O legado de Humboldt é um dos grandes romances principais de Saul Bellow, junto com O planeta do sr. Sammler, Herzog e As aventuras de Augie March, e não é exagero dizer que esses quatro romances fundamentaram a literatura produzida em língua inglesa dos últimos 50 anos, criando imitadores, correntes críticas, estudos acadêmicos, acirrados pontos de fuga em busca da liberdade da influência, detratores impossibilitados de esconder a inveja, contestadores lúcidos reconhecidos da necessidade de desconstruir o gigante para abrir novos caminhos; mas todos dividem a visão unânime de que Bellow foi o maior escritor norte-americano do século passado, ao lado de William Faulkner. Bellow é desses escritores que em duas páginas mostra de forma incontestável que é um mestre: convido a qualquer um pegar Humboldt na livraria e, em pé mesmo, escorado à estante, ler as duas primeiras páginas desse romance. Duvido muito que não passe pelo leitor, se ele é um apreciador da estética da escrita ou um almejador de uma carreira literária, uma profunda inveja apascentadora, dessas que consolam por o objeto pretendido se mostrar imediatamente inalcançável e, por isso, um tanto absurdo cismar por tê-lo ou ser compatível em tamanho a ele. Essas duas primeiras páginas são feitas na medida melíflua para arrebatar o leitor, de forma tal que não será estranho que este se sente em uma das poltronas da loja e se ponha e deixar-se ser levado um pouco mais pela força da palavra de Bellow. Já nesta introdução ocorre o que Philip Roth disse ser a grande movimentação humana e sensorial que demonstra estar por detrás de cada frase de Bellow, como se muitas coisas estivessem a acontecer ao mesmo tempo, subjazente ao enfoque principal da narrativa: nela encontramos o radiante e genial poeta Von Humboldt Fleisher, com seu carisma e saúde inesgotável, um gigante atlético e proficuamente falador que parece ser capaz de desbancar com sua arte a hipócrita alta-sociedade americana, que adora bajulá-lo e enaltecê-lo com grana e fama; encontramos, já nessa primeira demonstração de prosa sublime, o jovem narrador, Charles Citrine, atravessando todo o país com algumas mudas de roupa e uma pasta de escovas que vende para ter apenas o que comer, extremamente feliz por se importar plenamente com a única coisa que lhe é sagrado na vida: a literatura. Vemos o encontro entre os dois, os diálogos entre dois jovens apaixonados pela mística de uma literatura que parecia explodir de urgência em um mundo que se dispunha loucamente a ouvi-la, e logo em seguida, já na próxima frase, vemos que o jogo se inverteu, o pupilo se tornou um escritor milionário, enquanto o mestre se transformou em um bêbado recalcado, morando em quartos escuros de uma Chicago selvaticamente indiferente, alcoólatra e embrenhado em sonhos de vingança.
Assim começa o elétrico e monumental O legado de Humboldt, um livro que tem tanta luz verbal e um vigor infalível que, de certa forma, se encontra já no patamar das obras incriticáveis, assim como Moby Dick ou Oliver Twist. Mesmo os seus defeitos, como a sempre sobrepujante alegria de escrever que Bellow emprega em seus romances caudalosos (que são apenas dois, sendo, além deste, o Augie March), que o impede de acabar a obra no momento certo, dando vazão a cenas gratuitas que poderiam ser editadas sem muito prejuízo ao conjunto, esses defeitos se tornam um acréscimo de prazer, pois tais cenas excessivas são tão bem escritas que entram na condição paradoxal de ser leviandades indispensáveis. É o que acontece com o antológico capítulo 16, de Augie March, que trata de uma caçada de falcoaria no México, tão excepcional e cheio de fulgor que, mesmo sendo um recorte à parte da trama, entrou para o cânone de um dos momentos mais brilhantes da prosa. Assim acontece com algumas passagens de Humboldt, obra mais madura que Augie March, e que forma um contraponto estilístico a esse, com sua agilidade de frases curtas (enquanto March é eivado de períodos longos e causalizados uns aos outros): Bellow nos mostra as tantas reflexões de seu personagem Citrine sobre diversos aspectos da vida moderna, alongando a obra em análises que a aproximam do romance-ensaio explorado por Thomas Mann e André Malraux. Há partes que mostram a busca espiritual de Citrine na leitura de esoteristas modernos, como Rudolf Steiner, aplicando em seu dia-a-dia de personalidade famosa no efervescente cenário artístico de Chicago, onde convivem mafiosos, intelectuais e oportunistas sortudos, os exercícios de interiorização de se posicionar de cabeça para baixo de encontro à parede da sala.
Há em Humboldt uma graça picaresca que remete a Dickens, com sua Chicago transubstanciada em uma Londres trafegada por tipos cafajestes cujo histrionismo acaba por os tornar potencialmente perigosos, e essa graça vem misturada com sofisticados debates intelectuais sobre o espírito humano na decadência festiva do Império. É um momento feliz para os leitores brasileiros que mais uma obra de Saul Bellow seja lançada por aqui, com nova tradução, feita por ninguém menos que Rubens Figueiredo, pela Companhia das Letras, sendo que O planeta do sr. Sammler está prometido pela editora para o ano que vem.
Grande livro de um imenso escritor. Tenho a edição do circulo do livro, traduzida pelo Fernando Py - acho esta tradução muito boa por sinal.
ResponderExcluirCharlles, mudando de assunto, você que é um grande apreciador do Claudio Magris, já leu seu livro de ensaios Alfabetos publicado em 2012 aqui no Brasil? Recomendo a leitura, é sensacional ...
Abs
Tenho procurado esse livro do Magris, Jonas, mas minha obtusidade internáutica não tem me favorecido muito. Magris é fantástico. Falta-me este, dos lançados dele no Brasil, sendo que tenho aqui o "Às Cegas" à espera para a leitura.
ExcluirA tradução do Py é ótima. Ainda não comparei as duas traduções_ o Figueiredo já é uma etiqueta incontestável_, mas nutro profundo carinho para minha primeira leitura dessa obra com o Py.
Abraços.
Tá. Encontrei o "Alfabetos" agora pela LC. Mas tenho a impressão de que há algum tempo era uma edição restrita da UFPR.
Excluir