terça-feira, 27 de novembro de 2012

Franz Kafka, Hannah Arendt e o Menino Medieval


Eu conheci Franz Kafka quando tinha 13 anos. Geralmente a porta de entrada para esse magnífico autor costuma ser sua novelinha mágica chamada A Metamorfose, que um colega de escola me definira ser sua descoberta de uma história maluca de um homem que acorda transformado em inseto, mas o meu ingresso foi através daquele protótipo de pesadelo opressivamente burocrático intitulado O Processo. Eu passava as férias de julho com meu pai em uma cidadezinha de Minas Gerais e nós dois, ele já um leitor inveterado e eu ansioso para honrar meus óculos de míope, encontramos uma bucólica biblioteca circular feita de tijolos e centrada entre um amplexo de árvores. Nela encontramos um monte de livros que nos fez descartar a pretensão de viagens mais longas pela paisagem mineira, e nos manteve enfunados na casa de dois andares situada em cima de um morro e com vista para os trilhos do trem onde nos hospedara o irmão de meu pai. À noite saíamos para as festas e os bares e as tantas casas de amigos de meu tio, e enquanto meu pai tocava violão, eu tentava sair de minha gritante timidez conversando com as garotas. Voltávamos radiantes para o sobrado, meu pai com a tez avermelhada pelo vermute e a felicidade ostensiva daqueles anos, e eu possuído pela febre da descoberta das possibilidades do universo feminino. Parte considerável desse êxtase atmosférico que sentíamos se devia aos livros que nos esperava, eu lendo O Processo e os contos de O Muro, e meu pai lendo O Exorcista e Manuel Scorza. Eu sabia intimamente que estava passando por um aprendizado e uma educação muito superior ao que tinha na escola. Não entendia Kafka como iria entender futuramente, nas minhas tantas releituras, mas prestava uma atenção descomunal e ao mesmo tempo relaxada, consciente de que estava tocando algo de uma verdade e lucidez extremas, algo que era real e intenso e que nada tinha a ver com as tantas dissimulações inúteis e pomposas da escola, algo que me transformava em um ser humano por abrir todas as sensibilidades e sofrimentos inerentes à condição humana. Não um técnico, como me queria a idiotização da escola.

Fiquei tão fascinado com O Processo que não consegui desvincular-me daquela frequência de como ver o mundo através de interstícios simbólicos. O mundo apresentado por Kafka era doloroso, soturno, irracional, claustrofóbico, mas, estranhamente, me deixava feliz, sem eu conseguir descobrir por quê. Passei a olhar cômodos pequenos e apertados com uma apreciação recolhida, com uma certa nostalgia espiritual. Não saberia explicar, mas Kafka me fazia lembrar, em última e infalível instância, a filologia de antigos clãs dinásticos, como se por detrás da solidão insuportável de Joseph K. houvesse a intuição de uma Avalon completamente destituída e apagada dos registros mas que, por uma distração do acaso, deixara vestígios quase invisíveis. Assim eu compreendia Kafka. Ler O Processo era uma proteção, era uma forma eficaz de entender aquilo que transcendia o positivismo das categorias sociais que cada vez mais me pareciam inadiáveis. Mais tarde, bem mais tarde, eu veria explicado, surpreendentemente, essa sensação de despropósito lisérgico em apreciar ambientes degradados em um livro de Slavoj Zizék, em que esse escritor analisa as cenas de silêncio e natureza atulhada dos filmes de Tarkóvski. Zizék explica o que eu sempre senti com enorme intensidade mas jamais imaginava que tal nível de apreensão sensorial pudesse ser verbalizada: descrevendo uma cena de Tarkóvski, em que carros fragmentados e peças de metal retorcidas aparecem em uma paisagem natural selvagem (a paisagem em ruína), às margens de um rio e na ausência ecoante de presença humana, o filósofo esloveno diz que tal sensação advêm pela pulsão capitalista em descanso. Alargando mais esse conceito específico, Kafka me mostrou a beleza da ruína por me revelar a pulsão do mundo que importa em descanso, a pulsão em descanso da história e das compulsões da vida prática, a pulsão em descanso do absurdo e da barbárie transvestidos de sociedade democrática progressista, da ciência e da tecnologia festivamente evolucionistas na melhora da espécie. O descanso da inexorável hipocrisia de ter a estimativa de vida de 70 anos e gastá-la na labuta sem razão do acordar diário para degladiar-se furiosamente pela obtenção de angústia e tristeza capitalizável. Eu, aos 13 anos, não entendia Kafka assim, mas esse meu desentendimento era muito educativo, pois as grandes obras não tem um manual de trilha perfeita a ser seguida.

Quando perguntado por seu amigo Max Brod se existiria esperança "fora desse mundo de aparência que conhecemos", Kafka ri e responde: "Há esperança suficiente, esperança infinita_ mas não para nós." Talvez por isso me vinha_ e me vem_ a intuição de que por detrás dos pesadelos de Kafka exista uma Avalon adormecida, onde, antes, muito antes, as coisas fizessem realmente sentido, as coisas realmente existissem. Como na frase ouvida pelo deão no metrô, de um homem que havia sido ateu a vida inteira, no romance de Saul Bellow (Dean`s December): "Nada é suficientemente absurdo para existir; talvez, então, deus exista!" E foi isso que Kafka sempre me disse, desde quando eu era jovem o suficiente para não entendê-lo (ou jovem o suficiente para entendê-lo, no paradoxo vaidoso de Wilde), que Joseph K., que Gregor Samsa, que K., eram seres vestigiais, órfãos de um universo supraciente de sentido pleno, de mérito absoluto, apartados nessa prisão demasiadamente empobrecida em que nada se comunica, em que as vozes são aparelhos de distúrbio e perturbação e não de aproximação; seres dotados de uma infinita liberdade, mas que na pressuração desse mundo não suportam o peso dessa liberdade e estão sempre atrás do aguilhão que lhes escravize para dar-lhes um sentido eufemista de pertencimento. K., personagem de O Castelo, é desbragadamente livre, absolutamente ilimitado, mas não suporta a ausência de direção aflitiva vinda da indiferença dos senhores do castelo, que se negam a inseri-lo na lógica da aldeia ao serem reticentes quanto se vão contratá-lo ou não como agrimensor. E Joseph K., nascido na plenitude de sua independência, não tolera sua leveza em não conhecer as cláusula do vazio que lhe imputam na forma de um processo passivo e inofensivo, mas que só cresce e se demonstra em resposta à sua reação a ele.

