De visita a um amigo, este circunavega o assunto até chegarmos a seu interesse principal dos últimos anos: uma antiga teoria da década de 1970, que diz que a espécie humana tornou-se excessivamente violenta pela contaminação com o chumbo. Aponta fatos precisos, estatísticas de assassinatos, aumento de internações de pacientes em manicômios, tudo ocorrido desde a revolução industrial e das grandes fábricas de Manchester, jogando toneladas de fumaça do chumbo fundido na atmosfera. Chumbo nos alimentos, em insumos agrícolas, e a absurda quantidade de chumbo utilizado nos produtos para as guerras. Esse amigo, advogado aposentado e ex-presidente da OAB, explica excepcionalmente bem para um rábula as consequências neurológicas dessa intoxicação. A encefalopatia ocasionada altera o comportamento, emburrece, e faz com que as pessoas adotem atitudes violentas. Lembro-me, então, que esse distinto senhor que me esclarece foi, até pouco tempo, um dos homens mais temidos do município. Não podia-se ficar a seu lado com completa desenvoltura. Seu andar ereto, sua barba aparada com esmero, sua forma em não cumprimentar sem que antes se lhe cumprimentassem, eram tidos como direito legítimo de uma personagem tão cerebralmente capaz. Um dia, enlameado do chapéu às botas pelo trato em seu jardim, seu cão o atacou por não reconhecê-lo. Passou muito tempo internado num hospital, e os médicos realizaram-lhe um enxerto muscular no braço direito. Desde então tornou-se um homem substancialmente diferente. A acepção unânime da cidade tendia a ver nisso a descida para a velhice. A doença o debilitara. Sua esposa, que há tempos dera aula na universidade para mim, diz que agora ele obtinha paciência para coisas que outrora o levavam a acessos de fúria. E vive obcecado, me disse a mulher, por essa teoria imerecidamente esquecida, de que todos, sem exceção, somos intoxicados pelo excesso de chumbo.
Em penso, Charlles, que todos nós somos intoxicados pelo excesso de nós mesmos, o que significa dizer não apenas daquilo que pensamos que somos, mas de tudo que vive e que percebemos sob determinada ótica; nós e eles, os outros, todas as relações. Essa intoxicação se revela não na nossa singularidade, mas naquilo que nos é comum, a violência, subproduto de todas as relações, inclusive as ambientais. Penso que se a percepção do mundo do seu amigo advogado mudou, não foi porque ele deixei de respirar chumbo e se tornou menos violento, foi porque seu acidente limitou sua expressão de força física, logo seu papel social não pode mais ser o de uma figura dominante. Com isso, chego à conclusão bem óbvia que a violência é fruto das relações sociais sobretudo, do sistema de hierarquização das funções sociais, da concentração de privilégios e formação de esquemas de poder. Talvez por isso os ecologistas tentem explicar os males do mundo a partir da degradação ambiental, quando o principal é a degradação humana em si, envolta pela lógica do poder, que parece ser primordialmente responsável pelas demais degradações, com destaque à ambiental. Invertendo as causas pelos efeitos, os ecologistas não isentam de culpa as relações do tipo capitalista, mas chegam perto disso.
ResponderExcluirConcordo em número e grau. Mas...o quanto sinto falta de uma demonstração sistemática de raiva por aqui. Esse amigo, nos áureos tempos, aprontava das suas. Peitava a polícia, abriu inquéritos contra policiais militares truculentos, levando alguns à exoneração e outros à transferência. Uma vez assaltou a delegacia, quando o delegado quisera prender um advogado por sei lá o que, e retirar tal advogado de lá de forma ameaçadora. Agora, o cachorro, o chumbo, a velhice, a condição humana, o refez na mais apropriada calma de aposentadoria.
ResponderExcluirConheço a juíza e o promotor daqui. Pessoas ótimas, pacientes, ponderadas, fala macia. Tudo conhecer é tudo perdoar para ambos. E nisso vai a cidade para o caos da corrupção, e a segurança das ruas abalada pelo comércio de drogas universal. Amanhã mesmo está programado a vir aqui tratar daquele assunto do pacto cartorial entre os dois prefeitos, a tv globo regional. Mais uma vez. E, enquanto isso, os representantes do judiciário se comportando com uma ética cristâ inexpugnável, preocupados tão puramente com suas almas e o salário redentor que os exclui da participação da sociedade, a cada final de mês.
Só chumbo...?
ResponderExcluir...eis a questão!
ResponderExcluirCharlles como você sabe, além de poeta sou engenheiro metalurgista, por tanto não é chumbo, mas óxido de chumbo(PbO). Desculpe a pegação: imagine ser intoxicado por chumbo líquido: a tempertura de fusão do chumbo é relativamente baixa em comparação com os outros metais, mesmo assim, se fossemos contaminados por chumbo líquido estaríamos fritos!!! antes de qualquer coisa.
ResponderExcluirA Temperatura de fusão do chumbo, se não me engano neste instante, é próxima dos 400ºC. Então imagine meu camarada...
Claro, claro. Mas o chumbo referido no post é tanto o que é despejado na atmosfera em forma de fumaça, quanto o que impregna os alimentos através da água, do solo, de herbicidas. Quando eu exercia a veterinária de campo, não era muito raro o plumbismo (ou saturnismo) como sério alterador de comportamento de bovinos.
ResponderExcluir