domingo, 7 de agosto de 2011

Saul Bellow


(Procurarei cumprir meu objetivo de fazer um texto sobre cada um de meus autores preferidos. Nesse intento, reposto um sobre Saul Bellow.)
A ambição de Bellow era usar em seus livros uma linguagem semelhante às músicas de Mozart: simultaneamente ágil e profunda. A construção de sua carreira literária, já partindo desse primeiro intento, exigia uma reavaliação das pesadas heranças que recebia, tanto da literatura de altíssima qualidade produzida nos Estados Unidos, na primeira metade do século XX, que tinha seu centro em Faulkner, tanto das tradições do judaísmo que mantinham ainda sólidos padrões de conduta  culturais e religiosas em sua  fortalecida repaginação  no capitalismo norte-americano . No conselho de Hemingway, Bellow tinha muita coisa para matar. Era um judeu canadense urbano erradicado em Chicago, perfeitamente assimilado pela vida social frenética dos E.U.A, apaixonado pela nova vertente imperial das revelações de alcova da insurgente indústria da fofoca sobre os homens e mulheres do poder, enebriado com o vício de consumo de ideias que a indústria cultural havia determinado seu  país de adoção como o porto de chegada para os mais importantes intelectuais do pós-guerra. Sua alta inteligência avaliativa tinha plena liberdade para materializar o novo escritor que a América precisava, que estivesse condicionado a defini-la em seus novos ciclos evolutivos, sabendo que o regionalismo mitológico de Faulkner já havia sido esgotado por Faulkner, e que a heróica távola de grandes escritores sociais formada por Steinbeck e Dos Passos já não produziria descendentes para os novos problemas que a América ultra-capitalista e ultra-urbana requisitava. Na verdade, Saul Bellow era o mais efetivamente acabado produto dessa América espiritual que se vendia ao oportunismo redentor de ser a nação dirigente do mais luminoso estágio da democracia neoliberal da História, e teria sido inexpressivamente consumido por ela, se não possuísse a voz autêntica de desbravar tudo que havia de deletério, efêmero e devastador subjazendo sobre o seu hedonismo babilônico.

O mais incrível de se observar no estilo de Bellow é que ele é altamente vendável. Na maioria das páginas de seus livros acontece tanta coisa, expressa-se tantas ideias, trafega-se por cenários cosmopolitas de tantas descrições de prédios, escadas de incêndio de subúrbios, tribunais rescendendo a decisões do poder sobre  a vida de cidadãos anônimos, carros e os aparatos luxuosos dos muito ricos, que essa euforia cativa o leitor, resgatando-o da literatura existencialista sombria e comparativamente inerte que se fazia até pouco tempo antes dele. Bellow se tornara ágil e profundo como as sinfonias e concertos de Mozart. Suas frases são curtas, seus personagens, apesar de super-cerebrais, são entidades que acreditam na realização do impossível que há por debaixo da trivialidade cotidiana, lançando-se em aventuras que sempre estão na contramão do manual de Wall Street sobre sucesso financeiro. São ingênuos intelectuais de Q.I. altíssimos que estão nas mãos de beldades femininas dominadoras e esquizofrênicas, de gângsters que usam os ternos mais caros e depredam Mercedes com tacos de beisebol, e que são tão jocosamente grotescos que os seguram pelos braços enquanto fazem suas necessidades em banheiros públicos. Bellow abraçou a heresia de não se deixar influenciar diretamente por nenhum dos grandes escritores canônicos, nem Thomas Mann, nem Kafka, nem Faulkner, nem Joyce. Apesar de seus dois primeiros romances serem expressões de suas leituras de O Processo e Metamorfose, quando finalmente alcança seu estilo independente, é a  vigorosa natureza espontânea  dos poetas beats, dos escritores marginais da contracultura, dos autores de policiais noir urbano, que se vê em seus livros. Como um empresário que domina com total controle desde a linha de produção, as cores da propaganda que agradam ao público, até a venda sedenta do produto acabado, Bellow entregava ao mercado editorial romances em que escrevia o que queria, contra o que queria, e eles vendiam milhões de exemplares. Herzog, uma de suas cinco ou seis obras-primas, por exemplo, renova o gênero do romance ensaio e fica por 54 semanas encabeçando a lista dos best-sellers do New York Times.

