quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Algo Próximo a Intimidade

Ontem esse blog completou um ano. Só fui descobrir isso hoje, por coincidência. Estou lendo o último livro de Tony Judt, "O Mal Ronda a Terra", o que me remeteu ao primeiro post que fiz para o blog e que é, aliás, o texto que mais gosto. Como comemoração ou lembrança ou sei lá, republico esse primeiro post. Foi a morte de Judt que me fez, depois de dois anos sendo comentarista ranheta no blog do Milton Ribeiro, abrir esse site. Mas a razão principal é que a morte de Judt foi uma catarse para que eu desabafasse aqui a enorme tensão e desespero que me acometia na época. Foram seis meses, desde que os prognósticos médicos revelaram as sombrias chances de que minha esposa chegasse com sucesso ao término da gravidez, em que tudo foi pesado, premonitório, tristíssimo. Nesse dia que escrevi o que segue abaixo eu estava justamente numa das esquinas da mais terrível desilusão quanto ao futuro. O texto esconde mais sentimentos do que revela. O livro de Judt, contudo, é um sinal do resultado maravilhoso a que todos esses meses alcançou: o dia mais feliz da minha vida, 01 de outubro, o dia do nascimento da Júlia. Judt sofria as agruras tremendas de sua doença terminal quando ditou esse livro para um grupo de amigos. Apesar do tema apocalíptico, "O Mal Ronda a Terra" aponta para várias direções nas quais a humanidade pode ainda se salvar e se justificar.


Eu estava na livraria Cultura quando me veio a notícia da sua morte. De imediato não reconheci a figura da foto que indicava o morto, seu crânio liso completamente calvo, seu olhar que me parecia guardar ainda segredos de sedução cuja imagem de misantropia que lhe impingiram a imprensa mundial tornava improvável qualquer outro traço de personalidade que não fosse a do contestador supercerebral, o revisionista implacável.Por debaixo do terno fino, porém, fazia-se perceber a firmeza muscular de um lutador de jiu-jitso, que não sei se realmente o fora, mas que suas declarações de saúde, as longas caminhadas e a esnobe força taurina, dava a impressão que sairia bem com um dos da família Gracie no tatame. Quando li na Carta Capital, então, as várias linhas dedicadas ao elogio de suas conquistas intelectuais e de até onde alcançara a antipatia de sua pouca importância à opinião massificada, minha memória antecipara a averiguação de quem era o senhor da foto. No meio do círculo miúdo de leitores na revistaria da loja, eu disse em voz alta: porra, morreu o Tony Judt! No meu histórico de escritores mortos, nunca me acontecera até então perder o escritor durante a leitura. Estou em menos da metade de sua grande obra, "Pós-Guerra", e não deixa de ser uma espécie de orfandade saber que as próximas quinhentas páginas já não contam com a possibilidade da interferência interativa do autor, que mudaria alguma ideia ou opinião circunstancial nas futuras edições da obra. Acabara a latência por detrás das palavras e tudo agora se solidificara numa proeza pela qual seus inúmeros detratores esperarão desgastar o verniz da morte para criticar acirradamente o que ele escrevera em definitivo.

