quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Gravidade



Gravidade é uma antítese dos filmes sobre o espaço. A começar que não trata do espaço, acontecendo no limite estratosférico em que os personagens purgam uma angustiante batalha entre a desconexão com a gravidade e o anseio para retornar a ela. Ao contrário da grande maioria dos filmes sobre o espaço, a tecnologia não é mostrada em toda sua acintosidade evoluída e infalível, para deslumbre do expectador sobre o alcance da genialidade da mente humana, mas como um quebra-cabeça desconjuntado cuja lógica vigorante é a predisposição a sucumbir à ruína iminente. A cientista encenada por Sandra Bullock se mostra incapaz de consertar a conexão da nave espacial já no início, suspensa em sua roupa de astronauta a milhares de quilômetros junto ao outro único personagem da trama, interpretado por George Clooney, mesmo tendo a alta formação científica que pressupõe a garantia que ela é a melhor escolha para estar ali. E se nos valermos da norma da última fronteira e do último homem super-cerebral da escala darwiniana, que costuma enternecer nossa vaidade em demais filmes do gênero, o acidente que move a tensão do filme é resultado da destruição programada de um satélite russo feita sem a análise de riscos e com a truculência de um vizinho primitivo que atira o lixo no meio da rua_ e os fragmentos da explosão resultante acabam com os sistemas de comunicação em massa do planeta ao mesmo tempo que reduz para quase zero as chances de sobrevivência de Sandra Bullock e seus colegas. Gravidade é o equivalente a O velho e o mar da arte do novo milênio, sendo que as forças de uma natureza descomunal e absolutamente indiferente ao destino humano são transportadas do mar para o que existe um pouco acima e no interior do cone dessa outra grande força imisericordiosa chamada gravidade, e o solitário pescador Santiago com seu peixe gigantesco são trocados pela astronauta à beira da morte que leva contíguo a seu desolamento o peixe vazio da limitada ciência terrena. Assim como o pescador Santiago duvida que, se sobreviver às inconstâncias do oceano e retornar à terra, ninguém acreditaria que conseguira pescar o maior peixe do mundo se não o levasse como prova, a astronauta sabe da história inacreditável que teria para contar se conseguisse voltar para a sua pequena cidade natal em Illinois. E ambos, o pescador e a astronauta, levam uma morte nas costas que é como um ponto a mais de desistência na vitória inconteste da natureza sobre eles. E, também na contramão das grandes produções cinematográficas que envolvem tanto deslumbre visual, Gravidade tem meros e felizes uma hora e meia de duração apenas, como Hemingway também se serviu de uma rígida concisão para contar uma das mais belas histórias do mundo. E Sandra Bullock, que nunca me pareceu ter um padrão de beleza maior que o clichê de celebridades hollywoodianas, me deu a sensação nesse filme de ter visto poucas mulheres tão belas quanto ela_ mas de uma beleza sem pudores e frágil, da mesma ordem de exsudação glandular da Sigourney Weaver em Alien, com suas lágrimas e suas salivas (que no caso desse filme em 3D, sai das narinas da atriz e vão em direção à tela). Gravidade foi uma das minhas maiores surpresas dos últimos anos no terreno do cinema americano. Um filme belo, que tem a grandiosidade inevitável de toda história bem contada cujo núcleo é a condição humana e a ternura inerente à nudez em que vivemos equilibrando por sobre o caos.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A Cidade das Pessoas Feias



Depois que o vizinho da frente deu término a seu propósito de construir um bunker, coisa que mobilizara, já a partir das seis da manhã em três anos consecutivos e ininterruptos, uma trupe de uns dez pedreiros sem nenhum freio nas línguas, o quarteirão onde moramos se afundou em um silêncio descomunal. Agora mesmo, no início de segunda-feira, o único som que ouço, apurando bem os ouvidos, é de uma serra elétrica distante, de alguma soldadeira a umas três quadras, e mesmo assim o estranhismo em que esse novo ambiente me envolve faz pressupor se tal ruído não seria fruto de uma alucinação auditiva. Os pássaros, misericordiosos, continuam a cantar, e um cão neste exato momento, como se querendo por telecinese fazer parte desse texto, pôs-se  a latir, testando os limites de sua experiência canina, na irretocável frase de Saul Bellow ("Pelo amor de Deus, que o universo se abrisse um pouco mais!"). Ontem minha esposa abriu abruptamente a porta do banheiro e me disse enquanto eu tomava banho que, estendendo as roupas no varal, flagrou sem querer a conversa do vizinho do lado. O sujeito contava a alguém, em volume baixo, quase em sussurro (recordo bem esse detalhe), que havia ido ao culto em uma igreja pentecostal no sábado, levando inadvertidamente por esquecimento uma cruz dentro do bolso. A Dani é uma primorosa contadora de histórias; não raras as vezes eu sinto inveja dela, e raiva por se tratar de um talento tão natural que ela vê com uma indiferença soberba; ela fez uma pausa esperada nesse momento da fofoca (o termo em inglês soa menos comezinho, gossip), para deixar que as ressonâncias dos efeitos das trivialidades me atiçasse ao máximo a curiosidade (aumentada por seu êxtase infantil em usar de tanta urgência a ponto de não poder esperar que eu encerrasse o banho para me contar), e prosseguiu, deixando explícita a sua felicidade puramente feminina com aquilo. O sujeito sussurrara que assim que entrara na igreja, o pastor, do alto do púlpito, perguntara em alta voz mercurial quem dentro da platéia trazia uma cruz escondida dentro do bolso. Retesado, ele na mesma hora se denuncia. Mas como é que o pastor sabia que eu levava uma cruz no bolso?, foi a última parte da curta narrativa alheia que a atenção gaiata da Dani conseguira apreender por cima do muro e no silêncio lunar de nossa nova rotina caseira. Eu fiquei olhando fixamente para ela, com a espuma do shampoo descendo por meus olhos, sentindo que no mundo real as conversas fiadas (idle talk) são criadas naturalmente para morrerem na inconclusão, e que sua intuição perfeita em aceitar de bom grado as reticências mostrava que para ela a piada acabava aí, era excelente como um gênero narrativo sem mais pretensão do que o riso que ela esperava de mim como uma forma de aplauso. E então?, eu pergunto, desalentado pela inutilidade de inquirir mais do que ela tinha; o que o pastor disse, deu uma bronca no sujeito?; e o que o sujeito, se for evangélico, estava fazendo com uma cruz no bolso?; e que forma mais primitiva de mostrar poder nesse arranjo patriarcal de repreender por parte do pastor. A Dani fecha a porta diante a evidência de que eu incinerava toda a leveza do mexerico (gossiping).

Isso revela como funciona a mente de alguém martirizado pelas letras. Salman Rusdhie, em sua autobiografia, fala sobre a intersecção permanente entre o escritor e o leitor e a identificação que esse último tem com os grandes personagens e as grandes narrativas, citando na mesma linha de importância Madame Bovary, Leopold Bloom, o coronel Aureliano Buendía, Raskolnikov, Gandalf, Oskar Matzerath, miss Marple e "o mensageiro mecânico do planeta Tralfamadore em As sereis de Titã, de Kurt Vonnegut". Me surpreende e me delicia como grandes nomes da literatura defendem sossegadamente os romances de gênero, sobretudo os policiais. Rusdhie e Borges, e Bolaño e Bellow (que era fã inveterado de Elmore Leonard). Na mesma autobiografia, Rusdhie no final vira as costas para a política, após tantos anos perseguido pelo lado mais assassino dela (coadunada com o fanatismo religioso), e escreve: "Seria sábio retirar-se do mundo do comentário e da polêmica para voltar a se dedicar àquilo que mais amava, a arte que havia dominado seu coração, mente e espírito desde jovem e viver de novo no universo do era uma vez, do kan ma kan, era assim e não era assim, e fazer a jornada da verdade sobre as águas do faz de conta". Essa jornada da verdade sobre as águas do faz de conta me mostra o quanto a percepção da existência através da literatura é algo gratificante, mesmo, ou em razão, da propensão de se enviesar pelo nonsense e pelo absurdo. Sentado em uma cadeira na varanda ontem, após a Dani ter me contado a história da cruz no bolso, sentindo o radiante frio que a inversão térmica mundial vem transformando o cerrado em zona hibernal, e por isso mesmo motivado a tomar um chocolate quente acompanhado com um bom livro policial, eu apurava os sentidos por cima do muro, à caça dos sinais subsônicos que me dissesse mais sobre a tal história. Me veio um monte de cogitações absurdas, conceitualmente implausíveis, mas que se inflavam de sentido quando na premissa de serem traduzidas por sobre as águas do faz de conta. Um dia antes, sentados ali na varanda bebendo café, vendo as crianças brincando e absorvidos no silêncio de nossas conversas, nós dois nos demos conta do quanto aquele silêncio tinha proporções cosmicamente assustadoras. Brinquei com a hipótese de humor negro se a Dani não tinha esquecido o gás ligado uma noite dessas com todas as janelas fechadas, pois é assim que devem sentir os fantasmas. A Dani me repreendeu, após um sorriso nervoso, e eu, provocado, continuei: pois suba por cima do muro e perceba se do outro lado não há uma velhinha sentada à uma mesa rústica de madeira, com uma chávena de chá ao lado enquanto borda, e, por mais que você acene ou grite, ela não dará a mínima por sua presença; e a Dani, não gostando daquilo mas aceitando o desafio, me respondendo que talvez, por cima do muro, ela não veja nada além de uma zona de energia cheia do mais amplo vazio, como em Solaris. Eu me calo, mais uma vez deslumbrado em segredo com a inteligência da Dani em me fazer calar quando vê que é preciso, pois ela sabe que a única resposta da minha parte nesse xadrez verbal seria apontar o fato de que em Solaris era o marido que olhava por sobre o muro, pois a esposa havia se suicidado. São formas ricas de percepção, grotescas, mas ricas, e isso é a raiz da literatura. Uma vez eu e um colega de profissão descobrimos erraticamente uma cidade na qual jamais tínhamos tido conhecimento dela antes, ao enveredarmos na procura de uma granja de suínos. Paramos na cidade para almoçarmos e ficamos fazendo a sesta consciente sentados num banco da praça principal, olhando o intenso movimento das pessoas indo e vindo para as lojas. Não havia uma pessoa que, para nossos padrões de jovens solteiros, era minimamente sexualizável. Botamos o nome na cidade, para uso particular, como a Cidade das Pessoas Feias. Nosso fascínio era tanto que eu soltei minha teoria então recente sobre se em nossas andanças da manhã, não havíamos passado pela incômoda situação de termos capotado o carro em uma curva da estrada e agora estarmos vendo tudo de uma outra dimensão externa à nossa tão antes confiável pressão terrestre. Brincamos e rimos bastante com essa hipótese retórica, mas em um determinado momento, um momento fagulhar que se dissipou rapidamente, tanto eu quanto meu amigo fomos realmente tomados pelo terror de que o que estávamos dizendo fosse mesmo a verdade, e estivéssemos ambos mortos em uma zona dantesca de pecadores que pagavam no purgatório por serem feios, pois as pessoas que passavam não se dignavam a perder tempo em investirem um olhar para nossas tão combalidamente defendidas belezas. (E há uma cidade magnífica em O último suspiro do mouro em que os heróis da história se perdem, em que tudo acontece do avesso).

