como Benjamin teria lido tal autor; ele transformou, enriquecendo, a forma de ler Proust, Baudelaire, Kafka, Brecht, os surrealistas. Uma experiência comparativa válida que revela o coração insurgente de Benjamin no que escreve é a leitura do ensaio de Coetzee sobre ele. Coetzee se demonstra um ensaísta acima da média, mas sua secura e sua senilidade acadêmica o nivelam pela medida da mera elegância conceitual de vaidoso laureado. Coetzee analisa milimetricamente a vida e a obra, sobretudo a inacabada Passagens, de Benjamin, de uma maneira clinicamente asséptica. O que Coetzee oferece ao leitor é um Benjamin morto e enrijecido de frio cadavérico por sobre uma mesa institucional, alguém que esteve em volta com a procura obsessiva de excertos do pensamento para compor seu enorme compêndio mas que nunca evoluiu além da patologia previsível aos observadores que sabem posteriormente de que seu fim foi inexorável. Coetzee tem uma técnica de depuração que tresanda inteligência fina que só pode ser neologizada como uma técnica morgueriana, de quem exuma matéria orgânica cujo fato de um dia ter sido ocupada pelo sinergismo da vida é apenas um apêndice antropológico. Bastante diferente das leituras de Benjamin. Pegue o texto de  Benjamin sobre Proust, por exemplo, exuberante de alegria criativa, sua profunda leitura de Kafka, que transforma para sempre a maneira de ler Kafka. Há uma foto conhecida de Benjamin debruçado sobre livros em uma mesa de biblioteca, tirada de maneira insuspeitável enquanto ele estava envolvido na leitura: assim ele escreve, sendo um comparsa do autor, usando sua genialidade para fazer uma generosa companhia com a genialidade do retratado. Eu poderia copiar aqui uma série de sentenças sublinhadas de Benjamin, para mostrar sua poesia, sua sensibilidade demolidora, seu esclarecimento luminoso. Adorno, que também me é essencial pelo seu Dialética do Esclarecimento e Minima Moralia, talvez estivesse enrijecido demais pela calcificação acadêmica para salvaguardar um nível de independência subversiva tão incivilizável como o de Benjamin. Talvez ele tivesse cogitado sobre as vantagens da marginalidade para Benjamin, sem sopesar sua profunda vulnerabilidade.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Experiências de Leitura (II)


Tomando um retumbante clichê clássico para o início deste post, por muito tempo desprezei Umberto Eco e tratei-o como um best-seller voltado para um público pretensamente sofisticado. Talvez essa antipatia tenha sido reforçada ainda mais por Eco ter virado febre entre os acadêmicos de humanas da minha época de universitário, e eu via com estranheza que eles muitas vezes colocavam o italiano no patamar de Kafka e Thomas Mann. Tentei mesmo ler O Nome da Rosa lá pelos idos dos 90, mas meu preconceito não conseguia vencer aquelas páginas e páginas de erudição sherlockiana cujo mote era atender a uma graça anacrônica proposital, no melhor estilo pop dos anos 80. Pois bem! No natal ganhei de presente de minha irmã, que sabe do meu gosto para livros mas não diferencia Nicholas Sparks de Elias Canetti, a nova sensação econiana O Cemitério de Praga. Claro que agradeci com veemência e até expressei uma alegria sincera pelo engano não ter sido tão grave, e a capa chamativa fez-me render à ficção de Eco. É um livro divertidíssimo e acho que o li na época certa, com as luzes e a leveza mercadológica onipresente das comemorações de fim de ano. Nas pesquisas pelos blogs literários confirmei que se tratava da mais simples criação do autor, o que reafirmava que minha proximidade dos 40 anos (idade que os gregos diziam ser o ápice das potencialidades físicas e mentais, o que me deixa sempre na expectativa de que enquanto carrego a caixa d´ água escada acima para o telhado da casa me venha a fulminação de um enredo genial para um romance) me deixou mais aberto e feliz à apreensão do mundo sob uma ótica límpida (feche o Corão, olhe livremente céu e a terra). Eco me pareceu nesta primeira leitura um mestre do thriller, com a modéstia de salientar que seu modelo, apesar da erudição incontestável da escrita, era Dumas pai.