Não havia lugar mais sintomático da tristeza que me causara a notícia da morte de Judt do que um shopping center. Não há um lugar mais apropriado para se achar que é um mero exagero, e um isolamento esnobe, lamentar sinceramente que tenha morrido alguém que só existira num tipo de vivência interna, alguém que adotara, no máximo, uma intimidade cuja vida dependia apenas da voz que meu cérebro conferira às suas palavras. Era como se entristecer com a morte de Homer Simpson. Ou como as lágrimas não de todo poupadas do constrangimento quando aquelas pétalas caídas sobre Macondo decretara o luto a José Arcádio Buendia. E era tanto maior essa auto-averiguação de uma tendente falsidade quando, na fila do caixa, não parecia que minha dor (dor??) era mais genuína e tinha maior direito à legitimidade do que os velhos costumes exibicionistas que se vê em uma livraria, num domingo lotado em que do lado de fora daquela babel do consumo havia tendas gigantescas, com palco e carros de som alimentando uma quantidade multicolorida de pessoas vestidas com abadás. Os semblantes impávidos diante os manuais de direito; as conversas em voz alta não de todo indiferentes aos demais passantes sobre o melhor livro especializado em câncer; uma distinta senhora que falava com um português impecável à vendedora, anunciando ter lido de tudo de Orhan Pamuk. Eu sou vigilante demais para cair nessas imposturas, mesmo que perfeitamente inocentes, para ter me deixado ao livre balanço do choque que a morte de Judt me causara. Levo à sério aquela prédiga denunciadora do faresismo para ficar orando em praça pública, mostrando minha penitência a todos os donatários da velha colônia. O "Crime e Castigo", da editora 34, que segurava na fila, tinha a capa voltada para mim. Ter a tradução do Raskolnikov do Paulo Bezerra nas mãos envolvia a mesma fidelidade romântica de sair com a garota mais bonita do colégio não para confirmar a súbita ascendência social que essa sorte estupenda trás, mas para dar o livre curso da possibilidade de um amor sincero a tudo de delicadamente autêntico e secreto que há por debaixo daqueles exorbitantes atributos corporais.

Só conheço Judt há três meses, quando li "Reflexões sobre um Século Esquecido". A sua aparência de judeu férreo, trabalhador invergável, transparece em cada frase desse livro. Amós Óz certa vez fez um paralelo elucidativo entre o leitor atento e o leitor leviano. O leitor leviano vê em Nabokov o pedófilo enrustido, em Philip Roth o masturbador edipiano, em Anthony Burguess o homossexual lascivo; procura apenas os detalhes que ele possa tornar visivelmente retumbantes em uma obra complexa que oferece muito mais. De uma manifestação espiritual, o leitor leviano aproveita à sua maneira apenas os miasmas que possam divertir a carne mimadamente ofendida. O leitor atento, claro, é o oposto. Tony Judt tem uma série de apreciadores, mas também circundam em torno dele profissionais acadêmicos, políticos e da imprensa, comprometidos com várias causas particulares e cargos de ofício para serem seus denegridores incansáveis. Insistem , mal intencionados, em verem nele um detrator inconsequente.

 Em "Reflexões", realmente, Judt deixa pouquíssimas instituções e entidades em pé. Alguns são óbvios candidatos perenes à reavalição de suas importâncias históricas, como Kissinger, Nixon, Toni Blair, Margaret Thatcher, Kennedy. Outros, contudo, ainda são baluartes com elevada segurança para que alguém se aproxime sem fazer soar um alarme. E são estes que a proposital má interpretação de apanagiados de diversas vertentes do poder quer confeccionar uma imagem de irascividade iconoclasta em Judt. Pois dizer que Hobsbawn, apesar de confirmadamente ser um grande escritor e o maior historiador do século, é levianamente omisso em seu trabalho historiográfico sobre os crimes dos regimes de esquerda, não é descartar a importância de um intelectual do gabarito do alexandrino. Afirmar que Hannah Arendt não é uma filósofa, na acepção consistente e tradicional do termo, não só condiz com o que a própria Arendt dizia, como também, em desenvolvimento analítico, reafirma a vocação dessa pensadora em ser desatreladamente independente. Em contraposição, Judt recupera a afeição global de um Albert Camus injustamente enroldado à figura de Sartre, para dar-lhe por direito seu lugar entre os maiores narradores do século XX.