Pois o que se escondia nessa história da cruz? Em um conto de Chesterton, o pastor se revelaria um mágico do oriente ou um arabesco mefistofélico vingativo, ele mesmo tendo montado a situação da cruz no bolso para reverter a atenção de um iminente assassinato. Em um conto de Conan Doyle, o pastor teria aproveitado que o fiel tivesse contado anteriormente o esquecimento da cruz a um delator mancomunado e usado o incidente para botar-lhe uma culpa tão grande, com fins de retirar dele alguma herança vultosa recebida ou em vias de receber. Em um conto de Sheridan Le Fanu, tratava-se de uma quimera inventada por um demônio em que não existia nem o pastor, nem a cruz e nem o fiel distraído, mas tão somente ele e minha esposa, que seria ao mesmo tempo isca e vítima. Em um livro de Javier Marías, tudo seria um engano mais profundo, que incrivelmente remeteria ao passado mais crepuscular da família da Dani. E, depositando o livro do Padre Brown no colo, sorrindo diante todas esses ramos bifurcantes, eu parei por um segundo, um micro segundo de irrealidade, ao pensar no detalhe esquecido: por que tudo foi narrado em sussurro?

domingo, 23 de fevereiro de 2014

O mais triste dos tristes escritores


                                                 "A melancolia é a felicidade de se ser triste" (Victor Hugo)


Não há como não ver como uma estupidez com indigerido traço etnocêntrico o pouco caso que Coetzee faz a Mia Couto em seu livro de ensaios Mecanismos internos. Por mais que eu goste de dois ou três romances de Coetzee a ponto de usá-los como recorrentes presentes a amigos, a única frase que ele dedica a Mia Couto, de forma ostensiva e prepotente, alegando que o moçambiquense não era representativo da literatura produzida no continente africano, estraga um tanto a imagem desse prêmio Nobel que é indiscutivelmente um dos maiores autores vivos da língua inglesa, mas que esbraveja a sua carteirinha de esnobismo elitista de autor europeu (mesmo adotado), de aristocrata que tem sua importância medida e aceita sem reservas acima do senso comum mais idiota dos excêntricos e periféricos. Tal atitude, que por ser explicitamente gratuita (já que ele cita o nome de Mia Couto sem nenhum propósito além de sentencia-lo como descartável), é semelhante em sua violência segregacionista a de escritores como Kingsley Amis ao apontar José Saramago em uma reunião de escritores e dizer a um amigo alguma festiva frase sobre a mediocridade de tais pessoas como o português em se tornarem escritores. O que há por detrás de pontos de vista inerciais como estes é algo constrangedoramente simplista: o mero preconceito; o preconceito mais baixo que junta no mesmo cesto de identidade fechada de casta a proeminência financeira de uma nação sobre a outra, o valor comercial de um idioma sobre o outro, até as mesquinharias mais provincianas como aspectos de cor e raça.

O leitor que conheça o potencial de escritores que exorbitam o eixo de glamour intelectual das regiões cosmopolitas vinculadas à riqueza financeira, sabe bem que dificilmente Coetzee deva ter lido Couto. Ainda mais que um dos ensaios de Mecanismos internos fala minuciosamente sobre o pior livro de um escritor que teria tudo para ser enquadrado nas esferas de subdesenvolvimento literário que Coetzee parece atribuir a Couto: o Memórias de minhas putas tristes, do colombiano Gabriel Garcia Marquez. Coetzee faz uma radiografia pedante sobre esse fraquíssimo livro, para no final dizer o que qualquer leitor menos devotado já tem por certo: é um romance descartável entre a bibliografia em três títulos prodigiosa de GGM. Gastando tanto tempo em um livro constrangedoramente menor de um cultuado autor, e relegando toda a obra com momentos imortais como Terra sonâmbula de outro com uma frase absurdamente derrisória, Coetzee mostra, apesar da sofisticação utilizada na maior parte de seus ensaios, uma visão medíocre, cerceada pelo mais atrasado selo de qualidade senhorial, pela sutileza mais gritante que remete a pensarmos o quanto o autor de uma obra como Desonra sucumbe ao clichê da pior espécie, talvez pela velhice ornamentada com seus importantes prêmios (mas não menos velhice), e sua empáfia diante o que ele pressupõe ser o extremo oposto de si mesmo (ele, um autor africano branco, que escreve uma prosa realista seca, que transita por esferas intelectuais assepsiadas de sentimentalismo, e Mia Couto, um autor africano branco, que escreve uma prosa barroca com cores sinestésica e profundamente poética). E se quisermos sair desse diagnóstico como algo precipitado, basta ver o ensaio no mesmo volume sobre Sándor Marái, em que suas palavras, agora prolixas e diretas, são assim mais pesadas em seu descarte em dizer que Sándor é um péssimo romancista (ele dedica várias páginas em destruir o romance, para já no final, como se estivesse cansado daquilo, empregar seu carimbo definitivo por sobre o autor, dessa vez segregado tanto por sua origem étnica como pelo passar do tempo, como se Coetzee estivesse a dizer que estilos assim já estão ultrapassados, que o que conta é sua linguagem dilapidada de adornos desnecessários).

Pois bem. Essa lembrança de Coetzee me veio hoje ao ler uma resenha do Luís Augusto Farinatti sobre Bolaño, que me fez passar boa parte da tarde desse domingo folheando Os detetives selvagens. Assim como eu, Farinatti teve que passar pelo desgaste que o culto a Bolaño cria em quem quer ler Bolaño, a excessiva exposição do autor chileno. Eu li quase tudo de Bolaño, e há tempos não ouço falar dele. Assim, foi com surpresa que li sobre a iniciação feliz de Farinatti, ele que adora literatura latino-americana e produz bons contos, pois me fez retornar ao Bolaño nessa hora que, percebi com certo espanto, parece que passou o fervor em torno da figura do autor de 2666. Ou eu é que, de tanto me esquecer dele, não ando acompanhando os tantos sites dedicados à sua celebração. Para mim, pois, Bolaño agora atingiu sua plenitude, pode-se_ ou posso_ voltar a ele com a virginalidade de quem o descobre por iniciativa própria, sem os ecos de tantas opiniões translativas. Reli o primeiro capítulo de Os detetives selvagens emocionado, devo confessar. Depois reli as últimas dez páginas, que a mim afiguraram como o melhor desse romance, quando o explorei há seis anos. Eu achei bastante ruim Os detetives selvagens, por uma série de razões que já expus a exaustão. Na verdade a palavra correta é que desgostei-me dele, pois aguardava um escritor extático, e encontrei o mais triste dos tristes escritores. A última página desse romance é belíssima, sublime, estranha e ambiguamente eloquente. Passei muito tempo entendendo o que ela diz, e ela diz muitas coisas de várias maneiras. Mas, como ia dizendo, o livro_ tido por uma legião de pessoas sérias como uma grande obra-prima_ me desgostou porque era triste demais, latino-americano de uma forma sem subterfúgios, pura e intranscedente. Talvez porque na época me causava desespero pertencer ao país mais latino-americano dos latino-americanos, e Bolaño pregasse o dedo em minhas feridas com sua lucidez insensata. E o fato de que o celebravam em todo o canto do mundo como o novo Garcia Marquez, isso me doía ainda mais: era a celebração de tudo que eu via em torno de mim como atraso, a celebração de sua visão já sem redenções do latino-americano. GGM criou uma mitologia própria ao latino-americano, e Bolaño, seu substituto legal, vinha acabar com tudo falando da extrema violência e primitividade, dos jovens poetas predestinados à morte precoce, dos detetives selvagens do título que traziam nessa outorga o sarcasmo de serem detetives sem a possibilidade de desvendarem nada, e selvagens porque eram frágeis demais em seus sonhos, revolucionários obsoletos, poetas de uma era em que o vocabulário não tinha mais a mínima importância. Bolaño, me parecia, era a última concessão dada à expressividade de todo nosso continente, e ele assumia saber disso em sua intenção de sepultar de vez as letras.

Devo admitir hoje, após o post do Farinatti e minhas releituras descansadas de Os detetives selvagens, que só agora eu perdi certo receio contra Bolaño, eu passo a compreendê-lo melhor. Acho que isso tem a ver com meus esforços mais concentrados em escrever um romance, uma tarefa mais madura e auto-combativa (afastando e destruindo uma série de bobeiras aprendidas também pela inércia). O mais triste de todos os tristes escritores é também de um visceralismo só tido em raros companheiros seus de profissão. Após ler o último romance de Martin Amis, por exemplo, a impressão de artificialidade artística, de bater as teclas da máquina com proficiência mas sem muito coração, é algo que vejo impossível em Bolaño. Amis é um escritor muito bem pago, e sua obrigação é vencer o enfado do conforto de viver no extremo mais rico do mundo, cavar uma experiência que ele não tem, e dar vida a essa simulação com todos seus hercúleos esforços retóricos. O mesmo ocorre com McEwan, que há muito não escreve nada que se pareça com a realidade lá de fora de seu gabinete. E Coetzee, o meu amado e festejado Coetzee, já distante de seu auge da palavra, vem construindo suas zonas mentais aprimoradas, suas fábulas complexas kafkianas, e que cansaço benéfico ao final da tarde deve tomar conta de seus olhos míopes que caem por um tempo gratificante por sobre o aveludado tapete por debaixo de seus pés. Essa percepção de cavar a verdade passou pela cabeça do Philip Roth de Entre nós, quando ele confessa a inveja que tem de escritores como Ivan Klíma, que tem todo o provimento de assuntos capitais oferecidos pelas agruras cotidianas de sua pátria política. Tentar escrever tem me dado uma piedade de visão e uma profundidade muito mais reveladora que a passiva aquisição da escrita pela leitura. Um humanismo que me faz rever conceitos imediatos que se colam com uma facilidade parasita e assustadora em minha mente. Uma nova ciência do olhar muito útil nesses nosso tempos em que se prende menores infratores em postes com trancas de bicicleta, e a primeira sensação demanda uma insensível e brutalizada comemoração. Vendo o vídeo de Mia Couto falando sobre o medo_ a sua integridade, a sua segurança, a sua calma e cordial e cavaleiresca presença, a sua seriedade e auto-confiança_, e repassando Bolaño, e lendo Saramago, e Bernardo Carvalho, e na iminência de ler tantos escritores que ficam do lado de fora dessa batalha ignóbil de etnocentrismos, eu penso, feliz, que a tristeza de Bolaño é, em contrapartida, uma alegria libertária da expressão. Isso reforça de uma maneira indizível minha fé na literatura.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Lionel Asbo, de Martin Amis



Venho lendo Martin Amis desde que me deparei com boa parte dos formadores de opinião dizendo que ele era o maior escritor do mundo. Isso foi em 1999, creio que no ano do lançamento da edição nacional de A informação (na verdade, A informação foi lançado pela Companhia das Letras em 1995) . Amis era acolhido com todas as previsões inevitáveis de mimo pela mídia cultural como uma espécie inusitada de astro do rock das letras. Ele se dava ao luxo até de ter sua parcela de suspeição moral, típica da vida maculada das grandes personalidades do show-business, ao ser apontado como réu em um escândalo envolvendo plagio e pelo final tumultuado de um relacionamento não exclusivamente amoroso com uma famosa editora. Era difícil para um leitor desvincular o escritor Amis do homem excessivamente público Amis, mesmo porque o próprio autor fazia questão de apagar as linhas divisórias ao se inserir como personagem em um de seus livros (em Grana, Amis aparece inteiro e com o próprio nome para se assumir como ghost-writer do anti-herói da trama). Por isso, quando li A informação, era com esse condicionamento ambíguo na cabeça que me vi testando o que era real e o que era quimera publicitária. O que de imediato percebi foi o enorme domínio das técnicas narrativas em Martin Amis: ele conhece como ninguém todos os andamentos da escrita, todas as quebras sutis para acentuar a tensão da trama; ele escreve usando uma percepção subliminar contínua dos movimentos mais prosaicos da realidade; em seus livros um céu nunca é apenas um céu, mas algo acintosamente perigoso, "uma névoa de saibro, a textura da gaze, com ciscos, pontos cegos, rugas, como cicatrizes de vacina" (Lionel Asbo, p.324); ele demonstra essa qualidade superior de apresentar rostos e paisagens com definições anacrônicas espantosas, como Faulkner bem sabia fazer com seus personagens com olhos como maçanetas, e seus desenhos de Londres tem a profundidade caleidoscópica de uma cidade sombria carregada de detalhes percucientes miniaturizada e inserida em uma esfera de vidro. Ao contrário de vários outros escritores que são alicerçados para um plano de visibilidade comercial absoluta, Amis tinha algo a oferecer, mesmo que fosse apenas o cacarejar erudito de frases soberbas que olhando-se mais detidamente, não diziam nada (como a famosa incógnita da abertura de A informação, bela e impactante, mas quase genialmente oca). Em um mundo hipotético como o de um dos contos de Amis, em que os poetas estão no topo da cadeia alimentar financeira e os banqueiros purgam uma dura vida de ostracismo, os livros de Amis seriam o best-seller número um da lista de leitores superdotados.