Estou relendo O Castelo, na tradução de Modesto Carone. Ao mesmo tempo leio Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt. Uma das minhas felicidades é Hannah Arendt, mas ainda não tinha lido por inteiro esse misto de reportagem e análise estupenda sobre a natureza do mal. São dois livros que pretendo que meus filhos leiam antes de chegarem a seus 15 anos. Só esses dois livros garantiriam uma larga margem de possibilidade de que eles se tornem pessoas distintas intelectualmente e humanistas inveterados, com empenho em não caírem em clichês das ideias nefastas e deterioradas do politicamente correto. Grande parte do livro de Arendt versa sobre os clichês aprisionadores da sociedade, que poupam as pessoas do pensamento real e as tornam indivíduos animalizados moldados para qualquer condução que lhes queira dar os poderes instituídos: até mesmo para o assassinato. Eichmann, o nazista raptado por agentes secretos israelitas em seu refugio na Argentina, no começo da década de 1960, e julgado em um tribunal em Israel por crimes de guerra, é o protótipo desse indivíduo correto, bom pai e vizinho perfeito,  pedante seguidor de regras e comandos de ordem. E Arendt, que assistiu e participou ativamente de todas as fases desse julgamento, é o cérebro que transcende as tantas formas que o clichê intelectual desse enredo apresentam para cimentar o pensamento de uma escritora, mulher, judia, e distanciada apenas 15 anos desses eventos cheios de passionalidade. Arendt, diga-se em primeiro lugar, foi um dos maiores escritores do século passado. Quanta sofisticação em sua escrita, quanta lucidez e força, quanta beleza e limpidez. Ela começa atacando os esquemas pérfidos de Israel em transformar o julgamento em uma causa pessoal, em esteriótipos de condução do ódio popular contra os alemães e a pena a favor dos judeus europeus. Foi uma das primeiras, senão a única, intelectual a fazer isso, naquela primeira década após o fim da segunda guerra: a se indispor com os atos de ofício laudatórios que o povo do qual formalmente pertencia poderia lhe oferecer, caso ela se predispusesse a ser um dos mitificadores da miseração judaica. Assim como faz em Origens do Totalitarismo, em que apresenta um quadro pouco festivo sobre o quanto os judeus ricos eram impiedosos e indiferentes ao destino dos judeus pobres, em Eichmann ela reporta o quanto a matança dos judeus poloneses pelos nazistas pouco foi considerada pelo establishment moral de Israel, e o quanto Israel se esforçou para enfocar o genocídio apenas nos judeus europeus, deportando o restante do mundo e reduzindo os crimes de crime contra a humanidade para crime contra o povo judeu.

Mas o melhor e mais impressionante desse indispensável livro de Arendt, é a sua desmistificação do monstro assassino e impiedoso que intentarem fazer de Eichmann, apresentando-o como um homem medíocre, simples, mesmo de bom coração, que, paradoxalmente, foi um dos poucos nazistas que fizeram algo efetivamente válido para salvar milhares de judeus antes dos massacres. Seu diagnóstico é tão fantástico que o livro ultrapassa as fronteiras mesmo da filosofia desconstrutivista para ser um dos retratos mais profundos da natureza humana formalizada pela sociedade. A ironia finíssima de Arendt é um deslumbramento: a Eichmann bastou ler dois livros, seus dois únicos livros lidos na vida inteira, para torná-lo um progressivo homem poderoso do führer; dois livros que versavam sobre o movimento sionista de deportação dos judeus e criação de um estado independente para eles; em determinada parte do volume, Arendt descreve a incrível vaidade de Eichmann pelo poder no sentimento de superioridade que ele tinha frente a seus subalternos, afinal, "em parte porque eram ignorantes, nunca haviam lido um ou dois 'livros básicos'". Outro momento revelador é quando um dos policiais da carceragem oferece a Eichmann, para livrá-lo do tédio, o Lolita para ler, ao que o alemão o devolve depois de um dia alegando ser um livro imoral e contra seus princípios. Para um Brasil de hoje, uma pensadora como Arendt seria impossível no que vemos nessa frase definitiva que comportaria grande parte da intelectualidade e a mídia nacional: "esse horrível dom de se consolar com clichês não o abandonou (Eichmann) nem na hora da morte".

Pediram-me por e-mail para que eu escrevesse um texto de auto-ajuda sobre meus tempos de gagueira extrema. Percebi que ainda não sou capaz de fazer isso da maneira séria como gostaria, por isso, por enquanto, escrevi apenas uma frase: o mundo pré-galilêico da criança gaga, em que ela está para cair de suas bordas planas em direção ao abismo a cada grande vergonha de sua incapacidade vocálica por que passa. 


quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Os Dez Mandamentos do Escritor, na Opinião de Zadie Smith




Zadie Smith é uma escritora que nunca me interessou, mas essas dez regras tem muito a dizer:
1. Ainda na infância, assegure-se de ler um monte de livros. Passe mais tempo fazendo isso do que qualquer outra coisa.
2. Quando adulto, tente ler seu próprio trabalho como um estranho o leria, ou melhor ainda, como um inimigo o leria.
3. Não romantize sua “vocação”. Ou você consegue escrever boas frases ou não consegue. Não existe nada parecido com uma “vida de escritor”. A única coisa importante é o que você deixa na página.
4. Evite seus pontos fracos. Mas faça isso sem dizer a si mesmo que aquilo que é incapaz de fazer não merece ser feito. Não mascare sua insegurança com o ressentimento.
5. Deixe um espaço de tempo decente entre escrever e editar o que escreveu.
6. Evite panelinhas, grupos, gangues. A presença de uma multidão não tornará seu texto melhor do que é.
7. Trabalhe num computador desconectado da internet.
8. Proteja o tempo e o espaço em que escreve. Mantenha todo mundo do lado de fora, mesmo as pessoas que são mais importantes para você.
9. Não confunda honrarias com realização.
10. Diga a verdade através de qualquer véu que esteja à mão – mas diga. Conforme-se com a tristeza de uma vida inteira que advém do fato de nunca estar satisfeito.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

1Q84, de Haruki Murakami


Murakami é uma raposa. 1Q84, seu mais recente romance e cujo primeiro volume da trilogia acaba de ser lançado no Brasil, é uma ardilosa peça de inteligência feita com a milimétrica precisão para cativar sua presa. Lendo-o nos três ou quatro dias que dura sua leitura_ pois isso é mais uma das estudadas táticas do autor: quem começa a ler o romance não consegue parar_, percebe-se que foi feito no mesmo forno em que são assadas as séries televisivas atuais norte-americanas. Ou seja: cada capítulo remete a uma intuição angustiante do que deve estar realmente por detrás da trama, quais as surpresas e o sentido verdadeiro que sustenta aquela estrutura suspeita em que tudo se revela apenas aparências enganadoras. 1Q84 é tão instigante e tem a importância súbita de um enigma a ser resolvido na então encolhida vida de seu leitor quanto Lost e Walking Dead. E, claro, para o leitor carimbado, isso nada tem de novo, já que Walking Dead e Lost tem como raiz conceitual os viciantes folhetins da literatura oitocentista, como O Conde de Monte Cristo e Oliver Twist. Ou seja, Murakami não está fazendo nada mais que a mais clássica e boa literatura de sempre, apesar dos tantos críticos e leitores especializados acentuarem no tom um desprezo por seu estilo enxuto e algum ou outro pedantismo moralista que o faz parecer um aluno bem comportado perto de devassos de estilos complexamente palimpsésticos como Don Delillo e Thomas Pynchon.

