Há um conto de Saul Bellow intitulado Como Foi Seu Dia que trata da visão de uma simples dona de casa americana quanto ao grande portento intelectual e filósofo acadêmico do qual ela é amante. Esse pensador moderno, altamente graduado nos níveis universitários, conversava de igual para igual com Hannah Arendt, desenvolvera uma teoria de reinterpretação original dos escritos de Marx, fazia congressos pelo mundo inteiro e era um aficcionado por boas doses de whisky para encerrar o dia. Em suma, era um astro mundial das ideias, algo equivalente a um Mick Jagger cuja atração exercida sobre um extrato específico do mercado de entretenimento era proporcional ao que fazia alunas pós-adolescentes e mulheres de meia idade se curvarem diante a sua imanência sexual de crueza masculina subjacente à imagem consumível de cérebro infatigável. Bellow, com sua contumaz energia em tecer frases iniciais disfarçadas sob a mais insuspeita trivialidade, começa o conto assim: Assoberbada por dúvidas, seduzida por seu espírito inquieto, Katrina Goliger iniciou uma viagem que não deveria fazer. Tendo encerrado a jornada pelas quatrocentas e tantas páginas de Em Defesa das Causas Perdidas, me veio à mente a lembrança desse conto e a convicção de que Slavoj Zizek é o amante ultra-cerebral de Katrina Goliger. O auge do conto de Bellow é uma cena num avião em que os dois, Katrina e seu Zizek, passam bem próximos da morte. Por um momento, entre as descrições de uma vida milionária em vários sentidos (tanto financeira quanto a da quantidade de holofotes projetados), o conto nos mostra o significado fugidio e atordoador que surgiria caso a entidade fosse pulverizada por um acidente inesperado que só é factível acontecer com simples indivíduos. Se o grande pensador morresse na queda de um avião, quantas possibilidades redencionistas seriam abortadas para o futuro político do mundo, repetindo uma nota de rodapé no livro de Zizek que nos passa a dedução de que a realidade atual, em seus diversos niveis, surgiu das ideias escritas em quartos às vezes paupérrimos por homens isolados? Ou, apreendendo a lição de Conrad em O Coração das Trevas, quando Marlow falseia à noiva abandonada por Kurtz que as últimas palavras dele foram dirigidas a ela: o que isso importa?, os céus e a terra continuarão sem nunca terem percebido qualquer vã intrusão humana em sua eterna existência.
Um jornal chegou a alegar sobre Zizek que ele "é o homem mais perigoso" sobre a face da Terra. Uma leitura mesmo leviana de seus textos não deixa prever a verdade de uma tal afirmação, não pela acurácia do leitor em se deixar levar pelo lado pop de suas referências entremeadas a filmes de Hollywood, que suavizam sua defesa condicional a Stalin e Mao, e não por se ficar apenas na apreciação retórica de sua afirmação de que o erro destes homens foi não terem sido radicais o suficiente, mas porque o mundo de hoje é absolutamente impermeável a se deixar se fundamentar por novos pensadores isolados em quartos paupérrimos. O livro de Zizek é sim ótimo; lê-lo é retornar um pouco à impressão de segurança que os textos de Nietzsche davam na juventude, quando se era possível participar de uma postura de reação sem precisar se auto-policiar contra o cinismo. Traz a mesma sensação de permanência que eu sentia ao atravessar todo o centro da cidade à pé, num fim de tarde de céu carregado de nuvens de chuva, enfebrecido pelas palavras impossíveis de A Gaia Ciência. Tirando a sua teorização às vezes pesada sobre Lacan, que condiz a uma das duas "causas perdidas" do título (ele que é abertamente freudo-marxista), seu texto pode ser lido com a mesma velocidade interessada que se lê um romance ou um ensaio de temática mais solta. Mas surge uma série de problemas para o leitor maduro, aquele mesmo que, após os 30 anos, se delicia mais com a música de Niet do que com o que ele verdadeiramente queria dizer, que já está emancipado (infelizmente, às vezes) das retóricas wagnerianas e das peregrinações por vales e montanhas atrás da Verdade_ que já está atolado pelas Verdades a ponto de olhar mais com piedade resignada do que com exaustão para as lombadas dos livros na estante. Para esse leitor, a música de Zizek, menos bela que a do alemão, não basta como teria bastado numa leitura de há vinte anos. Seria como a mesma incapacidade de se satisfazer com um espetáculo de malabarismos em que fica evidente demais para a platéia que as facas lançadas no ar podem tanto matar o artista quanto os espectadores nas arquibancadas.