Martin Amis é sim um escritor que não pode ser desprezado. Mas o leitor experiente aprende com as leituras sucessivas de seus livros que ele não é o maior escritor do mundo. Numa escala pessoal de relevantes romancistas de língua inglesa contemporâneos, em que a excelência apical fica com Saul Bellow, descendo pelas escalas elevadas de Thomas Pynchon, Philip Roth, Naipaul, Rushdie, até chegarmos às bases de uma Jennifer Egan e um Jonathan Franzen, Amis ocupa um plano mediano de um Paul Auster apimentado e muitíssimo mais divertido. Um diagnóstico com afiada precisão foi dado por um jornalista britânico: Martin Amis é um grande escritor que nunca escreveu um grande livro. Com Lionel Asbo, Amis deixa claro que ele tem plena consciência disso, demonstrando uma auto-crítica lúcida quanto até onde ele pôde chegar como criador. Aos 65 anos, ele sabe que jamais lhe darão o Nobel de literatura, e por isso ele repete mais uma vez, com vigorosa honestidade, tudo o que sempre fez, podando os excessos de virtuoses que por vezes entulham seus outros romances. Há mesmo uma leveza, uma despretensão em Lionel Asbo, que torna essa obra um tanto maior que as outras; maturidade sem sisudez, mestria sem empáfia. Os personagens continuam primorosamente construídos: Lionel Asbo, que certamente entrará na galeria de figuras memoráveis de Amis (junto a Richard Tull, o escritor fracassado e corroído pela inveja de A informação, e o obeso mórbido ultra-libidinoso John Self, de Grana), é um delinquente juvenil de uma imaginária cidade satélite de Londres, tão bem cinzelado e imprevisível que causa um misto de sentimentos no leitor: nojo, terror, admiração involuntária pelo primarismo escatológico, mas nunca ternura, mesmo nos momentos finais da história que, astuta e enganosamente, parece direcionada para pieguismos redencionistas.

Lionel Asbo começa com o visceralismo não isento da intenção de chocar típico de Amis. Já nos primeiros parágrafos aparece uma situação desmesurada que o leitor fica tentado a achar ser um artifício cômico forçoso. Eu vi tal coisa como um exemplo de humor pueril, uma traquinagem para se manter ousado e provocador, para arrombar o bom senso. Parece que Amis foi compondo espontaneamente esse início, como uma brincadeira, e com uma perícia de enxadrista treinado foi tecendo uma rede de coerência em torno, de tal modo que essa leviandade de gosto bastante duvidoso acaba por se ligar fundamentalmente com a desfecho da narrativa. Mas o que verdadeiramente desconcerta nesse livro_ para não dizer incomoda_, é a explícita falta de generosidade por parte dos personagens. Não falta de generosidade na construção narrativa, que aqui temos uma prosa imbatível e de primeiro time. Mas falta de generosidade humana, de coração terno. Lionel Asbo é um ser monstruoso, um ególatra patológico, uma encarnação de determinismo criminoso que remete às teorias lombrosianas; em outras épocas ele seria um guerreiro perfeito, um bárbaro quiçá fundador de civilizações, um instrumento evolutivo potente pela sua falta de sentimentalismos. Mas no subúrbio de Diston Town, ele é um animal brigão que passa constantemente longas temporadas na cadeia, e que martiriza a vida de todos que estão à sua volta, principalmente de seu sobrinho Desmond Pepperdine. Há aqui um antagonismo pouco trabalhado (insinuado mas lastimavelmente abandonado pelo autor) entre inteligência e bestialidade: a inteligência de Des, o sobrinho, que volta as costas para o modo de vida de Lionel, ingressando-se na faculdade e imaginando uma biblioteca como um mundo em que pudesse viver, e Lionel, cujo principal esforço é abolir voluntariamente todo traço de inteligência que queira aparecer em sua mente. Desde criança, Des percebe essa voz libertadora da inteligência acendendo no interior da sua cabeça, vindo não sabe ele de onde, uma voz calorosa, recolhida, cujas fagulhas intensas o deixa sequiosamente ansioso por mais. Mesmo quando Lionel Asbo, por uma mera trivialidade, ganha na loteria, e se torna um multimilionário famoso perseguido infatigavelmente pelos paparazzi, a inteligência que poderia vir no tempo de sobra de uma vida isenta da labuta da marginalidade, é severamente combatida. Com a riqueza financeira, Lionel Asbo fica mais disforme, como um imperador romano, como Calígula.

É aqui que entramos na falha de Amis em não conseguir escrever um grande livro. E precisamos, assim como ele, aceitar isso, para aproveitarmos tudo que ele tem a oferecer. Lionel Asbo é um romance fascinante, divertidíssimo, prendendo o leitor às suas páginas. Uma obra que mexe não só com a providão de risos, mas com o asco e o desassossego. Só isso já posiciona Amis, com toda seu inequívoco virtuosismo e seu talento para a artificiosidade, acima dos outros escritores que se acomodam na medianidade congratulada das letras. Temos que ler Amis sem procurar interpretações políticas e filosóficas, e assim vamos querer ler Amis sempre. Há uma linha lá para o meio de todos os seus romances, em que os personagens ficam caricaturescos por demais, repuxados na ultra-realidade pretendida pelo autor. Isso torna a coisa toda bastante implausível, como nas repetitivas cenas de A informação em que a esposa do escritor famoso é adestrada no volante por um vigarista suburbano que só lhe ensina como certo tudo o que não se deve fazer na direção de um veículo: ainda que no princípio tenha um humor pastelão, fica impossível ao leitor acreditar que uma mulher seria tão constantemente estúpida a ponto de achar que ameaçar velhinhas atravessando as ruas é a coisa legítima a se fazer com um carro. Essas cores fortes aparecem em Lionel Asbo, o que pode fazer pensar que tal inércia renitente seja não um defeito de visão em um magnifico mágico da escrita como Amis, mas uma parte de seu estilo, assim como a estupidez cósmica dos personagens de Beckett são uma das assinaturas de Beckett. Mas o cacoete de Amis está mais para um abuso no recurso dos filmes de terror nas cenas em que a mocinha perseguida por uma psicopata assassino cai por terra e demora uma eternidade para se levantar (enquanto o expectador fica silenciosamente gritando "levanta daí e corra, porra!"). Assim, fica a angustiosa pergunta no leitor do por que Des insiste em ser sobre- humanamente passivo, a um nível que diminui um pouco a verossimilhança da história contada. Assim, aceitando que os romances de Amis são distorções muito bem escritas, caricaturas que algum dia podem suscitar a interpretação icônica de uma nova forma crítica de enxergar o mundo dos homens, tais romances são leituras valiosas. 

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Sobre um conto de Bernardo Carvalho e um livro de José Saramago



Um dos pesos de consciência que tenho como leitor é jamais conseguir ler de cabo a rabo uma revista. Tentei várias vezes, mas sou incapaz desse exercício severo de disciplina. Sou um leitor bastante indisciplinado e, convenhamos, nessa altura da vida tenho que me resignar com alegria a esse traço irretocável de caráter. Meus amigos leitores da vida real, por ironia do destino, são patologicamente dogmáticos. Estava caminhando com um deles ontem e ele recuou um passo diante o susto ao me ouvir dizer que estava lendo cinco livros de uma vez. "Eu jamais faço isso", ele disse, "pego um livro apenas e vou nele até o final". E tem a questão dos sublinhamentos, que sempre pensei em fazer um texto específico sobre isso; nenhum desses meus amigos sublinham seus livros, enquanto eu risco, sem dó, usando uma régua e uma caneta respeitosas, todas as partes que me tocam e que, se eu não as individualizasse entre as milhares de páginas que tenho na biblioteca, jamais tornaria a rever a maior parte delas, ficariam perdidas para sempre. O que é que faz com que tais amigos não sublinhem seus livros? Um temor de que algum dia tenha que vendê-los? De que, se os emprestar, a pessoa portadora vai se incomodar com os riscos? Pois eu jamais venderei o menor e menos amado de meus livros, assim como raríssimas vezes empresto algum deles (também tenho uma opinião misógina sobre empréstimo de livros; trata-se de uma questão delicadíssima, na qual me vi muitas vezes vilipendiado pelo costume do vulgo em não dispender o mínimo respeito a livros, como se livros fossem sacolas de pão que não exigem melhores tratos do que jogá-los por sobre a mesa e consumi-los dentro de um prazo de validade; não empresto e não tomo emprestado livros, visto que sempre que tomo emprestado sinto a compulsão de adquirir o volume).

Mas esse texto solto e irresponsável de sábado, que escrevo não para o deleite dos esporádicos frequentadores do blog mas para retardar um pouco mais a inglória tarefa que tenho pela frente em limpar sozinho a casa (a patota chega de volta amanhã; qual música ouvir durante a limpeza?, tendente a Crosby, Stills & Nash, ou Crosby, Stills, Nash & Young, e mais um The Jayhawks que se casam bem com o ar chuvoso desse começo de sábado). Então vamos lá. Uma vez me propus enfim a ler toda uma revista Piauí. A começar pelo início_ sempre leio de trás para diante. Mas me detive diante um artigo sobre futebol, o que atrapalhou definitivamente o processo. Eu não leio nada sobre futebol, essa é uma das poucas certezas insofismáveis e bem resolvidas da minha vida.