1Q84 é muito bem pensado e organizado, e a cada página sua trama vai ganhando novos adendos de riqueza. Como terminei o primeiro volume e os outros dois só estão prometidos para a metade e o final do ano que vem (estou a pensar em pedi-los de Portugal, que já os tem traduzidos e publicados), fica uma infinita suposição do que pode estar por detrás de tudo. A história... deixa eu tentar resumir a história: há dois personagens centrais, Aomame, a assassina profissional que também é professora de educação física, e Tengo, o jovem corpulento professor de matemática que escreve romances. No primeiro capítulo, Aomame se vê dentro de um táxi  que a leva para um encontro no qual se desenrolará mais um de seus trabalhos encomendados, mas que está parado num extenso congestionamento em uma rodovia. Ela repara que o sistema de som do táxi é um tanto sofisticado, no enlevo que lhe causa a sinfonietta de Janácek que uma rádio transmite enquanto está à espera do desenrolar do congestionamento (Murakami oferece várias pistas de que tal sinfonietta tem uma importância fundamental no enredo). O motorista lhe aconselha que, se quer chegar a tempo para seu compromisso, ela deverá sair do táxi e descer as escadas da via expressa, para assim pegar o metrô. E antes que ela saia do carro, o taxista lhe aconselha: Não se deixe enganar pelas aparências. A realidade é sempre única. (Assim mesmo, em negrito.) Daí por diante a realidade em que vive Aomame vai sofrendo sutis alterações, a começar pelo uniforme dos policiais japoneses, e dali para uma visão surrealista de um céu sobre Tóquio com duas luas. Aomame, profunda entendida em História e uma leitora contumaz de notícias, se percebe aos poucos que está numa espécie de universo paralelo, e. para não se enlouquecer e perder a lucidez, rotula-o com o nome de 1Q84, em referência ao romance de Orwell e ao ano em que vive, 1984. O Q que ela sobrepõe se refere a Question mark, "um 'quê' de dúvida, de interrogação". (Gostaria de entender o por quê certa resenha mencionou o Q como um vocábulo japonês equivalente sonoro a 9.)

Até aí, pode parecer que Murakami cria uma história fantástica apenas pelo pendor do público japonês pelo inusitado, e que tal universo paralelo seja uma forçação de barra difícil de digerir. Lendo-se as equivocadas e apressadas resenhas das revistas nacionais, por exemplo a da Veja, a impressão que fica é de uma gratuidade excêntrica por parte do autor, compensada pelo magnetismo de sua escrita: é exatamente isso que a Veja diz, reproduzindo um excerto de quando Aomame descobre as duas luas no céu, e concluindo que tais excessos são desobstruídos pelo sinergismo da prosa de Murakami. O apressado resenhista, que parece não ter lido o romance, mas ido atrás de fontes googlescas para escrever o artigo, empobrece o livro ao restringir toda a complexidade psicológica e simbólica que vai se insinuando ao longo das páginas a um simples mundo de Óz. Aomame não entra, literalmente, em outro mundo: seu cotidiano é o mesmo, os fatos brutais de violência contra mulher e contra crianças (magnificamente expostos na obra), que a motiva ao assassinato, são os mesmos que compõe as estatísticas de crimes no Japão; esse universo paralelo é um descalibramento de sua percepção, em que, possivelmente, esteja entrando toda a misteriosa experiência de seu passado e do cruzamento de sua vida com as de Tengo e as de uma seita religiosa que aos poucos vai surgindo e ganhando importância no enredo, (Essa parte das suposições é a que mais instiga o leitor.)

Tengo, o outro personagem principal, é incumbido por seu editor a reescrever e transformar em best-seller uma narrativa intitulada Crisálida de ar, escrita por uma adolescente de 17 anos disléxica chamada Fukaeri. É um tanto difícil resumir 1Q84, mas basta dizer que tanto a existência de Aomame quanto a de Tengo (que não se encontram nesta primeira parte, a não ser em um distante episódio do passado), e a de todos os personagens que vão surgindo no livro, tem direta relação com a história escrita pela menina Fukaeri. Nesse ponto, me fez recordar uma crítica que o poeta e ensaísta russo Joseph Bródski escreveu sobre o romance O Pavilhão dos Cancerosos , de Soljenítsin: Bródski diz que em determinada cena de O Pavilhão, Soljenítskin está por criar algo genial e completamente novo na literatura russa _ se não me falha a memória, a cena se refere às ocupações de uma médica com os objetos e remédios do laboratório do doentes_, mas, acovardado diante essa porta para a sublimidade, Soljenítsin desiste e transforma a possibilidade em um prosaísmo. Pois Murakami passa essa impressão, de que está por criar algo sublime por sob a estrutura à vista desse extenso romance: algo que, ao contrário da maioria dessas mesmas séries televisivas em que irmana na capacidade de viciar o público, parece ser intrinsecamente coerente e organizado, que não deixará nenhuma ponta solta no final. Apesar de alguma fragilidade, como alguns diálogos esquemáticos e com cunho didático (há um que versa sobre a obrigação do uso da camisinha), o uso indisfarçado de alguns clichês cinematográficos (como o da estufa de borboletas raras e plantas em que Aomame se encontra com uma velha senhora, que lembra Minority Report), 1Q84 é tão contundente e bem escrito quanto a maioria dos festejados e tidos como grandes romances contemporâneos. Murakami se aproxima da exatidão da escrita de Bolaño, no tocante a ser um narrador autêntico, mas seu nível de envolvimento não bebe da fonte de tristeza pós-filosófica e pós-histórica do chileno. Essas fragilidades ficariam bem resolvidas se ele tivesse uma prosa tão ricamente densa e humorada como a de Pynchon, mas cair nessas comparações seria algo despropositado. A um leitor de Pynchon como eu, que ia pensando, enquanto lia 1Q84, o quanto Pynchon daria uma rasteira em Murakami em diversas partes capengas da obra, o autor japonês cativa aos poucos e mostra a sua mestria por sua incrível simplicidade, sua linearidade e sua limpidez. Características que vão na contramão das exigências estéticas da literatura moderna, mas Murakami se afirma com sua presença difícil de ser ignorada, como costuma fazer os grandes escritores que não se enquadram facilmente a esteriótipos. 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace


Há uma cena no ensaio que dá título ao livro em que a acompanhante de Wallace à visita a uma feira agrícola no interior de Illinois se submete a um dos brinquedos de "quase morte" do parque. É uma minuciosa descrição de tortura: a mulher é aprisionada em um cubículo gradeado de ferro, içada a uma altura exorbitante, e sacolejada por minutos que parecem infinitos. Em um determinado momento, Wallace concebe a ideia audaciosa de que a vida da mulher depende de sua intervenção junto aos dois rapazes que controlam as alavancas do brinquedo, visto que sua racionabilidade em não ver nenhum tipo de motivação saudável para alguém se submeter a tais extremos o mantêm seguramente em terra. Os dois rapazes começam a revelar níveis de sadismo ao manterem a mulher dependurada de cabeça para baixo só pelo intuito de verem suas saias caídas e a calcinha à mostra. Wallace, até então carregando o texto com análises filosóficas distanciadas  beirando um compêndio alienígena sobre uma espécie bestial, assinala um marco de terror no meio do tom secamente cômico ao avaliar-se covarde demais para enfrentar os dois caipiras bêbados, mesmo essa incapacidade feminilizante parecer custar a vida de sua colega. A cena termina com os maníacos voltando a cabine para o chão e a mulher, que Wallace imagina reduzida a um trapo, pulando para fora e festejando a maravilha daquilo com uma série de palavrões incitatórios aos rapazes. Wallace, abismado, conta à moça sobre a agressão pela qual ela acabara de passar, e sua nítida crueldade sexual, mas ela se mostra completamente avessa a entender, enxergando a coisa como algo trivial e ingênuo. Ao leitor ainda possível de se lembrar das obras de Stephen King que lera na adolescência,  é inevitável admirar o quanto Wallace esbarra na mais pura literatura de terror ao mostrar-se desabrigado e indefeso em um mundo em que a maldade se revela nas beiras de normalidade comezinha apenas para ele. Ninguém vê o diabolicismo por detrás das crianças gordas sendo doutrinadas pelos pais obesos a comerem as mais aberrantes guloseimas gorduras e gotejantes de óleo de fritura, nem o campeonato de vale-tudo entre garotos de dez anos que são induzidos a quebrarem um o nariz do outro por pais sedentos por violência, ou os tantos símbolos fálicos e palhaços bêbados e com não apenas imaginárias propensões ao crime, que são os personagens e as situações que povoam a feira.