A Experiência atrapalha bastante quando Zizek, carregado da mais elétrica batuta retórica para fazer sua orquestra tocar a sofisticação bombástica de seu concerto, relativiza Mao dizendo que Mao fôra "genial" ao instituir contra si mesmo a Revolução Cultural na China, num golpe de adstringir o regime e centralizar em astuta reviravolta o poder em suas mãos. Zizek poderia ser o homem mais perigoso do mundo se o mundo caísse no seu acentuado poder de sedução_ se o mundo fosse uma Katrina Goliger estupidificada, calmamente, como uma gata de raça refestelada no colo generoso do dono, diante a encarnação humana da plenipotência_, pois Zizek requer uma lucidez de analista de mercado por parte do leitor para que esse perceba a especulação feita num universo virtual que quer valorizar os objetos materiais às custas de suas representações subjetivas. Zizek ataca onde está a ferida, seguindo a técnica de conseguir legitimidade por ser o primeiro a apontar o cisco no próprio olho, aceitando que Mao fez morrer dez milhões de camponeses chineses na grande crise agrária de 1958-1961, mas aos poucos fazendo escorregar esse fato brutal para o ralo das estatísticas puristas lavadas de significados, e transformando, com sua simpatia de promover a distração textual através de interpolações cinematográficas e outras paradas no universo pop, esse dado numa recorrência logística da História, um dado que, se Mao tivesse sido mais radical, teria se justificado no futuro. Dez milhões de pessoas mortas da forma mais cruel imaginável (de fome!), que teriam alçadas ao escalão de mártires nacionais quando a etapa final do pesadelo fosse compensada na aportagem da sociedade igualitária perfeita. E quantas etapas seriam aceitas mais? E se o grande avatar mais radical de Mao cometesse uma pequena distração no arranjo cronológico para a Shangri-Lá verdadeira, e outras dez milhões de pessoas fosse necessário atirar no sacrifício? Ou outras vinte milhões? Imaginei várias vezes a vergonha que eu sentiria se, na Flip, eu dirigisse essas perguntas a Zizek, pois outra face de sua astúcia é o de, à força de sua inexorável teorização técnica, descartar com humor as investidas diretas e simplórias. Trazer todo o seu pensamento situado nas mais altas esferas do discurso psicanalítico e de teoria política, para esse horizonte colegial de nenhuma luz estroboscópica (apenas os 100 vatz que me serviram para ler suas palavras no quarto)?
Numa parte de seu livro, ele se dedica em trinta páginas a responder às críticas de Ernesto Laclau à suas ideias. Laclau escreveu que Zizek esperava a aparição de marcianos no cenário da história atual para refazer com mérito sobre-humano os descaminhos das versões pragmatizadas do marxismo. Ou seja, Laclau ironizou a leitura mais superficial de Zizek_ a da retomada do ponto zero, ou o ponto um, das intenções ainda imaculadas dos grandes reformistas socias da esquerda, Trotski, o jovem Stalin, Lenin, o jovem e o tardio Mao_, insinuando que a humanidade não faria aparecer nenhum elemento de seu comportamento fartamente padronizado de assassinos políticos que fosse virginal o suficiente para não ser engolido pelo mal do poder absoluto. Zizek usa de uma parafernália de termos do mais hermético vernáculo acadêmico para dizer que Laclau não soube ler seus livros, e que Laclau perverteu por completo os conceitos criados pelo seu mestre Lacan. Zizek se enfuna num linguagem tão maçônica, carregada de palavras copuladas (grande-Outro, negação determinada, diegético real, etc.) e termos específicos; lança-se num lago de Narciso particular tão velado, que dá a impressão ao leitor que deveria ter pulado aquelas páginas por não lhe serem dedicadas. Sai-se dessas páginas se conjugando à possível verdade da contra-acusação do autor de que Laclau não entendeu o que ele quis dizer, porque fica parecendo que o significado dessas passagens de Zizek é mesmo além do entendimento. São corpos linguísticos que deveriam ser assimilados osmoticamente, para avalizar em maior grau a importância do autor, que, olhem só, escreveu um livro com tantas outras páginas salutares e divertidas, tantas passagens anedóticas e engraçadas.