Ontem me detive novamente diante um conto curto de Bernardo Carvalho, na edição da Piauí desse mês. Leitor sistemático da Piauí, mesmo pulando páginas, sei que há arranjos nessa revista para se fazer de interessante e cool que me causam bastante suspeita. E ver um texto do Bernardo Carvalho, curto, intitulado "Deus é burro?", me fez puxar mais uma vez o laço do cavalo. Não perderia tempo com um texto astucioso, colocado ali por obrigações compulsórias de ambas as partes, do autor e da revista (afinal, para o padrão da Piauí, que publica textos infindáveis, ter um de apenas duas páginas como aquele afirmava sua função de tamponamento de espaço sobrante). Mas eis que começo a lê-lo, o acho a princípio fraco, mas logo, lá pelo final, Bernardo (que é, mesmo na opinião desse insuficiente leitor de literatura brasileira que sou eu, o melhor de nossos autores, disparado) solta aquilo que já foi definido por um importante ficcionista metalinguístico, a "estocada repentina que o autor dá em seu leitor", aquilo que faz os cabelos da nuca arrepiarem e a mensagem ser entregue com catarse satisfatória e imprevisível. E o que ele disse, consubstanciava-se ao romance de Saramago que eu estava lendo, "O homem duplicado". Carvalho, das poucas coisas que li dele, sempre se me mostrou um autor profundo. Ele sempre tem algo para dizer, tocante, relevante, sério. Daí que foi essa fé de meu inconsciente que fez com que eu lesse o conto dele até o fim. O texto é mais uma narrativa em forma de prólogo a uma suposta obra de Blaise Pascal esquecida e recém descoberta pelo papa Francisco. É um exercício temático borgeano, (embora o autor se restrinja a não copiar o estilo de Borges), em que se é mostrado um Pascal de uma terceira fase de revelação mística cujo mote surpreendente é uma definição deísta que aponta para um total ateísmo. Até aqui, um texto bem costurado, sem sarcasmos ou humorzinho fútil de diversão, com um tom que beira coisas contundentes ditas por Dellilo e outros autores. Mas o que me provoca a catarse nada tem a ver com as questões religiosas levantadas. Talvez eu seja mesmo um leitor espantosamente lúcido e excepcional, pois adquiro daquele textinho toda a astúcia que Bernardo parece querer passar, usando a superfície inteligente da questão irrisória da contradição pascaliana. Bernardo está a falar sobre literatura e seus poderes em nossa época de boçalidade virtual, eu penso, mas como muito já foi dito sobre isso, muito se critica sobre a geração facebook e tal, ele, grande escritor que é, utilizou um escorço na escrita, caminhou pela senda muito caminhada para então dobrar por um atalho súbito e não visto; usou o tema da religião para falar sobre o quanto a linguagem vem perdendo seus condimentos históricos, suas nuances e suas riquezas. O Pascal de Bernardo é um Dimitri Karamazóv, um profeta niilista absoluto. Não sou adepto a citações, mas seria um crime se eu não colocasse aqui toda o grandioso coração do conto de Bernardo Carvalho:

"Pascal, nostálgico das suas façanhas de jovem inventor, imagina uma máquina de se expressar que leva os homens a tornar tudo imediatamente público, a começar por suas vidas íntimas, seus sentimentos menos elaborados. Os sentimentos mais egoístas, que antes só eram expressos na esfera privada, porque manifestá-los em público significa comprometer-se (uma vez que esses sentimentos também expõem uma burrice e uma truculência que já não disfarçam o objetivo de destruir tudo o que não estiver a seu serviço e a seu favor), passam a ser proferidos simultaneamente, com orgulho e empáfia, em alto e bom som. A vergonha e o pudor moral foram banidos desse mundo e não fazem mais nenhum sentido na distopia imaginada pelo filósofo. E, como em princípio cada um desses indivíduos, além de exprimir seu interesse incompatível com os interesses dos demais, também fala em nome de Deus e o define de um modo incompatível com os demais, sendo o que todos dizem, ao mesmo tempo, acreditar num único e mesmo Deus absoluto, como hoje dizemos da democracia, fica clara, a um só tempo, não apenas a exigência de uma igreja unificadora de sentido, mas que esse Deus simplesmente não existe nem poderia existir. Nunca."

E aqui entra as dificuldades que eu estava tendo para chegar ao fim de "O homem duplicado", de José Saramago. Trata-se de um dos mais elogiados romances de Saramago, convertido em cinema por um cineasta holywoodiano. Li até a metade com deleite, sentindo o quanto retornar à prosa do autor português era uma alegria. Encomendei-o pela livraria local e veio dois, e um de meus amigos leitores o comprou e marcamos de lê-lo em comunhão para futuras conversas. Mas empaquei na metade para o final. Uma pulga saltou-me para trás da orelha e me lançava mensagens sobre se Saramago ali não estava me enrolando. Se Saramago ali não era mais o grande escritor de romances recolhidos como o magnífico "O ano da morte de Ricardo Reis", mas um comerciante nobeliado que aproveitava da grife que se tornou seu nome para fazer mais uns excelentes trocados. Pois o romance parecia estacado em volta de sua própria cauda. E depois da leitura desse conto de Carvalho, volto com afinco para as páginas do romance de Saramago, já desconfiado do leitor de merda e de pouca fé que eu sou. (Aqui entram elementos subjetivos da leitura: o assustador preconceito de alunos portugueses da Universidade de Coimbra contra estudantes brasileiros, aparecido nos jornais nacionais há poucas semanas, e a troca ainda mais assustadora de xingamentos entre brasileiros e portugueses pela internet devido a isso; e um link que o Matheus me mandou por e-mail de um artigo de jornal português falando sobre o passado de possível comunista truculento de Saramago, quando Saramago era diretor do Jornal de Notícias de Portugal; tais notícias me indispondo sem que eu veja e pondere racionalmente o peso de tais questões, me enquadrando no diagnóstico pouco alentador do conto de Carvalho.)

Leio até o final "O homem duplicado", com ira, tentando enfim tardiamente me inserir nas fileiras dos leitores de correção militar e me ensinar à marra um pouco de ortodoxia. Dispenso os afazeres comprometidos do dia, coloco para tocar as sublimes sonatas para piano executadas por Ronald Brautigam, e me assumo em férias diante o romance de Saramago. E Saramago aqui me surpreende mais uma vez. Se durante a leitura venho medindo forças entre ele e Javier Marías para ver quem é o melhor, Saramago faz aqui o mesmo nível de mestria que Marías faz em "Os enamoramentos". Abandonar Saramago pela metade seria um erro enorme. O homem duplicado é uma obra fechada, seleta, minuciosamente construída, e que só revela seu sentido e coesão quando chegamos às belíssimas últimas páginas, assim como acontece com o romance de Marías. Ali a força da escrita renovada, o acontecimento gratificante da palavra, e uma das formas de levar os melhores genes adiante da humanidade, de confrontar sossegadamente a bestialidade do que jaz lá fora. Tudo o que Saramago ia fazendo que a mim parecia excessiva dedicação aos movimentos cotidianos de seus personagens, não era outra coisa que reafirmar conscientemente em sua arte o papel de individualidade em um mundo em que, nas palavras de Carvalho, força-se para imperar a "burrice e a truculência". Por isso eu, um leitor tão auto-arvoradamente primoroso, deixei escapar por elementos discriminativos vagos e vazios, o que Saramago estava a dizer, deixei que me faltasse a perspectiva certa para apreender o quanto profundamente significantes eram os movimentos de Tertuliano Máximo Afonso, o personagem do livro, em seu apartamento, em sua sala de aula como professor de história. É muito bom sentir o ensejo e a paixão da literatura legítima em tais exemplos com equívoca e maquiavélica roupagem trivialesca nessas duas obras.


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Leitura de intromissão



Não tive tempo nem de colocar este livro do Ginzburg aí do lado, na referência dos livros que estou lendo. Ele me chegou ontem à tarde, e me pus a lê-lo de modo compulsivo. São quatro ensaios absolutamente magistrais, no estilo tão próprio de Ginzburg, conciso, que promove um enganador problema temático a ser resolvido, e que ele resolve interpondo reflexões exorbitadas do contexto imediato acadêmico, deixando uma malha de insinuações sobre a forma de ver, de pensar, e o que nos espera pela frente no caminho em que a humanidade segue inconteste e nunca impune. Ginzburg é o que temos mais próximo de Borges no campo da historiografia: seus ensaios são curtos, fluídos, fáceis e deliciosos de se ler, mas exigem uma perspicácia incomum no que tem de perigosos. Falta-me precisas dez páginas para encerrar o livro, e em seguida, o mais tardar amanhã, estará aqui um texto meu sobre ele.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Um lugar limpo e bem iluminado


Meu resquício de destemor da juventude se ressente com dor quando eu olho em volta a casa vazia e descubro ter desacostumado com a solidão. Todos foram para a casa da minha mãe e eu fiquei sozinho em casa. Uma casa velha que se transformou em uma nova. Na verdade, destruíram a casa velha e construíram outra completamente diferente. Foram embora as paredes tarkovskianas as quais eu dedicava tanto amor, e desde quatro dias eu vejo paredes rescendendo brancura, pisos brancos por toda parte, janelas que abrem e fecham com uma facilidade emborrachada. Ontem saí do banheiro e senti como se estivesse em um hotel. Os quartos ficaram maiores, o forro foi trocado, o que era de madeira deu lugar ao geso. Minha filha direto chorava, na casa provisória onde estávamos, querendo voltar para "a casa amarelinha". Nem amarela ela é mais: ficou rosa por fora, no muro, e vermelha. Trocaram o portão gradeado, pelo qual éramos vistos sentados especulando sobre a vida, e colocaram outro, todo fechado, impermeável a qualquer olhar, tanto de fora quanto de dentro. Miles Davis odiou o portão, e seu silêncio nesses 4 dias revela um desbaratino em como ele vai achar o caminho para latir para os outros cães e perceber a aproximação de estranhos.

Comprei a casa por um preço bem abaixo do mercado. Caía aos pedaços. Comprei-a quando solteiro e não sabia que iria me tornar casado. Se soubesse, na certa teria sido diferente. Adoro casas antigas. Sou mesmo paranoico por elas. Fico horas olhando para elas; um de meus passatempos de adolescente era cabular as aulas e vagar pelas praças escondidas à procura desses refúgios anacrônicos vindos do passado. Há um eco, uma sacralidade, uma informação de impermanência, uma intuição forte e sempre imprecisa de relicários com cachos de cabelo e registros fotográfico esquecidos sobre desaparecidas tardes de sol com saúde, uma comunhão com o movimento de distantes vidas alheias gravadas já por inteiro nos desvãos do tempo. É como tempo tornado espaço. Tentei por anos entender a raiz dessa paixão. O mais próximo dela achei definido em um livro de Slavoj Zizek: tais paisagens são remansos deportados do capitalismo, exceções de existência eterna que nada mais tem a ver com o mundo. Isso me calou profundamente. Olhar ruínas era, então, entrar na eternidade, recolher-se no silêncio rumorejante de tantos fantasmas concluídos, flutuando no miasma de suas verdades alcançadas de que as grandes paixões e os sentimentos exacerbados de morticínio foram esvaziadas para sempre. Claro que a casa não estava em ruínas, era bem acolhedora, vivemos ali os melhores anos de nossas vidas, ali o choro do bebê, o engatinhar, os primeiros passos, os primeiros sorrisos: fui feliz de uma maneira concreta e inapelável. Daí a saudade que a Júlia tem da "casa amarelinha". Mas abria o precedente do exercício de olharem para nós pelo que a casa do lado de fora representava, o povo miúdo das velhas ideias prontas. Eu sabia que um dia as paredes tarkovskianas seriam trocadas pelas outras, e nos pusemos para fora, e juntamos dinheiro e fizemos financiamento para que a direção mudasse da poesia já usufruída com demora (a Dani, minha esposa, sempre muito paciente comigo) para a praticidade segura e confortável.