Fui atrás imediatamente de O Nome da Rosa, contrariando minha rejeição a tomar livros emprestado, conseguindo-o de um amigo. Na metade do romance já me coçava a compulsão patológica de que eu tenho que ter esse livro. Mas me segurei e ainda não comprei um dos tantos exemplares a dez reais disponíveis pela Estante Virtual. Em vez disso, adquiri o Pêndulo de Foucault pelo mesmo preço e a descompostura da alegria que Eco causa me fez encavalar a leitura de um na rabeira do outro, como antigamente meus anos de fumante me obrigava a fazer com as gimbas acesas na ponta inflexionada de um novo cigarro. O Nome da Rosa tem 600 páginas mas parece não ter mais que 200, tamanha a agilidade da prosa. O mesmo acontece com o Pêndulo de Foucault, o melhor Eco que li até então. E é aqui o ponto a que quero chegar e o grande aprendizado que Eco tem a oferecer.

Em um ensaio introdutório de Marcelo Backes, ele ressalta o quanto Kafka é um exímio estilista da língua alemã mesmo usando apenas umas 300 palavras do idioma. Não há palavras difíceis em Kafka. Sua simplicidade é um dos méritos de sua genialidade. É uma afirmação que se fica pensando durante muito tempo, ao menos eu ainda a tenho como um fato misto de espantoso e lógico. Para o maior analista da burocracia terrena, espiritual, cartorial..., o maior conhecedor da opressão paternalista dos sistemas de controle humano, é natural que Kafka fosse o menos proparoxítona dos escritores (o que talvez seja uma contradição inerente à gramática alemã, mas tem todo sentido nas traduções para as línguas latinas, o que me faz agradecer a tese de Bernhard em Extinção de que muitas traduções são melhores que os textos originais). É de uma astúcia exemplar que o homem que espera por toda a vida ser recebido diante a Lei e que tem a sumária resposta de que a porta que lhe separa do juiz supremo foi feita só para ele e só para ele permanecerá fechada por toda a eternidade, nos leve a esse cúmulo do pesadelo com palavras fáceis e coloquias. Pois uma das minhas sismas enquanto escritor (qualé, não publiquei ainda mas sou escritor, porra!) sempre foi a que nunca devem ser usadas palavras difíceis. Hemingway diz isso, agravando a coisa ao ajuntar que também não se deve usar as palavras fundamentais (o que me fez lembrar aquele piada do homem que se vira para o motorista e diz "eu te amo", em resposta à placa colada acima da janela do ônibus que manda só falar ao motorista o necessário); Churchill disse que sempre se deve substituir as proparoxítonas pelas alternativas mais simples; Tolstói sentenciou algo parecido (quem nomeia uma das maiores criações humanas como Guerra e Paz não poderia afirmar outra coisa).

Então...Eco é uma afronta completa a essa norma primordial. Mann já contradizia esse preceito, mas Mann é Mann (sem trocadilhos) e ele pode fazer isso sem nenhuma contestação de nossa parte. As primeiras seis páginas de O Pêndulo de Foucault, por exemplo, são arduamente legíveis. Eco não só usa as palavras mais herméticas possíveis como segue por uma descrição exaustiva e minuciosa do pêndulo referido no título. O prodígio é como ele consegue vender seus livros igual a água, tanto que o pêndulo está esgotado, mesmo sua edição econômica, lançada dez anos depois do ano de publicação, não se acha mais. Em O Nome da Rosa, Eco nos dá cenas formidáveis da prosa mais paroxítona em que narra desde as técnicas de reprodução de livros na idade média, a perseguição de um assassino pelos salões oclusos da biblioteca do mosteiro, até uma saborosa compilação de anedotas de santos no diálogo impagável entre William de Baskerville e Jorge de Borgois lá para o final do romance. Eco desfaz de forma saudável toda repressão em torno do uso pleno da palavra. Sua erudição se torna, assim, seu maior trunfo. Ela que arma o cenário, tornando-se um elemento imagético dele na forma em que torna o leitor íntimo da palavra, no interior confortável da concha do idioma. Eco constrói o ambiente do mosteiro usando a palavra como pixels; cada detalhe físico e emocional é absolutamente visível dentro da pessoalidade construtiva de cada leitor. Essa maravilhosa competência de Eco, esse amor pela palavra e pelo conhecimento_ essa alegria imensa de escrever, como bem diagnosticou o Aguinaldo Médici_ me fez rever minha negação sobre a aceitação futura de Eco entre gente como Kafka e Joyce.