A lucidez de Wallace, de tão pura, chega a converter-se por convecção e involuntariamente a essa maldade translúcida. Não há nenhum sinal de moralismo ou transcendência em suas palavras, mas apenas a sequidão científica do colecionador de insetos raros, que os vai afixando com agulhas em um quadro. Em determinado momento, sua incansável predisposição ao conceitualismo traça uma causa a essa brutalidade desinibida que o afronta pelos vários dias que dura sua estadia no parque: as pessoas dos insípidos povoados do centro dos Estados Unidos são indivíduos recolhidos, mutilados pelo tédio, enfurnados em um cotidiano previsível e insosso, e essas festas agropecuárias é a forma da catarse anual que os liberta por um momento da maldição da geografia. Só que eles não conseguem libertar-se de si mesmos, do que anos de prostração fizera a seus espíritos: daí que nesses períodos de oásis eles se lançam em uma espécie de hiper-realismo esquizofrênico, em que os antigos traços de seus humanismos são substituídos de vez por caricaturas do que neles existem de molestadores sexuais, assassinos potenciais, escravos da indústria de fast-foods e pais alienados. Nas mãos de um Bernhard ou de um Camus, esse retrato do inferno alimentaria-se de contundência e linguagem decantadamente combativa, e virulência e repúdio, mas nas mãos de Wallace essas características são preenchidas por uma forma de humor destituída de qualquer engrandecimento trágico, um humor que se revela nas palavras mais como um ato físico de estoicismo por estar no centro das labaredas do que por indicar-se superiormente capacitado a olhar tudo de um mundo hipotético melhor e mais seguro; um humor pós-riso e uma observação ativa e muscular que não abraça nenhuma escola filosófica: um exaurimento filosófico como se a América dos tempos atuais não comportasse mais nenhuma trégua e nem tão pouco alguma fagulhar e eventual redenção desse inexorável trivialismo. Wallace escreve como um jovem envelhecido precocemente por sua capacidade não vantajosa de ver além desse jogo faustiano de hedonismo e frivolidade que encoberta a realidade, após ler toda a filosofia, a ensaística e a ficção atrás de sucedâneos menos terríveis, e se conforma em não criar mais uma roupagem inédita de verdade, se comprazendo a abraçar apenas a originalidade de sua fidelidade à sua voz. E assim ele escreve todos os formidáveis seis ensaios compelidos neste livro.

Javier Marías, grande aficionado à literatura de terror, escreve que o relato do terror pelo terror enfraquece o texto, pois uma vez exposta, a atrocidade soa convincente, mas as repetidas vezes mais em que ela aparece, a "tensão se perde e o efeito se desvanece". Por isso, ele continua (no curto ensaio Contra la Truculencia, do livro Literatura y Fantasma): "a frase que maior horror me produziu na literatura não está em Lovecraft, mas em Flaubert: no final de Madame Bovary, com ela já morta e em seu ataúde, enquanto vários personagens lhe colocam por cima uma coroa, Flaubert diz: 'Teve-se que levantar-lhe um pouco a cabeça, e então uma onda de líquidos negros saiu, como um vômito, de sua boca'". Assim é o horror que se tem nessas páginas de Wallace, tanto neste longo relato da feira de Illinois, quanto do cruzeiro que faz pelo Caribe, quanto na descrição do sofrimento de uma lagosta no processo de ser cozinhada viva, quanto do seu famoso discurso sobre a paciência diante a inutilidade salvadora de todas as coisas e todos os gestos em Isto É Água. O horror sem sombras e sem sentenças conradianas, que a própria arquitetura em que tais ensaios foram feitos, a maioria para revistas de gastronomia e de turismo (não literárias), favorece uma liberdade coloquial em que a efemeridade é uma primeira máscara enganosa. Recomendei a um amigo que lesse o ensaio Pense na Lagosta, ao que ele me disse, após a leitura, que o texto começa desinteressante, sem que se dê nada por ele, descrevendo os eventos da feira da lagosta do estado americano do Maine, mas que logo entra em uma comovente e quase insuportável acusação da crueldade que jaz por detrás das tradições culinárias as quais entregam ao consumidor uma carcaça embalada em inofensivas embalagens coloridas que não deixam intuir a enorme dor e indizível sofrimento pelos quais passou o animal antes de se tornar alimento. A lucidez mais impactante desse grande escritor que é Wallace, a sua escrita soco no estômago que não se curva a formulações fáceis, pode ser resumida nesse diagnóstico da alienação reinante e opulenta do homem consumidor a que se reduziu antigas ilusões iluministas, em sua frase: "Elas (essas pessoas) não estão prejudicando ninguém".

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Um Anúncio


“Escrever é estar sempre errado. Todos os nossos rabiscos contam a história de nossos fracassos. Não tenho mais a energia da frustração, nem a força de me confrontar. Porque escrever é se frustrar: passamos todo nosso tempo escrevendo a palavra errada, a frase errada, a história errada. Nos enganamos sem parar, falhamos sem parar e, assim, precisamos viver em uma frustração perpétua. Passamos o tempo dizendo a nós mesmos: isso não está funcionando, preciso recomeçar. Agora estou numa fase diferente da minha vida: perdi toda forma de fanatismo. E não sinto nenhuma melancolia.” (Philip Roth, ao anunciar que não vai mais escrever)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Murakami e a Reverberação da Linguagem (Uma Previsão de Empatia)


Ontem o carteiro me entregou o Norwegian Wood, de Haruki Murakami, e a previsão é que hoje ele me entregue o 1Q84. Fiquei feliz e envaidecido que a tradução da Alfaguara seja direto do japonês e, segundo algumas fontes, mais confiável que as traduções apressadas feitas pelo mercado livreiro dos Estados Unidos ao perceber a emergência de aproveitar os milhões de exemplares vendidos no Japão na ocasião dos lançamentos do autor. Li por longas horas madrugadinas o romance tido como de mestre sobre o amor no final dos anos 60. Pareceu-me que Murakami é por demais convencional e sem muitos arroubos linguísticos, com forte acento da tradição japonesa (e chinesa) de relatar com esmero episódico e com uma poética com suas tipicidades trágicas um tanto anacrônicas para a velocidade da literatura ocidental. Uma narrativa sem experimentalismos de qualquer tipo, bastante convencional. Seu monocromismo me pareceu isento de eufonismo, mas pensei que afinal essa é uma das pretensões declaradas de Murakami, extinguir o beletrismo da ficção japonesa e torná-la eficiente, prática, voltada para algum fim doutrinário de descobrimento espiritual. Também ficou claro para mim a indisposição que vi entre admiradores de Pynchon quanto a Murakami, o desprezo que nutrem por ele: Murakami perto de Pynchon me soa um tanto japonês, um tanto certinho e engomado, como soa estranho o rock japonês e o cinema de ação japonês. Pynchon nasceu antes para a literatura, com uma enorme carga de perigo e inconveniências; já Murakami é um neófilo com um seguro ar de pedantismo oitocentista, suavizado em muito pela decantação da prosa pop. Talvez isso não tenha passado batido para Murakami e essa lentidão démodé tenha lhe incomodado, o que fez com que partisse para o canivete em punho de seu últimos livros fantasiosos e lisérgicos, onde se juntam universos paralelos e releituras de antigos mitos.