Um aspecto imprescindível para o entendimento de que Niet é o grande pensador que é, é a de que morreu louco. Sem a loucura, Niet não teria a estatura que tem hoje. Uma longa vida com uma morte pacífica teria relegado Niet a um simples autor provinciano, que em um momento patológico escreveu assombrações mentais cuja cura as converteram em excentricidades datadas. É pensando no Niet com o cérebro consumido pela sífilis que sabemos interpretar com uma carga incomensurável de beleza e fé numa distante humanidade do porvir sua aforística contrária à ralé germano-burguesa, sua poética de insistir cansadamente de que um dia, "irmão", nos encontraremos numa linha temporal em que a pureza conseguida pelos sofrimento nos autenticará como homens puros. É graças ao velho Niet que podemos acreditar que seria bom se a humanidade como a temos hoje desaparecesse em sacrifício imolador para o surgimento do Super Homem. (Também é graças à morte precoce de Bernhard que seus romances são tão iradamente essenciais.) Porque essa certeza determinada de que não existe mais quem proferiu essas incorreções políticas retirou tais textos da gravidade normativa dando-lhes um caráter de expurgo quase sagrado, de catarse acima do certo e do errado, transformou o que a saúde teria configurado como crime num diagnóstico de iluminado potencial premonitório. Sabendo que não existe uma personalidade à espera das compensações ordinárias ligadas à partidarização e à pertença grupal (Niet dizendo que a raça alemã era a fraca, e a judáica a que se fortalecia ainda mais por quanto mais agruras se submetia), fica estranhamente plausível aceitar o próprio fim para que chegue a época redentora (a cena final de Gran Torino). Tudo o mais que em nosso tempo, as forças da saúde consolidadas e das confortáveis posições de atos de ofício estabelecidas, fala sagazmente sobre extermínio, assassinatos, em nome da biopolítica, em nome da história futura em que os fins justificam os meios, soam o que realmente é: um pragmatismo alienado do sofrimento infligido ao outro desabrigado e desprotegido, para assinar a vaidade intelectual do que está abrigado e protegido pelas instituições oficiais do saber.
Lendo Zizek, que é realmente uma leitura essencial para se compreender nossos dias, vejo o quanto há de contraditório nos lances de suas ideias. Ele trata de algo fundamental: a não aceitação pacífica de vitória total do capitalismo. Para afirmar a unanimidade capitalista, ele lembra de uma banalidade despercebida: há 30 anos não se usa mais a palavra "capitalismo". É difícil ver seu emprego nos textos correntes. Ele instiga à re-criação de uma nova esquerda, não essa que está aí que, como salienta sarcasticamente, "com essa esquerda não precisamos mais da direita." Sua proposta é de uma esquerda auto-elucidada ao extremo sobre seus imensos fracassos, e não escamoteadora de suas culpas; uma esquerda que antecipe as críticas da oposição expondo suas vilanias na cara. E é aqui que, para parafrasear T.S.Eliot, cai a sombra entre a intenção e a ação dos textos de Zizek. No meio da brilhante reificação das grandes utopias e das grandes ideias sociais, Zizek falha enormemente em se negar a voltar ao ponto zero para pular direto ao ponto um. Incapaz de sacrificar por inteiro os heróis dessa esquerda corporativa e auto-negligente que ele tão magnificamente condena, Zizek se encolhe no abraço aos seus ídolos juvenis, e tenta restabelecer Lenin, Stalin, Mao. Assim, ele cai na contra-produção da base de sua teoria, a de que os grandes sonhos de emancipação humana ainda são possíveis. Contradiz-se por mostrar flagrantemente que não sobrou nenhuma dogmatização no edifício icônico da esquerda, por isso tendo que disfarçar em milhares de palavras que Stalin, Mao, Lenin, Trotski, se prestam a serem os alvos religiosos de um novo caminho, desde que o assecla demonstre uma fé inquebrantável de dirigir suas orações às fácias virtuais desses santos quando eles ainda vestiam suas túnicas, antes de terem sido tentados e caídos na mais completa devassidão demoníaca. No fundo de sua estatura filosófica, Zizek não faz mais que cometer o pior pecado atribuível a um historiador: fazer a pergunta "e se?", cogitar da história hipotética. E se Lenin não tivesse morrido em 1924?; e se Stalin não tivesse subido ao poder?; e se Mao tivesse aberto a economia da China? Zizek mostra a grande preguiça ou insuficiência de se pensar em algo absolutamente novo, caindo assim numa mistificação perigosa. Numa determinada parte de seu livro ele relembra uma frase de Hegel, de que não é bom conhecermos demasiado. Uma advertência quanto ao excesso de esclarecimento (algo que Adorno também intuíra). Mas seu intelecto turbinado, seu excesso de conhecimento, o faz pouco auto-referente. Incrivelmente não vê que caiu na cegueira de que "o que é bom para os outros não o é para mim". Não vê que ele é o homem ultra-instruído, alguém que pode ficar confortavelmente fora da história, em sua casa refrigerada, em sua sala de professor de frente a um dos mais belos cenários do mundo em Liubliana, alguém que detêm o que milhões de vítimas do poder do século XX sequer sonhavam conseguir: a proeminência da palavra. Quer ser retrógrado na pesca do antigo iluminismo, mas perde de vista o "coração terno" do qual Checov falava.
