quarta-feira, 24 de abril de 2013

Partículas Elementares, de Michel Houellebecq



Não se trata mais de niilismo. Um dos personagens de Houellebecq oferece mesmo um termo novo: materialismo absoluto. Partículas Elementares, o livro vitrine de Houellebecq, seria de um materialismo absoluto, se não fosse parte do diagnóstico sobre o estágio das ideias e da experiência a que o homem se encontra estancado nesse início de milênio. O livro se oferece ao leitor já com um selo de cansaço, de coisa antiga, de exercício de tautologias modísticas do pensamento já definhadas de interesse, com uma lucidez despretensiosa de saber que não provocará novo desespero, não fará que gerações de leitores jovens passem o resto de suas vidas dedicados ao lento suicídio hedonista em bares de Paris. Tudo o que Houellebecq fala nesse livro já foi há muito falado por outros de seus predecessores, com mais requinte, mais dor e sistemática acadêmica. Tudo que está ali no livrinho fácil de se ler e de narrativa ágil (à maneira do entretenimento ligeiro que se encontra como os mais vendidos das livrarias) é tão velho que, se não fosse o talento inteligente do escritor, seria risível, um riso vindo pelo humor involuntário das cenas grotescas e do desejo sexual patológico. Aliás, esse romance do francês por muito pouco deixa de ser literatura e se torna um estudo clínico de casos de neuropatologias: um romance que, em sua extenuação limítrofe quanto a tudo que não seja matéria, vai de contra a instituição da literatura no que tem de repúdio narcisista às questões clássicas do romance. Em certa altura, o leitor pode se perguntar se o único propósito de lê-lo não seria o enriquecimento do autor.

É um livro insípido como um vale da lua. Caso o leitor não tenha o suficiente preparo, no tocante a saber onde situar tal obra nas tantas seções do anedotário artístico, pode incorrer no erro de se limitar à apreensão do erotismo exacerbado da narrativa, ou, pior, aceitar passivamente aquilo como leitura do mundo, como fato incondicional da morte de toda filosofia. Tem sim uma luz fria, opressiva, que nada traria de benéfico aos anseios espirituais do leitor, se não fosse o desencadeamento das últimas três páginas. Pois, ainda que o livro seja quase um objeto cárneo, de tanta dessacralização de tudo que não seja carne, não consegue escapar de seu caráter espiritual. Não consegue escapar das velhas questiúnculas da escrita, na medida em que não escapa da raiz secular de que a escrita é uma busca espiritual. Os personagens do livro não creem em nada, não amam, não se comunicam, não são possuídos nem pela mais fagulhar impressão de calor. Cada qual é levado por um moto contínuo sem pensamento e sem emoção. A vida de Bruno, um dos personagens principais, só tem razão de ser pela fanática procura de satisfação sexual; todos seus pensamentos, de quando acorda até quando perde a consciência na maioria de suas noites etílicas, são preenchidos pela compulsão sexual. Ou antes a ânsia competitiva frustrada advinda da rejeição perene que Bruno sofre das mulheres, devido a seu pênis pequeno e ao seu começo de obesidade, e à sua carência de qualquer sex appeal. Seu meio-irmão Michel é o oposto de Bruno: indiferente ao sexo, solitário, silencioso, exilado das aparências da vida cotidiana mas absolutamente convencido de suas ideias científicas sobre a vanidade de tudo. Ambos tem uma mãe em comum, uma beldade super-inteligente que se assemelha em sua cumplicidade materna à indiferença de uma viúva negra e que os abandonou em criança. Aliás, os seres autômatos de Hoeullebecq são ultra-inteligentes, bastante franceses e modernos, bem sucedidos e distantes de qualquer tipo de indignação quanto a qualquer assunto. Numa leitura política, são os viventes perfeitos de uma França um passo antes do neoliberalismo sem a conjunção prática do estado, pois quase todos os personagens são funcionários públicos cientes de suas obsolescências, que se acham felizardos por terem entrado a tempo num emprego que lhes ofereçam um mini-apartamento alugado num bairro não de todo periférico em Paris e uma velhice solitária mas sem tribulações; estão certos de que passam por um definhamento importante e inevitável da política ocidental, que são os últimos espécimes desse arranjo, mas são conformados.