Hoje então acordo com a grande e nova casa vazia, e confesso que me sinto angustiado. O tipo de situação que cabe retirar de nós a exclamação do senso comum "como sinto o peso da idade", e nem por isso será o retrato incorreto da realidade. Ontem ouvi Lizard, do King Crimson, quando arrumavam as malas, e a beleza da música me deixou em estado adrenérgico: enfim, amanhã estando só, vou fazer uma compilação dos primeiros álbuns do Crimson e vou ouvi-los em volume proibitivo, vou abrir uma garrafa de vinho e fazer um mega-sanduíche de alcatra. Até os muros foram ampliado na altura, de forma que o Crimson não mais incomodará os vizinhos. Mas hoje acordo, abro as portas e me sento na varanda, tento ler as últimas 150 páginas de O homem duplicado que demorou dois meses para chegar na encomenda que fiz à livraria local, mas aí eu sinto minha desproteção. Assisto ao canal de séries até dar a hora do almoço, em que coloco o que sobrou da janta no micro-ondas, almoço e levo o ventilador à biblioteca (ou escritório pessoal), que não fica mais nos fundos da casa e que se tornou maior, e durmo por quatro horas. Quatro horas dormindo em uma tarde de sábado. Isso, há um tempo, era o diagnóstico de depressão para mim. Acordo porque me acorda o celular, a chamada da Dani para dizer que almoçaram com minha mãe, minha irmã, meus tios e não sei mais quem da família. Uma alegria esfuziante que me faz recuperar os ânimos: outro sinal da idade: meu prazer agora é mais intenso naqueles que amo, não mais o velho egoísmo de outrora.

Esse ano será o da economia. A casa nos obriga à contenção. Sobraram para mim, nesse mês, mas para meus livres gastos pessoais, sessenta reais. Posso fazer o que quiser com eles. Pois eu escolho o livro que mais vou precisar pelos próximos 3 ou 4 meses, e peço pela Estante Virtual o volume 3 das Obras Reunidas de Walter Benjamin, Um lírico no auge do capitalismo. Já tenho os outros dois primeiros volumes, e descubro que esse está esgotado nas lojas de novos. Pago 52 reais com o frete. Encontro 5 para a venda, dois deles mais baratos, mas como o que escolho é anunciado como novo, opto por pagar um pouco mais. Chega de livros por bons meses. Economia regrada. Os únicos gastos pessoas que tenho são livros e vinhos, e o que está reservado para hoje à noite será o último por muito tempo. Amanhã planejo escrever o que tenho que escrever o dia todo. Há muitos caramujos no quintal, hoje peguei uns trezentos, coloquei-os em um saco e joguei sal por cima. Há um silêncio enorme por sobre tudo, um silêncio de coisa limpa e arrumada, o silêncio de locais aprazíveis e iluminados por luz elétrica. Sinto muita vontade de rever Nostalghia; amanhã à noite o farei.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Mia


O homem mais saudável da Terra



Um dos pontos mais resignadamente espantosos do diagnóstico de Jared Diamond sobre o movimento inercial da humanidade rumo ao suicídio é esse em que ele diz que o problema do aquecimento global é exaustivamente conhecido por todo mundo, mas todo mundo age como se desconhecesse a dimensão real da tragédia que se avoluma. Agimos com uma festiva farsa diante a iminência de nossa destruição, como se nada na verdade estivesse acontecendo. É uma crença subliminar de que somos milesimais o suficiente para termos o direito de não usarmos a capacidade cerebral para o raciocínio direcionado pelos fartos sinais. Nada mais pavloviano em grande escala do que isso: repetimos incessantemente os gestos que nos definham como seres humanos, não interrompendo nem por um segundo nosso ataque sistemático contra a atmosfera do planeta que pretensamente julgamos dominar, mesmo tendo a inexorável certeza de as coisas como estão não poderão perdurar por mais tempo. Vejo pelo jornal de hoje que certo local próximo a Curitiba acaba de atingir a marca recorde de 50 graus Celsius de calor. Em Curitiba! E neste último final de semana, no centro-oeste, os termômetros marcaram 28 graus. Há algo de involuntariamente cosmético nessa inversão da crença estabelecida sobre o gráfico geográfico onde a zona azul do frio e a vermelha costumavam estar, como se, de repente, fizéssemos parte de um filme de Hollywood cuja fantasia catastrófica começou a ser acionada para nossa diversão na acolhedora poltrona do cinema. E talvez a metáfora seja séria demais para já não ser a própria realidade. Talvez já atingimos, com o excesso de telas coloridas que nos cercam por toda parte, um novo estágio evolucionário em que passamos a interpretar os eventos do cotidiano através da transposição ilusória de que vemos tudo pela instância dinâmica do cinemascope; só conseguimos atentar pela intuição de entender através da imaginação de estarmos enxergando através de pixels. Hoje mesmo, na imensa fila do banco, percebi, no enfado da espera e das horas roubadas da minha vida pela ineficiência mafiosamente trabalhada das instituições financeiras, que o que antes eram críticas que provocavam nos mais cordatos o constrangimento pelo celular que toca em volume altíssimo, e a fala descompassada e alta do autista que atende ao telefone, sem nem se importar de que esteja ofendendo os ouvidos dos que estão ao seu lado, antes o que era constrangimento não passa hoje de um modus operandi bastante tolerado, respeitado até. Se gritam pelo celular no meu ouvido, é porque o que detêm mais um desses apêndices naturais do homem do século em que estamos é uma prova cabal e relativamente bem sucedida de cosmopolita adaptado, consumidor salutarmente irredimível, que para se chegar ao fechamento de seu negócio de empreendedor, para se falar com a moça que leva e trás o filho herdeiro da escola à casa e vice-versa, um novo e sempre permutável modelo de celular é um instrumento de glória indispensável que abaliza a atitude geral de se fazer surdo à antiga ofensa, de modos que é tão louvável o ruído inconteste por todo o espaço natural e espiritual do banco, é nesse ruído que eu mesmo identifiquei o convite para uma paz de espírito. Senti mesmo um acolhedor pertencimento na estapafúrdia de sons que adormeciam minha crítica e me fazia simpático ao que antes me era algo que tirava por completo a paciência.

Semana passada, em meu último dia antes das férias, comendo um pão de queijo e bebendo um chá de erva cidreira, ouço o senhor octogenário que pediu licença para se sentar à minha mesa dizer o quanto estava fazendo calor. Seu desalento em dizer "estamos acabando com o mundo, se queima tanto e se produz cada vez mais carros e carros" era tanto um suspiro de estoicismo quanto um fundo residual de alegria por estar perto o dia em que não pertencerá mais a esse mundo, não será mais um problema seu e nem dos de sua geração. Eu engoli o chá e lamentei que fosse de um senhor com essa idade que eu pudesse escutar um lamento tão carregado de nostalgia. Estamos todos morrendo, e estamos felizes por não fazermos nada. A lamentação já perdeu seu estágio mais adiantado de consolo, e virou somente um resmungo, a mesma desfuncionalidade esvaziada que determinou que se tornasse um cacoete nacional a análise popular do clima na Inglaterra. Quanto tempo mais nos será dado para que essa exclamação se torne um sacramento cívico? Ou será que já é?

Um conhecido de um amigo meu, que lhe vendeu um carro modelo 2008, ofereceu para esse meu amigo seu carro modelo 2010; quer trocá-lo por um modelo 2014. A meu ver, em minha retrógrada capacidade de análise, isso seria uma compulsão. Mas a maioria das pessoas que conheço, inclusas aí minha irmã e mãe, agem da mesma forma. Minha irmã tem como plano mais fundamentado a curto prazo acabar de pagar o financiamento de seu carro para, imediatamente, entrar com outro financiamento para adquirir um carro zero quilômetro. Há duas semanas passou dois dias aqui em casa um tio que fora morar nos Estados Unidos. Quando a Dani me avisou que viria ele, minha mãe e minha irmã para passarem um final de semana aqui, eu já de antemão me preparei para vencer a depressão que me abate ao ver minha frankesteineidade devassada tão cruamente. A última vez em que estive com esse meu tio, ele me deixou bastante para baixo. É o tipo que olha os objetos da casa e o desmazelo que o acolhimento familiar constrói com cúmplice felicidade, o tipo intrancedente. O homem mais provido de saúde da Terra. Para ele, tudo que não for grana, status social e poder sexual galinídeo, é doença e perda de forças. Conservar darwiniana a força é trabalhar para que tudo isso encha a vida de alto a baixo. Tendo isso com fartura, ele pode se instalar em uma teia de satisfação e hibernar na conservação de sua força vital, igual a uma aranha, ou como um leão-marinho ao sol. Daí que ele chega e o final de semana está irremediavelmente perdido. Falar sobre o quê com uma criatura que exala perfeição destas? O jeito é sair pelos bares e pesque-pages, inflar sua digestão, colocar em overdose suas papilas gustativas e os pelos minúsculos de seus minúsculos músculos tegumentares diante a brisa que vem das árvores da praça ao pôr-do-sol. Esse filósofo pós-filosofia tão certo de seu estágio avançado na escala final das razões sociais. Mas ele pegou mais leve comigo, talvez por advertência da minha combalida mãe (o Charlles é um fundamentalista, não estraguemos a coqueteria necessária do fim de semana com olhares críticos enviesados). Vieram no carro da minha mãe, de forma que quando falo em sair ele pega a chave do carro e me dá, antes que eu proponha irmos em meu veículo de quinze anos de uso. Ao se sentar na sala, de frente à televisão com a onipresença santificada da Globo, ele diz que os médicos lhe disseram para pegar garotas novas e fazer exercícios, que esse é o segredo da longevidade. Sua esposa nativa (ele tem uma outra, em sua bigamia bem conhecida aceita desde que ninguém demonstra saber do assunto) amua-se diante a piada, e eu não perco a deixa: "então seu futuro já está garantido, já que você já faz as duas coisas há muito tempo". Ah esse Charlles é um gozador! Tem 58 anos, e parece que vai viver para sempre. É um leão na savana, um senhor que merece todos os respeitos, além da crítica. Sua esposa se encolhe para fazer todos seus desmandos gentis, só lhe basta a cara de sofrimento resignado que estampa ora aqui e ora ali mais como reação aos possíveis pensamentos impuros sobre sua situação que possa vir de nós.

Jared Diamond me consola um pouco ao dizer em Colapso que a diferença entre pessoas como esse meu tio e eu é o curto prazo de sobrevivência de um sobre o outro. Os mais adaptados terão o benemérito de serem os últimos a morrer. Esse meu tio não quer voltar para o Brasil. Trabalha das oito da manhã às onze da noite, de domingo a domingo. É um cidadão nacionalizado da América, dono de um pequena empresa. Quando eu lhe pergunto qual seu passatempo lá, ele diz não ter tempo para o ter. Lembra, como num estalido, que foi à China com um amigo. Ficou dois meses lá. Um assunto que poderia ser tão rico e salvador, e ele só diz que a China é muito rica. Só isso, sem fotos, sem nenhuma observação feminizante ou doentia sobre detalhes exorbitantes de sua saúde intranscedente. Sorri com descansada alegria. O último a morrer, que privilégio. 

Vida querida, de Alice Munro



O mais certo é não acreditar nos jornais e revistas. Cada dia mais vejo que as opiniões sobre literatura e escritores que partem dessas publicações ou vem de profissionais que não gostam de leitura, ou de acadêmicos cuja ambição mal sucedida é construírem algo novo e original usando o livro como base. Desse último exemplo vi um ensaio na revista Cult sobre Ar de Dylan, romance recente de Vila-Matas, que tinha o absurdo talento involuntário de não dizer absolutamente nada, de não servir para o esclarecimento do leitor sobre o livro em foco, e de ser apenas um rocambole da pretensão do articulista em sofismar para o vazio.

