segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O homem mais saudável da Terra



Um dos pontos mais resignadamente espantosos do diagnóstico de Jared Diamond sobre o movimento inercial da humanidade rumo ao suicídio é esse em que ele diz que o problema do aquecimento global é exaustivamente conhecido por todo mundo, mas todo mundo age como se desconhecesse a dimensão real da tragédia que se avoluma. Agimos com uma festiva farsa diante a iminência de nossa destruição, como se nada na verdade estivesse acontecendo. É uma crença subliminar de que somos milesimais o suficiente para termos o direito de não usarmos a capacidade cerebral para o raciocínio direcionado pelos fartos sinais. Nada mais pavloviano em grande escala do que isso: repetimos incessantemente os gestos que nos definham como seres humanos, não interrompendo nem por um segundo nosso ataque sistemático contra a atmosfera do planeta que pretensamente julgamos dominar, mesmo tendo a inexorável certeza de as coisas como estão não poderão perdurar por mais tempo. Vejo pelo jornal de hoje que certo local próximo a Curitiba acaba de atingir a marca recorde de 50 graus Celsius de calor. Em Curitiba! E neste último final de semana, no centro-oeste, os termômetros marcaram 28 graus. Há algo de involuntariamente cosmético nessa inversão da crença estabelecida sobre o gráfico geográfico onde a zona azul do frio e a vermelha costumavam estar, como se, de repente, fizéssemos parte de um filme de Hollywood cuja fantasia catastrófica começou a ser acionada para nossa diversão na acolhedora poltrona do cinema. E talvez a metáfora seja séria demais para já não ser a própria realidade. Talvez já atingimos, com o excesso de telas coloridas que nos cercam por toda parte, um novo estágio evolucionário em que passamos a interpretar os eventos do cotidiano através da transposição ilusória de que vemos tudo pela instância dinâmica do cinemascope; só conseguimos atentar pela intuição de entender através da imaginação de estarmos enxergando através de pixels. Hoje mesmo, na imensa fila do banco, percebi, no enfado da espera e das horas roubadas da minha vida pela ineficiência mafiosamente trabalhada das instituições financeiras, que o que antes eram críticas que provocavam nos mais cordatos o constrangimento pelo celular que toca em volume altíssimo, e a fala descompassada e alta do autista que atende ao telefone, sem nem se importar de que esteja ofendendo os ouvidos dos que estão ao seu lado, antes o que era constrangimento não passa hoje de um modus operandi bastante tolerado, respeitado até. Se gritam pelo celular no meu ouvido, é porque o que detêm mais um desses apêndices naturais do homem do século em que estamos é uma prova cabal e relativamente bem sucedida de cosmopolita adaptado, consumidor salutarmente irredimível, que para se chegar ao fechamento de seu negócio de empreendedor, para se falar com a moça que leva e trás o filho herdeiro da escola à casa e vice-versa, um novo e sempre permutável modelo de celular é um instrumento de glória indispensável que abaliza a atitude geral de se fazer surdo à antiga ofensa, de modos que é tão louvável o ruído inconteste por todo o espaço natural e espiritual do banco, é nesse ruído que eu mesmo identifiquei o convite para uma paz de espírito. Senti mesmo um acolhedor pertencimento na estapafúrdia de sons que adormeciam minha crítica e me fazia simpático ao que antes me era algo que tirava por completo a paciência.

Semana passada, em meu último dia antes das férias, comendo um pão de queijo e bebendo um chá de erva cidreira, ouço o senhor octogenário que pediu licença para se sentar à minha mesa dizer o quanto estava fazendo calor. Seu desalento em dizer "estamos acabando com o mundo, se queima tanto e se produz cada vez mais carros e carros" era tanto um suspiro de estoicismo quanto um fundo residual de alegria por estar perto o dia em que não pertencerá mais a esse mundo, não será mais um problema seu e nem dos de sua geração. Eu engoli o chá e lamentei que fosse de um senhor com essa idade que eu pudesse escutar um lamento tão carregado de nostalgia. Estamos todos morrendo, e estamos felizes por não fazermos nada. A lamentação já perdeu seu estágio mais adiantado de consolo, e virou somente um resmungo, a mesma desfuncionalidade esvaziada que determinou que se tornasse um cacoete nacional a análise popular do clima na Inglaterra. Quanto tempo mais nos será dado para que essa exclamação se torne um sacramento cívico? Ou será que já é?