Na peça que leva o nome de Calígula, de Albert Camus, o personagem homônimo é questionado sobre sua maior qualidade, ao que ele responde ser a indiferença. Esse romance de Houellebecq professa um avatar mais avançado dessa visão predatória despida de piedade: seus personagens estão além da tragédia e do conflito. Estão por um fio de deixarem de ser humanos, não só na ausência do amor ou da mínima preocupação pela alteridade, mas também na ausência de ódio e de violência. Houellebecq vai dando os vários sinais de para onde a trama está sendo conduzida, com monólogos que estudam a sociedade burocrática a-sensorial de tarefas divididas da distopia de Aldous Huxley, com epígrafes de Auguste Comte, com a elaboração sobre as possibilidades práticas  da meiose nos trabalhos de biologia de Michel. Esses sinais surgem de forma estranha pelo texto, causando a sensação de deslocamento, assim como são insípidas as descrições sexuais, que lembram a escatologia didática do filme a que Robert De Niro leva a Cybill Shepherd para assistir, em Taxi Driver (enquanto o casal copula, a câmera mostra o fluxo de espermatozoides entrando pela cérvix na procura do óvulo). Bruno e Michel são tão imunizados do que compõe a ideia orgânica de homem, que através de suas reflexões passamos a aceitá-los como pertencentes a uma nova categoria biológica, de forma que nosso julgamento moral fica suspenso diante a inquestionabilidade de seu etnocentrismo racista, de seus egoísmos, de suas impiedades. São tão paradoxalmente profundos no que tem de certezas rasas, que o leitor começa a temer, ou a alimentar a simulação de um temor, de que talvez eles estejam certos. Suas ideias sobre o passado histórico e sobre o valor da cultura são fundamentalistas a um ponto concreto que eles decodificam os antigos esteriótipos sobre Nietzsche (segundo eles, um filósofo que privava o sacio hedonista sobre qualquer tipo de moral, e um dos pais do nazismo), sobre Proust (belo em sua obsolescência, sem função alguma para o mundo do novo milênio), e alimentam a consagração dos novos bezerros de ouro (como a concepção de Mick Jagger e demais astros do rock corporificarem uma deidade onipotente que nem na época dos faraós havia igual). Eles são os garotos de QI magníficos que a via sacra cuidadosa de fazê-los passar pelas vantagens herméticas das célebres instituições de ensino, pelas grandes faculdade, até seus lugares por direito de gestores do mundo, faz crer que são oráculos indiscutíveis da verdade, que não podem ser questionados. São o resultado de um darwinismo social que, por mais que seja moralmente injusto, é a realidade: os representantes superiores de uma raça que se deixará levar sempre, que os louvará.

Por isso, por bem pouco, os personagens desse romance não se tornam assassinos. Essa supressão de um caminho óbvio é um dos diferenciais de Houellebeqc sobre a grande tradição de niilismo povoada de heróis psicopatas das letras francesas. Houellebecq não recorre ao assassinato para concluir seu tratado sobre a psique doente do homem do novo milênio. (Brinca com isso, à maneira que faz lembrar os flashbacks dos romances com assassinos exóticos de Bolaño, com um astro de rock fracassado, um homem de beleza arrebatadora que cometia assassinatos rituais e os filmavam.) Seus heróis já não trazem o fardo da tragicidade existencialista dos filósofos assassinos de Dostoiévski e Camus, ou o niilismo vindo de um humanismo em negativo dos assassinos de Zola e Sartre, mas são pessoas lúcidas demais sobre a banalidade da existência para sequer terem anseios   de psicopatia destrutivos contra o outro. Eles simplesmente não enxergam o outro, ou o fazem apenas sobre um ótica estritamente funcional, para confeccionarem esse tipo de catarse.

A força desse romance de Houellebecq_ indiscutivelmente um grande romance_, está na escala precisa em que ele calibra sua sutil crítica ao desenvolvimento da humanidade. Por detrás de sua a-moralidade asfixiante, o autor tece uma obra que é quase um epitáfio à moralidade nunca sustentada pela espécie a que pertence. Por detrás da vida sexual hiper-atrofiada de Bruno, há um repúdio ao sexo que brinca com uma determinação punitiva que beira à expiação dos pecados do catolicismo: as duas personagens femininas principais do livro morrem em decorrência de seus pecados sexuais: mesmo a belíssima Annabelle, que pode bem ser apontada como o único ser cárneo de todo o livro que atingiu um ascetismo na maturidade que lhe configura uma graça quase tolstoiana, morre de câncer de útero, em decorrência se seus tantos parceiros sexuais e de seus três abortos. A outra mulher, única a qual Bruno concede o benefício fisiológico de ser sua companheira para prover suas necessidades da futura velhice, fica paralítica em pleno ato sexual com múltiplos parceiros, e se suicida em seguida por seu corpo não ser mais apto a dar prazer. Houellebecq, em suas intrusões na voz do romance, diagnostica que a isso chegou a liberdade sexual dos anos 60, a isso o culto esquizofrênico pela juventude, esse vazio triste da carne envelhecida e flácida, que não supre mais sua única função de ser maquinário sexual. Nisso, há alguns traços em Houellebecq que soam a Bashevis Singer. O final do livro_ que é arrebatador_, deriva para os santos sem deus de Camus, na medida que Michel é "iluminado" pelas figuras do Livro de Kells do catolicismo monástico irlandês, e cria uma teoria revolucionária que abole o sexo e purifica a nova raça humana de suas heranças deletérias, incutindo a necessidade de um amor comteano, matemático. Uma ironia auto-implosiva que dá lugar a um retrato preciso de nossa decadência feérica e sem retorno.


