sábado, 30 de julho de 2011

Someone's knockin' at the door/ Somebody's ringin' the bell


"Ao penetrar na terra, fiz tábula rasa de tudo, menos da minha mente. Da minha mente. E a mente que concebe um projeto de vida não deve nunca perder de vista o caos que levou a tal projeto. Isto vale tanto para as sociedades como para os indivíduos. Assim, tendo tentado dar forma ao caos que mora no cerne de nossas certezas, devo agora sair, emergir. E ainda há um conflito dentro de mim: há uma metade de mim que afirma, junto com Louis Armstrong: "Abre a janela e deixe o ar viciado sair"; enquanto a outra afirma: "O milho era bonito de verde, antes da colheita". É claro que Louis estava brincando, ele próprio nunca deixaria sair o ar viciado, pois isso acabaria com a música e a dança, e a música que saía do ar viciado do seu pavilhão de ouro era música da boa; e isso é tudo que importa. O ar viciado está aí, na música e na dança, com a sua diversidade_ e eu estarei por aí, com a minha. E _ como já disse antes_ cheguei a uma decisão. Vou me desvencilhar de minha pele velha e deixá-la aqui, na minha toca. Vou sair por aí, embora nem por isso me torne menos invisível. Mas vou sair, mesmo assim. Acho que já não era sem tempo, pois, pensando bem, até na hibernação existe o risco do exagero. Talvez seja esse o meu maior crime social, o de ter prolongado demais o meu tempo de hibernação. Pois existe uma possibilidade de que mesmo um homem invisível tenha uma responsabilidade social a cumprir.

     _ Ah! já estou ouvindo vocês... Então foi tudo conversa fiada, tudo cascata...! Ele só queria era uma platéia cativa para os seus delírios!

      Mas isto só é verdade até certo ponto: invisível e sem substância, voz incorpórea, por assim dizer, que outra coisa me restava fazer? Que outra coisa, além de tentar lhes explicar o que acontecia comigo, nesse tempo todo em que vocês não me viam? Eis aqui o que realmente me assusta:

      Quem sabe se, nas frequências mais baixas, eu não falo também por vocês? "
                             
                  Ralph Ellison, Homem Invisível, tradução de Márcia Serra, editora Marco Zero, pp. 498-499

14 comentários:

  1. E SE...
    by Ramiro Conceição


    E se... sem resgate, sem justiça,
    sem apocalipse, sem redenção,
    sem amor, memória ou história,
    sem explicação à consciência,
    sem filosofia, poesia ou sem ciência,
    tudo acabar como nunca houvesse sido?
    E se… o “tudo posso naquele que me fortalece”
    vier sempre acompanhado dum dízimo matreiro
    pra que se deixe a rabeira e se vire uma cabeça,
    a mais!, a perpetuar a insensatez nesse mundo?
    E se… sem remorso, porque tudo pode
    de todo jeito, o melhor é a acumulação
    capitalista (enquanto existe tempo, pois
    no fundo, no fundo, o conteúdo
    naturalmente é uma elite de párias
    grudados no saco duma canalha)?

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  2. Não sei porque, Charlles, mas na maioria das vezes em que leio autores estadunidenses percebo neles laivos de profeta bíblico, mesmo que invertido, como no poema do Ramiro...

    Talvez se espere demais da prosa e da sua capacidade de criar mundos virtuais à imagem e semelhança de seus nada divinos criadores; talvez seja assim por causa da transformação, nos EUA, da cultura negra original dos africanos em submissão evangélica, e boa parte da música tivesse que ter vocais gritados, como se quisessem abrir à força os portais do paraíso...

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  3. Engraçado, comecei a escrever um romance que começava com um personagem que, morto, percebia o lento desmonte de sua mente, enquanto ouvia e sentia o mundo à sua volta. O "espírito" possível seria a preservação dos circuitos neuronais ainda capazes de pensar, cada vez mais lentamente até a extinção, o mundo em que viveu. Me pareceu semelhante a esse trecho aí.

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  4. Rachel, a boa tradição romãntica do império como que pede esse tom de quem vive e vê os horizonte além num poderoso e brilhante protótipo de redenção humana. Até no menos americano dos escritores_ Faulkner_ há, em negativo, essa convolução de viver-se em "Roma". (Embora Faulkner seja o mais bíblico dos escritores americanos.)