Quando da espera de que a Academia Sueca notificasse o prêmio de literatura de 1976, vários jornalistas se posicionaram diante a casa de Jorge Luis Borges, pois era fato consumado que aquele ano o Nobel seria dele. Saiu para o Bellow. Perguntado o que achava dessa decisão, se era algo injusto, Borges respondeu que não poderia avaliar, pois nunca tinha lido o laureado. Essa afirmação só conta como demérito para a vasta cultura livresca do grande argentino. Alguém que já havia traduzido boa parte da produção de Faulkner para o espanhol, e que por muitas vezes fizera resenhas que evidenciavam sua admiração por Faulkner, desconhecer o único sucessor à altura do autor de O Povoado, era uma brecha vazia em sua vida de leitor profissional.

Bellow, como escreveu Philip Roth, no indispensável Entre Nós, alternava seus romances entre os que mostravam sua veia extrovertida, expansiva e exuberante (desculpem a aliteração), e os que mostravam seu lado introspectivo e filosoficamente desencantado com o mundo. Na linha dos primeiros, temos As Aventuras de Augie March, O Legado de Humboldt, Trocando os Pés pelas Mãos, Henderson, o Rei da Chuva; enquanto entre os últimos, temos O Planeta do Sr. Slammer, Herzog (que tanto pode ficar entre os primeiros quanto entre os segundos), A Mágoa Mata Mais, e Dezembro Fatal.


Bellow certa vez escreveu que todos os grandes livros são esotéricos. Suas análises deslumbrantes sobre a América espiritualmente decadente e promíscua, que recheiam seus romances, mostram que era não só o maior escritor em língua inglesa da metade final do século passado, como o mais independente. Numa época em que dizer-se ateu ou agnóstico, apegado aos milagres da Ciência, é um dever dos intelectuais, Bellow falava que as certezas produzidas por nosso pensamento tão limitado a essa faixa da existência nunca o convenceram. O inesquecível sr. Sammler, em um de seus maiores livros, um judeu exilado na vida moderna de Nova York, sobrevivente de um campo de concentração, desiludido e cético quanto às crenças iluministas da superioridade humana, se compraz a ler, diariamente, na biblioteca municipal, o mesmo trecho do frade medieval Meister Eckhart, sobre os pobres de espíritos abençoados por Deus. "O Sr. Sammler não podia dizer que literalmente acreditava em tudo o que estava lendo. Podia, porém, dizer que não desejava nenhuma leitura a não ser aquela", Bellow escreve.


Cada livro de Bellow passa essa sensação, de se estar lendo algo muito moderno e assimilável, mas de que, na verdade, vem de uma mente para a qual a última palavra sobre as coisas ainda está longe de ser dita, de um senhor indignado com o rumo que a situação humana tomara e que só aparenta estoicismo, de uma alma antiga, em suma.

"E tudo isso deverá continuar. Simplesmente continuará. Haverá mais seis bilhões de anos de vida da humanidade. Chega a paralisar o coração o contemplar tamanhas cifras. Seis bilhões de anos antes que o Sol venha a explodir. Seis bilhões de anos. E o que será de nós? Das outras espécies e de nós? Como chegaremos àquele fim? E quando tivermos de abandonar a Terra para seguir em direção a outro sistema solar, que dia mais portentoso será esse! Mas, então, a espécie humana terá se tornado muito diferente, pois a evolução continua. Olaf Stapleton calculou que cada indivíduo do futuro viverá milhares de anos. A pessoa do futuro, de tamanho colossal, seria de um lindo colorido verde, com uma mão que terá evoluído, transformando-se numa espécie de caixa de instrumentos, ferramenta forte e sutil, o polegar e o dedo indicador capazes de exercer uma pressão de milhares de libras. Cada intelecto pertenceria a uma maravilhosa, analítica e coletiva mente, estudando e resolvendo seus problemas matemáticos e físicos, participando de um todo sublime. Seria uma raça de gigantes semi-imortais, esses nossos verdes descendentes, parentes e aparentados, levando, porém, em si, inevitavelmente, alguma forma das nossas amargas características, tanto como dos nossos poderes espirituais. A revolução científica estava apenas com trezentos anos. Como ficaria dentro de um milhão ou um bilhão de anos? E Deus? Continuaria escondido, mesmo entre irmãos poderosos no espírito, continuaria fora de alcance?"
                                ( O Planeta do Sr, Sammler, p. 186, tradução de Denise Vreuls, editora Abril)

14 comentários:

  1. Charlles,

    ao ler o seu novo texto senti saudade deste romance de Saul Bellow. Assim que terminar "O arco-íris da gravidade", vou relê-lo. É maravilhoso.