Ai, que texto enorme sobre o Zizek...
ResponderExcluirNão acho que Nietzsche tenha sido um grande pensador, mas um blogueiro sem internet, submerso em suas dores de cabeça, sua sífilis, e por isso em sua loucura banal, tratada como heróica por muitos. Sua crítica à derrocada da civilização alimentou, sim, ideias que, sim, são a elas compatíveis, as nazistas. Ele acerta em alguns poucos, rra na maioria, e muitas vezes se perde em descaminhos ou simplesmente tergiversa quando não lhe interessa a clareza, por evidenciar alguns preconceitos.
O interessante em Zizek é que ele chama a atenção para os sucessivos erros do capitalismo, que mesmo assim é mantido como realização ideal da democracia, sem que seja permitido ao comunismo cometer seus próprios erros e se demonstrar, mesmo assim, como sistema socialmente viável. Entre muitas outras coisas que, no entanto, não comentarei aqui sob risco de escrever um texto ainda maior que o seu...
Como disse, Rachel, Zizek é fundamental para se entender os entreveros políticos da atualidade. Mas ele deixa em nébula as consequências que sua teoria teria se empregado na prática.
ResponderExcluirSou conhecido pela prolixidade textual, desde o blog do Milton Ribeiro. Uma contravenção imposta para a normativa de laconismo dos blogs.
Pra falar doutra coisa em Zizek que é engraçada: a consideração que ele tem por Lacan. Noutros tempos eu tava tentando ler esse cara e deparei com uma teoria babaquinha que responde pelo nome e imagem "nó borromeano", de um esquematismo infantil, mas a coisa é tida por manifestação de gênio teórico. Achei tão bobalhão que, mais uma vez, apertei a tecla foda-se e disse adeus aos lacanismos.
ResponderExcluirMas o que a esposinha apontou é que é essencial: esses putos capitalistas erram o tempo inteiro, e agora chegaram ao estágio final do sistema, que é o da crise permanente, que impõe sem discussão alguma o imperativo da precarização das relações trabalhistas como única via para retomada dos investimentos, quando foi justo a não regulação dos mercados, ou seja, do carreamento mundial dos recursos financeiros às corporações bancárias, que produziu esse dinheiro de fantasia que logo virará uma pira descomunal para mitificação dos poderes do capital.
Noutro dia tava num blog "progressista" e discutia com um carinha que descartava a solução estatista do comunismo tipo soviético; ora, disse a ele, se não há a solução de por os meios de produção nas mãos dos trabalhadores sovietizados, resta a trilha do capitalismo liberal, que só produz miséria para 70% da humanidade, no barato. Então podemos, sim, retomar a trilha do "estatismo" descartando, aí sim, o poder supremo do Estado e de qualquer liderança, e construir um sistema com bases "soviéticas", com trabalhadores livremente associados mas conscientes da necessidade do atendimento das demandas públicas, em suma, produzir os bens necessários à coletividade e receber o mesmo, com equidade, com igualdade, de acordo com suas necessidades, ou como escreveu papai Marx: "De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades".
No mais, é viver a vida com uma única ambição: gozá-la, sem qualquer disposição a disputa de poderes e formação de estruturas de poder.
Tratar de Zizek fazendo referência à sua pretensa realpolitik é um pouco como andar no fio da navalha, Charlles.
ResponderExcluirA resenha como sempre é muito bem escrita. As alusões a Nietzsche e o intelectual de Saul Bellow, ótimas aproximações à estrela intelectual de Zizek.
Mas você faz a teória crítica de Zizek em realpolitik. Acho que isso não cabe dentro das pretensões de intelectual global do guru de Ljubljana. A leitura deliciosa de Em Defesa das Causas Perdidas, notwhistanding, o livro não se presta a desenhar projetos políticos possíveis derivados do Lacanianismo Zizekiano. E aqui acho que discordamos mais uma vez. "Em Defesa" apenas aparenta ser Gaia Ciência (insira aqui qualquer outro título Nietzscheniano que insulfla entusiasmo anti-autoritário nos mais jovens). Quer dizer, Zizek é o único intelectual que conheço que consegue equilibrar (sem leviandade) no mesmo ensaio, observações sobre "The Breakup" e a tríade Lacaniana Real, Imaginário, Simbólico. Ou mesmo, amarrar no mesmo livro, uma genial leitura Lacaniana do indecidível sexo entre Bogart e Ingrid Bergman, e a mais lúcida e intricada análise sobre os pecados teóricos de Foucault que o levaram a saudar a Revolução Iraniana como "evento puro" e ato conduzido pelo braço metafísico da História (ou como Foucault disse em um de seus artigos ao jornal Corriere de la sera, um instante de "política espiritual", acima e além de quaisquer interesses mesquinhos cavados da Realpolitik Iraniana). Quer dizer, um livro com tamanha pretensão, de tal demonstração de cockyness intelectual, só pode ser propriamente analisado se e somente se você dançar conforme as músicas de Zizek. Isso implica obviamente não só o foxtrot (que você dança muito bem), mas também dançar Hegel, Lacan, Badiou, etc. Lacan, nesse sentido, não é apenas um ato entre outros, quando os dançarinos cançados e suados do foxtrot, se sentam às suas mesas e tomam martinis.