O que se fala de Alice Munro na imprensa cabe no primeiro modelo de tratamento acima. Propagou-se que a nobel do ano passado era o Tchécov moderno; li na Veja um artigo apontando que os contos de Munro são repetitivos e que falam demais em doenças e em mulheres solitárias; em não sei que outra publicação fala-se que Munro tem um inequívoco traço em comum com Raymond Carver. O que sei e posso falar como leitor é que há muitos erros e más intenções nessas críticas. Li Fugitiva e Vida Querida, ambos lançados pela Companhia das Letras (embora o primeiro esteja esgotado e já fora do prelo, à espera de relançamento pela Editora Azul), e descobri que ninguém mais longe no ramo dos contos que Munro de Tchécov. Os contos de Tchécov são carregados de uma ternura cruel, de um humor ferino e desolado, de uma limpidez e clareza de compreensão. Uma das grandezas de Tchécov é ser um escritor descomplicado ao extremo, mas sem que isso recaísse em didatismo ou simploriedade. É um tanto leviano falar de Tchécov, já que ele é uma das maravilhas da literatura. Mas aqui cabe salientar essas coisas para ressalta meu espanto ao ver que tentam vender Munro de forma errada, pois quem ama Tchécov (todo mundo que lê) pode muito bem chegar a Munro por essa ilusão e passar a odiá-la.

Os contos de Munro são complexos, apesar da simplicidade e quase total despojamento da escrita, adotam quebras repentinas de ponto de vista e recorrem ao estratagema de desmentir na cara do leitor as verdades antes apregoadas sobre os personagens. Isso, confesso, me desbaratinou no início, sobretudo nos primeiros contos de Fugitiva. A autora nos dá as mãos e nos leva por um caminho tido como seguro, para, covarde e sardonicamente, nos abandonar logo em seguida. Tchécov jamais faria isso. Mas isso é uma das vantagens de Munro, é o estabelecimento escolhido por ela para se inserir na narrativa moderna. No conto Fugitiva, vi isso com mais maestria_ aliás um conto excepcional!_: somos levados a crer na perfídia de um plano de extorsão, somos deixados desabrigados no centro da história, estamos na iminência de vermos o golpe realizado, até que tudo vira um assombro em que questionamos nosso entendimento quando a linha reta se encurva e segue outro caminho no final. Tive que reler as última páginas para confirmar a coisa. Em Fugitiva, em todos os oito contos, fica notório porque deram o Nobel para Munro, e porque gente como Javier Marías tece loas para ela (Munro é uma das dignificadas a pertencer ao Reino de Redonda, do qual Marías é o atual monarca).

Já sobre a repetição acusada no artigo da Veja, vi isso como um machismo involuntário (é uma mulher quem escreveu o artigo). Todos os escritores são repetitivos, porque Munro não poderia ser? A maioria dos escritores produzem suas obras desnovelando um só e único assunto, e se Munro fala muito de doenças e solidão (principalmente em Vida querida), esses assuntos são obsessão de Philip Roth e vem sendo usado em seus últimos dez romances. Vida querida é bem menor que Fugitiva. Os personagens não são tão convincentes e o enredo peca por desnutrição em alguns pontos. Mas mesmo assim são contos que tem muito o que dizer, são exercícios vorazes de uma velha escritora por continuar a perseguir o enigma que lhe motivou a começar a escrever. E, só a última parte, composta por textos confessionais e declaradamente auto-biográficos, já vale o investimento no livro. Aqui vemos o valor de Munro por uma ótica diferente da criadora de labirintos prosaicos de Fugitiva, por sua sinceridade e sua facilidade. Também não vi nenhuma semelhança entre Carver a Munro. Descontando o óbvio minimalismo, que conceitua a maior parte dos contos de Carver, e no qual Munro não se enquadra em nada, Carver só serve como referência para Munro pela estima declarada dela por sua obra. 

Em nossa época, e superficialidade dos difusores de opinião vende a ideia de que leitura é entretenimento. A alta literatura não é entretenimento. O prazer é uma ocorrência secundária. Munro não é Dan Brown (aliás, tentei ler Brown e fiquei profundamente entediado). Passei muitas horas de prazer lendo esses dois livros. Fugitiva é uma ótima iniciação. Vida querida tem artificialismo e a repetição dos possíveis cacoetes de uma vida inteira dedicada à escrita (como o tem A memória de Shakespeare, do velho Borges), e bons textos auto-biográficos.

Um outro ótimo ponto de vista sobre Vida Querida, pelo Carlinus, aqui.

Clã



Um de meus poucos amigos intelectualizados por aqui é um advogado que dá aulas de filosofia na faculdade. Fui seu aluno há 15 anos (entrei na faculdade de História em 1999, me mudei da cidade, fui jubilado, e em 2004 voltei a me ingressar nela passando mais uma vez no vestibular). Recordo com nitidez que nos primeiros dias em que estive nessa cidade, ainda acabrunhado e espantado pela ultra-realidade que as cidades desconhecidas oferecem aos forasteiros, eu o vi sentado na sala de espera de um Banco. Eu estava na fila e não conseguia desgrudar os olhos daquele senhor que era um anacronismo visual no meio daquela gente tão ocupada com seus negócios domésticos. Um senhor de barbas bem cuidadas, encanecidas com esmero, magro e vestido com sucinta praticidade (camisa social e calça de brim, que na certa mal chegasse em casa trocaria com alívio pela bermuda, chinelos e camiseta), e, espanto!, de pernas cruzadas à inglesa lendo serenamente um livro. Seu nariz aquilino e seus óculos de armação fina lhe davam uma parecença com Sean Connery. A primeira impressão, ou a segunda, visto que a primeira foi a de que ele se tratava de uma bela espécime de animal, foi que ele emanava uma áurea de pessoa temível. Tranquilamente ele parecia seguro de seus poderes intelectuais que garantia uma liberdade em estágio de plenitude superior acima daquelas pessoas. Senti muita vontade de falar com ele, mas esse temor do contato súbito me desmotivara. Fiz malabarismos discretos para ver se lia o título do livro, mas me foi impossível.

Era Admirável mundo novo, ele me disse quando estávamos sentados na varanda de sua casa. Na época os únicos livros que eu havia lido do Huxley foi o Contraponto, do qual nutria uma intensa admiração, e aquele ensaio sobre o ácido lisérgico que ajudava a que a crítica desconstrutivista me convencesse que talvez fosse bom que deixássemos esse velho inglês em seu devido lugar no esquecimento. Ele me repreendeu, dizendo que Admirável mundo novo era um dos livros do século e uma obrigação de leitura para toda pessoa esclarecida. Eu já me acostumara com seu tom peremptório, de quem sabe que é dele por direito a última palavra, e sua idade e seu inequívoco amaneiramento permitia que ele a soltasse com gentileza, depurado a prepotência quase automática que anos de convívio com uma cidade encalacrada na torpeza do senso comum havia lhe criado. Ele me emprestou o Huxley, e isso, ainda penso hoje, foi o gesto definitivo de aceitação da nossa amizade, visto que era notório que ele jamais emprestava livros para ninguém (sabendo disso, o Huxley foi como um tubo de estricnina pelas duas semanas que estive com ele, tamanho meu receio de que eu não estivesse à altura da manutenção daquela honra). Mas ele era bem mais simples do que parecia; na verdade, à semelhança de outro amigo em comum que tínhamos, o Gahleb, ele era um dos únicos homens que eu conhecia que havia planejado milímetro a milímetro sua personalidade social, no intuito de preservar por completo sua verdadeira intimidade. Não cumprimentava as pessoas; andava impavidamente, altivo, e todos já sabiam que ele não usava do artifício das perguntas prontas para saber as inúteis informações se o outro ia bem de saúde ou se iria dar bom tempo para aquele dia. E ele fazia isso com uma magistral leveza, de forma que nunca foi tido por esnobe; se percebessem bem, ele simplesmente não cumprimentava porque ia assoviando baixinho uma serenata e olhando adestradamente aos pássaros.

E ele também era um esquerdista roxo, ortodoxo e decidido. Algumas vezes o pega pra capar entre nós quase transcendia os limites da amizade, mas nunca ia além, o que era outro abalizamento do que sentíamos um pelo outro. Tivemos uma discussão à distância, que soou dramática para as pessoas que nos assistiram, mas que a nós, retroativamente, era bastante cômica, uma noite em que um monge agostinho veio realizar uma palestra em nossa cidade. Os alunos e os curiosos desocupados de sempre aportaram em peso no salão da faculdade, e quando o monge começou a falar uma série de truísmos idiotas sobre Cuba e sobre Fidel, da ordem de que Cuba estava bem mais perto do céu do que o Brasil e de que Fidel era um iluminado de deus, eu me vi em pé rebatendo essas sandices, o que motivou que o advogado se levantasse do outro extremo da platéia e por sua vez me devolvesse com severidade o rebate de minhas opiniões. Acabou que ninguém ousava contradizê-lo, de modos que quando pediu as palmas para o maior político do século XX (Fidel), todos se bateram palmas imediatamente. Foi uma bruta de uma provocação e confesso que, de pirraça, eu esperei que ele viesse a mim com seu sorriso sarcástico no final da exibição.

Outro detalhe é que ele conserva o mesmo carro que tinha desde que conhecemos, um Gol quadrado vermelho. Ele possui uma chácara deliciosa onde mora, no alto da serra da cidade, com uma casa que é um espetáculo. Sua esposa é um doce de pessoa, enquanto seu filho é um reacionário indigesto que parece ter a missão de expurgar os pecados de soberba da família, e sua filha é uma psicóloga que puxou a simpatia da mãe. Ele vive a vida que sempre quis, isolado da sociedade, mas sem se extrair dela. Esnobe no sentido de que preserva sua integridade contra a vulgaridade, e tem uma história pessoal que revela enfrentamentos com a polícia e refregas homéricas contra a ignorância local. Você não conhecia como era isso aqui na minha juventude, ele me disse certa vez, antes de viramos cada qual uma dose de sua pinga de engenho, e por aí vi que seu filho era a parcela de seu sangue que programaticamente só aquiesceria depois dos 50 anos.

Ele foi ficando velho e nós passamos, não sei porque, a nos vermos pouco. Certa vez imprimi um jornal, pelo simples medievalismo da coisa, e ele escreveu um conto para que eu ajuntasse à publicação. Ele escreve contos certinhos, muito bem escritos e bem humorados, e que nunca pediu a opinião de ninguém sobre eles. Só me repreendeu quando lhe disse que não teríamos um segundo exemplar, dizendo que tais jornalecos tinham que ter por direito uma segunda edição só por birra.

Necessitava vê-lo nesse final de semana. Subi a serra e bati-lhe à porta. Como naquela música do Roberto Carlos, tudo estava igual a como era antes. Ele um tanto mais magro e com uma certa erraticidade nos gestos, que me fez pensar na miséria da vida, mas ainda forte, ainda perspicaz, ainda um monumento moral e intelectual. Precisava vê-lo pois eu havia tido uma conversa com um colega e precisava me depurar do nojo que sentia. Esse colega defendia um caso de corrupção local que de certa forma me envolvia. O caso é que um dos motivos que pedi demissão do colégio particular onde eu lecionava, foi que o diretor dessa instituição fraudara um documento em benefício de uma aluna, fazendo com que ela ganhasse uma bolsa integral para cursar medicina na mais cara faculdade do estado. Por seis anos, a federação pagara para a moça a mensalidade e lhe dera mais um bônus de alimentação e moradia de um salário e meio por mês. Tudo porque o diretor assinara um documento dizendo que ela cursara o colégio como bolsista, tendo feito todo seu ensino em escola pública (o que é requisito para tais bolsas). Esse meu colega (tá bom, mais uma vez, se trata do N.), afirmava que não via erro algum nisso, que ele mesmo faria tal coisa em prol de um filho, se o tivesse, e coisa e tal. Errei feio ao me incomodar com isso. Sempre sei que diante tais pessoas o melhor que se há de fazer é virar as costas e seguir meu caminho calado. Conversar com tais pessoas me esvazia e me causa uma instantânea infelicidade. Pois eu jamais faria isso para um filho meu, lhe respondi, sabendo que a frase certa seria "jamais faria isso com um filho meu", mas o tal não acreditou. Tão enxovalhado na prostituição que não consegue ver que possa haver pessoas que pensam e agem diferentes dele.