    P.s.: Está havendo a maior confusão no blog de Lola. Tudo porque ela está defendendo um blog pornográfico de uma tal Letícia.

    ResponderExcluir
  2. Ainda não li o post. Vim dizer que estou curiosa pra saber as opiniões sobre o blog da tal de Letícia (já tinham me passado o link mas não sabia o nome da moça).

    ResponderExcluir
  3. Hahahaha.

    Fui lá ver o que se passava.(Tá bom, quem não gosta de um barraco?)

    A Lola, sinceramente, eu não tenho mais estômago. É tudo uma infinita perda de tempo. E ela ofende pra valer os que opinam o contrário dela. Bem...

    Não conhecia esse blog da Letícia (com todos os adendos parentesais se ela realmente existe, ou se as situações expostas são verídicas, etc, etc). Como é? Transar com cem homens em não sei quanto espaço de tempo, e viver principalmente para isso. Como ela diz na sua suposta despedida, ela se dedica 100% ao blog, leva a coisa a sério e por 24 h por dia_ no tempo que lhe sobra da atividade física para a qual ela decidiu fazer sacerdócio. E, então, ela simplesmente desmorona e joga tudo para o alto porque alguém lhe pergunta se já fez sexo por dinheiro? Hahahahhahahahahahhaha. É de se contorcer de tanto rir. Quanta susceptibilidade!!!

    Mas devo confessar que obtive um novo olhar sobre sexo anal após visitar o post referente da Letícia. Realmente é uma ciência precisa e arriscada, muito mais que supunha.

    O que me gusta desses blogs, o da Lola e o da Letícia, é a completa ausência por parte das blogueiras de percepção do humor involuntário que fundamenta esses blogs. A Lola admite que o ápice de visitas que teve foi em decorrência de sua refrega lá com o cara do CQC, e diz que isso nunca mais se repetirá. Reproduz a página gloriosa de seu Google Analitys com a cifra milhiardária de acessos, e a queda que houve depois que a coisa esfriou. E depois, descaradamente, pega o ataque sistemático contra as piadas do CQC como mote principal do blog. Puffff, é muita perca de tempo. A única análise que a doutora faz de um assunto cultural é sobre o último filme de Woody Allen, e num tom "meninas, como gostei do filme".

    Mas chega. A Letícia, no final, é posta como um ótima escritora libertária. Interessante a volubilidade dessas opiniões de quem frequenta a net: a Bruna Surfistinha, que participa de um reality show atualmente, já caiu nas más graças do público. Uma massa de espectadores muito pouco confiável.

    ResponderExcluir
  4. Heheheheheheeheehehehe!

    Charlles, fui lá e, puxa, detestei. A Bruna Surfistinha é preferível à tal Letícia, porque a primeira escreveu na condição de garota de programa, enquanto Letícia (se ela existir realmente) é mais teórica. Por falar nisso, não sabia que Caio Fernando Abreu tinha escrito "aquilo" sobre sexo anal. Meu Deus! Cada vez me convenço de que a homossexualidade deva ser mais espiritual do que física, como queria Gilberto Freyre.

    Caminhante, estou esperando pelo trabalho de sua colega.

    Mais Charlles: O jornal em que Milton Ribeiro trabalha publicou uma entrevista com um doutor da UFRGS em que ele elogia a internet justamente por permitir que os nossos vizinhos sejam escritores. Algo muito interessante, que me agradou. Aliás, o professor é de uma humildade impressionante.

    ResponderExcluir
  5. Vou conferir, Milton. Obrigado pela dica.

    ResponderExcluir
  6. Milton, que coisa. Ela não é das pessoas mais constantes na net, então interpretei a falta de notícias como ter dado tudo certo o contato entre vocês. Achei apenas um resumo do trabalho e escreverei a ela de novo. Procure no google por "A subjetividade das técnicas corporais nas Línguas de Sinais".

    Sobre o blog da Letícia - nunca poderia levantar uma bandeira, porque nunca consigo prever pra que lado ela está. Quando o blog dela começou a ser citado no meu twitter, jamais imaginei que seria por causa da Lola. Eu e umas amigas conversavamos que já é difícil encontrar 100 pessoas pra tomar um café, ou 100 pessoas interessantes, quanto mais 100 pra levar pra cama...