segunda-feira, 22 de abril de 2013

Um comentário de felizes 15 anos atrás



[Bruno] Começava a encher o saco dessa estúpida mania pró-Brasil. Por que o Brasil? Conforme tudo o que sabia, o Brasil era um país de merda, povoado de brutos fanáticos por futebol e por corridas de automóvel. A violência, a corrupção e a miséria estavam no auge. Se havia um pais detestável, era justamente, e especificamente, o Brasil.
 "Sophie", exclamou Bruno com força, "Eu poderia ir ao Brasil, em férias. Passearia nas favelas, num microônibus blindado; observaria os pequenos assassinos de 8 anos, que sonham em se tornar chefes de bando aos 13 anos; não sentiria medo, protegido pela blindagem; à tarde, iria à praia, entre riquíssimos traficantes de droga e de proxenetas; no meio dessa vida desenfreada, dessa urgência, esqueceria a melancolia do homem ocidental; tens razão, Sophie: ao voltar, pegarei informações numa agência Nouvelles Frontières." (Partículas Elementares, Michel Houellebecq)

terça-feira, 16 de abril de 2013

O passo que se apressa




Publicado em 28 de julho de 2011
Ontem assisti ao Sonhos Eróticos de Uma Noite de Verão, de Woody Allen. Está longe de ser o melhor filme dele, aliás julguei-o tão ruim que só foi possível assistí-lo até o fim em duas partes. Mas, como em todas as obras de pouca inspiração, há uma fagulha de angústia genuína, quando o personagem interpretado por Allen revê após anos a personagem interpretada por Mia Farrow. Todo o filme se passa numa casa de campo, no que imagino ser a Inglaterra dos anos 1900 ou 1910, e é lá que o casal, que só se viram num momento crucial de suas juventudes, é absorvido pela pesada sensação de perda diante a realidade de que o beijo que deixaram escapar à beira do lago, naquele longuínquo tempo, poderia ter determinado que fossem felizes juntos. Mas agora, o personagem de Allen está casado com uma mulher frígida, tendo que derivar suas energias sexuais acumuladas para suas invenções tresloucadas de descascadores de maçã e instrumentos voadores, e a personagem de Mia se casará com um gênio acadêmico com o dobro de sua idade no dia seguinte. Nada podem fazer diante o momento sublime não consumado, mas seus diálogos fugidios_ a exasperação alleniana por sua timidez idiota em não ter dado o beijo_ revelam que a vida de cada um fôra só a acomodação às contingências, um prosseguimento nas trivialidades cotidianas que o lapso daquele crime temporal havia resultado.

Assisti a essas coisas com o coração na mão, como dizem. Eu, à beira dos 40, com dois filhos e uma mulher com os quais sou absolutamente feliz em amplos sentidos. E tais cenas fizeram voltar a lembrança do que sempre imaginei que iria ser o motivo de uma vida derrotada. Com meu romantismo ainda não decantado e ridicularizado o suficiente, antes de me casar eu girava como um galo pela cidade, e nas voltas trôpegas pelo caminho de casa, de madrugada, eu me deparava como em sonho_ como naquelas alucinações fellinianas de retalhos da infância provinciana_ com um velho sentado num tamborete desconfortável diante a televisão, no quadrângulo desconsolado de uma porta aberta para a rua, num casebre de esquina de paredes de tijolos crus. Ele não me via; mostrava-se tomado por completo pelas forças de algum antigo e já cordial arrependimento, para o qual, contudo, o ruído da televisão servia para manter essa sua companhia sonolenta, retirar desse seu fiel capataz qualquer afã em elevar a voz; seu olhar vago, sua boca entreaberta_ a boca de um velho_, mostrava a calma astúcia de quem já conhece e domina as manhas de seu companheiro. Eu partia dali acelerando os passos, policiando-me para que não alcançasse aquele lugar novamente, mas o velho sempre me encontrava.