De modos que falar com esse meu amigo me renovou os ânimos.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Num estado livre, de V. S. Naipaul



Talvez nossa época seja a mais rica em escritores velhos que anunciam sua aposentadoria em toda a história da literatura. Poderíamos usar um truísmo fácil e não estaríamos incorrendo tanto assim no erro se disséssemos que nunca houve tantos escritores octogenários como hoje. Há algumas semanas, foi o octogenário Gunter Grass que anunciou sua aposentadoria, após ter feito o mesmo a Alice Munro, o Philip Roth, o Imre Kertész e o Garcia Marquez (este compulsoriamente). Herman Hesse, em seu O lobo da estepe, já escrevia, de frente ao busto de Goethe, que há algo de francamente obsceno em um escritor que chega aos oitenta anos. Thomas Bernhard, por sua vez, afirmava que chegar mesmo aos 50 era um ato de incompreensível rendição à bestialidade do mundo. Afora esse relativismo em um ou outro grau quanto à tendência da faixa etária andar de mãos dadas com o misantropismo ou com a malemolência ideológica, é notório que a idade avançada oferece uma mudança de perspectivas para a maior parte dos escritores, em que eles se confrontam com uma necessidade de readaptação ainda mais desmotivante por requerer uma nova originalidade que os afaste das armadilhas da auto-repetição ou da escrita mecânica. V. S. Naipaul, também octogenário e também aposentado, segue por um isolamento que em muito tem de semelhante com o de seus parceiros de profissão, no amargor e na desilusão com o mundo moderno, mas com uma forma de repúdio nova no que tem em seus ataques à instituição das letras inglesas e na auto-imolação de seus pecados.

Na polêmica biografia de Naipaul, escrita por Patrick French_ uma biografia dita "autorizada", e que o próprio Naipaul antes de virar as costas para ela admitia isso_, há um retrato desalentador do homem por detrás do escritor. Um Naipaul martirizante que não dispensava da violência no trato com suas ex-esposas, e com tanta negrura sobressalente em seu caráter cotidiano que assinalava que ele, obedecendo a ciclicidade que recria em desmascaramento escritores antes tidos como modelos de honra, era o novo Céline, o novo Mann, o novo Sartre da vez (todos esses, por diversos motivos, caídos na fogueira de seus próprios passados). A diferença é que Naipaul não gastou um segundo sequer de seu tempo em desmentir o que havia em sua biografia; pelo contrário, aquilo serviu para que ele abrisse as comportas e deixasse sair uma negrura ainda maior. Ele praticamente disse o que por nossas terras brasílicas é comum ouvir de entidades políticas do passado: me esqueçam! Disse que o meio literário inglês nunca o tratou à altura, que ele sempre foi considerado uma espécie de aberração colonial, que nunca o engoliram, mas só o aceitaram em nome da fria educação britânica. Essas palavras, proferidas na série de seus últimos aparecimentos na imprensa, serviram para tornar a biografia do monstro um best-seller internacional, o que nenhuma mente voltada para a paranoia dos arranjos promocionais do mercado de livros cogitaria que Naipaul as dizia para o benefício do aumento do número de vendas; ele mesmo desapareceu em sua velhice conformada depois disso e não voltou a dar as caras.

Para um leitor antigo de Naipaul como eu, por mais estranho que isso possa parecer, não houve surpresa nenhuma no ressentimento declarado desse autor. Li quase todos seus livros (99% deles, posso dizer), alguns li mais que duas vezes, e aqui percebo que o estardalhaço feito em torno daquilo que pode ser tido como uma personalidade maligna até então não descoberta é uma tolice de quem não o leu ou o leu superficialmente. Toda a sua misantropia e sua acidez contra o Império britânico, e toda sua decantada visão sobre a América e a África pós-colonial, estão em seus livros. Seus livros são tratados sobre o poder que a dominação histórica e política tem para corromper as almas dos dois lados do jogo de comando. Assim como foi despropositado a reação retalhadora contra Gunter Grass quando esse escreveu em sua auto-biografia que servira às frentes nazistas por um curto período na juventude. Quando vi a fogueira feita na imprensa contra Grass, o primeiro pensamento que tive foi mas todo mundo já não sabia disso? Em Anos de cão não haviam sinais mais que contundentes afirmando isso? Ninguém conseguiu ver que Oskar Matzerath, debaixo dos palanques em que ouvia o führer, ou debaixo da mesa em que via a concupiscência do povo alemão daqueles anos demonstrada pelo pé do amante entrando pelos entremeios da saia de sua mãe, dizia com mais eloquência e fatídica simplicidade o que estava tardiamente anunciado na auto-biografia?

Naipaul alegar ter sido tratado como um colono desigual e apiedante pelos seus páreos na literatura inglesa acaba sendo revalidado pela forma com que sua obra parece ter sido mal lida na Inglaterra. Em uma literatura cuja característica secundária (mas veemente) ser a de seu hermetismo voltado para dentro de sua própria relevância patriótica, o lugar de Naipaul no interior dela ainda é uma questão não definida e obscura. Mesmo que na maioria das listas dos grandes autores em inglês da metade final do século passado ser dividida em seus dois primeiros lugares entre Naipaul e Bellow, e mesmo com a grande fama e reconhecimento de Naipaul como uma espécie de embaixador exilado com voz proeminente sobre o subdesenvolvimento alcançadas há alguns anos, Naipaul parece sofrer um processo de decrescente teor de relevância no mundo que seguirá após o seu desaparecimento físico, um mundo onde seus personagens tirados da realidade de mazelas morais e nada auto-afirmativos do pós-colonialismo parecem sem lugar na globalização revestida de gloriosa procura por sucessos financeiros. Não é um sinal a ser desprezado que Naipaul é pouco citado na literatura inglesa: tirando os ensaios primorosos de Edward Said que o elevam e o desbancam como protótipo reconhecível do intelectual exilado que fala a verdade ao poder, o que conheço é que Martin Amis o cita em uma passagem de Campos de Londres sobre descrições feitas por ficcionistas sobre sexo anal. Naipaul parece ter conquistado um curioso ponto cego em que ele existe com toda sua excelência e superioridade sobre os demais, mas cujo misto de fatos mundanos de origem, cor e visão o congelam em um adorno paulatinamente sem expressão.

Será isso verdade? Em uma crônica de Garcia Marquez sobre literatura centro e sul americana, um dos amigos do escritor colombiano o lembra que Naipaul também é um escritor caribenho. Não é sem estranhamento que se lê sobre essa verdade básica: Naipaul é tão passível de ser classificado como escritor caribenho quanto Garcia Marquez, nascido que é em Trinidad e Tobago e sendo que parte considerável de sua produção fala sobre a realidade desse país. E, para ressaltar com certa dose de comicidade fantástica o caráter de leveza conceitual de Naipaul, talvez ele seja menos conhecido nas América do que é lá fora. Deveria-se falar mais de Naipaul por aqui, tendente a nossa imprensa literária à maledicência como é, pois a leitura de seus livros se presta a uma acusação da miséria moral, do imobilismo e do estancamento espiritual, da falta de redenção dessas nossas terras, em nível mais sem eufemizações que o de Vargas Llosa. Por aqui se perde muito em não saber o quanto seria bom falar mal de Naipaul.

Um exemplo pontual da excelência e da superioridade de Naipaul está em seu volume de contos lançado com um atraso de 42 anos pela Companhia das Letras ano passado, Num estado livre. É um dos livros mais aclamados e conhecidos de Naipaul, ganhador do Booker Prize, e um ótimo cartão de apresentação para quem queira se iniciar na leitura desse monumental autor. Antes de mais nada, as circunstâncias de sua publicação no Brasil podem demonstrar o quanto tem-se a tendência de vilipendiar a importância de Naipaul. Lembro-me que, no ano de publicação de um dos romances menores de Philip Roth, Fantasma sai de cena, li em certas plagas conceituadas da internet a eleição desse romance como "a melhor publicação nacional do ano", além do que a imprensa dedicou certo esmero em sua divulgação. Quanto a Num estado livre, uma das maiores realizações de Naipaul, pouco se acha a respeito na internet, além de uma ou outra opinião pequena, e a imprensa simplesmente o ignorou (bons tempos em que a imprensa ainda comportava personalidades ambíguas como Paulo Francis, que, por mais que se  possa dizer contra o formalismo de suas opiniões, ele podia se alardear como jornalista voltado para a literatura_ e Francis foi quem me levou ao desconhecido Naipaul, por ser um de seus autores preferidos). Pois Num estado livre é, de longe, o mais bem escrito livro lançado ano passado no Brasil, com uma linguagem precisa, uma clareza de imagens que já na primeira página demonstra o potencial de Naipaul, com personagens complexos e viscerais, e com uma fluidez na leitura que é uma das preciosidades em mostrar o quanto a leveza serve ao estranhamento (o livro é cheio disso que se convenciona perceber como subníveis de leitura, como espaços voluntariamente vagos para a interpretação, com opressivos silêncios de trivialidade).

É impossível ficar incólume diante as 17 páginas do conto-prólogo que abre o livro, intitulado O vagabundo no Pireu. Nessa peça tudo é trabalhado para não se ter nada ali. Uma simples narrativa sobre a empáfia mal disfarçada de um vagabundo numa travessia de navio. Não se sabe nada sobre ele, e ele é tão insignificante em sua graça grotesca que se torna centro dessa narrativa em forma de diário apenas como procura pelo que contar entre situações de náuseas de viagem e suportamentos sob o sol escaldante. Os demais contos, mais encorpados no centro entre esse prólogo e um epílogo retirado do mesmo diário, na soma de três (sendo o último uma novela mais longa homônima do título), continuam a temática sobre a não-representatividade dos personagens. Em Um entre muitos, temos um empregado indiano que parte com seu patrão para viver em Washington, no segundo, Diga quem tenho de matar, dois irmãos saem de uma ilha caribenha para tentar a vida em Londres, um deles no serviço pesado para garantir o sustento do outro em uma improvável carreira universitária; no terceiro conto vemos um homossexual atravessando de carro na companhia de uma mulher um país africano em guerra civil tribal. São peças que beiram a perfeição, em uma pureza flaubertiana. Os dois primeiros contos dão ao leitor, de onde quer que ele seja, a impressão agoniante de estar dentro dos personagens, e com eles se ver abandonado em um mundo cruel em que os afazeres pessoais de uma civilização babélica mata não por ações de violência ativa, mas por um desprezo tão cabal e impessoal por vir da corrente determinista de história. O determinismo é o fulcro dessas narrativas: por vezes o leitor acredita que os personagens descambarão para o terrorismo e o assassinato, mas a calma e pesada rotinização das convenções desproteiniza os personagens ao ponto de uma quase inexistência, de uma invisibilidade ellisoniana. É esplêndido o controle da voz de Naipaul neste livro: ele sofreu tudo pelo que passam seus personagens fracassados, e sua frieza, pela própria afirmação de existir em sua escolha em escrever essas palavras, é uma forma de demonstra carinho para esses números humanos que são engolidos sem piedade pelas estatísticas, pelo seguramente sadio na normativa rigidamente funcional da ortodoxia sociedade-política. O livre do título é algo que está bem acima da ironia: é uma dessas verdades exorbitantes afiadas pela sua infalível precisão. O que pode preocupar é se essa narrativa, e a série de romances e livros de viagens e ensaios que Naipaul produziu em seguida, sãos os últimos que a atual situação do mundo comporta receber. Naipaul fala da farsa da independência, das marionetes servidas ao rearranjo do poder por parte das mesmas forças de dominação, só que seus personagens sequer esbarram com esse poder: são mostrados em sua asséptica posição de seres descartados suave mas determinadamente pela história, em seus últimos momentos, de maneira quase sem drama e sem tragédia. É uma ternura única essa do velho misógino resignado em seu refúgio londrino.