Achei estranho que tenha lhe passado despercebido justamente o que tange o grande trunfo de Zizek - revisitar toda a hagiografia marxista e fazê-la dançar sob música diferente da Internacional. O bojo da sua crítica a Zizek até onde pude entender é que ele falhara ao deixar-se erigir ab ovo os mesmos ídolos marxistas que a dissidência soviética, ora fugida na França, ora em algum lugar das Américas, tratou de demolir.
Cada leitor é o seu leitor, obviamente.
Eu não li nada disso. As referência a Mao, e principalmente a de que ele constroí uma revolução sem referência ao proletariado, serve como base a crítica de Zizek às vicissitudes Chinesas que proporcionaram "the Capitalist reappopriation of revolutionary dynamics."
Um segundo ícone Marxista, esse obviamente muito mais encardido pelos assaltos da dissidência, Stalin, recebe a pecha Humanista apenas para que o nosso intelectual global redesenhe, com um sorriso matreiro no rosto, o que ele pretende por humanismo, e que fora justamente esse humanismo que sustentou o terror dos purgos de Stalin.
Noutro momento ainda Zizek afirma que o humanismo de Stalin salvou o mundo da catástrofe atômica. Tudo isso lido dentro da alma de provocateur e da nova valência de humanismo que Zizek cava.
Trocando em miúdos, essa turma da crítica teórica não deve ser lida dentro de uma análise do realpolitik - assim como o Foucault de Surveiller et Punir não dava a mínima para o Partido Comunista Francês e declinou inúmeras investidas de Deleuze, Sartre e de Beauvoir para assinar as listas de protesto político que corriam à época da Guerra do Vietnã. Isso vale ainda mais para Zizek, muito melhor provocateur que o Marcos Nunes.
Luiz, muito obrigado pela atenção desse seu comentário. Escrevi esse post como se prestasse à execução dos ordinários "fichamentos" da universidade. Ou seja, como tudo desse blog, é um texto em aberto e nunca alcançado pelo ponto final. Estou terminando de ler o "Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa", e logo em seguida lerei "Mao", e "Visão em Paralaxe". Como vê, estou dedicando não só de alma ao esloveno, como também uma considerável provisão de finanças familiares. Sinto uma profunda sensação de deslocamento nas inúmeras partes de linguajar "técnico" freudo-marxista de Zizek. Esforços tremendos são exigidos da minha já boa concentração, mas muitas vezes tenho que me abstrair de minha experiência de leitura para poder tocar nessas imagens inéditas. Lembra-me os meses em que me martirizei num tratado de Bioquímica insondável na faculdade. Não sei porque tantos instrumentos de pertença maçônica por parte de Zizek; insinuo aceitar que é sua forma intrínseca de contraatacar a permeabilidade universal de "novo radical da filosofia", mas aí lembro que Foucault também é assim, e um de minhas leituras preferidas, Adorno, também é assim.
ResponderExcluirMas pois bem. Reitero: esse post não é um texto definitivo da minha parte sobre o autor. Zizek faz um "gingo" por todos os assuntos da mesma forma que Bernard Shaw fazia nos longos ensaios que subscrevia suas peças editadas. E, essa quebra desfolegada que digressiona seus textos tem tanto o charme de suas notas descontextualizadoras da contra-cultura quanto o risco que Shaw corria de se tornar às vezes forçadamente pedantes. Mas, claro que é uma delícia ler Zizek; mas há muito de prestigitador em seu texto, não é? Aquela parte sublime em que ele analisa o compasso 331 da Nona Sinfonia de Beethoven, por exemplo: é absolutamente espetacular. Fica-se tentado a se fazer longas paradas nessa parte, até que nos vem a afirmativa desapaixonada: a nona acaba que não é mada daquilo que Zizek sentencia ser.É uma grande viagem e uma grande farsa, não é verdadeiro! E aí podemos usar o mesmo rebate que Zizek faz aos críticos que viram o catolicismo martirizante subliminar no filme Viagens de Motocicleta: "e daí?". Essa "farsa" zizequiana não é o mote para o próprio pensamento ocidental?