Novamente, minhas leituras espontâneas dessas férias me fez ter mais uma face do aprendizado de que a escrita jamais acabará. Entenda-se isso como a sobrevivência do romance e demais freguesias do discurso. O deleite de ler a narrativa literal ao extremo de Eco, sua imaginação, me trouxe a motivação rejuvenescida de que escrever é a mais essencial e livre, a mais solitária e fundamental das artes.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Experiências de Leitura (I)



Mais uma semana de férias pela frente. Três meses de licença prêmio, coladas a um mês de férias, em que viajamos por uma semana a Minas Gerais (decidimos ir a lugares mais distantes nas férias do ano que vem), e que me afundei em gratificantes variações de leitura. A vida de família é exigente demais para que eu ainda tenha a liberdade de antigamente de varar dias e noites na leitura, intercalada com períodos breves para lanches e cochilos, como certa vez ao ler Ulisses em quatro dias, e Os Demônios num recesso de carnaval. Quem é pai sabe da trinca no coração, quando nos fechamos no escritório nos fundos da casa e mãozinhas batem contra a porta chamando "papai, papai", e não há como não deixar o capítulo mais envolvente do romance que se está lendo, ou a parte mais instigante do ensaio de lado, e atender a esses apelos tão ternos e delicados. Mas mesmo assim, a contabilização de livros lidos neste período mostrou-se carregada de sinais significativos, que ao mesmo tempo desenham um diagnóstico sobre os caminhos da ficção e uma linha intuitiva dos meus interesses mais inconscientes sobre a escrita. 

Por exemplo: pouco há de comum entre livros como Como Mudar o Mundo, de Eric Hobsbawn, e Obras Reunidas, de Walter Benjamin, além dos interesses humanistas dos dois autores em pragmatizar através da análise da História as hipóteses de um mundo melhor; mas eu os li, quase lado a lado neste período, na febre eclética de saber um pouco mais o que se passa na cabeça de homens que ganham a etimologia desse termo por razões mais espiritualmente genuínas que os atributos da fita métrica cada vez mais medíocre e equivocada que vemos em publicações como nas revistas da editora Abril, que só neste meu intervalo de descanso lançou uma revista Super Interessante cuja capa brinca com a produção seriada futura de bebês "perfeitos", colocando a foto de um menininho de olhos azuis e cabelos louros; ou numa revista sobre História (que segue a rotina cimentada desse ramo nacional de se dirigir sempre a um eterno adolescente pré-vestibulando que pode se julgar um gênio emancipado por ser o seu alvo diretriz privilegiado) que revela enormes benefícios científicos promovidos pela ciência nazista, como informações pontuais sobre o tempo limite de pressurização que uma pessoa aguentaria num submarino (graças ao desabnegado sacrifício imposto a um prisioneiro de campo nazista que aguentou 15 segundos antes de morrer, aparecendo as fotos do antes e depois com o distanciamento asséptico de estar-se vendo um porquinho-da-índio num laboratório), e com a figura da capa sendo uma estigmatizada suástica com desenhos suficientemente amenizados do bigode de Hitler, máscaras de gás e tanques de guerra, que poderia ser usada como papel de parede num quartinho de bebê (o bebê ariano perfeito da outra revista); ou a última capa da Veja, que aponta festivamente a descoberta de que pessoas altas vivem mais e são mais bem sucedidas que pessoas baixas (!!!!!). [Há de se fazer aqui o uso cacofônico de uma chave, coisa que acho jamais ter feito neste blog e que não recomendo a ninguém que queira escrever um texto minimamente desobstruído de interrupções gratuitas de fôlego faça, mas essa matéria da Veja merece um adendo rápido: de onde, por Tutátis, eles tiraram isso?? Homens altos são, sob todos os aspectos de sucesso possíveis (até o da longevidade), melhores que os homens baixos??? É realmente eloquente a fé da Veja sobre o quão devem ser homenzinhos e mulherezinhas beirando o nanismo cerebral os leitores que lhe restam para se distraír com fabulações sem pé nem cabeça como essa e não se atentarem na verdade criminosa que subjaz nos porões desta revista. Qual a altura de Carlinhos Cachoeira? Basta umas simples concatenações de informações nestas cabeçinhas dispersas para destituir a tentativa de tal reportagem: para os que se ocupam com a literatura, há mil escritores baixos para cada um alto; há mil Faulkners para cada um Bertrand Russel, mil Naipaul para cada Hemingway; mas para a maioria de adeptos sequazes da felicidade terrena do capital que a assinam, Zuckerger tem 1,70 (não necessariamente alto); e, nesta pesquisa  de um programa do SBT em que se questiona qual o maior brasileiro de todos os tempos, a resposta certa seria Joelisson Fernandes da Silva, do alto de seus 2,3 metros.]