Rock ostentação


Há uma parte em Era dos extremos em que Hobsbawm escreve que os Beatles produziam uma música com estrutura musical reconhecível, eufônica, garantindo com isso uma certa imortalidade para os anos vindouros, mas quanto à música dos Rolling Stones, ele diz, ela é um pastiche perecível do blues feito por grupos de jovens negros da década de 50, uma imitação fraca e um quanto ridícula que decretava que os Stones estariam esquecidos dali a algumas décadas. Esse trecho nada afetou o fã incorrigível dos Stones que eu era quando o li, aos meus vinte e poucos anos de idade, mas anos mais tarde, quando li o livro sobre jazz do grande historiador alexandrino, vi que o gosto de Hobsbawm era um tanto dogmático para a música de improvisação, um tanto retrô e de costas para as revoluções que surgiram nessa divina música negra e que Hobsbawm podia muito bem intuir mesmo no meio da década de 50 em que escrevia o referido livro. Para o Hobsbawm da década de 50, o auge do jazz era o jazz de câmera de Duke Ellington, um jazz limpo, ainda apoiado na partitura. Na minha análise (um tanto rasa), isso explicava porque Hobsbawm aceitava como legítima a música dos Beatles, por sua limpidez e sua relojoaria em que tudo parecia estar no lugar, e rejeitava a música dos Stones, em seu cacofonismo e sua sujeira de fundo. Na mesma linha pre-conceituosa e imprecisa da minha análise, o gosto de gentleman do historiador era limitado pelo jazz ordeiro e conceitual que vinha dos grandes salões de baile (ele diz em sua auto-biografia que foi tomado pela força do jazz ao assistir Duke Ellington em Newport), o que impossibilitava que ele aceitasse que, de um certo ângulo de vista, os Stones podiam ser mais indelimitados pelo padrão da música comercial, com suas minúcias travessas de grandes instrumentistas, do que os Beatles, por mais que os Beatles foram quem direcionaram todas os caminhos da música pop nos anos 60.

Falar dos Beatles e dos Stones me faz usar luvas de pelica. Certa vez a Marília Gabriela perguntou ao Paulo Coelho de qual dos dois ele gostava mais, e ficou surpresa ao ouvir do mago que ele gostava mais dos Beatles. Eu jurava que você diria que era os Stones, porque eles foram mais audaciosos e ousados que os Beatles, ela diz, ao que o sábio mago (ao menos dessa vez), responde com absoluta confiança de entendido que os Beatles foram bem mais revolucionários que os Stones, foram os Beatles que criaram a música psicodélica, que abriu as portas para o progressivo, que inventou o hard rock em 1968 (Helter skelter), que isso e aquilo..., enquanto os Stones, ditado pelas premissas do mercado fonográfico, até um exaustivo tempo, só fazia copiar os Beatles, da forma mais descarada possível. Concordo plenamente. Os Stones era uma cópia dos Beatles, ainda que enormemente talentosa, e só alcançaram a grandeza insofismável quando decidiram plena e libertariamente serem eles mesmos, com o magnífico Exile on Main Street. Como um crítico disse, Exile é cheio de música suja e sublime, um álbum duplo muito mais belo que a chatice do álbum branco da turminha de Liverpool. Concordo. Exile foi um dos marcos espantosos de minha vida de ouvinte de música; é o melhor disco de rock de todos os tempos, e continuará inalcançável.

Muito provavelmente eu fale com essa levianidade sobre os Beatles porque me encontro num estágio de saturação de tanto ouvi-los. Há uns dois ou três anos não os ouço mais, aguardando que as baterias do amor sejam recarregadas. Há três anos não me seria fácil dizer que o álbum branco é uma chatice. Mas também, fazia três ou dois anos que eu não escutava mais os Stones. Para ser sincero, nesse período meu gosto pelos Stones se atrofiara consideravelmente. Cheguei mesmo a achar o Jagger e o Richards um porre. Principalmente o Jagger. Pelo tanto que ele fala mal da própria banda, aquilo acabou me convencendo. O cara não poderia sair por aí dizendo que é tudo comércio, que tudo foi feito simplesmente pelo dinheiro. Isso é horrível para um fã. Isso é horrível para uma música que veio do ideologismo dos sessenta. Paint in black ter sido feita simplesmente pela grana (um outro Paulo, o Francis, disse que essa canção era a maior crítica contra o Vietnã). Acabei acreditando. Tá bom, Mick, então faremos as coisas de seu jeito, mas o jeito foi passar a tratar os Stones como os macacos de palco que eles pareciam ser. Deixei de ouvir os Stones.

Até ontem, quando os pedreiros vieram nos dizer que poderemos retornar à nossa casa na segunda-feira, após meses em que estávamos deportados em outra casa aguardando a reforma. A turma daqui me deixou sozinho à noite, e eu, em comemoração, inventei de passar umas três horas ouvindo os Stones, não sei por quê. Coloquei o Sticky fingers, depois fui direto para uma compilação dos clássicos. Eu costumava limpar a casa, quando solteiro, ao som deles. E ontem a paixão toda retornou, altiva, integral, de corpo inteiro. Que música catártica é Can´t you hear me knocking! E que coisa é aquela que faz com que Street fighting man tenha tantas camadas de riqueza?, eles estão contando uma história emocional ali. Eu havia me esquecido que Jagger já fora sim o maior vocalista do mundo, diferente do esbravejador de purpurina que passou a ser já desde a metade final dos setenta. Do alto de meus 40 anos (Nick Horby dizendo que a perda maior da idade é deixar de acreditar que Hot Salad e Heartbreak são maravilhosas), eu pude entender esse tipo de música de uma maneira mais profunda, dando total crédito ao adolescente que eu fui e tendo uma nova percepção sobre a grandeza dela com a idade. Ontem eu tive a convicta certeza que os Stones é uma benção de Deus. Ainda não fiz o mesmo processo com os Beatles, mas passar anos sem escutar os Stones depurou a obra deles ao máximo (não faço o mesmo com o Led porque nunca deixei de ouvir o Led). Não pude me negar à tendência reflexiva de comparar a alegria e a contestação radical de músicas como Satisfaction e Brown Sugar com a merda que se produz hoje no mercado de música alienante. Imaginei se a vizinhança pudesse escutar Get out of my cloud, se aquilo não iria arrepiar os cabelos da nuca, se eles não jogariam o MC da hora no lixo. Música é isso: ira feliz concentrada, liberdade pura, selvageria santa, falta de escrúpulos e tudo embalada em um senso filosófico natural. Os Stones são o que o Nietzsche dizia sobre a elevação da música dionisíaca. Pensar só, eis sabedoria, cantar só seria estúpido. O personagem de Richard Dreyffus em Adorável professor, um adepto fanático da música clássica, apresenta para seus alunos uma cançãozinha simplória de rock, que passava nos rádios, e diz "é uma música pobre, com três acordes, centrada quase toda na percussão, mas eu adoro; ela é hipnótica, e tão maravilhosa quanto a música de Bach". Quando passou Satisfaction ontem, sem que eu a esperasse, sendo que eu já havia até me esquecido dela, eu comprovei a veracidade profunda do que já falaram dela: Satistaction é a nova quinta sinfonia de Beethoven. Reconheço o teor erraticamente infantil da tentativa de comportar em palavras o que eu senti, mas me imaginei em uma lamborghini, não pela lamborghini em si, mas pelo processo de desnudamento almático que a música provocava, da mesma maneira daquela célebre texto sobre o índio de Kafka, em que Kafka se imagina um índio cavalgando em um cavalo em uma padraria americana, e que vai lhe desaparecendo o arreio, o cavalo, até que desaparecem o chão e a padraria, desaparece tudo. Só o vento que precede a incorporalidade. Precisa-se esperar mais de uma obra de arte?

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Mudamos de casa para as reformas e nossa vizinha, a senhora Luiza, após cinco anos que eu moro ali, confessa à minha esposa que ali havia sido um centro de rituais de macumba. Minha esposa retorna sorrindo com essa informação, esperando alguma reação racional da minha parte. Nossa casa foi um centro de oferendas a Ogum, Charlles, o que você acha disso? Eu deponho o livro que estava lendo, o terceiro do ciclo das obras do racional e refinado Niall Ferguson, e falo racional e refinadamente um e daí, meu amor? (Cristianamente, como requeria a invocação de uma proteção espiritual suficiente para a possível batalha que se insurgiria dali para frente contra o tranca-rua, eu poderia ter parafraseado "o que tenho eu a ver contigo, mulher?") O certo é que meu passado de personagem de Pynchon não me permite uma postura tão honrosa, e a Dani sabe disso, e no micro-segundo que separa sua pergunta do mecanismo enzimático necessário na cabeça dela para me tacar por cima a lembrança, eu já prevejo a ataque e me concentro. E aí ela se lembra e me diz, sorrindo: se lembra da vez em que você se mudou para uma casa, e quando lhe contaram que a casa havia sido um puteiro histórico em que cinco pessoas haviam sido assassinada nela, você dormiu numa cadeira na varanda e no outro dia se mudou dela? Harrãn, respondo, escondendo estar contrafeito. Mas isso foi há 15 anos, Dani, eu penso em responder, mas não respondo para não dar mais corda para essa enorme chance dela curtir com a minha cara, isso foi antes deu ler Niall Ferguson, Dani. Continuo calado, mas vejo o imediatismo da coisa, que eu devo pensar rápido e tomar as rédeas de situação, pois logo-logo a Dani vai estar contando a radiante notícia para minha sogra, minha mãe e o diabo-a-quatro (que pelo visto, foi o primeiro a saber, já que nos descobrimos inquilino dele). É necessário mesmo que eu desça de meu nível fergusoniano para falar sobre essas coisas? É. Me sento com a Dani, me rendendo ao sorriso, e explico que ou Satã fracassou redondamente, ou nós é que acabamos por enternecê-lo, pois vivi os melhores anos da minha vida nessa casa, fui enormemente feliz aqui, aqui a Júlia foi trazida bebê, ela falou suas primeiras palavras, engatinhou, deu seus primeiros passos. Essa casa de Exu proporcionou um isolamento acústico acolhedor contra o mau gosto do lado de fora, pois foi aqui que nos demos a conhecer a nossos filhos a música de Bach, as sinfonias de Beethoven, o gosto aprendido da música de Mahler, só para ficarmos nesse estilo de música. Ou seja, Dani (continuei, percebendo uma linha de vingança dialética que poderia me reaver o domínio histriônico da situação), convertemos o diabo, o que pode ser uma coisa gravíssima, visto aí a teoria de Giovani Papini de que toda a razão da existência é a tentativa de Deus em resgatar o jovem Lúcifer rebelde de volta para as hordas celestiais.

_ Minha mãe bem que dizia que não se sentia bem em ficar sozinha na nossa casa, ela dizia morrer de medo_ a Dani disse.

_ Pois então está aí a explicação, Dani. Foi sua mãe que expulsou os demônios da casa.

_Sei bem o que você pretende dizer, Charlles, vou contar para ela.

_Filha ingrata, desconhece a presença de espírito da própria mãe!

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