domingo, 2 de fevereiro de 2014

Num estado livre, de V. S. Naipaul



Talvez nossa época seja a mais rica em escritores velhos que anunciam sua aposentadoria em toda a história da literatura. Poderíamos usar um truísmo fácil e não estaríamos incorrendo tanto assim no erro se disséssemos que nunca houve tantos escritores octogenários como hoje. Há algumas semanas, foi o octogenário Gunter Grass que anunciou sua aposentadoria, após ter feito o mesmo a Alice Munro, o Philip Roth, o Imre Kertész e o Garcia Marquez (este compulsoriamente). Herman Hesse, em seu O lobo da estepe, já escrevia, de frente ao busto de Goethe, que há algo de francamente obsceno em um escritor que chega aos oitenta anos. Thomas Bernhard, por sua vez, afirmava que chegar mesmo aos 50 era um ato de incompreensível rendição à bestialidade do mundo. Afora esse relativismo em um ou outro grau quanto à tendência da faixa etária andar de mãos dadas com o misantropismo ou com a malemolência ideológica, é notório que a idade avançada oferece uma mudança de perspectivas para a maior parte dos escritores, em que eles se confrontam com uma necessidade de readaptação ainda mais desmotivante por requerer uma nova originalidade que os afaste das armadilhas da auto-repetição ou da escrita mecânica. V. S. Naipaul, também octogenário e também aposentado, segue por um isolamento que em muito tem de semelhante com o de seus parceiros de profissão, no amargor e na desilusão com o mundo moderno, mas com uma forma de repúdio nova no que tem em seus ataques à instituição das letras inglesas e na auto-imolação de seus pecados.

Na polêmica biografia de Naipaul, escrita por Patrick French_ uma biografia dita "autorizada", e que o próprio Naipaul antes de virar as costas para ela admitia isso_, há um retrato desalentador do homem por detrás do escritor. Um Naipaul martirizante que não dispensava da violência no trato com suas ex-esposas, e com tanta negrura sobressalente em seu caráter cotidiano que assinalava que ele, obedecendo a ciclicidade que recria em desmascaramento escritores antes tidos como modelos de honra, era o novo Céline, o novo Mann, o novo Sartre da vez (todos esses, por diversos motivos, caídos na fogueira de seus próprios passados). A diferença é que Naipaul não gastou um segundo sequer de seu tempo em desmentir o que havia em sua biografia; pelo contrário, aquilo serviu para que ele abrisse as comportas e deixasse sair uma negrura ainda maior. Ele praticamente disse o que por nossas terras brasílicas é comum ouvir de entidades políticas do passado: me esqueçam! Disse que o meio literário inglês nunca o tratou à altura, que ele sempre foi considerado uma espécie de aberração colonial, que nunca o engoliram, mas só o aceitaram em nome da fria educação britânica. Essas palavras, proferidas na série de seus últimos aparecimentos na imprensa, serviram para tornar a biografia do monstro um best-seller internacional, o que nenhuma mente voltada para a paranoia dos arranjos promocionais do mercado de livros cogitaria que Naipaul as dizia para o benefício do aumento do número de vendas; ele mesmo desapareceu em sua velhice conformada depois disso e não voltou a dar as caras.

Para um leitor antigo de Naipaul como eu, por mais estranho que isso possa parecer, não houve surpresa nenhuma no ressentimento declarado desse autor. Li quase todos seus livros (99% deles, posso dizer), alguns li mais que duas vezes, e aqui percebo que o estardalhaço feito em torno daquilo que pode ser tido como uma personalidade maligna até então não descoberta é uma tolice de quem não o leu ou o leu superficialmente. Toda a sua misantropia e sua acidez contra o Império britânico, e toda sua decantada visão sobre a América e a África pós-colonial, estão em seus livros. Seus livros são tratados sobre o poder que a dominação histórica e política tem para corromper as almas dos dois lados do jogo de comando. Assim como foi despropositado a reação retalhadora contra Gunter Grass quando esse escreveu em sua auto-biografia que servira às frentes nazistas por um curto período na juventude. Quando vi a fogueira feita na imprensa contra Grass, o primeiro pensamento que tive foi mas todo mundo já não sabia disso? Em Anos de cão não haviam sinais mais que contundentes afirmando isso? Ninguém conseguiu ver que Oskar Matzerath, debaixo dos palanques em que ouvia o führer, ou debaixo da mesa em que via a concupiscência do povo alemão daqueles anos demonstrada pelo pé do amante entrando pelos entremeios da saia de sua mãe, dizia com mais eloquência e fatídica simplicidade o que estava tardiamente anunciado na auto-biografia?