Mas, percebo, isso não desmereceu Murakami para mim, e sua leitura segue sendo bastante prazerosa e instrutiva. Com o tempo pode ser que eu veja nele a sua estatura iniludível de mestre, o seu direito certo de grandeza artística. Li apenas umas cem páginas, precipitação escrever essas palavras. O que achei mais libertador é o que me motivou a procurar por ele: a paixão da escrita como um dever e não como um artesanato radical de traços impecáveis. Para um oriental e nipônico isso deve ser um tanto mais difícil, com todas aquelas escolas caligráficas as quais são talvez as encarnações mais singelas do rigor da beleza da escrita. Penso em A Montanha da Alma, o livro de perfeição ofensiva do chinês Gao Xingjian que li há dez anos. Essa aproximação doutrinária da literatura japonesa e chinesa do gesto coreografado deve ter sido uma dura pena a ser superado por Murakami. Por isso é muito bom ver os descuidos tolstoianos de Murakami em usar profusamente os advérbios, a repetição enfática da mesma palavra em um mesmo parágrafo, do favorecimento da expressividade do sentimento sincero e não da disposição enganosa da poesia bombástica, as imagens e metáforas de gosto duvidoso mas sem solenidades e por isso surpreendentemente eficientes (algo como faz genialmente Günter Grass). Murakami na certa vai causar em mim o mesmo que causa os escritores puros, John Fante, Jack Kerouac, Charles Bukowski, Cortázar com seus infinitos defeitos e obsolescências, o mais próximo e amador Marcos Nunes: a grandeza inerente à insuportabilidade que seria abnegar-se da escrita, o que os torna relevantes compulsoriamente. De forma que ler Murakami não deixa de ser uma incrível libertação.

Breno


Eu tinha 17 anos, estudava em um colégio da elite, e quase não possuía amigos. Os dois rapazes que podiam se enquadrar na categoria de amigos estavam tão envolvidos no fascínio da descoberta da idade que era uma aspereza emocional ficar na periferia de suas camaradagens distantes. Ao final do dia eu voltava para casa com a impressão de que era mantido próximo a eles só para ser testemunha da grandeza áurea de suas personalidades. Enquanto andavam de peito estufado observando por cima de todos, satisfeitos de seus destinos, a única qualidade inegável que eu tinha de ser um ouvinte perfeito me fazia parecer o escudeiro fiel no encalço dos dois, um patético Igor. Um deles se chamava Erasmus e era o que indicava que a qualquer momento nossa convivência se romperia nessas tantas amenas tragédias da juventude, e foi o que acabou acontecendo num dia em que por motivos irrisórios trocamos socos. O fato de mal termo-nos despenteados os cabelos com a briga, conferindo apenas um rubor que poderia bem ser confundido com uma carreira para não se chegar atrasado ao ônibus, e alguma poeira nas roupas, mas nada de arranhões e nem tão pouco sangue, pareceu-nos significativamente degradante. Ainda penso que foi essa inofensividade incômoda que fez com que não nos falássemos mais, depois da vergonha que ridicularizava muito de nossos planos pessoais secretos, de modo que o único recurso era esquecermo-nos para sempre um do outro. Tinha algo de alivio velado em romper com Erasmus; as visitas à sua casa eram de uma tristeza infinita, por muito tempo me perturbava a figura apática de sua mãe que se escondia no quarto e que, para meu terror, Erasmus criava pequenos e sádicos expedientes para trazê-la de volta à nossa frente como se fosse parte do exibicionismo da torpidez cotidiana que tinha que suportar para tornar-se um adulto estoico demasiadamente racional. Ela nunca nos servia lanches, como era das mais comum das praxes que as mães de colegas fizessem, e lhe faltava grotescamente a compostura de nem sequer tentar disfarçar o pânico que a presença de um amigo do filho lhe causava. O pai de Erasmus já era outra coisa: das duas vezes que o vi senti a carência conceitual que só me viria com o tempo, de maneiras que se sentar na sala junto a seu silêncio hermeticamente alheado de homem político, enquanto Erasmus tomava banho, me remeteria bem mais tarde à tensão contida de um criminoso sexual. Essas coisas juntas tornavam a insípida convivência com Erasmus em algo opressivo, que inconscientemente não via a hora de encerrar. Foram socos muito esperado, enfim. Já Breno era alguém do qual minha solidão não podia prescindir. 

Breno era uma espécie de eleito para os altos escalões sociais bem mais limitado. Era um técnico e não um filósofo. Não havia nenhuma malícia nele, fora a vaidade insular de que recebesse de mim todos os aplausos. Tinha mesmo uma cadência infantil na voz que a adolescência não conseguia esconder e que sempre recorria a ela para evidenciar seu direito à predestinação. Seu humor não resultava daquela sofisticada genialidade sarcástica da qual ele julgava vir, mas tinha uma ternura erraticamente analgésica de desenho animado. Era alguém que não nascera para as mínimas formas de sofrimento, e talvez minha segunda qualidade inegável fosse a de zelar ativamente para que essa ilusão fosse preservada. Eu ria de suas piadas como se elas fossem geniais, mostrava meu fascínio corroborador diante seu magnetismo com as meninas, e me calava em estuporado respeito diante a premência dos sinais que seu vitorioso futuro enviava. Magoá-lo seria como bater em uma criança. Alguém assim possuía por detrás pais completamente diferentes dos de Erasmus. Os pais de Breno eram um sonho de todo rebento recalcado pelos traumas de um lar desfeito. Eu que só possuía uma mãe cujo esgotamento a que tinha que se submeter para pagar as despesas de casa e o alto custo de meu colégio rendia um regimento doméstico severo cheio de espaços de laconismos, olhar os pais perfeitos de Breno era me submeter ao escapismo culposo de diálogos sorridentes e de uma adstringente lentidão. 

Não me passava pela cabeça a possibilidade de perder Breno nos três anos de colégio, mas o conhecimento de seus pais me fez temer que algum erro fechasse para mim a adesão àquele mecanismo irretocável de saúde nuclear. Depois que Breno me levou em sua casa pela primeira vez e eu fui apresentado ao homem sacerdotal de grossas sobrancelhas, bermuda bem lavada e camisa desabotoada até a terceira casa da gola para baixo, em explícita e descomplicada informalidade sentado à mesa do café, com uma calvície em que sobravam dos lados uma profusão de cabelos simpaticamente desalinhados, o seu pai, eu revi as possíveis brechas de nossa relação em que pudessem entrar os maus entendidos aos quais se atribuem as desavenças definitivas. No meio da descompressão que era ouvir a voz cheia de matizes quase insuportáveis de vagar do pai de Breno, dirigida sem derivações direta e atentamente para mim, eu senti crescendo o medo de ser posto para fora daquilo, da fragilidade que aquele arranjo inesperado poderia ter para mim. Percebi com nitidez porque Breno fora conservado numa permanente infantilização recuperativa, como aquele senhor tão cheio de brilho argumentativo, suavidade cênica, domínio do tempo e com a valorização absoluta dos primordiais poderes da palavra, havia propositadamente dado aquele recolhimento sagrado ao filho. Eu me sentia infantilizado na presença dele, o que não deixava de ser cruel ter que recolocar todo o fardo deixado na porta de volta às costas quando eu fosse embora. (...) 


terça-feira, 13 de novembro de 2012

Ikaria



Os moradores da ilha grega de Ikaria, onde muitos vivem até os 90 anos, não pensam muito na passagem de gerações. Nem estão terrivelmente preocupados com o tempo. Ou o dinheiro. Eles cultivam a maior parte de seu alimento, dormem o quanto querem, têm pouco interesse por bens materiais e passam longas tardes e noites em atividades sociais com amigos, tomando vinho produzido no local, e em refeições caseiras. Esses fatores podem contribuir para o notável índice de longevidade de Ikaria, um dos mais altos do mundo.