Mas são os fortes textos políticos que revelam o temor gargulesco que as visões instituídas sentem por Judt. Sobre Israel, ele desmascara o golpe de astúcia que esse estado cometeu na guerra dos seis dias, um tiro de aposta na apiedante visão de vítimas eternas da Shoá que saiu pela culatra e trouxe o decadentismo de uma nova imagem de assassinos sem restrições aos líderes israelitas. Sobre a auto-imagem alienante que os EUA fazem de si mesmos, Judt mostra o quanto a historiografia norte-americana sobre a guerra fria é ufanista e cheia dos ressábios imperialistas, desconsiderando a verdade e os demais países envolvidos. Judt faz, tanto no prólogo quanto no último capítulo, uma síntese da dominação neoliberal, do emburrecimento progressivo da espécie humana, da falta de oposição consistente ao fim do estado previdênciário e às garantias contra uma realidade cada vez mais presente em que as empresas acabrestam o cotidiano dos homens. Nisso a explicação do título de século esquecido, na repetição criminosamente ` inocente` dos erros do passado recente.

Na fila do shopping, lembrei-me de uma crença cósmica de um amigo que acredita em um universo espiritual inapreensível, chamado Dragões e liderado pelo espírito pérfido de um Savonarola desencarnado, cujo único propósito é a conspiração contra o desenvolvimento da espécie humana.  Talvez seja a imponência novamente esguia do padre dominicano que tenha determinado aos nossos algozes invisíveis que em dez anos tenha morrido Edward Said, Bolaño, Sebald e Tony Judt. Talvez esse número esporádico e cada vez mais reduzido de representantes capazes de nos retirar da bestialidade, enviados por uma contra-força cansada, seja realmente preocupante para toda uma galáxia de funcionários treinados para a manutenção de nosso atraso. Mas interrompi essa elogiosa divagação para atender ao pedido de uma elegante mulher de lhe passar a Playboy com a filha do Fábio Júnior na capa.

19 comentários:

  1. Repetindo a Caminhante: "um ano"?!

    Voltei ao primeiro post e vi, lá, o nosso colóquio sobre a dita-cuja "vecchia signora"...

    ResponderExcluir
  2. Primeiro: parabéns.

    Segundo: belo modo de começar!

    ResponderExcluir
  3. Parece mesmo que foi ontem.

    Obrigado, Olinda!

    ResponderExcluir
  4. Bem,Charlles,
    então parabéns...



    OLHOS ABERTOS
    by Ramiro Conceição


    Sonhar com olhos abertos
    é ser, não importa a idade,
    um moço mais bonito que
    um morto da efemeridade.



    PS: poema novinho, novinho...

    ResponderExcluir
  5. vida longa a judt, a júlia e a esse blog aqui!

    arbo

    ResponderExcluir
  6. ramiro, continue sempre a postar seus poemas aqui, meu chapa. e, arbo, muito obrigado.

    (escrevendo em caixa baixa pra provocar a caminhante.)

    ResponderExcluir
  7. Charlles,
    embora parecerá tétrico, lhe garanto que não será:
    é tudo parte do florir… no “Jardim dos Castanhos”.


    SÉTIMO DIA
    by Ramiro Conceição


    O fim… é um desvencilhar-se.
    Uma dor. De onde? Não se sabe.
    Um silêncio com muito pouco
    qual a lucidez… de um louco.

    Tudo passa a ser… muro,
    uma bandeira… em luto.
    É um batuque que bate dentro
    ao triste… que ficou no centro.



    PS: outro novinho, novinho…

    ResponderExcluir
  8. PROVOCAR A MIM? NÃO SE PREOCUPE, SOU SUPERIOR A ESSE TIPO DE COISA. INCLUSIVE, RETIRO O QUE EU DISSE SOBRE E PARA O ARBO.

    ResponderExcluir
  9. Charlles,

    Da mesma forma que tuddo correu bem como sua família, esperamos que Judt seja um profeta ruim o bastante para errar a maior parte de seus vaticínios. Os dons de profecia correm paralelos às centelhas de esperança, e tenho certeza que Judt escreveu sobre o mal que nos ronda porque acredita na inteligência humana, não para eliminar o mal, mas para não torná-lo uma religião dominante. Parabéns pelo seu primeiro ano de vida internáutica, mas, por favor, me passe a Playboy com o Fiuk.

