terça-feira, 30 de junho de 2015

Eloquência

Só há umas duas semanas que me ocorreu a pergunta do por que eu não dei o sobrenome de meu pai à minha filha. Meu pai morreu em 2008, e minha filha nasceu em 2010. Nada seria mais natural que um respeito elegíaco, o mero mas substancial instinto de perpetuação familiar, me fizesse dar o sobrenome Campos à Júlia. Me ocorreu só há duas semanas que o fato de minha filha não se chamar por completo Júlia Campos é o pior dos meus pecados. Foi uma descoberta tão repentina, que minha primeira reação em tentar fazer com que o arrependimento não me abatesse foi a de jogar a justificativa nos sintomas advindos com a inesperabilidade da culpa. Se só agora eu atentava para a vultosa culpa surgida com isso, após passados cinco anos, é porque havia um segredo, uma razão incógnita legítima, que deveria ter passado pela mente amargurada daquela pessoa que eu era. Há duas semanas, eu parei o carro, sentei em uma praça, cruzei as pernas, e fiquei olhando as palmeiras em frente à sorveteria, notando pelo canto do olho a sombra do rabo da culpa abanando em sua investida macia de uma outra dimensão para a dimensão em que eu estava. Meu Deus, eu disse, seriamente embasbacado, por que, POR QUE, eu não dei o sobrenome de meu pai à minha filha? Fiz um esforço feroz para lembrar de todas as circunstâncias psicológicas em que eu me atirei a partir do instante em que recebi o telefonema de meu pai, naqueles dias em que se iniciou nossa tíbia caravana rumo ao holocausto inescapável dele, após 15 anos de total afastamento um do outro, para desvendar o dilema. Eu tinha só uma certeza: era algo muito sério, pois desde que eu soube que seria pai, a paternidade tomou todos os meus horizontes e todas as minhas referências, de forma que se eu não herdei o sobrenome dele à minha filha, é por causa de algum rancor muito profundo, era alguma forma de diálogo que eu mantinha com ele mesmo depois de sua morte, alguma vingança, birra, alguma tentativa auto-desmobilizante e desprotegidamente desesperada de matá-lo uma segunda vez.

Não é preciso Freud para eu saber que eu sempre conservei uma vontade de matar meu pai. A morte asséptica do simbolismo encarnado, a figuração da extinção retórica e da extirpação mental daquele que me gerou e para quem minha incapacidade de comunicar-me com ele era inexoravelmente gritante. Eu queria matá-lo porque eu jamais teria a estatura exigida para que pudesse dividir com ele um diálogo descansado com conteúdo verdadeiro. Tudo o que nós falávamos entre nós se resumia a meu choro e a resposta ortodoxa que ele procurava adivinhar ter para cada ocasião. Nossas conversas eram testes tensos a que eram submetidas duas criaturas em um laboratório. Eu me achegava a ele como um parasita, para me grudar com tenacidade a seu couro, e ele fazia a pose de subserviência correta para que o processo de espoliação se concluísse o mais plenamente dentro das tabelas de mensuração. Mesmo quando estávamos cada um em seu sofá na casa deserta, durante minhas férias de julho, lendo cada um seu livro, a artéria brilhante que se podia ver com um pouco de percepção certa por entre a atmosfera metafórica conjugal estava lá, partindo dele para mim. Eu sempre tive a lucidez de saber disso: a única forma possível de interação entre meu pai e eu era a lacônica dança desgraciosa em que ele simulava grotescamente ser meu pai, e eu simulava grotescamente ser seu filho, e tanto ele como eu sabíamos que os modelos utilizados por cada um em nosso imenso desconhecimento dos papéis eram os piores existentes. Sempre fizemos as escolhas erradas um com o outro, e isso não podia ser apenas uma má sorte, uma vexaminosa inocência. No paradoxo de conservarmos uma única visão concordante de justificativa futura para todas as nossas faltas de acerto, acreditávamos que algo além de nós iria nos harmonizar. Meu pai deveria saber muito bem, deitado no sofá, que a postumidade dele era que equilibraria e daria conteúdo a tudo aquilo. Nosso diálogo pleno, atravessado de felicidade febril, nossas conversas por toda a noite, possuídos pelo entusiasmo, só viriam em um momento distante, muito provavelmente em que ele não mais estaria aqui. E ele estava cumprindo essa promessa da providência quando, 15 anos depois da última vez que nos falamos_ de novo uma fala mutilada e sem alma_, ele me telefonou. Eu recordo como se fosse agora. Era uma tarde, eu estava sozinho em casa, na bagunça de minha casa de solteiro, preparava para sair para cumprir não sei o quê, quando o celular toca. Eu atendo e ouço uma voz cinzenta. Ele pergunta se sou o Charlles, e depois fala que é ele, meu pai. Que precisa me ver, que está na capital. Eu rio, sem acreditar, e admoesto um amigo que tento adivinhar como autor da pegadinha. Ele diz, de forma contundente, que é ele. Daí eu compreendo instantaneamente, e lhe pergunto: "O que foi? Você está doente?" Ele nega com veemência, mas eu vejo que está, eu vejo que a coisa é séria. Eu vejo que se trata de um processo de despedida. Lembro que fico muito incomodado, não pela sua doença, mas pelos requisitos de sacralidade inescapáveis daquele rito de passagem que me era atirado em cima sem ter me dado tempo para me preparar.