‘As pessoas ficam acordadas até tarde por aqui. Acordamos tarde e sempre tiramos cochilos’, disse ao Times o doutor Ilias Leriadis, um dos poucos médicos da ilha. ‘Você percebeu que ninguém usa relógio?’

O doutor Leriadis indicou o que pode ser o segredo da longa vida dos ilhéus: ‘Aqui simplesmente não nos importamos com o que mostra o relógio’".

(Tudo Copiado do blog da Rachel Nunes e aquele carinha)

domingo, 11 de novembro de 2012

A Aventura dos Passantes



Na universidade, conheci aquele que tenho pelo meu modelo de homem mais esnobe. Era um sujeito baixinho, magro, com essas caras não isentas de beleza muito bem recortadas, concisas, que passam um ar cênico de sofrimento filosófico, maçãs e queixo duros que me faziam pensar que só sua aparência renderia um bom utensílio teatral. Mas os olhos desmentiam qualquer anseio esotérico, pois eram claramente eficazes apenas nas regiões do pragmatismo bem planejado; era um homem que me parecia ter uma superdesenvolvida crença no dinheiro e no poder. Fazia medicina, e sempre que o via, parado em frente às portas das salas e dos laboratórios, mas nunca imóvel em seus cálculos mentais de máximo rendimento das horas, não me continha em demorar a apreciá-lo. Sua autoestima era irretocável e insofismável, o que era belo de se ver. Nunca ouvi sua voz e jamais descobri seu nome, mas o via falando num laconismo cinzelado com seus colegas; ele não perdia tempo com conversa fiada ou com interatividades sociais de simpatia. Imagino que seria um bom resultado a seus projetos se tornar dono de algum hospital especializado em cirurgias cerebrais ou estéticas, mas não o vi mais depois daquele ano em que disciplinas em comum entre nossos cursos me fazia cruzar com ele pelos prédios do campus. Ele me recordava também um personagem bastante coadjuvante de Lorde Jim, em que o narrador de Conrad nos apresenta um portentoso capitão de navio com a mesma elevada régua de medição de sua auto-importância semi-divinatória; Conrad dedica um único e extenso parágrafo a descrevê-lo, com todas as suas qualidades e altas formações, e conclui com aquela poética abrupta e desapiedada típica do autor: "Ele se suicidara."

Esnobismo me parece sempre a mais ridícula das características humanas. Não sei se a palavra apropriada aqui seja esta, esnobismo, ao que gostaria de indicar como o conjunto de pretensões individuais que cria a ilusão de sobreposição de valor de uma pessoa sobre outra. Uma das recentes ocorrências deste comportamento vi num blog de uma mulher que se intitula, em seu perfil, como um misto de tantas coisas que acaba revelando a sua desamparada realidade de ser coisa nenhuma, ou, melhor, de ser esposa de um nefrologista. Ela se diz psicóloga, pianista aprendiz, escritora, e mais algumas outras qualidades tangenciais de que não me recordo. Em suma, os qualificativos servem para autorizar seus textos sobre os tantos concertos de jazz que assiste aqui e nos Estados Unidos, e suas gracinhas estilísticas em que pretende mostrar debaixo das mangas arregaçadas de seu sofisticado gosto artístico as suas armas simpaticamente refreadas de propensa ensaísta. Conheci seu blog por ser ele um da algaravia de blogs de um amigo, e fiquei fascinado por descobrir um laboratório tão rico de estudo sobre como pensa e se comporta e se pinta uma determinada espécie de gente que compõe num agradecimento extático a chamada elite nacional. A tal esposa do nefrologista, por exemplo, escreve um longo e minucioso texto em que descreve com ares de sumidade entendida todo o concerto que Keith Jarrett fez no Rio de Janeiro. Em outro texto mais atualizado ela faz uma mea culpa de classe no estilo fui ao shopping fazer minhas compras semanais e vi o quanto uma de nosso clã pode ser deselegante ao gritar com a ascensorista, e complica retoricamente, como deve ser toda escrita com uma profunda cadência filosófica, com a conclusão será que nós podemos condená-la, será que nós não fazemos o mesmo e em nós é esquecível mas no outro é criminalizante? Um detalhe delicioso é que ela diz que estava com uma blusinha simples e barata no shopping, como qualquer outro mortal, mesmo que a houvesse comprado na quinta avenida em New York. Os comentários dos leitores são instrutivíssimos, com os tantos aplausos à perspicácia e à riqueza humanitária da autora, e uma série de casos de campo em que se confessam do mesmo pecado com o mesmo tom de convalescimento moral instantâneo. Em mais um outro texto, a peça de maior aproveitamento sintomático é o comentário de uma mulher, cuja foto do perfil bebe da obscuridade moderna em mostrá-la elegantemente enviesada, que pergunta à autora quais livros ela indicaria para ler, já que ela leu de tudo e a alta literatura atual é tão insossa que a enfada; daí a autora recomenda, se não me engano, um romance ganhador do Pulitzer do ano passado, ao que a leitora enfadada agradece e diz que vai seguir a recomendação lendo-o enquanto suporta o maravilhoso sol de Ibiza. Com esse panorama didático do blog, me prontifiquei mesmo a desconsiderar a crença da esposa do nefrologista nas qualidades redentoras do seriado Lost. (Quando, há dois anos, eu procurava o download de um álbum de Joni Mitchell, eis que encontro, após coletar o material e gravá-lo no computador, na caixa de comentários do blog disponibilizador, um comentário do próprio nefrologista, laconicamente dizendo: "Isso é roubo. Vou denúncia-los à polícia federal". Que graça, pensei, recordando os textos de sua amada, o quanto a apreciação da Mitchell por ele deve ficar comprometida ao saber que plebeus a escutam sem terem que ir aos EUA desembolsar uma grana em uma edição remasterizada especial.)