Naipaul alegar ter sido tratado como um colono desigual e apiedante pelos seus páreos na literatura inglesa acaba sendo revalidado pela forma com que sua obra parece ter sido mal lida na Inglaterra. Em uma literatura cuja característica secundária (mas veemente) ser a de seu hermetismo voltado para dentro de sua própria relevância patriótica, o lugar de Naipaul no interior dela ainda é uma questão não definida e obscura. Mesmo que na maioria das listas dos grandes autores em inglês da metade final do século passado ser dividida em seus dois primeiros lugares entre Naipaul e Bellow, e mesmo com a grande fama e reconhecimento de Naipaul como uma espécie de embaixador exilado com voz proeminente sobre o subdesenvolvimento alcançadas há alguns anos, Naipaul parece sofrer um processo de decrescente teor de relevância no mundo que seguirá após o seu desaparecimento físico, um mundo onde seus personagens tirados da realidade de mazelas morais e nada auto-afirmativos do pós-colonialismo parecem sem lugar na globalização revestida de gloriosa procura por sucessos financeiros. Não é um sinal a ser desprezado que Naipaul é pouco citado na literatura inglesa: tirando os ensaios primorosos de Edward Said que o elevam e o desbancam como protótipo reconhecível do intelectual exilado que fala a verdade ao poder, o que conheço é que Martin Amis o cita em uma passagem de Campos de Londres sobre descrições feitas por ficcionistas sobre sexo anal. Naipaul parece ter conquistado um curioso ponto cego em que ele existe com toda sua excelência e superioridade sobre os demais, mas cujo misto de fatos mundanos de origem, cor e visão o congelam em um adorno paulatinamente sem expressão.

Será isso verdade? Em uma crônica de Garcia Marquez sobre literatura centro e sul americana, um dos amigos do escritor colombiano o lembra que Naipaul também é um escritor caribenho. Não é sem estranhamento que se lê sobre essa verdade básica: Naipaul é tão passível de ser classificado como escritor caribenho quanto Garcia Marquez, nascido que é em Trinidad e Tobago e sendo que parte considerável de sua produção fala sobre a realidade desse país. E, para ressaltar com certa dose de comicidade fantástica o caráter de leveza conceitual de Naipaul, talvez ele seja menos conhecido nas América do que é lá fora. Deveria-se falar mais de Naipaul por aqui, tendente a nossa imprensa literária à maledicência como é, pois a leitura de seus livros se presta a uma acusação da miséria moral, do imobilismo e do estancamento espiritual, da falta de redenção dessas nossas terras, em nível mais sem eufemizações que o de Vargas Llosa. Por aqui se perde muito em não saber o quanto seria bom falar mal de Naipaul.

Um exemplo pontual da excelência e da superioridade de Naipaul está em seu volume de contos lançado com um atraso de 42 anos pela Companhia das Letras ano passado, Num estado livre. É um dos livros mais aclamados e conhecidos de Naipaul, ganhador do Booker Prize, e um ótimo cartão de apresentação para quem queira se iniciar na leitura desse monumental autor. Antes de mais nada, as circunstâncias de sua publicação no Brasil podem demonstrar o quanto tem-se a tendência de vilipendiar a importância de Naipaul. Lembro-me que, no ano de publicação de um dos romances menores de Philip Roth, Fantasma sai de cena, li em certas plagas conceituadas da internet a eleição desse romance como "a melhor publicação nacional do ano", além do que a imprensa dedicou certo esmero em sua divulgação. Quanto a Num estado livre, uma das maiores realizações de Naipaul, pouco se acha a respeito na internet, além de uma ou outra opinião pequena, e a imprensa simplesmente o ignorou (bons tempos em que a imprensa ainda comportava personalidades ambíguas como Paulo Francis, que, por mais que se  possa dizer contra o formalismo de suas opiniões, ele podia se alardear como jornalista voltado para a literatura_ e Francis foi quem me levou ao desconhecido Naipaul, por ser um de seus autores preferidos). Pois Num estado livre é, de longe, o mais bem escrito livro lançado ano passado no Brasil, com uma linguagem precisa, uma clareza de imagens que já na primeira página demonstra o potencial de Naipaul, com personagens complexos e viscerais, e com uma fluidez na leitura que é uma das preciosidades em mostrar o quanto a leveza serve ao estranhamento (o livro é cheio disso que se convenciona perceber como subníveis de leitura, como espaços voluntariamente vagos para a interpretação, com opressivos silêncios de trivialidade).