Um conhecido de um amigo meu, que lhe vendeu um carro modelo 2008, ofereceu para esse meu amigo seu carro modelo 2010; quer trocá-lo por um modelo 2014. A meu ver, em minha retrógrada capacidade de análise, isso seria uma compulsão. Mas a maioria das pessoas que conheço, inclusas aí minha irmã e mãe, agem da mesma forma. Minha irmã tem como plano mais fundamentado a curto prazo acabar de pagar o financiamento de seu carro para, imediatamente, entrar com outro financiamento para adquirir um carro zero quilômetro. Há duas semanas passou dois dias aqui em casa um tio que fora morar nos Estados Unidos. Quando a Dani me avisou que viria ele, minha mãe e minha irmã para passarem um final de semana aqui, eu já de antemão me preparei para vencer a depressão que me abate ao ver minha frankesteineidade devassada tão cruamente. A última vez em que estive com esse meu tio, ele me deixou bastante para baixo. É o tipo que olha os objetos da casa e o desmazelo que o acolhimento familiar constrói com cúmplice felicidade, o tipo intrancedente. O homem mais provido de saúde da Terra. Para ele, tudo que não for grana, status social e poder sexual galinídeo, é doença e perda de forças. Conservar darwiniana a força é trabalhar para que tudo isso encha a vida de alto a baixo. Tendo isso com fartura, ele pode se instalar em uma teia de satisfação e hibernar na conservação de sua força vital, igual a uma aranha, ou como um leão-marinho ao sol. Daí que ele chega e o final de semana está irremediavelmente perdido. Falar sobre o quê com uma criatura que exala perfeição destas? O jeito é sair pelos bares e pesque-pages, inflar sua digestão, colocar em overdose suas papilas gustativas e os pelos minúsculos de seus minúsculos músculos tegumentares diante a brisa que vem das árvores da praça ao pôr-do-sol. Esse filósofo pós-filosofia tão certo de seu estágio avançado na escala final das razões sociais. Mas ele pegou mais leve comigo, talvez por advertência da minha combalida mãe (o Charlles é um fundamentalista, não estraguemos a coqueteria necessária do fim de semana com olhares críticos enviesados). Vieram no carro da minha mãe, de forma que quando falo em sair ele pega a chave do carro e me dá, antes que eu proponha irmos em meu veículo de quinze anos de uso. Ao se sentar na sala, de frente à televisão com a onipresença santificada da Globo, ele diz que os médicos lhe disseram para pegar garotas novas e fazer exercícios, que esse é o segredo da longevidade. Sua esposa nativa (ele tem uma outra, em sua bigamia bem conhecida aceita desde que ninguém demonstra saber do assunto) amua-se diante a piada, e eu não perco a deixa: "então seu futuro já está garantido, já que você já faz as duas coisas há muito tempo". Ah esse Charlles é um gozador! Tem 58 anos, e parece que vai viver para sempre. É um leão na savana, um senhor que merece todos os respeitos, além da crítica. Sua esposa se encolhe para fazer todos seus desmandos gentis, só lhe basta a cara de sofrimento resignado que estampa ora aqui e ora ali mais como reação aos possíveis pensamentos impuros sobre sua situação que possa vir de nós.

Jared Diamond me consola um pouco ao dizer em Colapso que a diferença entre pessoas como esse meu tio e eu é o curto prazo de sobrevivência de um sobre o outro. Os mais adaptados terão o benemérito de serem os últimos a morrer. Esse meu tio não quer voltar para o Brasil. Trabalha das oito da manhã às onze da noite, de domingo a domingo. É um cidadão nacionalizado da América, dono de um pequena empresa. Quando eu lhe pergunto qual seu passatempo lá, ele diz não ter tempo para o ter. Lembra, como num estalido, que foi à China com um amigo. Ficou dois meses lá. Um assunto que poderia ser tão rico e salvador, e ele só diz que a China é muito rica. Só isso, sem fotos, sem nenhuma observação feminizante ou doentia sobre detalhes exorbitantes de sua saúde intranscedente. Sorri com descansada alegria. O último a morrer, que privilégio. 

4 comentários:

  1. um charlles tão inspirado... dádiva de alá, meus caros!

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  2. o melhor post da série Agora-eu-vou-botar-vocês-pra-ler.
    eu poderia engatar esse Colapso com o bilhões e bilhões q li há pouco, pq é por aí. a nossa pequenez não deveria ser argumento para... a nossa pequenez.
    e eu q nem li Armas, germes e aço, um livro tão bem recomendado por uma amiga minha.

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    1. Li apenas o Colapso, arbo, e é um livro assustador. Tenho o Armas e germes mais ainda não o li. Parece que tem documentários sobre tais livros também. Mas a intenção não foi muito literária aqui (já havia falado sobre Diamond há uns três anos, no Milton), mas minha desolação diante as inversões de temperatura no mundo. E Diamond fala que a melhor posição para encararmos a questão é com um pessimismo produtivo.

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    2. Off´topic: estou em uma sinuca de bico hoje. Desde as sete da manhã venho transportando meus livros (6 viagens de carro) por conta própria, e os eletrodomésticos menores e as roupas. Levando-os de volta para minha casa reformada. E agora me encontro sentado na casa provisória, com camas, geladeira, estantes, etc, isso tudo que requer caminhão e chapas, mas rodei a cidade toda e não encontro ninguém que faça esse serviço. O que fazer? Ontem, em um barzinho, reclamei do péssimo atendimento ao amigo meu que é dono do estabelecimento, porque os garçons são todos "aprendizes" menores de idade. E o dono me falou que já caçou por toda parte mão de obra mas não acha. As bolsas assistencialistas do governo são uma merda, ninguém quer trabalhar, ele me disse.

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