Não que eu seja simples. A simploriedade e a humildade compulsória me enojam. Eu creio numa certa aristocracia espiritual. Quando comecei minha vida profissional como veterinário, há uns 15 anos, conheci um senhor que morava isolado na mata, nas proximidades de uma cidadezinha minúscula em Minas Gerais. Eu era responsável por expedir documentos de fiscalização sanitária em um escritório governamental em que não entrava ninguém por longas e modorrentas horas, e eis que entra esse dito senhor, um homem extremamente bonito de uns sessenta anos, espadaúdo (no ato me veio justamente esta palavra obsoleta, pois ele transmitia esse anacronismo e esse deslocamento temporal, como alguém tão independente das estruturas citadinas que não me surpreenderia se falasse em um esplendido português arcaico), magro e altíssimo, cabelos brancos e uma paciência e recolhimento tocantes. Nada nele era ostensivo e tudo nele era desarmante por sua completa liberdade de defensivas. Vendo alguém assim, ao vivo, se sabe o que eu digo com essa de defensiva: vendo-o evidencia-se o comportamento intrínseco de todo mundo de se auto-defender do outro, mesmo que seja a auto-defesa de se mostrar social, com o propósito de ser bem aceito e bem visto, de ser_ como diz Hegel, afirmando ser esse desejo a matriz por todas as disputas humanas_, reconhecido. Neste homem não havia a minima importância pelo reconhecimento, mas era uma ausência e não uma presença negativa, a importância de demonstrar que não se importava. É Walt Whitman, pensei. Recolhi as notas de vacina que ele me apresentara das vacas que tinha em sua pequena propriedade, e ele sumiu para o meio do mato. Isso é a aristocracia espiritual a que me refiro, o que não o isenta de, talvez, por debaixo de sua estampa, estar um leitor de Kant nas horas vagas de suas atividades rurais, ou um matemático, ou um poeta, ou um pintor ou escultor. As pessoas como a esposa do nefrologista veem a leitura e as diversas formas da arte como único atestado de supremacia espiritual, com o único propósito de legitimar seus estilos de vida endinheirado, seus distanciamentos dos diferentes e inferiores.

Minha concepção da aristocracia é a  mesma de William Blake e Swedenborg, de que a arte é um instrumento poderoso para o esclarecimento e o descobrimento pessoal e do mundo, nada tendo a ver, ou estando na direção oposta, à do dinheiro. Um caso interessante é o do escritor Javier Marías, que em um de seus textos em seu blog, estuda essa visão que alguns tem dele de o considerar antipático e esnobe. Não vou entrar no mérito desse referido texto de Marías. Marías é um grande escritor aristocrático, ainda que a aristocracia baixa dos níveis terrenos apareça em sua obra, em seu estupendo livro sobre Oxford, em seus personagens que ocupam distintos cargos culturais e políticos. Mas a aristocracia espiritual de Marías sobressai a essas arquétipos de sua prosa, que poderiam irritar os menos pacientes e menos perspicazes. Diferente de um outro estudante de Oxford, um brasileiro cuja única relevância na mídia foi o lançamento de um blog de claros interesses eleitoreiros, que teve milhares de acessos diários durante a campanha que promoveu para a eleição da atual presidente do Brasil, e que depois deste ser eleita, nunca mais deu as caras. O blog mostrava sua concepção pessoal de oráculo político a dirigir o caminho para os incautos, o privilegiado progressista que via sua função social em dividir parte de sua luz com os menos favorecidos. Tanto que aspirou um dia a resenhar no blog, como desafogo necessário ao excesso de partidarismo político monotemático, um livro de Ian McEwan, o que mostrou o quanto era um intelectual raso e sem qualquer outra qualidade que não especifismos muito dirigidos e maçônicos.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Parte de um conto


Um dia os céus ficaram na conformação de nuvens adequada às elevadas expectativas de Anton. Nenhum serviço de meteorologia havia previsto aquilo; a moça do tempo em seu vestidinho collant dissera na tv que o sol reinaria incólume por todo o final de semana. Mas a graça casuística da matemática eólica desviara uma massa de escuridão eletricamente latejante de seu curso para o Atlântico e a estacionara em toda sua extensão de quilômetros por sobre a cidade, e ela pôs-se a fazer o que era de sua incumbência: soprara vetores de ar instável que se chocavam contra as casas, cabriolavam para cima e retornavam a cair na arena das ruas cada vez mais lotada de furiosas energias dissuasórias. Anton parou de preencher os formulários de mais uma das decisões dos altos escalões do poder terrestre estipulando o pagamento na casa do milhar a um homem que se acidentara no trabalho, e se entregou a olhar aquela outra potestade mais pura lá de cima, que nada tinha a ver com as preocupações comezinhas daqueles seres que, mesmo sob uma potência indizível e uma ameaça homicida iminente, não paravam com suas labutas insignificantes, ou só o fariam quando os trovões e as trombas d´água começassem a cair. Ouviu a cauda de vento passando rente à janela e volteando em torno da extensão do prédio, dando uma chibatada que fez tremer num impacto de traquinagem inamistosa os vidros nos caixilhos. As árvores balançando suas cabeleiras verdes de um lado para outro, deixando uma profusão de folhas se soltarem em elipses autodestrutivas e eternamente resilientes seguindo em debandada pelas calçadas. O coração de Anton parou: um ribombar magnífico tomou conta dos céus congestionados, calando tudo, fazendo tudo se encolher em nervosa submissão expectante. Daí a chuva começou, maestralmente disciplinada a aparecer naquele momento exato da orquestração, uma cortina de onipresença, a própria alegria materializada, a própria grandeza inominável dando suas caras naquele campo de sensações onde Anton cabia respirar. Dignava-o em acontecer onde a previsibilidade imperava em toda sua inércia pujante, como um antídoto ocasional para as pessoas não enlouquecerem. Como se sua piedosa função, se sua convergência desinteressada e brincalhona para esses graus do baixo existir algum dia representasse alguma coisa a ela, fosse recordar um estado permanente de sonhosa leveza. Anton fechou os olhos e deixou-se penetrar pela floresta de sons. A luz elétrica apagou por todo o prédio; o computador à sua frente emitiu um apito que lembrava um ponto se implodindo, e desligou. No escuro das quatro da tarde, Anton sentiu-se em seu ambiente. Eu nasci para estar aqui, pensou, sentindo o bafio gelado que a entidade em imaculada esquizofrenia lançava pelas frestas das tantas rupturas e vãos minúsculos que os pedreiros e a ruína progressiva e inerente às coisas deixaram no prédio do fórum.

(Esse é o excerto de um conto que estou escrevendo e que publicarei aqui na próxima semana, ou assim que estiver pronto. Por enquanto se intitula, horrivelmente, "Cinderela das Chuvas". Murakami tem me salvado mesmo sem eu nunca tê-lo lido. Tem feito que o ato de escrever possa ser leve para mim, e me abrindo para meus anseios por tentar fazer uma literatura distinta que misture os gêneros. Provavelmente o conto, assim que acabado, não vá agradar mais da metade das poucas pessoas que se dispuserem a passar por aqui, e as poucas entre estas que se aventurarem a lê-lo. Tenho tido um pesadelo recorrente em que acordo com uma enorme impressão de que estou gastando minha vida. Uma enorme carga de fracasso. Tenho bom emprego, uma família de amores recíprocos: no mais, a acalentadora sensação de felicidade. Mas acordo com esse fardo de infelicidade que me angustia. Desde que comecei a escrever este e outros contos, tais pesadelos não me visitam mais (sei, isso tá parecendo os testemunhos de fé das igrejas evangélicas, mas em escala oposta: eu quero que o demônio entre em meu corpo). Pelo contrário, tenho dormido muitíssimo bem, e meu humor melhorou bastante. Nada para ser publicado ainda na prensa, mas o contínuo exercício.)