O que eu gostaria de ver mais claro_ e isso não exclui a dedução de que EU não esteja entendendo o que leio_ é se essa brincadeira da erudição é aplicável na realidade política. Até quando podemos entender que a Revolução Cultural foi, APENAS, um gesto de legítima genialidade de Mao para tentar retirar o processo revolucionário do Estado? Até que ponto podemos explorar numa realidade fisica sugestivada que Robespierre não foi radical o bastante, ou idem para Stalin?
Sim, Zizek é indispensável, como disse. Vou atrás do aprofundamento nessa "linguagem". Vou atrás de Hegel e Lacan.
"Achei estranho que tenha lhe passado despercebido justamente o que tange o grande trunfo de Zizek - revisitar toda a hagiografia marxista e fazê-la dançar sob música diferente da Internacional. O bojo da sua crítica a Zizek até onde pude entender é que ele falhara ao deixar-se erigir ab ovo os mesmos ídolos marxistas que a dissidência soviética, ora fugida na França, ora em algum lugar das Américas, tratou de demolir. " Não me passou desapercebido isso não. E é justo isso que é o centro da minha "incompreensão". Como Laclau falou a respeito da ingenuidade de Zizek por esperar um marciano, eu também receio muito que, utilizando-se esse pessoal todo como "incompreendidos", ou como passível a uma releitura depurada de seus imensos crimes humanos, haverá na cordidura do humano como o conhecmos, capacidade de seguir os passos obliterados desse pessoal sem recair na bifurcação que os levou ao massacre.
Outra coisa.
ResponderExcluirSe o propósito do texto é pensar a realpolitik Zizekiana, há textos dele que se prestam muito melhor à empreita. Menção honrosa aqui aos ensaios políticos mais descompromissados, escritos sob o calor das atualidades políticas globais. Refiro-me aqui por exemplo a um de seus últimos textos sobre as revoluções islâmicas do Egito e Norte da África.
E concordo com a Rachel. Talvez o ponto mais importante da crítica Zizekiana, se se quer pensar na política onde transitamos eu e você, a polis encarnada e não a polis de Zeno, é a da relação estreita entre democracia e capitalismo. Aqui cabe a pergunta do realpolitik. Que raios Zizek pensa ocupar a vacante ausência da democracia?
O seu texto me fez antecipar a leitura do último livro do Zizek sobre a crise econômica Global, o Living in the End Times (ignoro se há ainda tradução para o português). Além dele deslindar ali mais do seu libelo contra a díade democracia global - sistema de mercado global, ele intenta também uma interessante leitura da crise pela ótica Lacaniana repressão, sublimação, etc. Meu interesse por essa leitura da História é duplo. Zizek por Zizek, primeiro. Segundo, um curso sobre Lamento e História na tradição judaica onde pretendo lançar Lacan afim de vislumbrar as respostas psico-históricas do Judaísmo ao rico repertório de catástrofes nacionais seu. O curso começa em setembro aqui na Universidade de Toronto.
Gostaria imensamente de participar de tal curso. Mas..., o que fazer, né!
ResponderExcluirDesconheço o título de zizek do qual menciona. O "Causas Perdidas" e "primeira como Tragédia" foram lançados nesse ano simultaneamente ao lançamento em lingua inglesa, pela editora Boitempo. A Boitempo fez um trabalho maravilhoso, tanto de editoração quanto de tradução. Não há um erro sequer no trabalho do livro. Pelo que vejo no índice catalográfico, esses livros forma postos a público pelo autor nesse ano. Há então um terceiro livro de 2011?!
Como fica de suas contribuições, há sempre a vontade de que escrevas mais. Mas estou longe de bancar o descortez.
(Esse post foi feito pensando numa dicotomia. Lestes os ensaios de Saul Bellow? Tenho-os também no original, It All Adds Up. Trata muito sobre o judaismo e sua insolvência na América do século XX. Há um ensaio, O Público Distraído, que trata exemplarmente das armadilhas da linguagem política e da distração dentro da distração (usando, mais uma vez, o verso de Eliot). Se não conheces, ajudaria_penso_ no propósito de sua temática. Bellow é ótimo ensaísta. A dicotomia a qual referi, parte de uma crítica de Bellow quanto ao hermetismo dos assim chamados "megafilósofos", e cita Foucault. Bellow traça uma análise, nesse e em outros ensaios, sobre o que se esconde por detrás dos jogos sofisticados da retórica. Esse livro, que sempre releio desde anos, me levou à essa interpretação do pragmatismo do livro de Zizek.)