Mas voltemos ao assunto (?) do post. Nestes meses descobri que um simples conto de Juan Carlos Onetti, como, por exemplo, O Obstáculo, vale mais que toda a centena de contos que Roberto Bolaño escreveu. E essa é uma descoberta que fundamenta a certeza de que a literatura exige uma seriedade cíclica de seus renovadores para que a insurgência de coisas realmente brilhantes não fique apenas na intenção. Faz-se necessário que o escritor volte escalas mais pregressas de influência para ter a lucidez de que, muitas das vezes, a Substância criativa está, realmente, há uma ou duas gerações de distância. Li o maravilhoso livro de contos completos de Onetti publicado na série listrada da Companhia das Letras, umas três semanas após ter lido o apenas competente Chamadas Telefonicas, de Bolaño. Onetti despertou em mim a lembrança da época em que a escrita era aterrorizante e infinitamente compensatória de quando eu penava por procurar a musicalidade mais íntima e precisa para as minhas redações do colegial. Naquela época eu tinha a absoluta convicção de que seria escritor, e nem me passava a mais remota preocupação se seria lido ou não. Meus autores sacramentados eram gente que tinham a marca natural rara de serem escritores natos, homens a quem nenhuma outra atribuição profissional se acondicionava a suas independências de predestinados que não fosse a da escrita, e que eram portadores de uma felicidade imensa sobre todos os outros da espécia: o talento da escrita. Faulkner era meu modelo imprescindível. E agora, ao conhecer esses contos de Onetti, me veio de volta essa zona de conforto inadmoestável imune das insuficiências do dia e das exigências das contas de aluguel ou mesmo do leite das crianças. No prefácio deste volume de contos, Antonio Muñoz Molina traça um belo retrato de Onetti. Não há como não excitar o adolescente em mim que um dia escolheu a literatura como cátedra. Onetti, diz Molina, ao vê-lo em uma entrevista a uma televisão espanhola, era absolutamente descansado em relação à sua imagem de escritor. Não professava o iconicismo típico dos escritores em se acharem a azeitona da empada ou a cereja do bolo. Não acatava a escrita como um martírio fordiano das dez mil palavras datilografadas por dia, e da compulsão da ditadura das musas por sempre estar debruçado por sobre a máquina no quartinho escuro. Calmamente, ele tratava a literatura como um exercício livre, que podia acontecer agora e o ocupar durante dois dias inteiros, ou deixá-lo sem escrever por semanas e meses. Ele, que fora de tudo na vida, via a literatura não como distintivo de nobreza espiritual, mas como necessidade acalentada e desobstruída de vaidades em vencer a opacidade da existência através de investidas sincronizadas contra o mesmismo. E, desta forma, quem pode negar que contos como O Inferno Tão Temido e Um Sonho Realizado, dois entre os maiores já escritos por estas terras ou quaisquer outras no século passado, não tornam Onetti investido da nobreza e elitismo tipicamente inerentes aos grandes escritores? Bolaño vive referindo-se à depressão e à escrita compulsiva, nitidamente querendo convencer a musa através de uma pedantismo sutilmente rasteiro, mas o que me veio de forma mais poderosa da releitura hoje do conto de Onetti, O Obstáculo, é que Onetti tem esse eco fisiológico, esse emplasto físico de grudar no ouvido e na alma e nos obrigar a matutar sobre a enorme demonstração de experiência multitudinária ali impressa, durante muito tempo. A mesma característica vencedora do tempo que um conto de Tchécov tem se passando cento e cinquenta anos e nos afixando nas linhas vestigiais da idade de nossas almas como uma lembrança eterna. A alta literatura tem essa característica: a de nos convencer que nasceu  bem antes no tempo e cuja função é sempre a de nos lembrar de coisas que transcendem a nossa existência. Nos fazer atingir o que nossos pés no chão juravam ser inatingível. Por isso, não há nos contos de Bolaño, uma única frase que faça acender a indistinta lembrança, a inenarrável saudade; nos contos de Onetti isso nos é oferecido perigosamente em excesso. Meu livro está de alto a baixo todo sublinhado. Esses quatro meses, entre tantas experiências de leitura, me mostrou de forma incontestável que Onetti é o maior escritor latino-americano.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Lendo Singer