Quando eu fazia o curso de veterinária, apaxonei-me de forma doentia pela moça mais bonita e inteligente da turma. Acho que não tem nenhum mal dizer que se chamava Adriana. Eu passava as aulas olhando o seu perfil, estudando-lhe os gestos (meu deus, não consigo tirar esse tom demodê do texto!). Quando soube que ela fazia estágio no departamento de Reprodução Animal, inscriví-me como voluntário para auxiliar nas pesquisas. Assim, consegui a felicidade de sermos nós dois os últimos a deixarmos o prédio, à noite. Acompanhava-a do ponto de ônibus até o seu prédio. Claro que ela sabia da minha devoção. Ela era toda recatada, centrada nos estudos, falava num português impecável e mesmo que nós passassemos fins de semana em seu apartamento corrigindo material de pesquisa, havia um filtro de polidez entre nós que dava uma qualidade de cinemascope a toda brincadeira. Por vezes ela me fazia sentir ser o adolescente de Verão de 42 (e ela se parecia demais com a Jennifer O´Neil). Como sempre em minhas atitudes, havia uma pedra basal de farsa por debaixo daquele platonismo. Numa noite mais impulsiva, quando já eramos íntimos o bastante para sentirmos a falta da companhia um do outro, confessei em palavras ordinárias que a amava. Ela aludiu à áurea fantasmal de um amor oculto, para o qual ela ainda simulava fé, para dizer que entre nós não poderia haver outra coisa que amizade. Disse que nossas índoles eram avessas demais para dar certo, eu com minhas aptidões de ex-estudante de jornalismo com os cabelos compridos, e ela com sua disciplina em conquistar um lugar no mundo por si mesma. Mas pelos próximos meses ela ficava em estado de êxtase. Eu havia sussurrado ao ouvido dessa Nádia as palavras eólicas do conto de Chécov: amo-te Nádia; amo-te Adriana. Eu tentava beijá-la, sentindo o perfume de seus cabelos, mas ela sorria de completa e faceira alegria ao desviar o rosto. Eu escrevia poemas todos os dias para ela_ uma coisa me veio agora, deixei de escrever poesias para sempre por causa dessa ilha espiritual_, e lhe entregava. Instruí-a na leitura de romances. Lemos praticamente juntos, ela deitada em meu ombro, o Finado Matias Pascual, cuja personagem também se chamava Adriana e também era belíssima. Enfim, em circunstâncias outras, estava ela sentada na bancada da sala de pesquisas e eu em pé diante ela. Toda a turma estava na sala de aula ao lado, assistindo as explicações de um mestre argentino. E eu disse: não seria ousado que justo hoje você me cedesse um beijo, com tanta gente que poderia nos flagrar? Ela disse um massacrante pois bem que me fez aproximar os lábios dos dela, sentir-lhe a respiração opressiva. E...me neguei. Só isso: me neguei. Rimos nosso riso com um pouco menos de brilho de quando o cinema acaba e o cinemascope é suplantado pela luz da rua miserável nos fundos da saída. Eu namorava um outra menina então, coisa que ela ainda não sabia, e acho que foi por consideração à outra que não lhe beijei. Depois ela nos viu sentados no pátio, e teve um comportamento tão díspare de choque, que tive que atender às suspeitas da namorada contando que eu  a amara uma certa vez, há muito tempo, esqueci não te preocupes. Uns dois anos depois, na festa de formatura, ela me tirou do baile, me levou para um canto no jardim onde ninguém, só o meu remorso, poderia nos ver, e ela estava linda de uma forma absurda, linda de uma forma trágica que me fez pensar o quanto eu teria que remodelar todo o planejamento para minha vida dali em diante se errasse o passo. E...me neguei.

A juventude nos faz pensar assim, ser possível morrer por um momento desperdiçado. Tentei imaginar depois como seria seu beijo, mas nunca consegui. Em vários momentos teria dado tudo por aquele beijo. Ontem, porém, o filme de Allen tanto me perturbou quanto me arrefeceu. Por detrás dos personagens de Allen e Mia, haviam Allen e Mia.

À Espera


Pedi hoje O Mestre e a Margarida à Livraria Cultura. Há anos venho querendo comprá-lo, mas... por essas coisas..., não o comprei. Pesquisei pela net sobre ele e trata-se de um livro, no mínimo, maravilhoso. Não há um que fale mal dele. Até o Marco Nunes se diz apaixonado !!!!!! Espero que chegue na próxima semana, o que adiarei todas as leituras e o confrontarei de vez. 