    ResponderExcluir
  10. Parabéns, Charlles. Nesse mundo que não é bolinho, ainda temos coisas a celebrar, não é mesmo?

    ResponderExcluir
  11. Hehehehehe.
    Não tenho qq problema com maiúsculas. É apenas o jeito q tenho preferido escrever. A gente pega algo de um, de outro. Por exemplo, não escrevo mais "que" e raramente "qualquer". Já fui de achar muito importante toda essa história de manter-se firme contra o "vc" internético [embora desde cedo tenha me mantido longe do q usualmente chamamos de preconceito lingÜístico], por exemplo, mas talvez por eu sempre ter escrito "tu", hehehe.
    Mas dei uma mudada, muito pelo que aprendi nesse blog aqui [se puderem "percam" tempo lendo alguns posts] http://drplausivel.blogspot.com/

    Arbo

    ResponderExcluir
  12. Aliás, Charlles, estava por te encaminhar estes dois posts aqui, pelo coincidente apreço q tu e o doutor demonstram ter pela capital de nosso país...
    http://drplausivel.blogspot.com/2011/02/desleixo-monumental.html
    http://drplausivel.blogspot.com/2011/06/desleixo-doutoral.html

    frequentemente me mijo de rir nesse blog

    Arbo

    ResponderExcluir
  13. A COISA E O CASAMENTO
    by Ramiro Conceição


    Uma coisa amorfa, pensante, à deriva, sobre a cadeira da sala, sou…

    - Amor, tudo bem? - é minha mulher tentando contato.

    - Tá… Tá tudo bem… Só estou a pensar…

    - Amor, sua voz tá diferente - tal uma estalactite gosmenta, começo a fluir da cadeira ao chão…

    - Amor, é algum concreto poema pós-moderno ou algum treino pra pedir aumento?

    - Não…

    - Mas você está tão quieto - em ondulatórios movimentos de uma minhoca, fluo em pulos à lavanderia do apartamento…

    - Amor, você vai consertar o vazamento?

    - Noãââoo… Voooou daaaar ummmma oooolhadeeeelaaa nasss rrroupasss dooooo varrrrrraaaaal - de repente, começo a compreender a práxis marxista e também a curvatura do espaço-tempo de Einstein; sou atraído de maneira inexorável ao ralo adjacente à máquina de lavar; tento gritar, mas cheguei ao impossível…

    - Amor, as roupas estão secas? – escorro pelo sistema de esgoto; e dentro de um buraco negro estou a imaginar, na décima dimensão... – Amor, você pode levar o lixo?



    PS: Charlles, ou caros comentaristas desse blog, há algum erro de pontuação nos diálogos? Esse é o meu primeiro conto...; pode descer o sarrafo; estou preparado...

    ResponderExcluir
  14. ASSINATURA
    by Ramiro Conceição


    Melhor ser desajustado
    que um mero prostrado.
    Diante do caos, ser assinatura;
    pois a sepultura não tem cura.



    PS: novinho, novinho...

    ResponderExcluir
  15. Hahaha, Ramiro. Só me veio um adjetivo na cabeça: becketiano.

    ResponderExcluir
  16. arbo, fui nos links. O cara realmente é muito engraçado. Há um entendimento lá que só é possível aos leitores assíduos, como "o autor é doutor em quê?", suas gargalhadas são jargões que pontuam os assuntos? Mas é um pouco difícil se acostumar com a gramática própria do autor. Mas gostei muito e vou passar a ler diariamente.

    Obrigado pela dica.

    ResponderExcluir
  17. Charlles, é verdade o q dizes [vou começar a usar maiúsculas e acertar na conjugação]. É estranho pra quem pega agora, cada vez mais ele foi alterando a escrevação, eu fui pegando aos poucos, então, me acostumando. Mas o importante é o conteúdo [daí tb a graça, expandida pelos limites, expandidos, de poder significar com mtos outros significantes]. Abraço.

    arbo

    ResponderExcluir