segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace


Há uma cena no ensaio que dá título ao livro em que a acompanhante de Wallace à visita a uma feira agrícola no interior de Illinois se submete a um dos brinquedos de "quase morte" do parque. É uma minuciosa descrição de tortura: a mulher é aprisionada em um cubículo gradeado de ferro, içada a uma altura exorbitante, e sacolejada por minutos que parecem infinitos. Em um determinado momento, Wallace concebe a ideia audaciosa de que a vida da mulher depende de sua intervenção junto aos dois rapazes que controlam as alavancas do brinquedo, visto que sua racionabilidade em não ver nenhum tipo de motivação saudável para alguém se submeter a tais extremos o mantêm seguramente em terra. Os dois rapazes começam a revelar níveis de sadismo ao manterem a mulher dependurada de cabeça para baixo só pelo intuito de verem suas saias caídas e a calcinha à mostra. Wallace, até então carregando o texto com análises filosóficas distanciadas  beirando um compêndio alienígena sobre uma espécie bestial, assinala um marco de terror no meio do tom secamente cômico ao avaliar-se covarde demais para enfrentar os dois caipiras bêbados, mesmo essa incapacidade feminilizante parecer custar a vida de sua colega. A cena termina com os maníacos voltando a cabine para o chão e a mulher, que Wallace imagina reduzida a um trapo, pulando para fora e festejando a maravilha daquilo com uma série de palavrões incitatórios aos rapazes. Wallace, abismado, conta à moça sobre a agressão pela qual ela acabara de passar, e sua nítida crueldade sexual, mas ela se mostra completamente avessa a entender, enxergando a coisa como algo trivial e ingênuo. Ao leitor ainda possível de se lembrar das obras de Stephen King que lera na adolescência,  é inevitável admirar o quanto Wallace esbarra na mais pura literatura de terror ao mostrar-se desabrigado e indefeso em um mundo em que a maldade se revela nas beiras de normalidade comezinha apenas para ele. Ninguém vê o diabolicismo por detrás das crianças gordas sendo doutrinadas pelos pais obesos a comerem as mais aberrantes guloseimas gorduras e gotejantes de óleo de fritura, nem o campeonato de vale-tudo entre garotos de dez anos que são induzidos a quebrarem um o nariz do outro por pais sedentos por violência, ou os tantos símbolos fálicos e palhaços bêbados e com não apenas imaginárias propensões ao crime, que são os personagens e as situações que povoam a feira.

A lucidez de Wallace, de tão pura, chega a converter-se por convecção e involuntariamente a essa maldade translúcida. Não há nenhum sinal de moralismo ou transcendência em suas palavras, mas apenas a sequidão científica do colecionador de insetos raros, que os vai afixando com agulhas em um quadro. Em determinado momento, sua incansável predisposição ao conceitualismo traça uma causa a essa brutalidade desinibida que o afronta pelos vários dias que dura sua estadia no parque: as pessoas dos insípidos povoados do centro dos Estados Unidos são indivíduos recolhidos, mutilados pelo tédio, enfurnados em um cotidiano previsível e insosso, e essas festas agropecuárias é a forma da catarse anual que os liberta por um momento da maldição da geografia. Só que eles não conseguem libertar-se de si mesmos, do que anos de prostração fizera a seus espíritos: daí que nesses períodos de oásis eles se lançam em uma espécie de hiper-realismo esquizofrênico, em que os antigos traços de seus humanismos são substituídos de vez por caricaturas do que neles existem de molestadores sexuais, assassinos potenciais, escravos da indústria de fast-foods e pais alienados. Nas mãos de um Bernhard ou de um Camus, esse retrato do inferno alimentaria-se de contundência e linguagem decantadamente combativa, e virulência e repúdio, mas nas mãos de Wallace essas características são preenchidas por uma forma de humor destituída de qualquer engrandecimento trágico, um humor que se revela nas palavras mais como um ato físico de estoicismo por estar no centro das labaredas do que por indicar-se superiormente capacitado a olhar tudo de um mundo hipotético melhor e mais seguro; um humor pós-riso e uma observação ativa e muscular que não abraça nenhuma escola filosófica: um exaurimento filosófico como se a América dos tempos atuais não comportasse mais nenhuma trégua e nem tão pouco alguma fagulhar e eventual redenção desse inexorável trivialismo. Wallace escreve como um jovem envelhecido precocemente por sua capacidade não vantajosa de ver além desse jogo faustiano de hedonismo e frivolidade que encoberta a realidade, após ler toda a filosofia, a ensaística e a ficção atrás de sucedâneos menos terríveis, e se conforma em não criar mais uma roupagem inédita de verdade, se comprazendo a abraçar apenas a originalidade de sua fidelidade à sua voz. E assim ele escreve todos os formidáveis seis ensaios compelidos neste livro.

Javier Marías, grande aficionado à literatura de terror, escreve que o relato do terror pelo terror enfraquece o texto, pois uma vez exposta, a atrocidade soa convincente, mas as repetidas vezes mais em que ela aparece, a "tensão se perde e o efeito se desvanece". Por isso, ele continua (no curto ensaio Contra la Truculencia, do livro Literatura y Fantasma): "a frase que maior horror me produziu na literatura não está em Lovecraft, mas em Flaubert: no final de Madame Bovary, com ela já morta e em seu ataúde, enquanto vários personagens lhe colocam por cima uma coroa, Flaubert diz: 'Teve-se que levantar-lhe um pouco a cabeça, e então uma onda de líquidos negros saiu, como um vômito, de sua boca'". Assim é o horror que se tem nessas páginas de Wallace, tanto neste longo relato da feira de Illinois, quanto do cruzeiro que faz pelo Caribe, quanto na descrição do sofrimento de uma lagosta no processo de ser cozinhada viva, quanto do seu famoso discurso sobre a paciência diante a inutilidade salvadora de todas as coisas e todos os gestos em Isto É Água. O horror sem sombras e sem sentenças conradianas, que a própria arquitetura em que tais ensaios foram feitos, a maioria para revistas de gastronomia e de turismo (não literárias), favorece uma liberdade coloquial em que a efemeridade é uma primeira máscara enganosa. Recomendei a um amigo que lesse o ensaio Pense na Lagosta, ao que ele me disse, após a leitura, que o texto começa desinteressante, sem que se dê nada por ele, descrevendo os eventos da feira da lagosta do estado americano do Maine, mas que logo entra em uma comovente e quase insuportável acusação da crueldade que jaz por detrás das tradições culinárias as quais entregam ao consumidor uma carcaça embalada em inofensivas embalagens coloridas que não deixam intuir a enorme dor e indizível sofrimento pelos quais passou o animal antes de se tornar alimento. A lucidez mais impactante desse grande escritor que é Wallace, a sua escrita soco no estômago que não se curva a formulações fáceis, pode ser resumida nesse diagnóstico da alienação reinante e opulenta do homem consumidor a que se reduziu antigas ilusões iluministas, em sua frase: "Elas (essas pessoas) não estão prejudicando ninguém".

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