P.S.: se Bulgákov é imerecidamente desconhecido no Brasil, como todos seus admiradores por aqui dizem, uma notícia que me motivou uma pesquisa na Estante Virtual me causou espanto. A notícia é que um dos mais sensacionais romances de Saul Bellow será publicado pela Companhia das Letras, em Julho deste ano: O Legado de Humboldt. Uma das seis obras imprescindíveis desse que foi o maior escritor norte-americano do século XX, depois de Faulkner. Essa obra está fora do prelo por aqui há mais de 30 anos, e o que me espanta é o total desconhecimento de seu valor por parte dos sebos_ e, consequentemente, por parte dos leitores_, já que encontrei 40 exemplares dele, só na primeira página da EV, por preços que não chegam a 10 reais. O primeiro exemplar custa inacreditáveis três reais! Um livro de 500 páginas, de capa dura! Vejam. Tem dois lados essa história: se a oferta é grande e barata, é porque Bellow já foi muito conhecido e vendeu muito por aqui. Mas dá um nó na garganta ver isso.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Stalker


Que se cumpra o idealizado. Que acreditem. Que riam das suas paixões. Porque o que consideram paixão, na realidade, não é energia espiritual, mas apenas fricção entre a alma e o mundo externo. O mais importante é que acreditem neles próprios e se tornem indefesos como crianças; porque a fraqueza é grande, enquanto a força é nada. Quando o homem nasce, é fraco e flexível; quando morre, é impassível e duro. Quando uma árvore cresce, é tenra e flexível; quando se torna seca e dura, ela morre. A dureza e a força são atributos da morte; flexibilidade e fraqueza são a frescura do ser. Por isso, quem endurece, nunca vencerá.  
(Stalker, Andrei Tarkovski)

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Páginas sublinhadas: Mario Benedetti


"Francamente, não sei se acredito em Deus. Às vezes imagino que, caso Deus exista, não haveria de desagradar-lhe esta dúvida. Na verdade, os elementos que ele (ou Ele?) mesmo nos deu (raciocínio, sensibilidade, intuição) não são em absoluto suficientes como para nos dar garantia nem de sua existência nem de sua não-existência. Graças a um pressentimento, posso crer em Deus e acertar, ou não crer em Deus e também acertar. Então? Talvez Deus tenha um rosto de crupiê e eu seja apenas um pobre-diabo que joga no vermelho quando sai o preto, e vice-versa." (Mario Benedetti, A Trégua)

terça-feira, 9 de abril de 2013

O puro visível


C. acordou bem cedo na manhã de domingo em que faltavam 22 dias para seu aniversário sentindo-se um  burro velho carregado de uma carga muito pesada e obsoleta. Não é uma crise de meia idade, C. pensou, olhando com olhos contidos de rotineiro desespero aos objetos do quarto de casal. Está perto de completar 40 anos, mas C. sabe que seu enfado crônico não tem correlação com esse acontecimento, ou ao menos não diretamente. C. não suporta mais suas ideias, seus livros, não suporta mais escrever uma palavra sequer. Mesmo assim, na manhã de sábado, ele entrou em uma papelaria e, junto com o conjunto de tinta guache que comprou para os filhos, adquiriu seu costumeiro caderno de capa dura colorida de 3 reais e uma caneta preta de bico macio. Já em casa, atirou o caderno em uma das traves da estante e guardou a caneta para quando sua esposa precisasse para preencher as palavras cruzadas. Pensar em se recolher em seu quarto particular nos fundos da casa para escrever lhe causa o equivalente a uma náusea estomacal, sua mão lhe envia a informação neurológica de um profundo enfado. Também por dentro ele está atrofiado. Não é questão de não ter ideias: ele as tem, mas perdeu a fé. Analisa esse diagnóstico terrível e não tem como evitar de pensar que era apenas isso que faltava para admitir a si mesmo, de forma inexorável, que ele mudara internamente. Uma mudança de entregar os pontos, de aceitar. Uma maturação sem graça, sem nem sequer ter peso suficiente para ser triste. Uma mudança inercial, o que está longe de ser um oximoro.

Enquanto todos dormem_ C. acorda sempre muito cedo, por volta das cinco da manhã, mesmo neste mês estando de férias_ , C. pega 2001, uma odisseia no espaço, o filme de Kubrick. Há dois meses comprou para a família uma dessas televisões de tamanho cinematográfico, o objeto de um negro ébano impositivo, uma perfeição lisa que lhe causa um misto de aversão e uma involuntária veneração primitiva. Não lhe escapa que tenha escolhido rever 2001, em vez de Nostalgia ou Amarcord, por inconscientemente a coisa lhe lembrar o monólito do filme. A televisão é um dos indicativos de sua mudança inercial, vinha percebendo isso como alguém que monta paulatinamente o quebra-cabeça que no fim vai mostrar a foto de um assassino. Sempre odiou televisão, passou muito tempo de sua vida sem televisão, e não deseja que seus filhos se apeguem à rotina de distração compulsória diante o aparelho promovida pela falta de interação dos pais; mas mesmo assim, sem planejar, entrara na loja de eletrodomésticos e com uma decisão irretocável comprara a televisão mais cara e sofisticada, e no mesmo dia comprara um aparelho de blue-ray e assinara um pacote de mais de cem canais a cabo. Isso soou engraçado, mas C. não riu, um pouco com receio de que seus lábios emitissem um tremor nervoso. Mas sua esposa ficou espantada, de tal forma que disse uma das melhores coisas nesses 8 anos ou mais em que se conhecem, disse, com uma total espontaneidade, que ele jamais poderia duvidar do amor dela por ele, pois quando se conheceram, ele não tinha carro, e entre os poucos móveis da casa, um era uma televisão de 14 polegadas queimada de um dos lados.