O In Defense of Lost Causes é de 2008. First as Tragedy, then as Farce, de 2009, acho. Living in the End Times é de 2010. Até onde sei ele não lançou nada ainda em formato de livro em 2011.
ResponderExcluirA sua resenha é muito boa. Fichamento de universitário é muita modéstia da sua parte. Eu vinha já antecipando um texto seu mais encorpado sobre o esloveno. Demorei em responder por falta de tempo. Pressing matters. O curso que mencionei aí em cima que ainda se encontra em fase de construção.
Pois bem. Tava curiosíssimo para ler as suas impressões sobre o Em Defesa.
Acho que você capturou o estilo Zizekiano no ensaio. Mas talvez tenha se deixado animar pelas referências pop do filósofo. Em Defesa é um livro de filosofia. Se muito um livro da critical theory. E de tradição francesa ainda por cima. O hermético e o maçônico fazem parte do jogo. Já leu o Écrits do Lacan? Ou por exemplo o Pour Marx do Althusser. É desse Marxismo crítico que vem a ensaística do Zizek.
Eu acho até que o Zizek dá nó em pingo d'água na sua popularização de J. Lacan.
Um comentário insone, quase sonâmbulo. (Depois comento mais. Acho uma pena que esse texto seu não conseguiu mais atenção. Prova que Zizek não é tão Lady Gaga assim)
Obrigado, Luiz. Como disse, vou atrás das referências, principalmente Lacan, Althusser e Badiou.
ResponderExcluir2011 é o ano do Copyright de "Em Defesa das Causas Perdidas" e "Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa", das edições da Boitempo. Com certeza, um descuido da editora.
Dois amigos meus professores e eu estamos tentando organizar algum grupo de debates informais sobre Zizek por aqui, na cidade.
Bom, agora que precisa ir trabalhar sou eu.
Abraço.
"Como Laclau falou a respeito da ingenuidade de Zizek por esperar um marciano, eu também receio muito que, utilizando-se esse pessoal todo como "incompreendidos", ou como passível a uma releitura depurada de seus imensos crimes humanos, haverá na cordidura do humano como o conhecmos, capacidade de seguir os passos obliterados desse pessoal sem recair na bifurcação que os levou ao massacre."
ResponderExcluirComo disse, cada leitor é seu leitor. Não acho que a paralaxe de Zizek da/do tradição/cânone marxista no Em Defesa objetiva que Mao, Stalin, Castro, sejam incompreendidos. Não estamos diante de um exercício de história redentora. Você mesmo concede em seu texto que Zizek é o primeiro a rememorar os crimes do comunismo. Badiou é mais útil aqui - *aliás, começaria a leitura do Badiou por um de seus últimos ensaios de crítica política, o The Meaning of Sarkozy * - Zizek, como bom neo-Hegeliano que é, e seguindo a leitura de Hegel do amigo, intenta resgatar o evento puro revolucionário que não se sustentou em Robespierre (para além de Robespierre) e na Revolução Cultural. Mas no meu entendimento não há nenhuma relativização dos crimes que se seguiram em ambos os regimes - Daí eu concordar com a segunda parte do excerto seu acima.
Acho que no final a importância do Foucault dos textos Iranianos é maior do que eu pensava para a compreensão do Em Defesa. Até onde eu pude entender Zizek, ele intenta fazer no livro o mesmo que Foucault fez no seu estágio no Irã em 78 e 79 - localizar (na História?) o événement revolucionário puro. Mas Zizek acha que acertará onde Foucault fracassou por causa da deficiente teoria de poder do primeiro em Volonté de Savoir e de sua leitura treslocada de uma tradição de política espiritual que deslizaria desde os Anabatistas até o imans xiitas.
Bom, se tiver mais um tempinho gostaria que você falasse mais sobre esse volume de ensaios do Saul Bellow, o It All Adds Up, e de como ele se encaixaria na temática do meu curso Lamento e História.
ResponderExcluirLuiz, muito serviço por hoje. Estou de plantão no local de trabalho, por isso, não vai dar para responder por agora. Procurarei fazer isso amanhão ou depois.
ResponderExcluirLuiz, talvez o Bellow sirva se tiver o propósito de interagir com a literatura. Não me passa despercebido a subjetividade dessa minha citação a Bellow, um autor fundamental para minha formação mas que talvez não te sirva para o referido curso. Nesses ensaios ele trata da crise de 29, dos escritores no exílio, das influências globais da intelectualidade submetidas aos gigantismos de Sartre e Camus, de debates com Gunter Grass, de capitalismo e perda de espírito. Fundamentalmente ele trata da necessidade do verbo numa era em que a imagem predomina. Se tiver interesse, leia O Público Distraído, nesse volume, que trata de como um mundo que nos pressiona à alienização pode tornar o verbo um instrumento de dominação. A raiz do texto está na necessidade social de não entender o tédio. Bellow cita âncoras de tv altamente conceituados que falam notícias descabidas, apenas por ler o que lhe entregam, e contra as quais um público anestesiado não emite a menor nota de percepção.Sobre judaísmo, há ensaios memorialísticos ricos dos tempos de infância e juventude de Bellow. Há um romance em que Bellow trata especificamente sobre a Romênia, também magnífico:The Dean's December.