Há alguns anos que não procurava mais achar nos sebos esse que é um dos meus fetiches de leitor, o romance Sombras sobre o Rio Hudson, de Isaac Bashevis Singer. Digitei o título na Estante Virtual, por  acaso, e eis que encontro não um exemplar desse livro já fora de catálogo, mas um dezena, e a maioria a preços módicos. Comprei-o por 20 reais, o que é um espanto para quem sabe da qualidade e da raridade da obra, mas não tão surpreendente para quem já conhece as incríveis facilitações da EV. Como não estava nos meus projetos ler Singer por agora, assim que o volume chegou, guardei-o num lugar da estante que prefigura um esquecimento em alerta de pelo menos um ano. Por esta semana chega Contra o Dia, de modo que estou reservando as energias todas para as suas 1.088 páginas, e a imersão total no universo pynchoniano. Mas eis que folheio o Singer e, como é de se esperar, já estou na página 148 de suas 562.

De Singer li dois de seus grandes romances e uma quantidade de seus contos formidáveis. Não há contista superior a Singer no século XX. Mesmo Borges, Carver, Cortázar, por mais que sejam excelentes, não despertam em mim a confortável sensação advinda de um conto de Singer de que se usufruirá de uma alegria completa, que abarca a estética e o prazer de um narrativa pura. Não se vê nos contos de Singer as armadilhas do intelecto que nos contos de Borges aparecem como exagerada estrutura básica. O leitor lê a um conto de Singer sem a mínima necessidade de estar em guarda e armado contra suas vaidades eruditas. Penso que Singer conseguiu essa voz única, esse tom intimista que remete às fábulas e às milenares narrativas orais de aldeia, por sempre ter escrito em iídiche, o que lhe dava a certeza de que seu leitor seria alguém de sua família, de sua restrita casta espiritual. Nunca se sentiu despertado pela fama de que seu leitor pudesse estar em um centro urbano, lendo suas palavras em um metrô enquanto vai para o escritório. Singer sempre escreveu para o garoto da aldeia judaica confinada numa geografia e tempo estacionários, e por isso seus contos são tão atmosféricos e alienígenas. E por isso é tão gratificante ler Singer. Ele traz a impressão de que existe um significado subjacente pairando sobre o caos da modernidade, e que o segredo é tão simples quanto é abrangentemente complexo.