Eu tenho um tio. Tio Jedson. Ele é cinco anos mais velho do que eu. Minhas lembranças mais angustiantes da juventude eram as conversas que meu pai tinha com esse tio. Passavam a tarde toda em um diálogo cheio de cumplicidade tranquila. Eu circunavegava meu pai, tentando promover com meus olhos acima da minha língua incapaz o arremedo mágico que trouxesse tanta facilidade. Eram momentos em que eu desejava fortemente matar meu pai.

Recordo que eu mesmo estava doente naquele ano de 2008. Descobri um caroço em meu testículo esquerdo. Um vizinho distante havia morrido de câncer de testículo, e eu passei a acreditar que eu tinha a mesma coisa. As pesquisas que eu fiz na solidão apontavam que a cirurgia de remoção dos testículos era o procedimento inevitável. Daí o médico implantava um enchimento de silicone por questões de estética, uma estética histriônica que já não interessariam a mais ninguém. Fui encontrar meu pai com esse pensamento em mente: que eu estava doente, e que se houvesse cura, eu jamais poderia ser um pai biológico. Intimamente, eu compreendia que a harmonia tardia e póstuma entre meu pai e eu se beneficiava com a repaginação adulta do acréscimo peculiar do sarcasmo. Ele estava em uma casa de repouso destinado a viajantes vindos de outros estados, instituição municipal que eu não sabia que existia. Eu fui com meu amigo Galeb, entrei no quarto indicado pela funcionária, e meu pai me perguntou: "Pois não? Quem é o senhor?" Eu disse: "O Charlles." Ele se levantou e me deu um abraço. Chovia exponencialmente. Ele estava com as canelas tão finas que achei um prodígio ele poder caminhar com tamanha desenvoltura. Conservava o topete. Sua esposa, que eu a conhecera há quinze anos, estava de seu lado. Sentamo-nos no alpendre, e eu percebi pelas minha antenas incorrigíveis que passara pela cabeça dele alguma fugaz maledicência sobre o real vínculo entre eu e o Galeb. O mesmo tipo de dúvida consumada que eu senti certa vez ao ver que ele depilava a virilha, e a vez em que ele julgou que eu era um drogado me avaliando diante sua cadeira em uma mesa de bar. O nosso eterno e inamovível descompasso continuava fiel. Agora eu era bem grande (foi essa estupidez apiedante que me passou pela mente), era bem maior do que ele, e eu tinha meu próprio dinheiro, então eu estava seguro. Quando a chuva passou, ele pediu para ver meu carro. Ele jurava que um modelo tão antigo não tivesse injeção eletrônica. Abriu o capô e viu a injeção eletrônica. Fez-me a proposta de ficar com meu carro e eu receber um carro zero quilômetro muito mais caro em troca, tendo que buscá-lo em sua fazenda há mil quilômetros. Ele estava muito magro, e me fez tal proposta no balcão de uma lanchonete em que lamentou não poder comer o bolo de fubá porque o câncer terminal de estômago que tinha não o permitiria. Bebeu um leite com café morno e esperou minha resposta. Me perguntou se eu, com todos os conhecimentos científicos que julgava que eu tinha, achava possível que o médico fizesse uma espécie de túnel reconstituído dentro de seu corpo, de maneiras que o estômago fosse feito artesanalmente com partes do intestino. Eu não soube qual resposta dar primeiro. Eu não queria trocar meu carro, estava bastante feliz com ele, respondi. Eu já ouvira falar de procedimentos do tipo que ele falava. Ele voltou animado e disse para sua esposa que eu achava que era possível, e inclusive sabia de pessoas que passara por algo igual, sobre a reconfiguração do intestino.