ResponderExcluirNão custurei esses dados de forma conveniente, me desculpe a falta de tempo.
Charlles,
ResponderExcluirObrigado pela referência! E sim, muita literatura no curso. Vou procurar o Bellow na biblioteca que inspirou a biblioteca de Eco em O Nome da Rosa.
(Muito contente com o meu Kindle. Vou ver depois se tem como acessar o seu blog pelo brinquedinho)
Luiz, muitas outras considerações a serem feitas a respeito do Zizek. Agora vejo: a semelhança entre ele e os ensaios de Bellow é que, na última parte de Defesa das Causas Perdidas ele dá como certo a catástrofe (referindo-se mais especificamente à ecológica), como compulsão inerente ao homem pela busca ao grande Outro e a dicotomia entre saber/acreditar (sabe-se da catástrofe, mas olha-se o verde das árvores pela janela e NÃO ACREDITA). Bellow explora o mesmo fatalismo de estarmos à mercê de forças ocultas, tanto econômicas, tecnológicas e políticas, que fazem acontecer o nosso andamento cotidiano, mas com as quais não exercemos a menor relação cognitiva. Da mesma maneira brilhante que Zizek trata das Artimanhas da Razão, vemos a lucidez de ver por detrás das aparências empregada por Bellow.
ResponderExcluirLestes Bashevis Singer? Dos autores judeus que leio, o mais radical, o que mais se apega à tradição e contra o iluminismo. Um pequeno romancinho dele_ ou, mais propriamente, novela_, "O Penitente", (The Penitent), trata da exaustão de um intelectual com o mundo e as ideias ocidentais (partes de condenação a Sartre e D.H.Laurence), e que desiste de tudo isso para se voltar às raízes mais simbólicas do judaísmo.
Vou escrever mais sobre Zizek depois. Espero a sua colaboração para devidos esclarecimentos.
(Ainda não consigo sentir uma forte aversão quando ouço essa palavra: Kindle.) :)
Ah! Começo a compreender onde entraria efetivamente seusconceito de "terror".
ResponderExcluirErrata ao primeiro comentário acima (à maneira perfeccionista de Ramiro Conceição): Ainda não consigo DEIXAR DE sentir uma forte aversão quando ouço essa palavra: Kindle
ResponderExcluirMuita coisa ainda a mastigar ainda do lado de cá em tudo o que diz respeito a Zizek. O aprendizado vai ser mútuo, com certeza.
ResponderExcluirAinda estou mastigando a crítica do Zizek ao populismo Sul Americano e ao Chávez.
O teor do curso será passar em revisão a "literatura de sobrevivente" que nasce do imperativo judaíco de superar/responder às tragédias nacionais que marcaram a tradição. Desde a destruição do Templo de Salomão, passando pelo cerco de Jerusalém por Vespasiano, o quase-extermínio do Judaísmo Sefardita na Espanha e o extermínio factual dos Ashkenazitas no Shoa. Daí o recurso a Philo de Alexandria, Flávio Josefo, Eikhah Rabah, Primo Levi, Elie Wiesel e Sholem Aleichem.
Se você me deixar pick your brain nesse currículo seria ótimo. Sei que o seu estágio em literatura judaíca foi intenso...
(Um pouco decepcionado com a disponibilidade de títulos na loja virtual do Kindle - quer dizer, a despeito do fantástico de se ter o 3G bancado pela Amazom para comprar livros em quase qualquer lugar do mundo. Zizek por exemplo tem poucos títulos, The Puppet and the Dwarf, Monstrosities of Christ, Mao, Paralaxe, etc. Decepcionado que o último título do Zizek falta - Living in the End Times -, justamente o título que preciso ler. Mas nada a reclamar do leitor, dos recursos de pdf, do software que organiza os livros e arquivos downloadeados. Mas principalmente me anima a possibilidade de carregar cerca de 3,500 livros num e-reader.)
Ah, sim. Bashevis Singer.
ResponderExcluirGosto muito! Talvez algum conto dele que trate do Exílio... Vou revisitar aqui o Gimpel the Fool...
Obrigado pela sugestão!