C. coloca o filme de Kubrick, que não vê há anos, e que lembra bem as partes mais conhecidas, a viagem além do universo, a rebelião do computador de bordo, as valsas de Strauss. Mas não se lembrava da incômoda cena de afonia completamente negra do início do filme, se é que pode chamar de cena. São 4 minutos de escuridão absoluta, em que um fundo premonitório composto de  um ruído quase brutal em sua incapacidade de apreensão parece querer explodir os ouvidos. Às 5 da manhã, essa introdução estranha e inesperada causa uma sensação indelével mas premente de terror em C., como se aquilo tivesse sido posto no filme particularmente para ele, como uma mensagem inamistosa. Era opressivo. Estava para apertar a tecla de retorno do menu, achando que alguma coisa estava errada, quando o som se interrompe e aparece na tela um símbolo da MGM sobre um fundo azul piscina. Era tanto mais estranho quanto a cena anterior, no que tinha de um desvanecente humor burocrático, uma auto-ironia de sintonia muito fina que incutia uma acusação misteriosamente indeterminada contra a indústria do cinema. Como se, C. pensou, sendo levado mais uma vez a uma de suas labirínticas análises obsoletas, o filme murmurasse que dali para a frente nada seria como estava condicionado a ver, nada do entretenimento típico e nada da moral enlatada. Não seria felicitado pelas próximas 3 horas. O que o aguardava era uma exigência descomunal de atenção irrestrita. C. forçou o registro da memória para arquivar aquelas cogitações para serem revisitadas com afinco assim que terminado o filme. Com enorme astúcia, Kubrick consegue o que quer: os 4 minutos de espanto e os segundos de metalinguagem propositadamente deslocada absorvem por completo a atenção de C..

Kubrick esvazia as apreensões e pré-conceitualizações do expectador para que este sinta a cósmica solidão do homem em seu estágio simiesco, naquela imensidão de planalto e monumentos naturais de pedra cortada pelo vento. O peso do nada, do propósito ainda não planejado, a corda-bamba em que o homem estava sem que algo tivesse sido definido. Tudo parecia apto a acabar rapidamente; sensível demais e um tanto absurdo. Ninguém apostaria naquilo, de forma que, para espanto geral, se a coisa progrediu, foi devido a uma expansão possibilitada pela indiferença. Um dia viriam para passar um pano e limpar tudo. C. anota mentalmente: Kubrick assepsia o expectador com essa abertura brutal para que ele entre no filme despido de seus escudos urbanos, de seu conforto de se sentir no ápice de uma escala da técnica. C. sente o desamparo a que Kubrick o lança, tendo-se que se encolher de frio junto aos hominídeos sem casa, sem linguagem, sem símbolos. Puramente uma presa. E então, um dos símios pega um fêmur de uma carcaça de algum animal abatido, e desfere golpes contra um outro símio inimigo. Inventa-se a primeira ferramenta. E vem a cena famosa do osso girando no céu e se transformando na linha cognitiva da evolução tecnológica em uma pacífica e valseante nave espacial.