É uma balela ingênua achar que se descobre o momento indefectível em que acontecerá a conversa plena, cheia de significados. Ficamos ali sentados, falando sobre carros, ou antes eu o ouvindo falar vagamente sobre carros. É uma estupidez criada pelo romantismo requerer o direito da se estar vivendo um instante capital da existência, e uma estupidez maior ainda julgar que ele trará um jorro de riqueza espiritual encalacrada por décadas em uma suntuosidade de expressão sincera. Eu senti que estávamos mais boçais ainda do que na época em que ficávamos cada qual em seu sofá. Depois, eu ficava imaginando se foi uma simples falta de coragem, se eu abdicara de dizer a frase mais ajustável que acionaria a tão esperada relevância. "Bom pai, eu descobri que tenho um tumor no testículo, o que me obrigará à esterilidade na melhor das hipóteses". Eu poderia ter falado de seu topete, ter usado o tom amigável bonachão que eu desenvolvera tão bem em minha vida social, a ponto de ser visto como o comediante da turma, e ter exigido dele que me contasse sobre seus anos de galo ciscador. Como ele pegara minha mãe. Como ele subira naquele telhado do internato, cena de tantos relatos, e fizera com que uma moça tímida e com o coração endurecido se casasse com um boêmio que tocava viola.

Uma vez, eu o esperava em uma praça. Eu tinha doze anos. Eram nossos encontros semi-secretos em praças, ou na porta de igrejas, nas brechas do contrato judicial dos direitos dele em ver o filho. Um homem se aproximou de mim, se sentou de meu lado. Puxou conversa. Meu pai, que estava atrasado, chega no mesmo instante e rechaça violentamente o homem, violenta de uma maneira que eu nunca vira que ele seria capaz antes, sem mudar uma expressão do rosto, sem mover uma mão, apenas com o tom de voz. O sujeito sai às pressas. Meu pai se desculpa pelo atraso, e ambos começamos a caminhar em direção a uma prédio de dois andares de frente à praça. Subimos umas escadas circulares e entramos em um quarto grande, bem iluminado de sol, cuja porta estava semi-aberta, provavelmente quem estava lá dentro esperando avisado de antemão da nossa visita. Há um velho de barriga grande sentado à cama. Deveria ter oitenta anos, na minha concepção relativa de meus doze anos, o que me faz crer que tinha sessenta. Está só de camisa branca e com uma bermuda azul muito gasta, mas transmite, apesar da solidão do quarto e do ar geral de desistência, um ar de assepsia. Meu pai se senta ao lado dele, parece que vai tomar o rosto dele pelas mãos e puxá-lo delicadamente para junto do seu, mas não faz isso. Falam alguma coisa, durante uns vinte minutos. Meu pai fala mais do que o velho, mas o velho responde e corrobora com o assunto com uma concentrada prestimosidade. Eu fico sentado em um banco, olhando o quarto despovoado senão pela cama de casal, um armário, uma penteadeira e o banco onde eu estava. Meu pai me chama para irmos embora. Na sorveteria, último ponto de nosso itinerário corriqueiro, ele me diz sem que eu pergunte, com uma voz cheia de ressonância, uma voz que deixa adivinhar uma rica história por detrás, a voz que era, para mim, seu maior tesouro: "Aquele senhor trabalhou como palhaço de circo por muitos anos. Ele foi um grande palhaço de circo." Meu pai me olhou como pouquíssimas vezes era capaz de me olhar, me cobrindo por inteiro com os olhos, por distração aferida pela intensidade passional do que estava me dizendo me convidando sem delicadezas para a nossa tão esperada e desacreditada conversa. Eu me calei e baixei os olhos para o sorvete. Lembro disso com tamanha perfeição, como uma mancha na retina.