É impossível ficar incólume diante as 17 páginas do conto-prólogo que abre o livro, intitulado O vagabundo no Pireu. Nessa peça tudo é trabalhado para não se ter nada ali. Uma simples narrativa sobre a empáfia mal disfarçada de um vagabundo numa travessia de navio. Não se sabe nada sobre ele, e ele é tão insignificante em sua graça grotesca que se torna centro dessa narrativa em forma de diário apenas como procura pelo que contar entre situações de náuseas de viagem e suportamentos sob o sol escaldante. Os demais contos, mais encorpados no centro entre esse prólogo e um epílogo retirado do mesmo diário, na soma de três (sendo o último uma novela mais longa homônima do título), continuam a temática sobre a não-representatividade dos personagens. Em Um entre muitos, temos um empregado indiano que parte com seu patrão para viver em Washington, no segundo, Diga quem tenho de matar, dois irmãos saem de uma ilha caribenha para tentar a vida em Londres, um deles no serviço pesado para garantir o sustento do outro em uma improvável carreira universitária; no terceiro conto vemos um homossexual atravessando de carro na companhia de uma mulher um país africano em guerra civil tribal. São peças que beiram a perfeição, em uma pureza flaubertiana. Os dois primeiros contos dão ao leitor, de onde quer que ele seja, a impressão agoniante de estar dentro dos personagens, e com eles se ver abandonado em um mundo cruel em que os afazeres pessoais de uma civilização babélica mata não por ações de violência ativa, mas por um desprezo tão cabal e impessoal por vir da corrente determinista de história. O determinismo é o fulcro dessas narrativas: por vezes o leitor acredita que os personagens descambarão para o terrorismo e o assassinato, mas a calma e pesada rotinização das convenções desproteiniza os personagens ao ponto de uma quase inexistência, de uma invisibilidade ellisoniana. É esplêndido o controle da voz de Naipaul neste livro: ele sofreu tudo pelo que passam seus personagens fracassados, e sua frieza, pela própria afirmação de existir em sua escolha em escrever essas palavras, é uma forma de demonstra carinho para esses números humanos que são engolidos sem piedade pelas estatísticas, pelo seguramente sadio na normativa rigidamente funcional da ortodoxia sociedade-política. O livre do título é algo que está bem acima da ironia: é uma dessas verdades exorbitantes afiadas pela sua infalível precisão. O que pode preocupar é se essa narrativa, e a série de romances e livros de viagens e ensaios que Naipaul produziu em seguida, sãos os últimos que a atual situação do mundo comporta receber. Naipaul fala da farsa da independência, das marionetes servidas ao rearranjo do poder por parte das mesmas forças de dominação, só que seus personagens sequer esbarram com esse poder: são mostrados em sua asséptica posição de seres descartados suave mas determinadamente pela história, em seus últimos momentos, de maneira quase sem drama e sem tragédia. É uma ternura única essa do velho misógino resignado em seu refúgio londrino.


3 comentários:

  1. Absolutamente sensacional: fiquei fora, fui à Maricá pescar e ouvir mais Mahler, honrando à minha maneira o falecido Abbado enquanto os peixes comiam as minhas iscas, impunes, aqueles putos. Volto e vejo, numa aba do Facebook, que me morreram o Philip Seymour Hoffman e o Eduardo Coutinho; na outra, vejo que tenho seis postagens suas pra apreciar, e uma delas sobre Naipaul, justamente uma das preciosidades que descobri lendo o seu blog.

    Estou saindo agora, que hoje a janta aqui de casa é de minha responsabilidade, e por isso não li nada ainda, apenas passeei aleatoriamente por um parágrafo do teu texto, uma parte em que você aponta para a leitura mesquinha que fizeram de Naipaul na Inglaterra. Acrescento assim: alguém leu In a Free State e saiu da leitura crente que a capa perfeita para o livro era um pano de fundo roxo com um carro no meio, como que tentando seduzir os possíveis compradores através da mentira de que aquilo ali é tem algo de road movie, de juventude babacamente feliz -- ou seja, convencer que leiamos Naipaul dizendo que aquele livro ali não é Naipaul.

    Depois escrevo com mais carinho e cuidado.

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    1. Também achei a capa tétrica. Não entendo quem faz essas coisas. As primeiras capas para o Naipaul da Cia das letras eram lindas; aquarelas um pouco enigmáticas (pesquise para vc ver). Depois do Nobel vieram as capas em cores sem gravuras, sérias; e depois, essas coisas inexplicáveis. Mas tenho que dizer que quando estive com o volume em mãos, a capa me pareceu um pouco bonita: ensaiei que tentaram ali reproduzir um selo postal antigo, dos tempos da ditadura (relacione com os do Brasil e vai ver uma curiosa semelhança no quadriculado), ou o tecido do uniforme das milícias urbanas, paupérrimo.

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    2. Mas se eu fosse responsável pelas capas da Cia, tenho certeza que mesmo sem nenhum talento pictórico, meu amor pelos títulos garantiria mais sucesso de vendas. Basta ver as capas recentes para os livros de Bellow nos EUA, com fotos maravilhosamente reticentes (um carro coberto por neve, arranha-céus fotografados por baixo). Não seria de uma simplicidade efetiva e lógica uma foto poética de um imigrante indiano em Londres para a capa desse Naipaul? É um assunto que falta explorar: por que as capas dos livros no Brasil, mesmo livros como os de Naipaul, que só serão lido por um público mais requintado, são feitas como visando um público B? Algo no estilo SBT Sílvio Santos? Uma capa bem feita, tenho absoluta certeza, influenciaria substancialmente nas vendas.

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