domingo, 4 de novembro de 2012

Uma Visita Magistral, um Filme da Trilogia, e Uma Outra Coisinha de Menos

Júlia e Aline
Ontem, enquanto o céu abençoadamente desaguava, fechamos as cortinas da sala e improvisamos duas sessões de cinema aqui em casa. Minha irmã, minha esposa e eu. Recomendei que pegassem o dvd do filme "Os Homens que Não Amavam as Mulheres", de preferência a versão sueca, que é superior à americana. Minha irmã adora suspenses bem feitos e iria gostar. As duas voltam da locadora com a versão americana do referido filme, e um mimo da espontaneidade da Aline_ minha irmã_ intitulado "E Aí, Comeu?", um filme brasileiro que de cara tinha de tudo para ser intragável: o título descolado, Bruno Mazzeo, as organizações Globo e Marcelo Rubens Paiva, o tipo de combinação com a qual eu jamais gastaria cinco minutos de meu tempo, quanto mais o período de um longa metragem. Mas a vinda da Aline aqui em casa, depois de meses, valeria o sacrifício. Minha esposa, como de praxe, dorme nos 15 minutos iniciais de Os Homens..., mas ficamos minha irmã e eu fascinados com o ritmo da história, a soberba personagem Lisbeth Salander, a fotografia, e uma gama de aspectos de primeira do cinema de entretenimento com inteligência. Já havia assistido ao filme, nas duas versões, e comprei os três livros da trilogia (vou ter de arranjar uma brecha entre minhas leituras para encaixar esses livros, pois morro de vontade de assistir às duas sequências suecas, mas pretendo absorver a surpresa da leitura primeiro). Minha irmã ficou maravilhada; voltou o filme várias vezes para entendermos direito detalhes fundamentais, e ficamos uma hora discutindo-o apaixonadamente. 

Aline é uma fisioterapeuta excessivamente ocupada; trabalha doze horas por dia e tem uma agenda de clientes fiéis, daí ser ótimo poder tê-la aqui, descansada e despreocupada com o tempo, acordando tarde, comendo com apetite insaciável as tantas receitas que ela de antemão pede para a Dani fazer, e essa discussão sobre o filme me lembrou (assim como tenho certeza que a ela também) nossos longos e belos anos em que morávamos na casa de minha mãe; eu ia buscá-la na escola; a colocava para corrigir provas dos meus alunos; a acordava de seu sono da tarde para irmos às Lojas Americanas gastar metade de meu salário de professor com chocolates; escutávamos música em último volume e nos extasiávamos tentando cantar Incompatibilidade na mesma velocidade que Oswaldo Montenegro. Ela tem dez anos a menos que eu. Um coração gigantesco, e uma personalidade forte. Quando se formou, passou a trabalhar no Hospital das Clínicas, e, felicíssima da vida, me mostrou em seu celular as fotos das crianças suas pacientes. Olha como são lindos, falava, citando o nome de cada um, mostrando que os brinquedos que cada um portava foram comprados por ela (gasto todo meu salário com eles, disse, sorrindo), e atentei mais  às fotos e vi que todos tinham síndrome de Down. Meus olhos se encheram de lágrimas e só não a beijei fortemente para não cair num dramalhão; mas meu peito se estufou de orgulho. É penoso sair com ela, pois ela tem um metro e setenta e é deslumbrantemente linda, o que me incomoda os tantos olhares que atrai. Mas ela nunca percebe e quando está comigo conserva os mesmos trejeitos da menina de antigamente. Deita-se sempre de meu lado na cama, ergue a camisa e intima: Coça as minhas costas. Quando soube que a Dani estava grávida da Júlia, olhou em meus olhos, séria, e disse: mas isso não vai fazer com que eu deixe de ser a caçula da família. Não há um dia em que eu não troque o nome da Júlia pelo dela, pois ela realmente nunca deixou de ser a caçula da família. Quando a Dani estava com quatro meses de gravidez da Júlia, a Aline me levou a uma lojinha no térreo da academia onde trabalha, para comprarmos o primeiro vestido do futuro bebê. Foi quando contei que a gravidez da Dani era de altíssimo risco e os médicos estavam avaliando as chances da Júlia nascer. Compramos o vestido sob uma pesada sombra, foi um dia tristíssimo, mas nenhum de nós dois jamais voltou a tocar no assunto médico, e conseguimos continuar a planejar a Júlia como uma realidade. Eu nunca contei isso para a Aline, mas essa atitude dela, essa fé ensolarada de que a Júlia iria usar o lindo vestido, é o que mais me deu forças, pois nos meses seguintes de gravidez, o mutismo de todos da família era ensurdecedor, como se o veredicto já houvesse sido dado.

Daí que a Júlia e ela se amam ardorosamente. Esse final de semana passaram uma no colo da outra, misturadas. A Júlia arranjou de a chamar apenas de um incompreensível Tatá. Mas, voltando aos filmes... À noite, quando todos já estão acordados e a primeira fornada de pizza é assada no forno, colocamos o filme do Mazzeo/Paiva para rodar. Aguentamos dez minutos. Tudo ali é previsível e de péssimo gosto. A pretendida canastrice dos atores é de dar dó. Uma cópia descarada e baratissima dos cacoetes das comédias americanas. Paramos na cena em que um dos atores globais do elenco, numa conversa de bar com os amigos, instrui uma amante imaginária na felação perfeita. Tá! Mas é tão sem imaginação e pobre a cena, roteiro e tudo, que só fica uma impressão de insulto tanto para o público feminino quanto para o masculino. Há filmes de humor cujo mote é o esteriótipo declarado, como em um dos American Pie, em que um adolescente fornica com uma torta de maçã. Seria extraordinário e teria rendido nossa paciência e boas risadas se Mazzeo/Paiva tivesse copiado este bastião do cinema americano. Mas não: a merda do cineminha chinfrim nacional é querer ser subproduto do subproduto mas disfarçar os sinais com um toque cabeça, intelectualizado. Daí talvez eles terem escolhido o Marcos Palmeira para interpretar a cena da análise felacionista, aproveitando sua áurea dissidente de intelectual da Globo, pois afinal foi ele, ao que me parece, que abandonou diversas atrizes esculturais para tratar de um haras. A cena só se limita ao Marcos Palmeira dizendo em meio tom à mulher que escabeceia na faixa de sua cintura: devagar, devagar. Eu torci, sinceramente, para que a coisa evoluísse para o estilo esperma-gel no cabelo, do Quem Quer Ficar com Mary. Em vão.

Desligamos o filme, ninguém pensou mais nisso (a não ser eu), e deixamos as crianças assistirem pela enésima vez ao episódio preferido delas dos The Backyardigans: O Meteoro. Fiquei pensando o quanto Marcelo Rubens Paiva, que faziam bem uns 25 anos que nunca mais ouço falar dele, continua ruim. Fui forçado a ler dois de seus romances, o Feliz Ano Velho, e Blecaute. Divertidos, mas mais um dos escritores de revista Capricho e Contigo, que, no auge, passam um de rebeldes à frente de seu tempo. Escreveu sobre sobreviventes em uma São Paulo em que todos são tomados por uma paralisação completa; sobreviventes que aproveitam da liberdade surgida com isso para explodirem a torre das Organizações Globo. Livrinhos que se lê com incrível velocidade e pouca coisa se conserva na memória. Lembro que havia um elemento de violação moralmente controlada mas intuitivamente sugerida no fato do personagem de Blecaute não fazer sexo com as tantas garotas imobilizadas da cidade apocalíptica. O mesmo fetiche de mau gosto que identifiquei no estilo modernoso de eterno adolescente descerebrado dos personagens do filme. Um tipo de coisa tão inexpressiva que não chega sequer a fazer sombra em um fim de semana excelente.

Banksy