E contudo, eu não dei o nome dele à minha filha Júlia. Ele teria adorado minha filha Júlia. Ele tem mais duas filhas e um filho. As duas filhas disseram que ele era um pai maravilhoso, extremamente carinhoso. Eu sei que ele era. Eu não fui ao enterro. Um amigo do meu pai me telefonou: "Se quiser ver seu pai pela última vez, é bom se apressar, porque ele não passa dessa noite". Depois, no outro dia, um tio me ligou e com a voz correspondendo a todo ato social da más notícias, me disse: "É Charlles, você sabe... sinto dizer..." Alguns amigos passaram a ligar, e eu desliguei o telefone e me tranquei em casa. Ah se tivesse um cronograma de como se portar, de o que se pensar, de como chorar ou como deixar de chorar, de como se sentar e olhar do jeito certo o mato crescendo no jardim. O mato crescia com a velha selvageria desconjuntada e silenciosa. Eu quis jogar tudo para fora com o choro que me entupia a alma, mas a estridência denunciava a falta de similitude entre o sentir e o expressar.

Há muito mais formas de dizer do que com as palavras. As palavras, aliás, são uma mutação pouco efetiva do não-dizer. Se eu deveria ter trocado de carro? Na minha recusa havia todas as minhas respostas diante as tentativas dele por me dominar, ainda que eu soubesse que era apenas o velho medo de ambas as partes. O telefone toca novamente uma tarde, e a viúva dele me diz que ele deixou um montante em dinheiro e a pick-up da qual ele queria fazer a troca. Ela me liga várias e várias vezes insistindo para que eu pegue. Eu contrato um advogado e mando para ela o documento em que me abdico da herança, em nome dela e do outro filho e filhas do meu pai. Surge um período em que eu entro em depressão da qual nunca passara, com profunda descrença sobre o significado de deus. Eu havia lido uma biografia de Darwin, e aquilo acentuara mais minha sensação de total nulidade.

Faço um exame e o médico diz que eu não tenho nada mais que uma inofensiva anomalia de nascença no testículo. Minha namorada Daniele fica grávida, perde o bebê, fica grávida novamente, e nos casamos três meses antes que nasça a Júlia. Eu sei, eu sei com absoluta segurança, que eu sou um ótimo pai, ou pelo menos o melhor que eu concebo ser com todos os meus esforços. Todas as mínimas falas da minha filha eu respondo como se eu estivesse respondendo a uma adulto, mas com respostas honestas compatíveis a uma criança. A Júlia sabe que uma aranha tem oitos olhos, diz isso para a tia e a avó, que se surpreendem com a informação. Eu e a Júlia ficamos longas horas conversando. Muitas vezes eu tenho que calar meu receio de se ela vai interagir com todas as coisas que eu digo para ela, e ela nunca me decepcionou. Eu demorei me acostumar com a sinceridade desarmante da forma como ela fala comigo.

Nosso médico tinha dito que o ultrassom indicava que a Dani estava grávida de outra menina. Lara. Todos a chamavam de Lara. A Júlia dizia, todas as noites antes de dormir: "Boa noite mamãe, boa noite papai, boa noite Lara". Há duas semanas, na outra ultrassom, o médico diz que o bebê tem todas as medidas certas, e logo diz: "E vocês estão vendo ali o sexo, não?" A assistente, que ficou ostensivamente me observando esperando que eu chorasse como da outra vez, me diz, apostando que agora seria tiro e queda: "É menino!" Eu não choro. Na praça, quando praticamente dançamos por entre as flores ali plantadas, a Dani pergunta sobre meu mutismo. Claro que estou feliz, Dani, só estou compreendendo. É menino. Em casa eu chego com delicadeza à barriga e o congratulo, imaginando seu olhar atento e desfocado e toda sua capacidade extra-sensorial, toda sua inteligência pulsando ali dentro. Já sabe o nome?, a Dani me pergunta, brincando. Desde muito tempo, desde décadas. Eric Campos. Eric Campos.