    Se fosse um homem que montasse um blog com essa proposta, ele seria imediatamente acusado de tratar as mulheres como objeto. Aí quando uma mulher faz isso, fica libertário. É assim que funciona, devemos aplaudir posturas exageradas porque são feitas por companheiras-mulheres, porque elas batem de frente com a tradição? Parece negociação, que você diz logo que quer 100, na esperança de vender por 60. É só assim que consigo entender feministas baterem palmas pra idéia de dormir com 100 homens, pelo exagero estratégico.

    ResponderExcluir
  7. Interessante: todos seus elogios ao autor me dão a impressão de que ele é um chato pós-beatnik, e eu simplesmente odeio os beatniks, com seus papinhos de diártio de adolescente empolgados com a descoberta da masturbação a quatro mãos, por exemplo. No trecho citado, sempre o lenga-lenga que conduz ao tema "supremo": e o deusinho nessa porra toda? Ora, Saul, não há deus nenhum, e a humanidade não evolui conforme as pretensões dela, mas de acordo com variabilidades que não estão dentro de seu alcance influenciar.

    Ficamos, assim, na questão do (des)gosto que só se discute para chegar ao ponto em que a tal Lola chega com o CQC, você chega com Lola e com Letícia, Letícia chega com você, e, bem, isso tudo é culpa do acesso à Internet - não fosse ela, não seríam,os tão críticos, tão scritores, tão intelequituais, etc.

    ResponderExcluir
  8. "a humanidade não evolui conforme as pretensões dela, mas de acordo com variabilidades que não estão dentro de seu alcance influenciar."

    Mas aí penso na penicilina e em Chernobil, Marcos...etc, etc.

    ResponderExcluir
  9. ...etc e etc... sim, mas não sabemos o alcance de tudo isso, e todas as suposições feitas nesse campo costumam atirar na água. O que penso msmo é que essa humanidade se extinguirá antes que tenha possibilidade de evoluir, logo todos nossos esforços prometeicos não valem uma célula para captação de energia solar. É "No Future" total, não adianta se enganar, mesmo porque se alguma coisa fugir à previsão apocalíptica, bem, será ótimo para os novos humanos, não para mim, que estarei morto há séculos; assim, o que interessa mesmo são nossas mazelas de hoje e os sonhos para até depois de amanhã.

    ResponderExcluir
  10. Mas veja bem: o que você propõe é a melhor solução evolucionista para a hecatombe certa: ficarmos parado em casa, à espera. Aí sim, baseado naquela frase do Pascal de que o mal existe porque o homem não se limita a ficar trancado em seu quarto, evoluiríamos plenamente.

    ResponderExcluir
  11. Milton, o Arco-Íris é de Pynchon.

    Sobre o post, nada a dizer. Bellow é um ENORME escritor. Melho dizer logo: adoro!

    ResponderExcluir
  12. Charlles, não tive tempo ainda de conferir o "It all adds up", mas gostaria muito de adicionar este (ou algum outro Bellow) - se não ao curso Lamento e História - pelo menos na minha própria coleção de preciosidades da Judaica.
    Tô aqui matutando se haveria espaço no curso para Philip Roth. De repente abordando a confissão psicanalítica de Portnoy como uma espécie de catarse, canto de lamento do Judaísmo do Novo Mundo. Lamento da queda do situação original do Judaísmo Palestinense, separado agora tanto do Zionismo quanto do European Jewry por um vasto movimento de corrupção de ideais de Exílio, Terra Prometida, e Pacto. Tenho em mente, claro, a cena onde o narrador de Portnoy's Complaint não tem o pathos necessário para forçar a violência sexual sobre a virtuosa e pura (no sentido ritual, moral, ideológico) jovem Israelense.
    Mas tem aí alguma outra idéia de como Roth poderia aparecer no curso?

    ResponderExcluir
  13. Luiz, já planejava fazer mais 3 posts de autores representativos, entre eles o Roth. Vou ver se dá para escrever um texto maior sobre Roth até sexta-feira. Talvez possa te ajudar.

    Não está sobrando muito tempo para mais nada a não ser ficar 24 horas por dia de olho na Júlia. Ela está começando a se firmar nas pernas e a engatinhar, e parece uma pilha alcalina inexaurível!

    Mas tenho muito a dizer sobre Roth (penso).

    Abraço.

    ResponderExcluir
  14. P.S. ligeiro: presumo que um dos livros de Roth com reflexôes mais ácidas sobre o judaísmo seja O Avesso da Vida. Também tem o OPeração Shylock, claro.

    ResponderExcluir