Esse filme sempre fascina C. Na cena final, após tanta coisa que acontece, tantos exemplos de mais ironia e uma catarse que vai além da capacidade mesmo do cinema, lá está C. junto ao astronauta no extremo oposto da evolução. O astronauta atravessou os limites do universo, o que pode ser um buraco negro, ou a fábula real sobre o que o homem será daqui a um bilhão de anos. O astronauta revira em agonia o rosto, arreganha até o limite das pálpebras os olhos, escancara a boca de espanto, enquanto os feixes de luz o vão bombardeando sem clemência. É demais para seu cérebro aguentar aquilo. Mesmo assim, em cada esgar e cada tentativa de evasão, os olhos do astronauta não se descolam do que lhe é revelado. São cenas aterrorizantes. C. cogita que esse filme bem poderia estar na sessão de filmes de terror. Um terror lovecraftiano que não fala de deuses tribais de milhões de anos de sono a ser interrompido, deuses sedentos de vingança, mas de uma bolha real em que o homem está contido sem que possa escapar, e cuja lógica regente é uma ausência de qualquer lógica possível. O astronauta se depara com seu módulo espacial dentro de uma casa iluminada com algo de vitorianismo burguês desprovido de intersecções memorialísticas, desprovido de culpa, ideias, conflitos, história. A casa é absolutamente intranscedente. É incrivelmente desprovida de qualquer necessidade de coisas que não estejam ali. Ela se basta em si mesma. Ela é o cume da resolução milenar de todos os desejos. Intransigentemente pura. C. pensa: sabe aquela história de que o que vale é a alegria dramática da busca, não o estacamento do objeto encontrado?, pois o astronauta está no estágio final da existência em que tudo já foi há muito tempo encontrado. Vem à mente de C. um sermão de Buda: "o puro visível é uma chama que queima". Aquilo é o puro visível. Uma reverberação cegante para os sentidos, que necessitam de penumbras, meios-tons, mediocridades.

Aquilo em que o astronauta e C. estão, é o estágio último do destino do homem no universo, sem medo, sem perguntas, sem paixões, sem ilusões, sem frenesi, sem dor. De um lado o símio tremente na desproteção do céu aberto, de outro essa casa de luzes frias, que não as luzes do paraíso. O lugar definitivo no nada pelo qual toda a espécie batalhara infatigavelmente. O astronauta, com o rosto envelhecido, e C., próximo de seus 40 anos de idade, veem o Homem Culminado, o homo finalis, o estágio supremo da evolução, um velho espadaúdo vestido de branco, rescendendo de brancura, sentado diante sua mesa de jantar. Ele é um tanto tristíssimo em sua falta de necessidade antropológica de tristeza, em sua limpidez darwiniana; arremete educadamente uma colherada de comida na boca e, de súbito, a taça que está por sobre a mesa cai e se parte no chão. O homo finalis curva a cabeça e observa os fragmentos do cristal espatifados. Não há curiosidade em seu olhar; por mais que ele demore neste ato avaliativo, não se trata de nada que esteja fora de seus sistemas prontamente catalogados de percepção; apenas que ele tem que procurar um pouco mais na memória algo que se assemelhe àquela violência circunstancial da aleatoriedade. Não sobrou nada do anima que em um bilhão de anos começou com um fêmur improvisado como instrumento de guerra. Uma taça quebrada é tudo que ecoa como vestígio de antigas e esquecidas dialéticas traumáticas. O homem já não é mais verbo, mas o eterno som atonal. Então ele retorna ao monólito que esteve em todas as etapas das grandes revoluções tecnológicas humanas: um bebê que, ao contrário de seus predecessores, tem os gigantes olhos abertos. Haverá então uma outra evolução, Kubrick diz. Mas agora, em que campo?

domingo, 7 de abril de 2013

Mais uma vez, o indispensável Leminski



um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto.

______________

razão de ser

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
e as estrelas lá no céu
lembram letras no papel,
quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

Neste anoitecer de domingo desterrado do infinito

Drugstore, com a magnífica Isabel Monteiro

O álbum mais belo de uma vocalista feminina que ouvi recentemente, depois de Let England Shake, de PJ Harvey. Excelente!!

sábado, 6 de abril de 2013

Tzaddik Ha-Dor


Michael Chabon transverte um dos enredos clássicos caros a gente como Dostoiévski e Faulkner para compor seu excelente romance Associação Judaica de Polícia. Enquanto os personagens de Dostoiévski e Faulkner passam por uma provação rousseauna, nascendo puros e sendo submetidos à prova ao longo de incansáveis pressões da degradação moral extrema, gerando os santos incorruptíveis como Aliocha e o príncipe Michkin, ou o velho demônio cansado de pecados e louco pela redenção como Thomas Sutpen, o personagem de Chabon que mais se adequaria a essa análise existencial é apresentado, desde a primeira página, morto com um tiro na nuca no quarto do hotel mais vagabundo da cidade. É uma anti-análise sociológica em que Chabon, propositadamente, "desperdiça" um grande personagem em favor de seu projeto de fazer Associação Judaica de Polícia um símile canastrão e uma caricatura séria do romance policial noir de Raymond Chandler e Dashiell Hammett. Não é por menos que, nas orelhas do romance, temos a informação de que os irmãos Coen compraram os direitos da obra. O livro está impregnado do humor sutil com ameaças de percepções metafísicas de Fargo e Um Homem Sério.