Contudo, Sombras sobre o Rio Hudson traz um Singer diferente. A começar pelo cenário: uma Nova York dos anos 1950. Talvez esse seja o único detalhe destoante, mas isso já configura uma série de elementos novos na narrativa singeriana. Não mais a aldeia polonesa, mas a grande capital dos negócios. Não mais o judeu feudal e prestes a se desenraizar, mas o capitalista sobrevivente do massacre que se imerge cada vez mais nos pecados do Império. E Singer, um escritor a que se possa sem nenhum remorso dar o atributo de genial, é inteligente demais para não fazer as pontes sutis e dolorosas que se insinuam neste tema perigoso. Os personagens desse livro são judeus ricos que tiveram seus filhos, esposas e maridos mortos nos campos de concentração alemães. Numa emulação ao existencialismo hedonista francês, essa consciência de que a ideia de deus não se coaduna à brutal experiência histórica leva alguns dos personagens à busca da felicidade imediata, surgida no adultério, na traição dos preceitos familiares, na refutação da fidelidade a um deus inexistente. O livro mostra as qualidades das circunstâncias que o gerou, tendo ele sido escrito em capítulos para jornais judaicos americanos: a prosa é fluida, rápida, intercalada com movimentos feitos para apreender sempre a atenção do leitor. O que vem de imediato na cabeça é a energia de um folhetim de Nelson Rodrigues. Singer sempre teve essa dinâmica de exímio contador de história que não entulha a narrativa com pesos desnecessários, e é justo nesse romance que se pode perceber o quanto ele tem a ensinar sobre todas as miudezas da arte do romance. Aqui ele é o mestre supremo; é difícil largar o livro; quer-se lê-lo na velocidade proposta pela escrita, mas as descrições de Nova York são soberbas demais e requer releituras encantatórias, os conflitos filosóficos dos personagens são profundos o bastante para torná-los íntimos do leitor. E, outro aspecto das situações históricas da produção da obra se faz visível: foi escrita em 1957-58. Por isso, a crítica da superfluidade dos judeus no mega-capitalismo cuja construção foi massivamente auxiliada por eles nos EUA se faz presente em todo o romance. Singer é tão ácido aqui quanto Roth na visão do judeu que se estereotipa na caricatura do deformado portador da usura e da lascívia. Talvez por essa negrura inevitável, Singer tenha se negado a publicar o romance em livro, e ele tenha saído apenas após a sua morte_ para o espanto geral da crítica que viu nele talvez a sua melhor obra (concordo).

Volto na visão que Singer tem de Nova York. Penso que uma das grandezas desse romance esteja aqui. A cidade é mostrada sempre coberta de neve, o que denota a nostalgia das aldeias nativas da Polônia nos personagens. Mesmo seu caráter opressivo é suavizado pelo filtro do olhar dos personagens, que veem os trabalhadores imigrantes, as luzes de neon, a superpopulação dos metrôs, as lanchonetes sujas sob a luz do amanhecer, os faróis dos carros de madrugada, de um distanciamento que muito tem do deportado espiritual de Kafka e da criança eterna de Bruno Schulz. Nova York de Singer é convertida em uma aldeia judaica ludibriada pelas emanações da ilusão estruturada do poder e do dinheiro, suas luzes nunca iluminam, mas ajudam a espalhar as sombras, seus céus são descritos como quem vê faixas de nuvens de gelo acima das altíssimas coberturas dos prédios, numa surda independência aos sons das máquinas e das angústias humanas. Sob um céu desses é que se torna possível que o marido traído, Stanislaw Luria, que perdeu a única mulher que amara nas câmaras de gás nazistas, se apresente ao professor Shrage, um símile intelectual estoico do sr. Sammler de Bellow, e lhe proponha uma comprovação ou refutação definitiva da imortalidade da alma: com seu suicídio, sua hipotética permanência fará todo o esforço para se comunicar com o professor, retornando da improvável dimensão dos mortos. A grandeza de Singer nos certifica que isso pode ser perfeitamente possível.