domingo, 28 de junho de 2015

Submissão, de Michel Houellebecq



Duas coisas que Houellebecq disse em sua entrevista a um programa da Globo News me chamaram a atenção. A primeira é que ele demonstrou um certo descontentamento com o resultado final de seu romance Submissão, alegando que esse livro é "otimista demais"; a segunda é, ao final da entrevista, como despedida ele ter lançado a observação simpática à jornalista: "é uma questão (a do tema do livro) da qual vocês no Brasil vivem longe". Um livro que trata sobre o domínio ideológico progressivo da França por um partido islâmico, ao ponto de surtir mudanças radicais no âmbito social, trabalhado como foi por Houellebecq, realmente me pareceu tímido no alcance de sua crítica, algumas vezes desnecessariamente retórico, e pouco eficiente, o que, nas palavras do autor, se traduz pelo que diz de seu otimismo. Houellebecq, que muitas vezes demonstra uma percepção histórica aguçada acima da média, sabe bem que a vida de um escritor como Salman Rushdie não é nada agradável, para que ele próprio incorra no martírio em vida de escrever algo que abale a paciência de um chefe religioso até o nível deste colocar sequazes fanáticos assassinos em seu encalço. Faltou um amor monástico maior a Houellebecq pelas letras para que ele se desse em holocausto a uma causa, e tal atitude é totalmente compreensível para o leitor que o conhece por outros romances como Plataforma e O mapa e o território, em que evidencia-se a crença de Houellebecq de que o homem ocidental está com os dias contados. Os atentados de ontem, por exemplo, que vitimou vários turistas ocidentais em uma praia na Tunísia, com certeza ativou a memória dos leitores de Plataforma, em que se é narrado uma cena similar à realidade. Houellebecq concebe o homem moderno ocidental como um projeto eclodido por seu próprio hedonismo e frivolidade, por sua ausência de conteúdo e sua absoluta boçalidade, e por isso, é natural que esse homem seja substituído por um exemplar mais viril, mais darwinianamente apto à sobrevivência e à dominância; é natural que o homem ocidental adiposo e entupido de drogas de todos os tipos seja massacrado pelo novo homem oriental, que veio, após séculos, restituir seu lugar na história. Tendo-se isso em mente, a leitura dos livros de Houellebecq sofre um grande acréscimo de qualidade. Houellebecq, sob esta interpretação, deixa de ser um autor da moda, ponderado e passageiro, para ser um arauto sofisticado da visão lúcida, cheio de ironia fina e sutilezas.

Eu achava que supervalorizava Houellebecq com essa minha interpretação, mas a leitura de Submissão me ajudou a firmar sua relevância de grande visionário. Submissão é um livro assustador, cuja inquietação está nas entrelinhas e nas nuances, e não na parte emergente visível. A história em si é a mais linear e sem muito chamariz entre os livros de Houellebecq: a narrativa de um professor universitário que, paulatinamente, acompanha a ascendência do partido muçulmano francês até à eleição de seu candidato à presidência da França. Tudo se passa sete anos no futuro, e o narrador aos poucos descobre como a História só se concretiza quando arrebanha pessoas comuns como ele para dentro da tormenta. O narrador perde seu emprego, foge por um país de cenários desertos devastados pela conflagração da massa homicida, e tem seu livre arbítrio repaginado de maneira espontânea como exigência para ser aceito pelo novo mundo que o cerca. O modo como Houellebecq vai subindo o tom de sua orquestração é típica de um mestre, e nisso está a grandiosidade deste romance. A atmosfera espiritual em que o narrador transita parte da suavidade de um europeu culto bem sucedido, com sua solidão confortável de suburbano egoísta interrompida de vez em quando por encontros sexuais, e avança lentamente, anestesicamente, até o ponto em que tudo é retirado de apoio a seus pés. Ele nem vê como isso acontece. Ele, que é um homem com títulos universitários, com acesso às rodas mais sofisticadas e esclarecidas de intelectuais, que tem tv paga, internet de alta velocidade, uma visão aprofundada sobre a produção mental feita em cinco séculos passados para que possa se situar no milagre contemporâneo como um beneficiário da democracia e do humanismo, ele, pois, quando derrubado pela reviravolta histórica, se sente como se tivesse aberto os olhos agora, como se nunca tivesse estado . A ingenuidade do narrador seria meramente tocante, se Houellebecq não fizesse ver que é uma característica comportamental unânime de todos os franceses. E a força do livro está no fato de que esse diagnóstico não é dado com sarcasmo ou como efeito retardatário de uma fábula moral, em que o aviso incutido é de que os franceses (os homens ocidentais, no geral) deveriam acordar o mais rápido possível e tomar as providências para que o pior não acontecesse. Suponho que a lentidão da narrativa, e seu intercurso de diálogos políticos entre os personagens, são artifícios bem manejados pelo romancista para que escoe qualquer ressonância didática, o que faz com que estejam errados os críticos que viram em Submissão um Admirável mundo novo e 1984 moderno. Ao contrário destes dois livros, Submissão não é uma distopia, mas um romance de um realismo escatológico em que o resultado, que nos outros dois livros é anunciado em um futuro tão distante que parece super-dimensional, já está sendo computado no presente. A inequívoca falta de tempo para que as coisas possam ser consertadas, no livro de Houellebcq, retiram dele qualquer valor de previsão preventiva. O homem moderno é tão auto-isolado em sua falácia cultivada de independência e desenvolvimento, que só lhe sobra duas opções diante o conquistador bárbaro: a extinção abrupta pelos atos sanitizantes do terrorismo, ou a conversão ao novo sistema. Houellebecq transverte o conceito de barbarismo e evolução, ao fazer o leitor pensar em quem é realmente o mais forte: o europeu-americano, para quem o pós-colonialismo decretou sua total falta de propósito na corrida da história, ou o oriental de arma na mão e com convicções milenaristas arraigadas para quem a violência é a forma efetiva de varrer a flacidez dos derrotados dessa nova história afim de tomar seu lugar por direito. A dicotomia desfavorece em todos os sentidos o primeiro, em seu amoralismo, em seu vício compulsivo por sexo, dinheiro, glamour, moda e tecnologia estúpida de eterno entretenimento; isso tudo o torna uma espécime sem compasso ao determinismo biológico e geográfico (uma vez que seu próprio habitat sofre as consequências de sua estupidez). Em sua pouca aptidão à sobrevivência, a burrice em não ver os sinais da derrota, mesmo envolto com tantos diplomas tolos e excesso de informações, é mais um sinal enviado pela fisiologia em favor da suplantação pelo novo homem, o homem atuante, íntegro em sua falta de pieguismo para ver a necessidade da violência e do assassinato como legitimidade espiritual. O homem houellebecquiano é um integrante de uma espécie em franco suicídio; em todos seus livros, esse é o tema principal. Mas o tema de Houellebecq não para apenas na extinção, mas na substituição. O homem oriental é quase uma nova espécie, que inicia uma nova história.