Mendel Shpilman é o nome do herói sacrificado de Chabon. Ao longo das peripécias da investigação feita pelos dois detetives da trama_ que dá ao leitor um esbanjamento do que há de melhor em diálogos no romance americano contemporâneo_, fica-se sabendo que o assassinado foi, no começo de sua infância promissora em que um QI de 170 demonstrava conduzi-lo para a revolução certa em qualquer dos campos do saber, o Tzaddik Ha-Dor de sua geração. Esse termo significa, literalmente, "o justo da geração", um homem totalmente puro e justo que acomete cada geração de judeus para acelerar a vinda do Messias. Mendel Shpilman era o apontamento raro que serviria a manter a fé do Criador em uma humanidade cuja boa parte se compõe de seres depravados e imerecidos de resgate. Mendel Shpilman é um Aliocha que tem a vantagem de não ser limitado pelos dogmas inerciais do catolicismo russo ortodoxo, mas ser um componente favorecido pelo misticismo inter-dimensional do judaísmo canônico, daí que parte dos relatos que se tem sobre ele fala de precognição e a cura do câncer de uma mulher. Mas se Chabon aborta esse personagem na primeira página, em compensação ele oferece uma ficha corrida que se encaixa ao clima de desespero do romance, pois a história acontece nos meses finais de permanência do povo judeu em um território gelado do Alasca, antes que tenham todos de fazer as malas e continuarem no êxodo bíblico perene. Daí surge o feliz insight de Chabon para compôr esse romance, seu toque nonsense genial em juntar o policial noir com a diáspora, uma profusão de gângsters judeus russos e seres degradados que choram por sobre o prato de comida rápida na solidão dos bares, com policiais com crises existenciais aptos para acabarem com as próprias vidas antes de vencer o dia (o dia que nunca chega nos invernos alasquianos), todos usando quipás e peóts e falando uma gíria iídiche de gente de barra-pesada. E seu Tzaddik é um homem viciado em heroína, que abandonou todas as apostas que fizeram dele, a ciência, o xadrez, a aproximação deísta, a família poderosa de agiotas e mafiosos, para morrer assassinado em um quarto imundo, deixando como pista uma inoperável partida de xadrez não terminada.

O crítico Sérgio Rodrigues disse que Chabon escreve tão bem que incorre no perigo de ceder ao virtuosismo vazio da "arte pela arte". Eu li, além desse livro tratado neste post, o As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay (o primeiro grande romance sobre quadrinhos), um romanção sem estatura definida pela crítica mas que olha bem do alto coisas como A Visita Cruel do Tempo e Liberdade, e tive Chabon, de forma imediata, como um dos maiores romancistas americanos vivos. É inevitável perceber que Chabon se entusiasma tanto com seu enorme talento que, às vezes, realmente faz umas cabriolas metafóricas e força a barra em algumas construções imagéticas, mas nada que sequer faz sombra à eficiência de suas narrativas, Vejo aqui a influência inevitável de Nabokov, e, ainda que a presença de Garcia Márquez seja menos evidente que em Kavalier & Clay (o primeiro parágrafo desse romance segue o modelo histórico ressonante de Cem Anos de Solidão), aqui tem uma simetria inicial com O Amor nos Tempos do Cólera: ambos começam com enxadristas mortos encontrados em quartos de hotéis vagabundos, enxadristas que representam todo o exílio espiritual étnico dos personagens que lhe estão em torno.


sexta-feira, 5 de abril de 2013

Meus ouvidos devocionais_ Mingus at Antibes


Tá bom, esse é meu álbum preferido do Mingus! É algo tão impossível de escolher o álbum que mais se gosta de Mingus, mas vou pelo critério de que este é o que mais escuto. Como tudo que existe de Mingus, as músicas parecem um milagre. São tocadas com uma facilidade, em uma esfera tão alta, que a única atitude positiva a se ter diante é da passividade bêbada. Gostaria de saber_ mentira, para mim pouco importa_ a quantidade de serotonina em meu organismo neste exato momento em que escuto a abertura de Prayer for passive resistance, e tomo o segundo cálice de vinho do Porto.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Waterfall


Comprei hoje os ingressos para o show de Paul McCartney em Goiânia, dia 6 de maio próximo. Apesar da inconspicuidade de Paul, de Paul estar bem acima desses assuntos mesquinhamente mundanos, há duas sombras pequenas por detrás da agenda do Beatle: uma é projetada por um cantor sertanejo, e outra por um político local, que dizem ser responsáveis pela vinda do cantor para essas pradarias. O político já posou diante o banner da turnê do Paul, sorriso e gestos de vitória das mãos. Seria maravilhoso se Paul, do alto de seu palco suspenso sobre o maior estádio do Centro-Oeste, cantasse uma das minhas músicas preferidas: Waterfall.