    Elisson escreveu apenas esse romance (foi lançado um outro, póstumo, mas que não conta). È uma leitura maravilhosa, e injustamente deconhecida no Brasil (houve somente essa edição, há muito esgotada).

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  5. Marcos, quando terminar, me manda. (Naquela velha e conhecida cara de pau da minha parte.)

    P.S.: vou estar fora da net hoje por motivos de trabalho.

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  6. Tens 99% de chances de não receber, pois é um daqueles largados depois de várias tentativas no início do ano.

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  7. Bem, resolvi por aqui os dois parágrafos iniciais do romance malogrado (o título seria "Há rumores de vida em Marte"). A seguir:

    "Então é isso, diria, se pensar pudesse ou exprimir pela voz uma constatação acerca de qualquer coisa que fosse. Porém, por estranho que pareça, o fato é que, imprevisto, o corpo morto ainda sente como que desperto, mesmo posto em um caixão, a perceber as vivazes presenças de alguns poucos amigos e familiares, a dar voltas em torno de seu corpo à exposição, nessa banal velório, Ah, se eu pudesse dizer, ele diria, Encerrem com isso, ponham logo esse corpo inútil para repousar seu sono eterno sob a terra, é insuportável estar morto e querer, mas não poder, escarnecer os vivos, pensaria se pudesse e mais ainda sorriria, ao destacar no escárnio a carne, nunca se importou com etimologias, mas nesse momento se encontra, diremos nós, particularmente sensível.
    Cabe aqui a digressão, a recordação, o vagar pelo tempo como em uma excursão do bêbado que era nosso inapetente herói em todas suas viagens, com suas escalas e paradas de ônibus, a gastar o pequeno intervalo entre as possíveis garrafas de cada local, para aplacar as dores de cabeça de que sofria em qualquer oportunidade de trânsito entre uma cidade e outra, maldita carreira que o fez viajante, quando sua aptidão à letargia era uma promessa de uma vida sã ao relento das tardes ociosas, dessas que quase não teve, sempre entre um ponto e outro da geografia, distâncias várias e interesses nunca dispersos, sempre objetivos: negócios, capital, contratos, fechamentos, comissões."

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  8. Gostei, Marcos. Talvez devesse dar prosseguimento.

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  9. "Talvez" é bom, né...

    Sem me alongar muito, já me diverti escrevendo romances. Agora eles me custam o preço da distância entre eu e o leitor não domésticos. Escrever livros só para os familiares é barra. Só para o "cultivo" pessoal também. Ao contrário de uma parte dos "escritores", eu gosto de ser lido; gosto que anônimos conheçam o que escrevo, e que essas coisas façam alguma diferença em suas maneiras de agir e pensar. Esse tipo de vaidade solidária é imprescindível, ao meu ponto de vista, ao exercicio da escrita. O escritor que escreve "só para si mesmo" e para satisfazer "o próprio gosto" é coisa pra mim sem qualquer sentido humano. O que digo é que não há vaidade humana avessa à satisfação do meio social, ok?

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  10. O "talvez" é em respeito ao seu arbítrio. Penso que haja uma condição mediadora nessa ideia certa sua de querer ser lido. Não vou me fazer claro, mas tem algo a ver com o fato de ontem, enquanto fazia trabalhos internos aqui em casa, ter ouvido todas as canções de Robert Johnson, e ficar tocado pela realidade de um negro, beberrão, mulherengo, paupérrimo, no auge do período de discriminação racial dos EUA do século XX, com um gravador precário e acompanhado com sua guitarra, ter feito o que fez. Para ninguém, mas para si mesmo. Claro que nenhum escritor quer a postumidade, mas trabalhar acirradamente, ser fiel a si mesmo, e ter um sólido conhecimento do que foi feito antes_ e não beber o whisky servido por um marido ciumento_, já é um caminho mais que desejável.

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  11. Eu acho que o Marcos tem razão e entendo o que ele quis dizer. Passei muitos anos achando que não precisava dos olhos dos outros. Resultado: parei de esculpir. É como se o processo de criar fosse primeiro um prazer pessoal (agora estou saindo do que ele disse) e depois impusesse a necessidade da luz do dia para continuar vivo.

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  12. Detesto colocar a pedra tumular nos teus comentários.

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