Fiquei impressionado com a frase de Houellebecq, na entrevista citada no primeiro parágrafo deste texto, de que esta é uma realidade distante do Brasil. Não sei se Houellebecq é sagaz o suficiente para ter lançado uma ironia como última frase ao programa_ penso que se trata apenas de uma frase simpática, nada mais. À medida em que eu lia Submissão, eu me identificava cada vez mais com o narrador. O Brasil passa por um período negro de imposição sem reação de uma espécie de neo-talmudismo ultra-moralista, com graves consequências. O país se tornou um cenário fértil para todo domínio de massa no campo religioso e ideológico, com tentáculos lançados na política e na mídia. Jesus Cristo é um coadjuvante que serve para finalizar uma autorização hipocritamente piedosa para uma versão do Velho Testamento que avaliza toda espécie de ganância financeira e feroz desejo de poder. Simplesmente, as partes do evangelho em que se fala de caridade e condenação à usura, foram extirpadas. Acontece no Brasil, hoje, o que Dostoiévski falou em O grande inquisidor, a monumental cena descrita por Ivan Karamazóv em Os irmãos Karamazóv: o Cristo é uma figura simbólica, sem transcendência, robótica e totêmica, um amuleto que serve para atrair ouro e resposta à toda necessidade da carne. E tanto mais frutifica esse cenário, quanto mais o país se atola na crise. Mas é engano ver qualquer semelhança entre esses homens subjugados com os novos homens assassinos de Houellebecq. Estes, na premissa da sobrevivência, seriam os primeiros a se entregarem a um novo deus, se fossem lhes dado tempo para a conversão antes do massacre.

sábado, 27 de junho de 2015

Novos livros



Através da parceria deste blog com a Companhia das Letras, pedi os dois livros da foto aí de cima. Como meu e-mail com a solicitação não foi respondido, e fazia um mês que eu averiguava todos os dias minha caixa postal sem sucesso, comprei Zona de interesse pela Amazon. A Amazon informava que a primeira remessa deste livro estava esgotada, e devido a isso, demoraria um pouco mais para que eles enviassem meu exemplar. Fiquei um pouco decepcionado com a previsão da espera, mas um tanto feliz por um livro de Martin Amis estar esgotado em uma empresa do porte da Amazon. Por uma incrível coincidência, os dois pacotes chegaram no mesmo dia, nesta semana. E foi mais proveitosa a coincidência por ser eu a conferir a caixa postal_ já que, a maior parte das vezes, é a Dani quem o faz, aproveitando da gravidez para exercer o privilégio de enfrentar uma fila bem menor que a usual. Se a Dani tivesse recebido os pacotes, eu estaria com dois exemplares do Amis, porque tanto ela quanto eu não esperávamos mais que os livros pela parceria chegariam (cheguei a cogitar um sorteio no blog, mas as taxas de remessa pelos correios são muito caras, o que passaria do preço pago pelo livro na Amazon). Recusei a entrega da Amazon, e voltei radiante com os livros para casa.

Eu sou um aficionado por Martin Amis. Trata-se de diversão com QI elevado; entretenimento de primeira com alto grau estético. Martin Amis é o mais próximo que as letras conseguiram chegar de um escritor rock-star. Ele é uma mistura de Mick Jagger, Nabokov, William Burroughs e Robert Fripp; sabe dominar com exímia maestria o popular e ser um erudito cerebral convincente. Entre Martin Amis e Ian McEwan, seu páreo rival, eu sou da turma que gosta bem mais de Amis. Seus romances tem toda aquela empáfia do escritor maldito petulante que se acha um gênio_ o que, em boas mãos, é parte indispensável da literatura_, tem frases curtas elétricas cheias de ginga, e mais um tanto. Já disse aqui uma vez que Amis nunca escreveu um grande romance. Eu disse isso em minha resenha a seu último romance lançado no mercado brasileiro, Lionel Asbo, e lembro que percebi a maturidade do escritor ao evidenciar uma auto-crítica descansada de que seu propósito não era mais a de escrever uma obra-prima. Seu propósito passou a ser o de se divertir com seu enorme talento, produzindo uma espécie de corpo único magistral de escrita em que o principal era o virtuosismo da voz de seu autor. Essa inteligência de Amis suplantou de vez Ian McEwan; este último, a cada novo romance, vem se mostrando mais insosso e sem inspiração, em sua ânsia por invadir o cânone da alta literatura pensando que mais vale a grife de seu nome do que o valor real de seus livros chatíssimos. Amis, pelo contrário, abraçou de vez e sem a mínima vergonha sua posição relativa à sombra de Nabokov: em cada livro novo, ele ousa sair de sua zona confortável de autor celebrado (que, à maneira de McEwan, qualquer coisa lançada teria automaticamente uma louvação sintética da mídia) e ir além, sendo contundente, debochado, afiado e astuto, sem dar a mínima se está agradando e sem o mínimo respeito pelo que esperam que ele faça. Um exemplo de seu deboche sofisticado é a escolha de todo um enredo de suspense e crítica social à violência começar, em Lionel Asbo, com o incesto do narrador da trama com sua avó. Por isso, pela sua não-contenção, os últimos livros de Amis continuam sendo ótimos e anarquicamente divertidos, em sua tentativa sincera em impregnar de autenticidade essa nossa época carregada de boçalidades de todos gêneros e tipos, enquanto os últimos lançamentos de McEwan são pastiches triviais de sitcom em que o autor pede respeito à sua posição de senhor acavalado na poltrona de couro de seu escritório.

Tenho um amigo, grande leitor, que tem a para mim incompreensível atitude de ler coisas como Dan Brown e Paulo Coelho (!!!), alegando que é leitura para descansar. Nunca soube o que é isso, pois Hanna Arendt, Saul Bellow e William Faulkner sempre foram extremamente divertidos e adstringentes para mim, enquanto o único livro que consegui ler por inteiro de Coelho foi um tour de force que me custou dois meses de martírio_ e eu nunca consegui ler Dan Brown, apesar de nada ser pior que Coelho, e apesar de eu me dar bem com outros best-sellers. O máximo que suponho chegar próximo do entendimento do que esse amigo quis dizer é com um livro de Martin Amis. Vou terminar A vítima, segundo romance de Bellow, e começar a ler A zona de interesse.

P.S.: sobre A vítima, J. M. Coetzee escreve em um ensaio que é um livro repudiado injustamente por Bellow, talvez, continua Coetzee, por um excesso de modéstia por parte do autor de Herzog. Enquanto para Bellow se tratava apenas de um exercício de aquecimento para saber se um judeu como ele estava apto para conquistar o mundo, para Coetzee é um romance mais coerente e bem engendrado do que Augie March, e um exemplo do quanto Bellow se aproximou da qualidade dos questionamentos morais de Dostoiévski.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Assim



Um extraterrestre, recém-chegado à Terra_ examinando o que em geral apresentamos às nossas crianças na televisão, no rádio, no cinema, nos jornais, nas revistas, nas histórias em quadrinhos e em muitos livros_, poderia facilmente concluir que fazemos questão de lhes ensinar assassinatos, estupros, crueldades, superstições, credulidade e consumismo. Continuamos a seguir esse padrão e, pelas constantes repetições, muitas das crianças acabam aprendendo essas coisas. Que tipo de sociedade não poderíamos criar se, em vez disso, lhes incutíssemos a ciência e um sentimento de esperança? (Carl Sagan, O mundo assombrado pelos demônios)

terça-feira, 9 de junho de 2015

Lanche para a caminhada




“Wegzehrung”
(Lanche para a caminhada)

Gostaria de ser enterrado
com um saco de nozes
e novíssima dentadura.
Quando ouvirem o estalido
donde estou deitado
poderão deduzir:
É ele,
ainda ele!
(Günter Grass)

quinta-feira, 4 de junho de 2015

O horror à normalidade



Andei pensando nessa reação boçal e anacrônica dos que “zelam pela família”, suscitada pelo recente comercial de O Boticário veiculado na tv. Daí pensei na minha família. Meu avô fez com que ficasse incutido na genética da família a urgência pelos estudos. Todos da minha família, desde os loucos, os fracassados, as ovelhas negras, os desviados, os santos e os criminosos (uma das minhas maiores dificuldades é a inconstância em que ora e outra me situo entre tais categorias), são pra lá de estudados. Mesmo os ignorantes e os que só tem força intelectual para assinar o nome, são estudados. E todos, em maior ou menor grau, são, graças a isso, independentes financeiramente. Cumprem à risca a prediga religiosa de meu avô de botarem e retirarem seus chapéus simbólicos onde bem entenderem. Minhas primas, as quais admiro muito, são, a maioria, mães solteiras. MÃES SOLTEIRAS_ em caixa alta para os distraídos. Uma filigrana de desequilíbrio da providência, e seriam consideradas putas. Mas ali está meu avô, as olhando severamente de algum improvável avatar ultra-dimensional, para receber o agradecimento de ter ministrado a sarna do esclarecimento no gene da família, e com isso ter dado sua herança máxima, a de se poder fazer o que se bem entender com suas vidas pessoais, mandando a opinião alheia para o único lugar devido em que ela deve estar: a merda.

Por que eu entrei nesse assunto genealógico todo? Para dizer que esses hipócritas que condenam tal propaganda o fazem porque não suportam serem confrontados com um desvio mínimo de seus acondicionamentos do “como pensar” e “como agir”. São a tal ralé criticada pela Hannah Arendt dos comandados que só olham o mundo através de clichês. Eles aceitam a bicha engraçada, bufa, afetada, estridente, com a alminha previsível dos palhaços deformados que não oferecem ameaça a ninguém; os Felix e demais bichas das novelas globais, criadas por roteiristas e vendidas por essa emissora estúpida com bula e atestado de “liberdade sexual para todos os gêneros” em adventos falsos do primeiro beijo gay e sei lá mais o quê. Isso aí eles podem suportar: a caricatura, o farsesco.

Mas mostrem a liberdade de escolha sexual com requinte, com tranquilidade e equilíbrio, como foi feito pela propaganda do Boticário, aí essa ralé vai pular alto, como está pulando. Eu fico rindo lendo os comentários desses sacripantas obtusos, e rio mais ainda pelo que eu vejo de seus inerentes desesperos. O Boticário, pelo que eu saiba, está longe de ser uma empresa sem perspectivas estudadas a fundo sobre seu público consumidor. Ela não se lançaria em uma campanha assim se não soubesse da grande faixa de consumidores GLS que seguramente existe para seus produtos. De gente que pouco está se importando com o que pensa e esbraveja a massa alheia. O que há de novo (um novo tardio que deveria ter sido mostrado na mídia há muito tempo) nessa propaganda, é mostrar que a diferença sexual EXISTE, calmamente, com pessoas que lutam tranquilamente por suas felicidades, pessoas no todo sem nenhuma diferença conceitual uma das outras. O escandaloso nisso é a sua silenciosa normalidade. Um país como o nosso está preparado para admitir que um beijo truncado de uma bicha neurótica bufa apresentado em uma novela estúpida seja revolucionário, mas não para aceitar essa normalidade insuportável do tido como diferente.